Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02662/17.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:07/12/2018
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:MANIFESTAÇÃO DE FORTUNA
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO
ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA
Sumário:A inobservância do dever legal de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, mais concretamente, a falta da análise crítica dos meios de prova, faz com que o tribunal de recurso fique impedido de sindicar o erro de julgamento invocado pelo recorrente.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:E...
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 20/03/2018, que julgou procedente o recurso judicial do acto de fixação de rendimentos da contribuinte E..., melhor identificada nos autos, em sede de IRS, relativamente ao período de 2013, o qual determinou a fixação de rendimento tributável no valor de €304.810,33, de acordo com os critérios fixados nos Artigos 87.º, n.º 1, alínea f) e 89.º- A, n.º 5 da LGT.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
“A. A sentença enferma de nulidade por errónea e insuficiente fixação da matéria de facto (alínea b) do nº 1 do art. 615º do CPC) e por oposição dos fundamentos com a decisão (alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC) e de em violação de lei por errónea interpretação e aplicação do direito.
B. O facto elencado sob o ponto M) não pode ser dado por provado - nem tal facto resulta do relatório inspectivo, devendo ser anulado.
C. O facto elencado sob o ponto N) não pode ser dado por provado - nem tal facto resulta dos documentos referidos na sentença nem da prova testemunhal, devendo ser anulado.
D. Dos autos resulta que a conta era movimentada por J..., mas não que o fosse no âmbito da sua actividade profissional, e muito menos da sua actividade pessoal de compra e venda de automóveis. Dos documentos referidos na sentença não se podem retirar tais conclusões.
E. O que de resto resulta claro na convicção do juiz a quo que, a fls. 23 da sentença reconhece que a conta “era utilizada maioritariamente para o depósito do produto da venda de veículos automóveis que J... efectuava” em nome da empresa I..., de que era gerente, “sem, no entanto, reflectir tais vendas na sociedade ou sequer depositar os proveitos dessa actividade na conta bancária de que era titular a sociedade I....” – sublinhado nosso.
F. Da referida convicção expressa na sentença (a fls. 23) também resulta dever ser anulado o facto dado por não provado sob o nº 2, porquanto é o próprio julgador que reconhece que a conta “era utilizada maioritariamente para o depósito do produto da venda de veículos automóveis que J... efectuava” em nome da empresa I..., de que era gerente, “sem, no entanto, reflectir tais vendas na sociedade ou sequer depositar os proveitos dessa actividade na conta bancária de que era titular a sociedade I....” – sublinhado nosso.
G. Requer-se, em consequência que sejam aditados dois novos factos dados por provados:
- Entre 26/02/2010 e 06/03/2015, a A foi sócia única da empresa I... - COMERCIO DE AUTOMOVEIS UNIPESSOAL Lda. – cfr. RI e certidão permanente que se junta como doc. 1;
- A sociedade J... COMERCIO DE AUTOMOVEIS NOVOS E USADOS, Lda., foi ENCERRADA em 29/06/2012 -– cfr. RI e certidão permanente que se junta como doc. 2
H. De fls. 25, último parágrafo e 26 resulta que, “a venda dos automóveis é consentânea com a prova documental junta aos autos, mormente os documentos de fls. 216 a 277 dos autos – os quais correspondem a declarações emitidas (…) e a 18 dos 27 veículos cujos pagamentos foram desconsiderados pela AT (…).
I. Porém, tais veículos não foram levados ao probatório, nem os 18 cuja venda se considerou, nem os restantes 9 dos 27.
J. Sendo que, a fls. 37 da sentença, pese embora só considere a venda de 18 dos 27 veículos, o juiz a quo julga justificado o montante total impugnado: “perscrutada a factualidade provada nos autos resulta que o valor de 304.810,33 euros – correspondente ao rendimento padrão determinado pela Autoridade Tributária – registado a crédito na conta da Recorrente, resultou da venda dos veículos automóveis identificados nos Itens 94º a 118º da petição inicial.”
K. Ora, a prova documental mencionada na sentença como relevante fls. 216-277 carece de análise individual, sendo vedado ao julgador remeter por grosso para um conjunto de documentos e dar por justificada a totalidade do acto tributário impugnado.
L. Se 18 dos 27 veículos se consideram pagos, tem de ficar evidenciado o iter cognoscitivo valorativo associado a tal conclusão.
M. Nunca a procedência da acção poderia ser total. Dos factos provados devia constar a quantificação dos negócios que correspondem aos 18 de 27, e dos factos não provados, os restantes 9
N. Os documentos e as assunções em que a sentença se fundamenta são profícuos em incongruências: o veículo a que se refere a declaração 8 já tinha sido vendido antes e justificado pela AT; muitas declarações de venda são da sociedade J..., Lda. que estava cessada em 2013; a declaração 2 titula uma aquisição pela I... e não uma venda, a matrícula da declaração 15 que não corresponde ao documento 26-NM-59/42-NM-59, constante dos autos.
O. Resultando que o tribunal a quo não fez a devida analise dos documentos em que fundamenta a sentença. Deles não extraiu as conclusões devidas e não os levou ao probatório por forma a deles concluir justificado o acto tributário.
P. Sem conceder, e ainda que assim não se entenda, sempre se impunha que a procedência fosse meramente parcial, e apenas referente aos 18 mencionados veículos, devendo ser julgada nula, nos termos do art. 615º do CPC. Sem conceder,
Q. A fls. 23 da sentença resulta que o tribunal ficou convicto de que a actividade cujos proveitos eram depositados na conta pessoal da A, respeitava, pelo menos parcialmente, à sociedade I....
R. Mais explicando o tribunal a quo, a fls. 33, que a tributação das manifestações de fortuna depende, designadamente, da não obrigatoriedade de declaração dos rendimentos em causa, prosseguindo a fls. 34, que “a sua aplicação está condicionada (…) à divergência da capacidade contributiva declarada (…) e a capacidade contributiva manifestada”.
S. Ora, resulta à saciedade da sentença, que o meritíssimo juiz a quo julgou provado que a A. viu a sua conta bancária pessoal, de que é única titular acrescida de montantes que, porque resultam de uma actividade comercial, são obrigatoriamente declaráveis e tributáveis.
T. É inequívoco o aumento da capacidade contributiva. O que sai reforçado pela circunstância de a A ser a única sócia da sociedade.
U. Impondo-se em consequência que o tribunal a quo, tivesse decidido em sentido diverso, precisamente porque, ainda que conheça a fonte da riqueza, esta deveria ter sido declarada e, sendo-o, seria tributada, porque sujeita e não isenta. Sem conceder,
V. Ao contrário do entendido na sentença, a tónica das manifestações de fortuna é, precisamente, a apropriação – o acréscimo de património, cfr. a alínea f) do nº 1 do art. 87º da LGT, norma que impõe, assim, a abertura de procedimento de avaliação indirecta à vista da verificação de três pressupostos ou indícios, todos eles objectivos: um acréscimo patrimonial ou despesa, um rendimento declarado ou falta de declaração, e, por último, uma divergência não justificada entre um e outro.
W. Acréscimo de património que é irrefutável, nos presentes autos.
X. Independentemente de os movimentos serem realizados por outrem que não a A., o certo é que os respectivos saldos, passaram a ser totalmente património da A. que deles pode dispor.
Y. Passando nessa medida, a constituir um acréscimo patrimonial da A.
Z. Outro entendimento, conduzir-nos-á a um filão de evasão fiscal que o sistema não acolhe.
AA. Donde, se conclui que a sentença incorre também em errónea interpretação do direito e errónea aplicação do mesmo aos factos. Sem conceder, e subsidiariamente,
BB. Não poderia o tribunal a quo ter condenado a AT nas custas do processo, porquanto foi a A quem, em exclusivo deu azo à acção.
CC. Facto amplamente reconhecido na sentença, porquanto afirma o meritíssimo juiz que formou a sua convicção com base nos depoimentos prestados e nos documentos de fls. 165 a 212 e 215 a 277, todos juntos apenas em sede do presente recurso, já após a petição inicial e, alguns até supervenientes à mesma.
DD. Por este motivo, caso o recurso seja considerado improcedente, total ou parcialmente, o que não se tem por possível, mas que por dever de patrocínio se admite, não deverá prevalecer o princípio da condenação em custas da parte vencida, sendo antes a parte vencedora condenada no seu pagamento.
Termos em que, e com o mui douto suprimento de V. Exas, deve ser
Julgado procedente o presente Recurso Jurisdicional.
Ou, se assim não for entendido,
Deve ser reformada a sentença quanto à imputação da responsabilidade por custas, assacando-se a mesma à A.”
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A Recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
01. Sem prejuízo da difícil intelecção das concretas motivações que subjazem às questões suscitadas na minuta recursiva a que se responde, a verdade é que a Sentença recorrida não merece a censura que lhe é dirigida pela AT.
02. Compulsada a Sentença em crise, claro se torna que a mesma não padece das invocadas nulidades de falta de fundamentação tão pouco de contradição entre a fundamentação e a decisão.
03. Quanto à apontada falta de fundamentação sublinha-se que o Mmo. Julgador a quo não só individualizou, para todos e cada um dos factos dados como provados, os específicos meios probatórios que sustentam a resposta à matéria de facto, como ainda apreciou, de forma crítica e completa, todos os meios de prova produzidos (documental, testemunhal e declarações de parte), numa análise expositiva que se espraia por 11 páginas (da p. 18 à 28).
04. Igualmente, e no que contende com a fundamentação da solução jurídica, o Tribunal recorrido discorre durante 12 páginas (da 28 à 39) sobre o objeto do processo, aborda as questões jurídicas em causa, identifica as teses esgrimidas pelas partes, aporta contributos doutrinais e jurisprudenciais de elevada pertinência, faz um escurso sobre as vicissitudes inerentes aos autos desde o momento da inspeção até ao encerramento da audiência e termina com a aplicação das conclusões que promanam dessa atividade lógica e subsuntiva – pelo que é totalmente descabido apontar tal fulminante censura à Sentença a quo.
05. Por seu turno, a nulidade derivada da contradição entre a fundamentação e a decisão ocorre quando o próprio itinerário perseguido pelo raciocínio do julgador é conduzido de uma forma que, racionalmente, se não coaduna com a conclusão do dispositivo da sentença – o que manifestamente não se verifica in casu.
