Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00278/16.8BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/05/2021
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Helena Canelas
Descritores:COMPETÊNCIA MATERIAL – TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS – PROPRIEDADE – REIVINDICAÇÃO – VIA DE FACTO – RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA
Sumário:I - O artigo 4º nº 1 do ETAF, na versão decorrente da revisão operada pelo DL. n.º 214-G/2015 contempla expressamente, no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, para além as situações referentes à efetivação da responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público a que se refere a alínea f), as que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, a que se refere a alínea i).

II - Esta alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF (versão do DL. n.º 214-G/2015) atribui, assim, competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza administrativa dos litígios que tenham por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício do poder administrativo, ainda que ilegítimo.

III - O Tribunal Administrativo é materialmente competente para decidir a ação, sendo de configurar o litígio como emergente de uma relação jurídica administrativa, se o autor alega que o terreno de que é proprietário foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público, no caso uma Freguesia, através dos atos materiais consubstanciados na destruição ou remoção de taludes para alargamento de um caminho, com derrocada de parte do terreno e alteração da respetiva configuração do prédio, e com abertura de uma vala ao longo dele, de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior, ou então, indemnizado pelos danos causados, mormente quanto ao valor da área do terreno que foi, alegadamente, ocupado e retirado.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:J.
Recorrido 1:FREGUESIA DE (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

J. (devidamente identificado nos autos) autor na ação administrativa que instaurou em 08/09/2016 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela contra a FREGUESIA DE (...) inconformado com a decisão proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo no despacho-saneador datado de 06/12/2018 (fls. 89 SITAF) pela qual, entendendo que a matéria objeto da ação se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pertencendo à jurisdição comum, absolveu o réu da instância com fundamento na verificação da exceção de incompetência material, dela interpôs o presente recurso de apelação (fls. 101 SITAF), formulando as seguintes conclusões, nos seguintes termos:





Não foram apresentadas contra-alegações.
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Remetidos os autos em recurso a este Tribunal Central Administrativo Norte, e nele notificada a Digna Magistrada do Ministério Público nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 146.º e 147.º do CPTA, não emitiu Parecer.
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Com dispensa de vistos, foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.
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II. DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO/das questões a decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC novo (Lei n.º 41/2013) ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA.

No caso é objeto do presente recurso a decisão proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo em 06/12/2018 (fls. 89 SITAF) em sede de despacho-saneador, pela qual entendendo-se que a matéria objeto da ação se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pertencendo à jurisdição comum, se absolveu o réu da instância com fundamento na verificação da exceção de incompetência material, sendo a questão essencial a decidir a de saber se a identificada decisão incorreu em erro de julgamento, devendo ser revogada, como propugnado pelo recorrente, por o Tribunal a quo ser materialmente competente.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO

1. Da decisão recorrida
Pela decisão proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo em 06/12/2018 (fls. 89 SITAF) em sede de despacho-saneador, entendendo-se que a matéria objeto da ação se encontra excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pertencendo à jurisdição comum, absolveu-se o réu da instância com fundamento na verificação da exceção de incompetência material.

Decisão que assentou na seguinte fundamentação, que se passa a transcrever:
«A competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública, precedendo o seu conhecimento o de qualquer outra matéria (art.º 13º do CPTA). Pelo que, importa, de imediato, apreciar a suscitada excepção de incompetência material, averiguando se este Tribunal é o competente em razão da matéria para os termos da presente acção.
Para aferir da competência dos tribunais administrativos importa convocar as disposições respeitantes ao âmbito da jurisdição, previstas nos art.os 1º, 4º e 5º do ETAF e a Exposição de Motivos à Proposta de Lei n.º 93/VIII, que aprovou o ETAF.
Da análise das identificadas disposições do ETAF resulta serem os tribunais administrativos e fiscais os competentes para conhecer dos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais, devendo os respectivos preceitos ser conjugados e articulados com o disposto no art.º 212º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A referida norma constitucional consagra o princípio da competência ordinária dos tribunais administrativos e fiscais, ao abrigo do