06. Para sustentar esta imputação, a AT utiliza um (censurável) expediente, ao querer fazer crer que a Sentença recorrida afirmou o que, em lado algum, se colhe ou pode colher do respetivo texto, para o que não coibiu de truncar, aditar e mutilar partes da Sentença que citou – facto que pesarosamente se regista.
07. É pois falso que na Sentença que se diga aquilo que a AT, em manifesta falta de cumprimento dos deveres de lealdade processual, acrescentou à “fundamentação” para a poder criticar: que as vendas fossem feitas “em nome da empresa I...”, da mesma forma que é falso que o Tribunal recorrido tivesse apenas considerado que na conta titulada pela recorrente tivesse sido depositado o valor da venda de 18 dos 27 veículos” (conclusão J) ou que, a esse propósito, não tivesse deixado expresso qual o “iter cognoscitivo valorativo associado” (ponto 25. das alegações e conclusão L), etc.
08. O Tribunal a quo é claro quando afirma que a venda dos automóveis, bem como os respetivos proveitos, depositados na conta bancária da ora alegante, foi realizada por J... e é igualmente claro ao fundamentar, com referência à prova documental conjugada (de forma coerente e verosímil) com a prova testemunhal, que tais depósitos diziam respeito aos 27 veículos (e não aos 18, como insidiosamente afirma, através da omissão que perpetra, a recorrente AT).
SEM PRESCINDIR
09. Importa afirmar – como, diga-se, a Sentença – que é irrelevante para os presentes autos saber se o proveito da venda dos veículos constitui rendimento de J... ou da I.... O objeto dos autos é a determinação da matéria tributável em sede de IRS da ora recorrida.
10. Mais: se se concluísse (e não se concluiu, nem tão pouco a AT pretendeu que tal fosse aditado ao probatório) que se tratavam de rendimentos (ou proveitos) da I... excluídos à tributação teria, necessariamente, de ser na esfera jurídico-tributária desse ente societário que se produziriam os efeitos de uma eventual correção tributária – e só após, e eventualmente, na esfera da alegante enquanto sócia.
11. Paralelamente, constata-se que a recorrente AT pede que sejam “anulados” os factos elencados sob o ponto M) e N) – o que faz, de forma expressa, em função dos vícios de que imputa à Sentença nos termos das alíneas b) e c) do nº1 do artigo 615.º do CPC.
12. Arredada que está a hipótese de procedência das arguidas nulidades da Sentença, entendemos que sendo essa (a nulidade) a questão suscitada, e não a reapreciação da matéria de facto, o Tribunal de recurso não deve cuidar de qualquer erro de julgamento da matéria de facto – pelo que se deverá manter o probatório incólume.
13. E ainda que ainda que assim não se entendesse, o recurso quanto à matéria de facto sempre deverá ser rejeitado por patente incumprimento dos ónus que processuais impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.
14. Com efeito, a recorrente AT não identificou quais os concretos meios de prova que impunham decisão inversa àquela que foi determinada pela Sentença recorrida, limitando-se a afirmar que o “ponto M) não pode ser dado por provado – nem tal facto resulta do relatório inspectivo, devendo ser anulado” (conclusão B) e, que “o ponto N) não pode ser dado por provado – nem tal facto resulta dos documentos referidos na sentença nem da prova testemunhal, devendo ser anulado”.
15. A recorrente ao atacar uma decisão judicial – que declarada e fundamentadamente se estribou em prova testemunhal e documental abundante e criteriosamente analisada – limita-se a balbuciar uma mera discordância genérica e inconsistente, pelo que não tem jus a que seja reapreciada a matéria de facto, impondo-se a rejeição, nessa parte, do recurso.
16. Se assim não se entender, e sem prescindir, ainda assim terá de se concluir que o arrazoado pela recorrente não permite concluir por um qualquer erro de julgamento.
17. Na verdade – por via da prova documental (contratos, cheques, declarações, extratos, etc), testemunhal (do próprio J..., de vendedores que com / para ele trabalhavam, do revisor oficial de contas Paulo Anjos) e das declarações da parte – o Tribunal recorrido ficou com a correta perceção de que a putativa “fonte” do aparente acréscimo patrimonial de que tratam os autos foram negócios a que a ora recorrida é alheia – pelo que deu, e bem, como provados, os factos M) e N) do probatório.
18. Nos pontos 16 e 17 a recorrente pretende que sejam aditados dois novos pontos de facto, que, concede-se, são verdadeiros e resultam até da própria fundamentação da Sentença. Todavia, os mesmos são irrelevantes para a sorte da ação, pelo que não se aceite que se possa considerar que sua não inclusão no probatório da Sentença constitua um erro de julgamento.
19. Saliente-se que para tal impetrância recorrente indica quais os meios probatórios que sustentam a modificação à matéria de facto que persegue (o que demonstra que a Recorrente AT sabe bem que tem de cumprir os ónus processuais inerentes) – todavia, tais meios de prova causa foram… juntos com as alegações, não estando preenchidos os requisitos legais que permitam tal junção tardia, tanto mais quando as sociedades comerciais em causa são referidas desde os primórdios do processo (ainda em sede inspetiva).
20. Concluindo-se pela inadmissibilidade da junção dos documentos que acompanham a minuta recursiva, inerentemente terá de se concluir pela improcedência do pedido de alteração da matéria de facto que neles se ancora.
21. O argumento esgrimido pela Recorrente AT para imputar ao Tribunal a quo erro de direito é inconsistente e incoerente com o próprio procedimento tributário: a AT, aceitou que mais de 50 % do montante que inicialmente considerou tratar-se de rendimentos omitidos pela ora recorrida, eram, afinal, proveitos resultantes da atividade de compra e venda de automóveis a que mesma é alheia.
22. E aceitou a justificação de que não constituíam rendimentos da ora recorrida com o mesmíssimo argumento que fez vencimento em sede judicial: a prova de que a conta bancária em causa era utilizada de favor, funcionando como veículo para depósito dos valores por parte de terceiros que provinham dessa atividade de compra e venda de automóveis
23. Tendo ficado demonstrado que os valores que a AT presumiu tratarem-se de rendimentos omitidos pela aqui alegante não foram por si gerados ou auferidos, antes sim que são imputáveis a outras esferas jurídico-tributárias (de J... ou dos entes societários referidos no processo – sendo que não é objeto dos presentes autos saber se tais rendimentos foram ou não sujeitos a tributação), bem andou a Sentença ao concluir pela anulação do ato de fixação da matéria coletável perpetrado pela AT recorrente.
24. Por fim, igualmente não colhe o pedido de reforma quanto a custas, porquanto o critério de condenação observado na Sentença obedece aos ditames legais: vencida na causa, a AT há-de suportar as custas na proporção do seu decaimento, que é total.
25. Termos em que deverá ser mantida, in totum, a Decisão a quo, confirmando-se quer a procedência total do recurso judicial que a ora alegante, ao abrigo no.º 7 o artigo 89.º-A da LGT e do n.º 2 do artigo 146.º-B do CPPT, se viu obrigada a interpor do acto de fixação de rendimentos em sede de IRS de 2013, quer a decisão quanto a custas.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão deverá ser rejeitado o recurso em resposta e confirmada a Sentença Recorrida, com o que V. Exas. farão a sã e costumada JUSTIÇA!
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso.
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Dada a natureza urgente do processo, há dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida enferma de nulidade, por errónea e insuficiente fixação da matéria de facto e por oposição dos fundamentos com a decisão, e em erro de julgamento na interpretação e aplicação do direito. O objecto do recurso inclui, ainda, a análise do pedido, formulado subsidiariamente, de reforma da sentença quanto à condenação em custas.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“Factos provados
A) A Recorrente foi alvo de uma inspecção tributária, autorizada pela Ordem de Serviço n.º OI201602825, em sede de IRS relativa ao exercício de 2013 – cfr. carta aviso e relatório de inspecção tributária a fls. 3 e 739 do PA, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos;
B) No âmbito do procedimento de inspecção identificado em A) foi autorizado o acesso às informações e documentos bancários da Recorrente – cfr. despachos de fls. 16 verso e fls. 26 verso e decisão de fls. 120 do PA, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos;
C) Mediante ofício n.º 201750000140939 de 05/06/2017 foi solicitado à Recorrente que esta apresentasse “Justificação, documentalmente comprovada, da natureza dos movimentos a crédito evidenciados na conta bancária de depósitos à ordem n.º 0…/Montepio, titulada pelo S.P., durante o ano de 2013 (…)” que totalizavam a quantia de 835.150,02 – cfr. ofício de fls. 209 verso do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
D) A Recorrente assentiu ao solicitado em C) mediante requerimento de 4/07/2017 – cfr. documentos de fls. 223 a 585 do PA, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos;
E) Mediante ofício n.º 20175000234887 foi comunicado à Recorrente o seguinte:
“(…) Notifica(m)-se de que, no prazo de 15 dias poderá(ão), querendo, exercer o direito de audição, por escrito ou oralmente sobre o projecto de relatório de inspecção, que se anexa (…)”
- cfr. ofício a fls. 590 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
F) No projecto de relatório de inspecção identificado em E) foi proposta uma correcção aos rendimentos relativos ao ano de 2013 da Recorrente no valor de 329.293,00 euros – cfr. projecto de relatório de inspecção a fls. 594 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
G) Mediante requerimento de 26/10/2017 a Autora exerceu o seu direito de audição – cfr. documentos de fls. 605 a 735 do PA, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos;
H) Na sequência do procedimento de inspecção identificado em A) foi elaborado o seguinte relatório de inspecção, o qual se transcreve no mais relevante:
“(…) IV.2.2 Decisão da Autorização da Derrogação do Sigilo Bancário
Na data de 07-10-2016, foi concedida pela Directora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira autorização, de acordo com o estabelecido no n° 4 do art.º 63.º-B da Lei Geral Tributária na redacção da Lei n.º 55-B/2004, a que funcionários da Inspecção Tributária, devidamente credenciados, acedam aos documentos bancários existentes nas instituições bancárias, em sociedades financeiras ou instituições de crédito portuguesas, relativo às contas de que fosse titular o sujeito passivo, com referência ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 2012 e 31 de Dezembro de 2013. Nesta sequência, foi o sujeito passivo E… notificado, pelo nosso ofício n.º 2016S000188598 de 02-11-2016, da Decisão da Sra. Directora Geral da AT.
IV.2.3 Análise da informação bancária
Na sequência da derrogação do sigilo bancário e com base nos elementos remetidos pelos bancos:
A) Novo Banco S.A., NIPC 513.204.016, relativos às contas n.ºs 0…, 0…;
B) Caixa Económica Montepio Geral, NIPC 500.792.615, relativos à conta n.º 0…
Verificamos que,
I - a conta bancária n.º 0…, domiciliada no Novo Banco, por confronto com os movimentos contabilísticos constantes da conta "1… - Banco BES", contém os movimentos bancários relevados na contabilidade, sendo possível concluir-se que se trata da conta afecta à actividade empresarial de E…;
II) por outro lado, a conta n.º 0…, domiciliada no Montepio, pelas características de algumas despesas espelhadas nos movimentos financeiros a débito na conta, nomeadamente,
- compras de supermercado (J…, P… D…);
- lojas comerciais (D…, C… Modas, R…, S…, P…, S…, P…, ...);
- educação (creche; Colégio de…);
- restaurantes;
- serviços (M…),
parece-nos tratar-se de uma conta pessoal, afecta á vida particular da titular.
IV.2.3.1 Movimentos bancários na conta n.º 0… Montepio Geral
Tendo-se procedido á análise dos movimentos bancários relativos à conta do Montepio Geral n..º 0…, verificámos a existência de inúmeras entradas a crédito de valores elevados, na forma de depósitos em numerário, depósitos de valores, transferências, conforme quadro apresentado em anexo
A, e que a seguir resumimos,
Entradas
2013
Depósitos em numerário 369.244,33
Depósitos de valores 317.666,67
Transferências bancárias 148.239,02
Total de entradas 835.150,02

IV.2.3.2 Notificação para Justificação dos Créditos/Entradas na conta
Face aos montantes e natureza dos créditos efectuados na conta, notificamos o sujeito passivo, por via postal com carta registada com aviso de recepção, através do nosso ofício n.º 2017S000140939 de 05-062017, para no prazo máximo de 10 (dez) dias, proceder à justificação, documentalmente comprovada, da natureza dos movimentos a crédito evidenciados na conta bancária de depósitos à ordem n° 0…/Montepio, titulada pelo S.P., durante o ano de 2013, conforme valores constantes da relação apresentada em anexo A, e que a seguir se resumem, identificando os casos em que estes valores foram considerados rendimentos em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
IV.2.3.3 Resposta à notificação de 05-06-2017
Na data de 21-06-2017, deu entrada na Direcção de Finanças do Porto, nossa Entrada n.º 2017E001933972, de um requerimento a solicitar a prorrogação do prazo por 15 dias para apresentação dos elementos susceptíveis de justificar os movimentos a crédito na conta n.º 0…, do Montepio Geral. O prazo adicional solicitado foi concedido, tendo a apresentação dos documentos sido fixada para o dia 03-07-2017.
Em resposta à notificação enviada, remeteu a contribuinte uma exposição com 37 páginas, juntando como anexo 87 documentos, a qual se passa a analisar.
De uma forma resumida, apresentamos o alegado pela contribuinte no tocante à justificação dos créditos na conta em análise:
A) DOS MOVIMENTOS A CRÉDITO
1) a conta em questão não era exclusivamente movimentada pela contribuinte, mas também por J…, doravante designado por J..., seu cônjuge até Fevereiro de 2010, anexando um documento bancário no qual está identificada como "Titular" e J... como "Autorizado";
2) sem precisar a data em concreto, informa que por motivos profissionais, J..., lhe solicitou permissão para movimentação da referida conta, que E... refere ter concedido, passando a conta a ser movimentada, a débito e a crédito, quase exclusivamente pelo mesmo;
3) a conta é referida como sendo uma "conta veículo" gerida por J..., sem conhecimento da ,contribuinte, para efectuar movimentos financeiros relacionados com duas empresas, que identificam:
- J... - Comércio de Automóveis Novos e Usados, Lda., NIPC 5…;
- I... - Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda., NIPC 5…;
ambas com actividade de compra e venda de veículos usados pelo que a justificação dos movimentos terá como suporte documentos relativos a operações comerciais disponibilizados por J..., e que referem dizer respeito às sociedades identificadas, as quais eram geridas por J... no ano de 2013.
4) face ao referido nos pontos anteriores, é requerido por E... a audição de J..., para prestar esclarecimentos relativamente aos movimentos bancários.
Nesse sentido, e tendo sido J... mencionado como pessoa habilitada a prestar esclarecimentos sobre a matéria de facto em análise, foi o mesmo informado, através do nosso Oficio n.º2017S000178629, de que, querendo poderia comparecer na Direcção de Finanças do Porto, dia 27 de Julho, pelas 10:30, no sentido de serem tomadas as suas declarações ao abrigo do disposto na alínea g) do n01 do art.º 29° do RCPITA. Perante a impossibilidade do seu mandatário, e na medida em que a justificação invocada não configura fundamento legal para a marcação de nova diligência, procedeu-se à notificação de J..., na pessoa dos seus mandatários, por via postal, nosso Ofício n.º 2017S000185710, para esclarecimento de algumas questões.
B) DA JUSTIFICAÇAO DOS MOVIMENTOS
No sentido de justificarem os movimentos, agrupam os movimentos por tipo, nomeadamente,
- Depósitos de cheques posteriormente devolvidos;
- Transferências relativas a rendas de imóvel;
- Reembolso do IRS de 2013 de E...;
- Depósitos/Transferências com origem na conta de depósitos a prazo;
- Transferências da Sociedade de Advogados das sociedades "J..., Lda." e "I.... Lda.";
- Depósitos/Transferências da sociedade "I..., Lda."; - Venda de veículos usados.
1) Depósitos de cheques posteriormente devolvidos: neste ponto apresentam uma relação de cheques, que foram creditados na conta, e posteriormente debitados pela sua não cobrança, num total de € 60.010,75, juntando cópias dos extractos e dos cheques.
2) Transferências relativas a rendas de imóvel: são identificadas transferências, num valor total de € 8.100,00, que dizem respeito ao prédio urbano artigo 8…, fracção 8, arrendado à sociedade H…, Lda., valores que foram declarados na declaração de IRS Modelo 3 relativa ao ano de 2013, juntando cópia dos recibos de rendas e da declaração de IRS.
3) Reembolso do IRS de 2013 de E...: cheque n." 2090109948, emitido pela Autoridade Tributária, relativo ao reembolso de IRS de 2013, no montante de € 620,92.
4) Dep6sitosITransferências com origem na conta de depósitos a prazo: valores depositados e transferidos de outras contas de E..., totalizando os movimentos financeiros € 17.884,00;
5) Transferências da Sociedade de Advogados das sociedades "J..., Lda." e "I.... Lda.": valores referentes à cobrança de créditos vencidos, que quando cobrados, foram transferidos paras as sociedades J..., Lda. e I..., Lda.
6) Depósitos/Transferências da sociedade "I..., Lda.": nesta rubrica justificam movimentos a crédito num valor global de € 94.360,00, maioritariamente sob a forma de "entrega de numerário", referindo a necessidade de reforço do saldo da conta. Juntam extractos bancários da sociedade assim como talões de depósito.
7) Venda de veículos usados: neste ponto pretende a contribuinte justificar movimentos a crédito num total de € 614.454,68, que refere terem origem em operações comerciais de vendas de veículos usados, das sociedades J..., Lda. e I..., Lda., das quais J... era sócio e gerente.
Para o efeito, identificou para cada uma das vendas, os elementos contratuais essenciais assim como o respectivo movimento a crédito na conta em análise, relativamente às viaturas a seguir identificadas, constantes dos pontos 49 a 80 da resposta à notificação.
Matriculas
DV VD PP LS JQ BN AG NM
LO FR NH TC 0G NH MO GD
ZR NP DH FU MN CP IT AO
BPFR 0C 0C Fa VO 0C VE
Refere, contudo, que relativamente a vendas efectuadas por J... no ano de 2012, constantes dos pontos 81 e 82 da resposta à notificação e ao qual se refere como "venda de veiculas diversos", e cujo preço foi recebido desfasadamente no tempo, por meio de numerário, cheques e transferências, num montante global de € 312.185,33, não conseguem estabelecer uma relação directa, viatura a viatura, dos montantes recebidos com as entradas na conta. Relativamente a estas vendas, juntam anexos diversos.
Em conclusão, e face ao constante dos elementos remetidos, admitem não justificar movimentos a crédito no montante de € 37.507,67. Mais acrescem, que do exposto da resposta à notificação, consideram ter demonstrado que os movimentos a crédito registados na conta bancária do Montepio, com o n.º 0…, no valor global de € 797.642,35, têm outra fonte que não, a actividade empresarial de E....
IV.2.3.4 Análise da resposta à notificação de 05-06-2017
A) Considerações Prévias
1) O facto de E... ter autorizado a movimentação da conta domiciliada no Montepio Geral por parte de J..., não configura uma prova irrefutável para justificar o desconhecimento que afirma ter dos movimentos bancários ocorridos na conta da qual é titular, não a desonerando dos mesmos, até porque a conta era também movimentada por si, pelos movimentos bancários que lhe são particulares, nomeadamente o do reembolso do IRS e outros gastos que já enumeramos, neste projecto de relatório. Entendemos que quando se movimenta uma conta, ainda que em simultâneo com outro autorizado, neste caso, J..., não se pode afirmar que se desconhece em absoluto, os movimentos globais dessa conta, na medida em que regularmente quer através de extractos bancários, acessos online ou via multibanco, se tem conhecimento quer dos movimentos bancários verificados quer dos saldos da conta em questão. Por outro lado, temos também que frisar o facto de E... ter sido sócia das sociedades identificadas na resposta enviada, sendo que relativamente à I..., Lda. a mesma era ainda sócia no exercício em análise, 2013, tendo deixado de ser na data de 06-03-2015, conforme informações constantes das bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2) No hiato de tempo em análise, exercício de 2013, e atendendo às informações disponíveis, apenas a sociedade I..., Lda. estava a exercer actividade, sendo que a empresa J... -Comércio de Automóveis Novos e Usados, Lda. está cessada desde 29-06-2012, pelo que vendas efectuadas no ano de 2013 não poderão ser imputadas à empresa cessada.
B) Análise dos elementos remetidos
1) No tocante às justificações relativos aos movimentos a seguir elencados,
- Depósitos de cheques posteriormente devolvidos;
- Transferências relativas a rendas de imóvel;
- Reembolso do IRS de 2013 de E...;
- Depósitos/Transferências com origem na conta de depósitos a prazo;
- Transferências da Sociedade de Advogados das sociedades "J..., Lda." e "I.... Lda.";
- Depósitos/Transferências da sociedade "I..., Lda.",
consideramos que respondem à notificação, estabelecendo uma conexão directa dos factos aos movimentos de crédito, justificando assim a origem dos fluxos financeiros no montante global de € 183.187,70.
2) Venda de Veículos Usados
2.1) Relativamente à venda das viaturas elencadas nos pontos 49 a 80 da resposta à notificação, cujas matriculas apresentamos no quadro seguinte,

Matrículas
DV VD PP LS JQ BN AG NM
LO FR NH TC 0G NH MO GD
ZR NP DH FU MN CP IT AO
BPFR 0C 0C Fa VO 0C VE
estabelecem uma relação entre os dados da proposta de venda e as entradas na conta bancária, conforme mapa apresentado no anexo B.
Nessa sequência, consideramos como justificados os movimentos a crédito no montante total de € 302.269,35.
2.2) No que respeita às restantes viaturas, constantes dos pontos 81 e 82, com anexos do Doc.60 a Doc. 86, consideramos que apresentam uma mera listagem de viaturas com a identificação das matriculas, valores finais a pagar depois de expurgar valores de retomas, que pretendem relacionar com um conjunto alargado de movimentos a crédito, sem no entanto estabelecerem qualquer conexão entre as duas listagens, não permitindo por essa via verificar inequivocamente a relação entre a venda das viaturas e as entradas a crédito verificadas na conta bancária em análise, não provando cabalmente a proveniência dos movimentos bancários a crédito.
De referir ainda, que alguns dos documentos anexos, como por exemplo os documentos n.ºs 60, 61, 65, 72, 79, 80, 82,84,85, 86, se consubstanciam em simples mapas Excel, relevando também por essa via, insuficiência probatória a nível de documentação das vendas, que pretendem justificar.
Conclusão
De tudo o que foi relatado e em face do valor dos movimentos a crédito verificados na conta do Montepio n. ° 064-10.004944-0 num total de € 835.150,02, consideramos como não justificados o montante de € 349.693,00 (€ 312.185,33 + € 37.507,67), uma vez que não foi demonstrada a proveniência desses rendimentos, nem a sua conexão com a actividade empresarial de E..., e tendo em consideração os valores dos rendimentos declarados em sede de IRS em 2013, no montante de €20.400,00, verificam-se cumpridos os requisitos para aplicação da realização da avaliação indirecta nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 87.°da LGT, que refere o seguinte:
"A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de: "Acréscimo de património ou despesa efectuada, incluindo liberalidades, de valor superior a (euro) 100.000, verificados simultaneamente com a falta de declaração de rendimentos ou com a existência, no mesmo período de tributação de uma divergência não justificada com os rendimentos declarados.",
sendo que, para o efeito da avaliação indirecta, o procedimento inspectivo em análise, inclui a investigação das contas bancárias, conforme estabelecido no n.º 11 do artigo 89.°- A da LGT.
Face ao exposto e verificada a situação prevista na alínea f) do n..º 1 do artigo 87.° da LGT, e tendo em conta o disposto no n." 3 do artigo 89 - A do mesmo código, " ... cabe ao sujeito passivo a comprovação de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou do acréscimo de património ou da despesa efectuada ... ':
concluímos que não foi dada resposta integral ao solicitado na notificação de 05-06-2017, uma vez que falta demonstrar e comprovar devidamente o montante de € 349.693,00, pelo que há um acréscimo de património na esfera de E..., que irá ser objecto de tributação em sede de IRS categoria G.
V.CRITÉRIOS E CÁLCULOS DOS VALORES CORRIGIDOS COM RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
Na sequência do que se descreveu detalhadamente no capítulo IV deste relatório, e tendo por base o estipulado na alínea f) do n.º 1 do artigo 87.°da LGT conjugada com o n.º 5 do artigo 89-A, ambos da LGT, consideramos que do total dos movimentos bancários a crédito, € 835.150,02, a contribuinte apenas justificou movimentos no valor de 302.269,35, ficando por justificar € 349.693,00., pelo que se propõe uma correcção ao rendimento tributável em sede de IRS na categoria G, relativa ao ano de 2013, no montante de € 329.293,00 (€ 349.693,00 - € 20.400,00), proveniente da diferença entre o acréscimo de património ou despesa efectuada não justificada (de € 349.693,00) e o declarado na declaração de rendimentos do ano em causa (de €20,400,00), por configurarem em sede de IRS, rendimentos da categoria G (incrementos patrimoniais não justificados), de harmonia com o preceituado na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRS, e consequentemente, sujeitos à taxa prevista, à data, pelo n.º 10 do artigo 72.°deste diploma.
(…) Resulta, porém, que consubstanciando os recebimentos única e exclusivamente entregas em numerário, consideramos estar em causa a transparência da operação subjacente, não se comprovando a origem do rendimento, o que não permite que inequivocamente se estabeleça a conexão entre a operação de venda identificada e os créditos que pretende justificar. Nos casos em análise, não foram remetidos os documentos comerciais subjacentes às vendas, mas ainda que tivessem sido, ainda assim, não justificariam os créditos efectuados, pelo já invocado. De salientar que os meios de recebimento assumem uma importância primordial, na medida em que, cumpridos os requisitos do estipulado no art.º 63-C da Lei Geral Tributária, identificam os intervenientes das operações comerciais.
Face ao exposto, e tendo-se proposto uma correcção ao rendimento tributável em sede de IRS na categoria G, relativa ao ano de 2013, no montante de € 329.293,00, alteramos a mesma, de acordo com o referido neste capítulo, para 304.810,33 (329.293,00 - 24.482,67), por se terem considerado justificados os créditos constantes das alíneas de 1 a 8 do ponto B-I, deste capítulo. (…)”
- cfr. relatório de inspecção a fls. 739 e seguintes do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
I) Por decisão de 6/11/2017 foi fixado rendimento tributável da Recorrente, com base no relatório de inspecção identificado em H), a quantia correspondente a 304.810,33 euros – cfr. nota de fixação a fls. 760 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
J) A Recorrente é titular da conta bancária com o n.º 0…domiciliada no Montepio, a qual tinha associados os seguintes cartões:
“- cartão de débito número 4… (válido até 28/02/2013) e 4… (válido após 01/03/2013) em nome de E...;
- cartão de débito número 4…em nome de J…;
- cartão de crédito 4…em nome de J….”
cfr. relatório de inspecção tributária a fls. 742 verso do PA e documento de fls. 279 verso dos autos, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos;
K) J..., ex-marido da Recorrente, estava autorizado a movimentar a conta bancária referida em J), tendo sido emitido um cartão de crédito e um de débito em seu nome conforme identificado supra cfr. documento de fls. 279 verso dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzidos;
L) J... era gerente da sociedade “I... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda.”, com o Número de Identificação Fiscal n.º 5…, dedicada ao comércio de veículos automóveis usados - cfr. relatório de inspecção tributária a fls. 743 verso do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e prova testemunhal;
M) A conta bancária identificada em J) era utilizada por J... no âmbito da sua actividade profissional – cfr. relatório de inspecção tributária a fls. 739 a 749, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e prova testemunhal;
N) Os movimentos a crédito registados na conta identificada em J), mormente transferências bancárias, depósitos de cheques e em numerário, foram realizados no âmbito da actividade comercial de venda de veículos automóveis de J... – cfr. documentos de fls. 165 a 212 e 215 a 277 dos autos, cujo teor aqui de dá por integralmente reproduzido e prova testemunhal;
O) A Recorrente estava colectada desde 31/10/2011 para o exercício de compra e venda de bens imobiliários e construção de edifícios imobiliários – cfr. documento de fls. 739 verso do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
*
Factos não Provados
1. Que a Recorrente intervinha na actividade comercial de venda de automóveis usados, prosseguida pela sociedade “I... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda.” e por J....
2. Que os movimentos a crédito identificados na conta bancária identificada no Item J) dos factos provados constituam lucros ou proveitos distribuídos à Recorrente.
*
Não se provaram outros factos com relevo para a boa decisão da causa.
*
Motivação da Matéria de Facto
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da apreciação crítica e conjugada de todos os meios de prova produzidos, nomeadamente, do teor dos documentos juntos aos autos, que submetidos a apreciação resultaram no acervo probatório documental que se encontra especificado nos vários pontos da matéria de facto provada e, bem assim, das declarações de parte da Recorrente e da prova testemunhal produzida nos presentes autos, como se passa a expor:
As testemunhas arroladas pela Recorrente prestaram depoimentos, como se demonstrará infra, consentâneos com a posição assumida pela Recorrente na petição inicial e, em parte, acolhida pela Administração Tributária no relatório de inspecção tributária: a de que a que conta com o n.º 0… domiciliada no Montepio, cuja titular é a Recorrente, é utilizada pelo seu ex-marido, J..., no âmbito do exercício da sua actividade profissional (comércio de veículos automóveis usados).
A testemunha Ana…, empregada bancária no balcão do Montepio em… entre o ano de 2011 e 2014, afirmou, no que respeita aos depósitos efectuados na conta em questão, que J... estava autorizado a movimentar a conta bancária da Recorrente, sendo que via o mesmo com bastante frequência naquele balcão para efectuar depósitos [em cheque e em numerário]. Já quanto à frequência com que a Recorrente se deslocava ao balcão, referiu que durante o período em que esteve a exercer as suas funções, a viu duas ou três vezes para tratar de assuntos relacionados com um depósito a prazo, dado que no acto da renovação se alterava a taxa de juro, o que exigia a assinatura da Recorrente, pelo que foi nessas circunstâncias que a viu no balcão de .... Tal facto foi corroborado pelo depoimento da testemunha L…, bancária no balcão do Montepio em ..., que afirmou que a Recorrente poucas vezes ia ao balcão, dado que quem ia era J....
Ambas as testemunhas referiram que tanto J..., como os seus colaboradores, se deslocavam ao balcão de ... e efectuavam depósitos na conta bancária da Recorrente e numa outra conta da qual era titular a sociedade “I...”. A testemunha L… referiu, inclusive, que associou os movimentos à actividade do ramo automóvel, uma vez que os mesmos assumiam idêntica natureza aos movimentos registados na conta de sociedade “I...” [o que é corroborado pelo extracto bancário a fls. 280 verso, 281 e 282 dos autos], sendo que quanto às operações efectuadas a partir do homebanking – as duas testemunhas afirmaram que tanto a Recorrente como J... tinham o seu código de acesso – estas eram maioritariamente realizadas por J... e correspondiam a pagamento de serviços e imposto automóvel.
Os movimentos registados no cartão de crédito – quer uma e outra testemunha asseveraram que J... era utilizador de um cartão de crédito associado à conta de que é titular a Recorrente – diziam respeito a viagens à Alemanha e a França, registando-se pagamento de estadias em hotéis, combustíveis e levantamentos fora do país. Ora, tais depoimentos foram corroborados pela testemunha B… e, em especial pela testemunha F…, colaboradores de J..., os quais foram assertivos quando afiançaram que este se deslocava ao estrangeiro para adquirir os veículos usados com o intuito de, posteriormente, os vender em Portugal, regressando muitas vezes com o carro que ia adquirir. A testemunha F… afirmou ter acompanhado algumas vezes J... nas viagens para a aquisição dos automóveis [facto corroborado pelas testemunhas que trabalhavam no balcão de ..., que afirmaram que foi efectuado mais do que um seguro de viagem aquando das viagens realizadas por J...].
Quanto aos depósitos efectuados na conta da Recorrente, ressalta-se, ainda, o depoimento da testemunha J…, bancário no balcão de ... desde 2012 e das testemunhas B… e F…, colaboradores de J... à data dos factos na venda dos veículos automóveis. A testemunha J… referiu que a conta em causa nos presentes autos tinha como titular a Recorrente e autorizado o J..., que era quem efectuava os depósitos na conta em questão, juntamente com R… e B… (colaboradores de J... no negócio automóvel), concluindo que os depósitos tanto eram efectuados na conta da qual era titular a Recorrente como na conta da sociedade I.... Quando questionado se alguma vez a Recorrente fez algum depósito na conta, respondeu “que eu me recorde não”, o mesmo tendo referido relativamente aos seguros de viagem efectuados e associados à conta, dado que afirmou. Por seu turno, as testemunhas B… e F… afirmaram que se deslocaram várias vezes ao balcão de ... para depositar o produto da venda dos automóveis, especialmente quando J... se encontrava no estrangeiro [a presença dos colaboradores de J... e a realização dos depósitos por estes, foi corroborada pelas três testemunhas que trabalhavam naquele balcão].
No que respeita à realização dos depósitos bancários, à sua natureza, em que conta eram efectuados e por quem, os depoimentos das testemunhas supra referidas foram coesos, credíveis e isentos, pelo que mereceram a credibilidade do Tribunal, que fundou a sua convicção com base nos mesmos, concluindo que não obstante a conta com o n.º 0…ter como titular a Recorrente, J..., empresário do ramo automóvel, estava autorizado a movimentar aquela conta e era quem a utilizava, com o objectivo de movimentar o produto da venda dos automóveis – alguns dos quais adquiridos na Alemanha e em França – à margem da sociedade I..., ou seja, sem reflectir tais vendas na contabilidade da empresa.
Nesse mesmo sentido apontou o depoimento do próprio J... que, não obstante a emotividade que demonstrou durante o mesmo, asseverou que desde o início, entenda-se desde o começo do procedimento de inspecção tributária, assumiu a responsabilidade pelo que fez, ou seja, pela venda dos automóveis “por fora” da sociedade I..., depositando o produto da venda na conta da Recorrente, a quem tinha pedido o favor de deixar utilizá-la para aquele efeito, uma vez que estava com problemas nas finanças e não podia ter nada no seu nome, incluindo uma conta bancária. O Tribunal considerou o depoimento da testemunha genuíno, evidenciando porventura que a relação com a Recorrente não é uma relação típica de ex-cônjuges, porém no que há natureza dos depósitos diz respeito, demonstrou ser um depoimento credível, coeso e conforme o depoimento das demais testemunhas nesta matéria. Assumindo, inclusive (com as consequências que possam advir para si em sede fiscal e até criminal) que vendeu veículos automóveis à margem da sociedade “I...”, ou seja, sem os facturar devidamente e sem reflectir, por conseguinte, tais vendas na contabilidade da sociedade de que era gerente.
A testemunha referiu, igualmente, que os depósitos eram muitas vezes efectuados por B… e por R…, seus colaboradores, especialmente quando se deslocava para o estrangeiro, após ele determinar a quantia e a conta em que os mesmos seriam efectuados [foi confirmado pelo depoimento das testemunhas que trabalhavam no balcão de ...], concluindo que a Recorrente não tinha intervenção na conta e nos movimentos relacionados com o negócio da venda dos automóveis.
Os depoimentos até aqui mencionados foram consistentes, coerentes e unívocos, o que permitiu ao Tribunal considerar que as declarações de parte prestadas pela Recorrente foram credíveis, dado que foram corroboradas pelos depoimentos supra descritos. A Recorrente afirmou que tinha conhecimento dos depósitos, porém não tinha qualquer informação relativamente aos montantes ou à sua natureza, dado que não se deslocava ao balcão ..., pois que quem o fazia era J.... Mais esclareceu que o autorizou a movimentar a conta, porque ele lho pediu e porque confiava nele. É o pai dos seus filhos. Concluindo, a instâncias da Representante da Fazenda Pública, que sabia que J... utilizava a conta para efectuar depósitos bancários, porém nunca teve qualquer intervenção no negócio do ramo automóvel, nem efectuou qualquer depósito a esse título, ou outro qualquer, na conta bancária em questão, assim como, nunca recebeu qualquer quantia proveniente do negócio com a venda dos veículos.
Perante os depoimentos supra referidos, o Tribunal ficou convicto de que, não obstante a conta em questão registar movimentos como compras de supermercado, roupa, colégio e creche [os quais foram justificados tanto pela Recorrente como pela testemunha J..., no sentido de se reportarem ao auxílio que este dava à Recorrente com as despesas dos filhos de ambos], a mesma era utilizada maioritariamente para o depósito do produto da venda de veículos automóveis que J... efectuava sem, no entanto, reflectir tais vendas na sociedade ou sequer depositar os proveitos dessa actividade na conta bancária de que era titular a sociedade I....
No que respeita às vendas dos veículos em causa nos presentes, o Tribunal alicerçou a sua convicção no depoimento das testemunhas, P…, J..., B…, F… e nos documentos que constam dos autos, mormente nos documentos de fls. 215 a 277 dos autos [declarações dos adquirentes dos veículos], concluindo que os montantes em causa dos autos correspondem, de facto, ao produto de venda de veículos automóveis, os quais eram vendidos, na sua grande parte aos comerciantes de automóveis – que adquiriam mais do que uma viatura – mas registados directamente em nome do adquirente final do automóvel. Quanto ao preço dos automóveis, o Tribunal ficou convicto que o mesmo era pago mediante cheque, numerário e transferência bancária, sendo que na maioria das transacções era pago em prestações [cfr. documentos de fls. 215 a 277 dos autos].
A testemunha P…, que prestou serviços de consultadoria fiscal à Recorrente no decorrer do procedimento de inspecção tributária, asseverou que a Administração Tributária considerou que a maioria dos créditos movimentados na conta em questão dizia respeito à actividade comercial de J..., visto que foram apresentados elementos probatórios que associavam os movimentos a crédito às matrículas dos veículos [“cada movimento estava conexo com uma viatura e com um pagamento”]. Relativamente aos créditos que não foram considerados justificados, referiu que os documentos apresentados para justificação assumiam natureza idêntica aos documentos que se reportavam aos movimentos que foram justificados, concluindo que em alguns casos se verificava que o adquirente final não era o comprador do veículo a J..., uma vez que o comprador era um comerciante de automóveis que actuava como um mediador do negócio. Razão pela qual a propriedade do veículo não era registada em nome do comerciante de automóveis.
A testemunha B…, vendedor de automóveis e vendedor comissionista à data dos factos, afirmou que no ano de 2013 intermediou vários negócios de venda de automóveis entre J... e stands de automóveis, sendo exemplo desses negócios as vendas efectuadas a R…– que descreveu como comerciante de automóveis da zona de Viana do Castelo – a quem levava os carros para venda (os quais muitas vezes ficavam com o comerciante de automóveis à consignação), assim como, a Bessa Nogueira, que descreveu como comerciante da zona de Lousada e mais específico relativamente aos carros que adquiria e a A…, que descreveu como comerciante de automóveis na zona de Braga a quem vendeu mais do que uma viatura. Afirmou que os carros eram pagos mediante transferência bancária ou em cheque, havendo cheques emitidos por terceiros [“o carro está vendido, o pagamento é do cliente, mas o comerciante estava envolvido no negócio”]. O seu depoimento corroborou as transacções que os documentos 4, 5 e 6 da petição inicial a fls. 165 a 169 dos autos pretendem titular, tendo a testemunha afirmado inclusive – quando confrontada em concreto com os documentos 5 e 6 – que tais negócios foram intermediados por si, ou seja, a testemunha teve intervenção directa nos negócios em questão, explicando o modus operandi dos negócios com esta natureza da seguinte forma: o carro vendido não era registado em nome do comerciante, mas directamente em nome do cliente final, uma vez que “para o cliente faz confusão o carro ter passado por várias mãos. Actualmente com o Documento Único Automóvel não há menção, mas antes sim e era um factor de desvalorização do veículo”, reportando-se ao número de registos averbados ao automóvel para venda.
Tal modo de actuação na venda dos veículos foi corroborado pela testemunha F…, que quando confrontado com vários documentos dos autos, mormente os documentos de fls. 184, 186 e 188 dos autos descreveu que os mesmos se reportavam aos contratos utilizados nos negócios – os quais continham os dados do comprador, a identificação do carro, possíveis extras, assim como, se o negócio era efectuado com retoma – o termo de responsabilidade assinado pelo comprador e, bem assim, a sua identificação, afirmando que todos esses negócios foram feitos por si, identificando a sua letra nos contratos e a sua assinatura. Mais disse que muitos clientes pagam em prestações, principalmente os que já conheciam há vários anos, que pagavam conforme lhes desse jeito, sendo que nem sempre as quantias das prestações eram as mesmas (dando exemplo de um comprador que chegava a pagar em moedas a prestação do carro, uma vez que “tinha aquelas máquinas dos cafés e chegavam a pagar em moedas).”
As vendas dos automóveis, da forma descrita pelas testemunhas supra referidas, é consentânea com a prova documental junta aos autos, mormente os documentos constantes de fls. 216 a 277 dos autos – os quais correspondem a declarações emitidas pelos compradores dos veículos identificados nos Itens 94.º, 95.º, 98.º, 101.º, 102.º, 104.º, 105.º, 106.º, 108.º, 109.º, 111.º, 112.º, 115.º, 114.º e 117.º da Petição Inicial e a 18 dos 27 veículos cujos pagamentos foram desconsiderados pela Administração Tributária, cfr. relatório de inspecção tributária a fls. 746-179 do PA. Os veículos relativamente aos quais não existem declarações emitidas pelo comprador são veículos adquiridos por A… (cujo preço foi, igualmente, desconsiderado pela Administração Tributária). Porém, a testemunha B… referiu expressamente que tinha negociado venda de veículos com mesmo, sendo que foram junto aos autos propostas de venda de veículos em que o comprador é A… e, bem assim, cheques emitidos por si cfr. Documentos de fls. 168 verso, 169, 170, 173, 182 dos autos à ordem de J....
Tais documentos confirmam ainda o que foi relatado pelas testemunhas B… e F…: que alguns comerciantes que adquiriam os veículos a J... não adquiriam apenas um veículo [v.g. J. B…], assim como, que muitos compradores tinham uma espécie de plano de pagamento em prestações [cfr. documentos de fls. 216 a 277 dos autos].
O depoimento das testemunhas foram, também quanto a esta questão, consistentes, coesos e coincidentes entre si, demonstrando conhecimento directo dos factos em causa nos autos, o qual obtiveram devido à sua actividade profissional – as testemunhas F… e B… trabalhavam à data dos factos no ramo automóvel com J..., enquanto a testemunha P…, contabilista, prestou serviços de consultadoria fiscal à Recorrente quando se deu início ao procedimento de inspecção fiscal, auxiliando-a na sua defesa – motivo pelo qual mereceram credibilidade por parte do Tribunal, que os levou em consideração para a fixação da matéria de facto, designadamente para os a matéria factual subjacente aos Itens M) e N) do probatório.
Em face de todos os depoimentos prestados em conjugação com os elementos documentais constantes dos presentes autos, e que se encontram no mais relevante espelhados supra, o Tribunal ficou convicto de que os movimentos a crédito depositados na bancária domiciliada no Montepio, e de que é titular a Recorrente, correspondem a produto da venda de veículos automóveis por J... e pelos seus colaboradores – seja a comerciantes do ramo automóvel, seja a adquirentes finais, cujo pagamento foi feito efectuado no seu todo no acto da compra ou cujo pagamento foi efectuado mediante prestações. O Tribunal ficou ainda fortemente convicto, mediante o cotejo dos depoimentos das testemunhas F… e B… e do teor documentos de fls. 164 a 212 e 215 a 277 dos autos, que o valor desconsiderado pela Administração Tributária, e depositado na conta da Recorrente, diz respeito à venda dos veículos automóveis identificados nos presentes autos, conforme se especificou supra.
No que respeita, em concreto, aos factos não provados o Tribunal considerou não provada a factualidade constante do ponto 1 e 2 dos factos não provados, atendendo aos depoimentos das testemunhas B… e F…, que afirmaram que nunca trataram qualquer assunto relacionado com venda dos veículos com a Recorrente, mas sim com J.... A testemunha B… afirmou que “o J… em pé de conversa disse-me que era da E...” [a conta bancária], concluindo que informava no balcão de ... que ia da parte de J... efectuar os depósitos do produto da venda dos automóveis, concluindo que a Recorrente não tinha qualquer intervenção, dado que tratava tudo com J.... O mesmo foi corroborado pela testemunha F…. Já as testemunhas A…, L… e J… que asseveraram que a Recorrente não se deslocava ao balcão de ... para fazer qualquer depósito, assim como, que os depósitos eram todos efectuados por J... e os seus colaboradores.
As declarações de parte da Recorrente E... foram, do mesmo modo, valoradas neste sede, dado que a mesma referiu expressamente nunca ter recebido qualquer quantia relacionada com a venda dos veículos. Nesse sentido, o Tribunal ficou convencido que, não obstante os movimentos a crédito se verificarem na conta da qual é titular a Recorrente, esta não teve qualquer acréscimo patrimonial decorrentes dos depósitos e transferências bancárias realizadas para essa conta, porquanto foram realizados e utilizados na actividade comercial desenvolvida por J... à margem da sociedade comercial I....”


2. O Direito

Começa a Recorrente por arguir a violação do estatuído no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil (CPC), sustentando enfermar a sentença recorrida de errónea e insuficiente fixação da matéria de facto. Desde logo, defende que as alíneas M) e N) do probatório não podem integrar os factos provados, nem o ponto 2 pode incluir-se nos factos não provados, requerendo, ainda, que dois novos factos sejam aditados aos factos considerados provados. Alerta, também, que uma grande parte da factualidade controvertida, relativa à invocação em concreto da venda de veículos automóveis identificados nos itens 94.º a 118.º da petição inicial, não foi levada à decisão da matéria de facto, com a agravante de a factualidade vertida na alínea N) ter sido justificada genericamente, já que o julgador remeteu “por grosso” para um conjunto de documentos, não ficando evidenciado o iter cognoscitivo valorativo associado à convicção do tribunal recorrido, pois este não fez a devida análise (crítica) da prova documental em que se fundou e motivou a sentença recorrida.
A sentença/decisão pode padecer de vícios de duas ordens:
Por um lado, pode ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação;
Por outro lado, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º, do Código de Processo Civil.
Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A jurisprudência tem-se mostrado reiterada no sentido de a nulidade ínsita na alínea b) apenas se verificar quando haja absoluta falta de fundamentos e não quando a justificação seja apenas deficiente, medíocre ou errada, visto o tribunal não se encontrar adstrito à obrigação de apreciação de todos os argumentos das partes. Por outro lado, apenas abrange a falta de motivação da própria decisão e não a falta de justificação dos respectivos fundamentos – cfr. Acórdão do S.T.A., de 16-11-2011, Proc. n.º 0802/10; sendo que tal como refere o Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 140, “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.”.
Encontramo-nos perante um corolário lógico da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais em geral consagrado no artigo 154.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Porém, como refere Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, 5ª ed., Vol. I, pág. 909, “deverão considerar-se como falta absoluta de fundamentação os casos em que ela não tenha relação perceptível com o julgado ou seja ininteligível, situações em que se está perante uma mera aparência de fundamentação.
Com efeito, a fundamentação destina-se a esclarecer as partes, primacialmente a que tiver ficado vencida, sobre os motivos da decisão, não só para ficar convencida de que não tem razão, mas também porque o conhecimento daqueles é necessário ou, pelo menos, conveniente, para poder impugnar eficazmente a decisão em recurso ou arguir nulidades, designadamente a derivada de eventual contradição entre os fundamentos e a decisão.
Por isso, quando a fundamentação não for minimamente elucidativa das razões que levaram a decidir como se decidiu deverá entender-se que se está perante uma nulidade por falta de fundamentação”.
No processo judicial tributário, o vício de não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artigo 125.º, n.º 1, do CPPT, norma onde estão consagrados todos os vícios (e não quaisquer outros) susceptíveis de ferir de nulidade a sentença proferida em processo judicial tributário.
Compulsando o teor da decisão em crise, manifestamente, não é o caso.
Em jeito de conclusão, tem sido uniformemente entendido no Supremo Tribunal Administrativo (STA), com apoio no texto da disposição invocada, só se verificar nulidade quando ocorra falta absoluta de fundamentação.
Ora, a própria Recorrente reconhece, nas suas alegações de recurso, existir, afinal, uma deficiente fundamentação, pois refere-se a uma remissão “por grosso” para um conjunto de documentos e, por outro lado, também aponta para uma insuficiente fixação da matéria de facto.
Contudo, não obstante não se verificar a arguida nulidade da sentença, caberá verificar da suficiência da decisão da matéria de facto para o conhecimento das questões colocadas nos autos, em concatenação com a factualidade invocada na petição inicial e na contestação/oposição e com a sua fundamentação, na medida em que a Recorrente alega desconsideração de factos invocados e erro na apreciação da prova.
A Recorrente apoiou as suas alegações e conclusões de recurso no facto de o tribunal recorrido ter formado convicção essencialmente com base na prova testemunhal, tendo descurado uma análise individualizada dos documentos juntos aos autos, limitando-se a para eles remeter sem especificação, insurgindo-se contra a matéria fixada nas alíneas M) e N) e ponto 2 da decisão da matéria de facto; afirmando que a Recorrida era a única sócia da sociedade “I... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda.” (em 2013), que era titular da conta onde se verificaram os créditos que a AT não considerou justificada a sua origem e alertou que o tribunal ficou convicto de que a actividade cujos proveitos eram depositados na conta pessoal da Recorrida respeitava, pelo menos parcialmente, à sociedade “I...”.
Na verdade, almejando a Recorrente colocar em causa a decisão sobre a matéria de facto, indicou, além dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o meio probatório constante do processo que impõe uma decisão diversa daquela que consta da sentença, em observância do disposto no artigo 640.º do CPC.
Sobre a razão desta exigência já se pronunciou este Tribunal Central Administrativo Norte no Acórdão de 06/01/2011, lavrado in recurso n.º 813/09.8BECBR, que parcialmente se transcreve: “ (….) bem se compreendem estas exigências da lei pois ao tribunal ad quem que tenha competência em matéria de facto não compete reapreciar toda a prova de forma a efectuar um novo julgamento da matéria de facto, como se este não tivesse alguma vez sido efectuado. Quanto ao âmbito do segundo grau de jurisdição em matéria de facto é elucidativo o teor do relatório do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, diploma que introduziu a redacção ao art. 690.º-A que acima deixámos referida. Aí se diz: «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido. A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica, naturalmente, a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.
O julgamento da matéria de facto é um momento essencial da realização da justiça constitucionalmente cometida aos tribunais. De acordo com o disposto no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O juiz tem, por isso, o dever de se pronunciar sobre a factualidade alegada e sobre a que lhe seja lícito conhecer oficiosamente e que se apresente relevante para a decisão, discriminando também a matéria provada da não provada e fundamentando as suas decisões, procedendo à apreciação crítica dos elementos de prova e especificando os fundamentos decisivos para a convicção formada - cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e, a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal Central Administrativo Norte, proferidos em 27/02/2014, proc. n.º 409/06.6BEPNF; em 17/04/2015, proc. n.º 735/09.2BEPNF; em 30/04/2015, proc. n.º 36/05.5BEPNF; em 30/04/2015, proc. n.º 730/09.1BEPNF.
Exige-se assim, por um lado, a análise crítica dos meios de prova produzidos e, por outro, a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, expressa na resposta positiva ou negativa dada à matéria de facto controvertida. “Não se trata, por conseguinte, de um mero juízo arbitrário ou de intuição sobre a realidade ou não de um facto, mas de uma convicção adquirida através de um processo racional, alicerçado - e, de certa maneira, objectivado e transparente - na análise criticamente comparativa dos diversos dados trazidos através das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações essencialmente determinantes da opção feita e cuja enunciação, por exigência legal, representa o assumir das responsabilidades do julgador inerentes ao carácter público da administração da Justiça” – cfr. J. Pereira Baptista, in Reforma do Processo Civil, 1997, pags 90 e ss.
O exame crítico da prova deve consistir, pois, na indicação dos elementos de prova que foram utilizados para formar a convicção do juiz e na sua apreciação crítica, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu no sentido decidido e não noutro. O julgador não se deve limitar a uma simples e genérica indicação dos meios de prova produzidos (v.g. “prova testemunhal” ou “prova por documentos”), impondo-se-lhe que analise criticamente essa prova produzida. O tribunal deve justificar os motivos da sua decisão quanto à matéria de facto, declarando por que razão deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos particulares, etc. Quer dizer: não basta apresentar, como fundamentação, os simples meios de prova, v.g., “os depoimentos prestados pelas testemunhas e a inspecção ao local”, sendo necessária a indicação das razões ou motivos porque relevaram no espírito do julgador - cfr. António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, 2ª, edição, a págs. 253 a 256.
Em suma, a fundamentação de facto não se deve limitar à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre os pontos da matéria de facto – cfr. Jorge Lopes de Sousa, in CPPT anotado e comentado, 6ª edição, 2011, Vol. II, pág. 321.
No caso dos autos, numa primeira leitura, afigurar-se-ia a observação de tal dever de fundamentação pelo tribunal recorrido. Isto porque os factos são elencados com referência à prova produzida e, depois, existe uma abordagem explicativa da análise crítica da prova testemunhal, que corrobora, na óptica da sentença recorrida, a prova documental. Contudo, designadamente quanto à matéria vertida na alínea N), a análise crítica da prova documental que tenha sido efectuada não se reflecte no probatório, ficando a impressão, tal como invocado pela Recorrente, que o julgador não terá feito a devida análise detalhada da prova documental, uma vez que remete genericamente para os documentos ínsitos nos autos a fls. 165 a 212 e 215 a 277 do processo físico; e para formar convicção no que tange à matéria vertida no ponto 2, desconsiderou eventual prova documental produzida sem apresentar qualquer motivação para tal.
Não podemos esquecer que a Recorrida pretendia com o presente recurso judicial a anulação do acto que lhe fixou como rendimento da categoria G a quantia correspondente a €304.810,33, por entender que o mesmo enferma de um vício de violação de lei, designadamente por violação do disposto nos artigos 87.º, n.º 1, alínea f) e artigo 89.º- A, n.º 5 da LGT. Pugnou na sua petição inicial que, ao contrário do que resulta do relatório de inspecção tributária, justificou de forma cabal os movimentos registados a crédito na conta com o n.º 0…domiciliada no Montepio e da qual é titular.
A Administração Tributária aceitou parcialmente as justificações que foram apresentadas em sede de procedimento inspectivo, mas a Recorrida continuou a defender em sede judicial que as restantes transferências bancárias, depósitos de cheques e quantias em numerário que foram registados como movimentos a crédito nessa conta do Montepio advêm da actividade comercial exercida por J... – seu ex-marido – que lhe pediu para utilizar a sua conta bancária para depósito do produto da venda de veículos automóveis. Afirmou a Recorrida que, não obstante ser a titular da conta bancária em questão, a verdade é que os valores aí depositados eram, maioritariamente, provenientes da actividade comercial do seu ex-marido, o qual era autorizado a movimentar a conta em questão, sem que à Recorrida fosse dada qualquer justificação.
Invocou que foi no âmbito do procedimento de inspecção, de que foi alvo, que teve conhecimento do tipo de movimentos que eram efectuados, mormente os depósitos em cheque e numerário, afirmando que não pode aceitar a posição da Administração Tributária, segundo a qual não é possível fazer uma correspondência entre os depósitos em numerário e as operações que supostamente lhe estão subjacentes e, como tal, comprovar-se a origem do rendimento.
Efectivamente, a Fazenda Pública alegou que foi possível estabelecer uma relação entre parte das propostas de venda dos automóveis e os movimentos registados a crédito na conta bancária da Recorrida, pelo que foram considerados justificados os movimentos no montante de €329.293,00. Porém, quanto às demais viaturas – e que se encontram identificadas no relatório de inspecção tributária – não foi possível estabelecer uma ligação entre as alegadas vendas e as entradas a crédito verificadas. Razão pela qual, alegou a Fazenda Pública, foi considerado não justificado o montante de €304.810,33, porquanto não foi demonstrada a proveniência desses rendimentos, nem a sua conexão com a actividade empresarial da Recorrida. A Fazenda Pública asseverou, de igual forma, que a Recorrida foi sócia da sociedade I..., pelo que os proveitos depositados na sua conta passaram a ser seu património total, para deles dispor, constituindo um acréscimo patrimonial da Recorrida. Concluindo que, cabendo ao sujeito passivo a prova de que os rendimentos declarados correspondem à realidade e, bem assim, prova de que os acréscimos patrimoniais provêm de uma outra fonte, não tendo sido cumprido tal ónus, a Recorrida deverá ser tributada nos termos da lei.
Neste recurso, a Recorrente pretende, além do mais, chamar a atenção para a Recorrida, que não se pode considerar totalmente alheia aos movimentos efectuados na conta de que é titular, nem esta ser considerada uma mera conta veículo, cujos movimentos estavam associados a empresas terceiras, dado ser a Recorrida sócia única da empresa I... à data desses registos bancários (2013) e ter feito movimentos na conta que lhe são particulares, como o reembolso do seu IRS e outros gastos referidos no relatório de inspecção tributária.
No caso dos autos, a Recorrida foi alvo de uma inspecção tributária, no âmbito da qual, após derrogação do sigilo bancário para acesso a informação e documentos bancários, a Administração Tributária teve acesso a duas contas bancárias – uma domiciliada no BES e outra no Montepio – das quais a Recorrida é titular, tendo a Administração Tributária verificado que na conta do Montepio se encontravam registados a crédito elevados montantes – ascendiam a cerca de €835.150,02 – quando a Recorrida declarou, no ano de 2013 [ano a que se reportam os movimentos em questão], rendimentos no valor de €20.400,00.
Verificando tal discrepância, foram pedidos esclarecimentos à Recorrida, para que esta justificasse a origem de tais montantes – visto que a sua determinação não foi possível – tendo a Recorrida declarado junto da Administração Tributária, no decurso do procedimento de inspecção, que os movimentos registados a crédito na sua conta correspondiam a movimentos financeiros efectuados pelo seu ex-marido, a quem dera autorização para movimentar a conta em questão, não tendo sequer conhecimento dos movimentos que aí eram efectuados. No âmbito de dever de colaboração com a Administração Tributária, a Recorrida procedeu à junção de vários elementos documentais com o intuito de demonstrar qual a origem das quantias apuradas pela Administração Tributária – que as qualificou de injustificadas em face dos rendimentos declarados pela Recorrida – designadamente comprovativo de depósitos de cheques, transferências relativas a rendas de imóveis, reembolso de IRS do ano de 2013 da Recorrida, transferências efectuadas pelos Advogados da sociedade I..., relativas a créditos cobrados, assim como depósitos e transferências relativas à sociedade I... (cfr. relatório de inspecção), pelo que se considerou justificada a quantia correspondente a €183.187,70, por se ter verificado uma conexão directa entre os montantes registados na conta e os elementos probatórios fornecidos pela Recorrida.
Além das operações supra referidas, a Recorrida informou, igualmente, a Administração Tributária que aqueles montantes advinham da venda de veículos automóveis usados – actividade comercial a que se dedicava o seu ex-marido – uma vez que, como havia comunicado, a conta em questão era movimentada por aquele no âmbito do exercício da sua actividade comercial. Quanto à venda de veículos usados, a Administração Tributária, mediante os elementos que lhe foram sendo fornecidos, estabeleceu um nexo de ligação entre os veículos identificados a págs. 14 do relatório de inspecção, as propostas de venda e os movimentos registados a crédito na conta bancária, razão pela qual considerou justificada a quantia correspondente a €329.293,00.
Porém, como já referimos, no que respeita à quantia de €304.810,33, a Administração Tributária considerou que, relativamente às restantes vendas tituladas por documentos e às quais estavam associados pagamentos em cheque, não foi possível estabelecer um elo de ligação entre as mesmas e as quantias registadas na conta, dado que em relação a algumas viaturas não existia prova de que o veículo tivesse sido registado em nome do comprador ou porque o cheque entregue para pagamento foi emitido por terceiro alheio ao negócio. Já no que concerne às entregas em numerário, considerou que não é possível comprovar a origem do rendimento, pelo que é inverosímil a conexão entre a operação de venda identificada e os créditos cuja justificação se pretende.
Ora, do teor do relatório de inspecção tributária é possível constatar que a Administração Tributária aceitou que grande parte dos movimentos registados a crédito na conta da Recorrida domiciliada no Montepio [mais de 50% do valor apurado], exceptuando a quantia relativa a renda de imóveis e ao reembolso do IRS da Recorrida, correspondem a movimentos relacionados com o negócio de venda de automóveis, designadamente transferências bancárias realizadas pelos Advogados da sociedade I... ou da sociedade J..., Lda., depósitos e transferências efectuados pela sociedade I... e, bem assim, produto da venda dos veículos usados [cfr. páginas 13, 14 e 15 do relatório de inspecção tributária].
Aqui chegados, facilmente se compreende a importância da factualidade invocada nos presentes autos, pois está em causa apurar a origem do valor de €304.810,33 – correspondente ao rendimento padrão determinado pela Administração Tributária – registado a crédito na conta da Recorrida, ou seja, saber, com a segurança e certeza exigíveis, se terá resultado da venda dos veículos automóveis identificados nos artigos 94.º a 119.º da petição inicial, se terão sido vendidos por J..., se foi este que depositou na conta da Recorrida tais quantias, a que título, se estava a utilizar a conta da Recorrida e para que efeito, tudo contendendo, precisamente, com a matéria vertida nas alíneas M), N) e ponto 2 da decisão da matéria de facto; para, depois, tornar viável a conclusão acerca de tais acréscimos: se constituirão ou não rendimento tributável da Recorrida.
A sentença recorrida considerou ter ficado demonstrado que, à semelhança das quantias que foram consideradas justificadas ainda em sede de inspecção tributária, os montantes aqui em questão respeitam ao produto da venda de automóveis por J..., que utilizava a conta da Recorrida para depositar as quantias recebidas pela venda dos veículos à margem da sociedade I..., ou seja, sem reflectir tais operações na contabilidade da sociedade como é suposto e legalmente exigível.
Não é compreensível que a Recorrida afirme na sua petição inicial que a conta bancária do Montepio passou a ser movimentada a débito e a crédito quase exclusivamente por J…, registando apenas movimentos residuais feitos pela Recorrida, que os valores aí depositados eram na sua esmagadora maioria pertença das sociedades J... – Comércio de Automóveis Novos e Usados, Lda. e I... – Comércio de Automóveis, Unipessoal, Lda. ou, no limite, de J..., que uma parte significativa dos inputs e dos outputs da actividade deste era feita sem documentos e por meio de pagamento em numerário ou em prestações, que a partir do momento em que J… passou a constar da ficha de conta, como pessoa autorizada para movimentar a conta, a quase globalidade dos movimentos passou a ser realizada por si (cfr. artigos 29.º, 60.º, 72.º, 82.º e 83.º da petição inicial) e que, globalmente, sem qualquer discriminação ou concretização, o tribunal recorrido leve ao probatório que os movimentos a crédito registados na conta identificada em J), mormente transferências bancárias, depósitos de cheques e em numerário, foram realizados no âmbito da actividade comercial de venda de veículos automóveis de J... – cfr. item N) da decisão da matéria de facto em crise.
A Recorrida, na sua petição inicial, invocou detalhadamente e propôs-se fazer prova concreta dos valores que respeitavam efectivamente à venda de veículos, tendo em vista uma plena demonstração da origem das entradas a crédito na conta bancária da Recorrida, procurando identificar as operações activas que lhe deram origem, procedendo à referenciação da operação que originou o valor creditado, com menção à viatura, pessoa do adquirente e valor da venda, juntando os documentos n.º 4 a n.º 28 para o efeito – cfr. artigos 94.º a 119.º da petição inicial.
A Recorrente, na sua oposição, logo nos primeiros artigos, não obstante o já constante do relatório de inspecção, invocou que, entre o período de 28/09/2007 a 29/06/2012, a Recorrida foi sócia da empresa J... - Comércio de Automóveis Novos e Usados, Lda. e que, entre 26/02/2010 e 06/03/2015, foi sócia da empresa I... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda. (cfr. artigos 5.º e 6.º). De seguida, nos artigos 65.º a 89.ºda oposição, a Recorrente demonstra, ponto por ponto, os motivos por que, na sua óptica, tais alegações (factualidade constante dos artigos 94.º a 119.º da petição) e prova não poderiam proceder e por que tais conexões não resultavam demonstradas.
Nesta conformidade, não residem dúvidas que esta matéria é controvertida, que importa saber a que corresponde em concreto “a quase totalidade” ou “a grande maioria” dos movimentos na conta bancária em crise, sendo relevante apurar estes factos para a decisão da causa.
A Recorrente alega que os documentos e as assunções em que a sentença se fundamenta são profícuos em incongruências: o veículo a que se refere a declaração 8 já tinha sido vendido antes e justificado pela AT; muitas declarações de venda são da sociedade J..., Lda. que estava cessada em 2013; a declaração 2 titula uma aquisição pela I... e não uma venda, a matrícula da declaração 15 que não corresponde ao documento constante dos autos: 26-NM-59/42-NM-59.
Efectivamente, compulsando os documentos de fls. 165 a 212 e 215 a 277 do processo físico, verificamos que as observações efectuadas pela Recorrente estão correctas, não espelhando a fundamentação da decisão da matéria de facto que o tribunal a quo tenha feito a devida análise crítica dos documentos em que fundamenta a sentença. Não se explica, apesar de várias incongruências, como valorizou antes a prova testemunhal e por que motivo, dizendo apenas que a prova testemunhal é consentânea e corroborou a prova documental. Na verdade, as conclusões extraídas são apresentadas de forma genérica, global, sem concretização, impossibilitando apreciar o alegado e eventual erro de julgamento – cfr. motivação da decisão da matéria de facto.
Resulta das actas da diligência de inquirição de testemunhas, ínsitas a fls. 290 a 294 verso do processo físico, que algumas testemunhas prestaram depoimento à matéria vertida nos artigos 94.º a 119.º da petição inicial, tendo o mesmo sido consistente, coeso, coincidente entre si, demonstrando conhecimento directo dos factos em causa, mas somente se levou ao probatório, sem mais, que os movimentos a crédito registados na conta identificada em J), mormente transferências bancárias, depósitos de cheques e em numerário, foram realizados no âmbito da actividade comercial de venda de veículos automóveis de J....
Num processo em que foi carreada prova, nomeadamente, documental e testemunhal, é essencial o tribunal proceder ao exame crítico das provas. In casu, tal não se verificou plenamente, resultando de todo inviabilizada a percepção dos motivos da decisão ou, dito de outra forma, das razões que levaram o tribunal a decidir como decidiu.
Afirmou-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, desta Sessão, de 27/02/2014, proferido no âmbito do processo n.º 409/06.6BEPNF, “(…) a inobservância do dever legal de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, mais concretamente, a mera referência genérica aos meios de prova que a terão suportado e a falta da análise crítica dos mesmos, faz com que o tribunal de recurso também fique impedido de sindicar o erro de julgamento invocado pela recorrente. Tal decisão de facto é, assim, ininteligível, o que é equivalente à falta absoluta de fundamentação.”
No presente caso, a Recorrente assaca erro de julgamento sobre a matéria de facto à sentença recorrida, impugnando a mesma, pretendendo que seja reapreciada a prova produzida e identificando a existência desse erro nos factos provados nos itens M) e N) e ponto 2.
Analisando a decisão da matéria de facto, verificamos que o julgador não exteriorizou a análise crítica que terá efectuado da prova documental, remetendo em bloco para documentos, desconhecendo-se, por isso, como terá formado a sua convicção, sendo certo que deve existir uma concatenação de toda a prova produzida.
A reapreciação da matéria de facto não pode significar a abertura da possibilidade de realização de um novo julgamento pela Relação, objectivo que jamais esteve no horizonte das sucessivas modificações legais, antes uma medida paliativa destinada a resolver situações patológicas que emergem simplesmente de uma nebulosa que envolva a prova que foi produzida e que não foi convenientemente resolvida segundo o juízo crítico da Relação (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, pp. 241 e 245 e Acórdão do TCAS n.º 07219/13, de 29/05/2014).
A modificação da decisão de facto não deve atingir uma amplitude tal que implique todo um novo julgamento de facto, com a reapreciação de toda a prova produzida, a alteração da convicção do julgador a quo e a postergação dos princípios da livre apreciação das provas e da imediação.
Por isso, a possibilidade de apreciação de determinado meio probatório pressupõe que o tribunal recorrido dê a conhecer a fundamentação e as razões do seu convencimento em detrimento de outros meios probatórios, tanto mais que existem nos autos vários instrumentos de prova. O que não se mostra integralmente efectuado na sentença recorrida.
Na verdade, a factualidade que a Recorrente coloca em crise é relevante para a decisão da causa, como decorre, aliás, da própria fundamentação da decisão recorrida.
Por outro lado, o tribunal recorrido não elencou na decisão da matéria de facto factos simples, mas antes, em alguns casos, juízos de valor, conclusões de facto (e de direito) que condicionam irremediavelmente a subsunção ao direito e o desfecho da acção. Os itens M) e N) em análise são o exemplo mais gritante de conclusões de facto que condicionaram forçosamente o desfecho da acção. Saber se a conta bancária no Montepio era utilizada por J... no âmbito da sua actividade profissional ou se os movimentos a crédito aí registados foram realizados no âmbito da actividade comercial de venda de veículos automóveis de J... são as conclusões a que o tribunal terá que chegar a partir de factos simples alegados e provados.
Nesta conformidade, os itens M) e N) da decisão recorrida nunca poderiam manter-se, tendo-se como não escritos.
De resto, sobre a factualidade invocada na petição inicial, dos artigos 94.º a 119.º, recaiu produção de prova testemunhal (cfr. actas das diligências realizadas em 08/02/2018, 02/03/2018 e 14/03/2018, a fls. 290 a 294 verso do processo físico) e prova documental (cfr. fls. 165 a 212 e 215 a 277 do processo físico). O certo é que, expurgada a matéria conclusiva e os juízos de valor, esses factos (bem como outros invocados), não constam nem da factualidade provada nem da não provada. Importava dilucidar se a Recorrida, sendo sócia da sociedade I... em 2013, estaria realmente alheada da totalidade dos créditos entrados na sua conta, se algumas quantias seriam suas – quais e a que título, analisando um a um os dados/factos das invocadas 25 vendas de veículos (e aquisição de motor), devendo ficar esclarecido por que motivo algumas declarações de venda estão emitidas por J... – Comércio de Automóveis Novos e Usados, Lda. (uma vez que esta sociedade na data das vendas em 2013 já estava encerrada), de molde a permitir ao tribunal retirar as ilações pertinentes para a decisão da causa.
Atento tudo o que ficou dito, a decisão tem de ser eliminada da ordem jurídica, com a consequente remessa dos autos ao tribunal de primeira instância para prolação de nova decisão sem os vícios apontados.
O recurso merece, assim, provimento.
Em face do exposto, fica, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

Conclusão/Sumário

A inobservância do dever legal de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, mais concretamente, a falta da análise crítica dos meios de prova, faz com que o tribunal de recurso fique impedido de sindicar o erro de julgamento invocado pelo recorrente.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a remessa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, a fim de aí ser proferida nova decisão onde se supra o apontado vício.
Sem custas.
D.N.
Porto, 12 de Julho de 2018
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Pedro Vergueiro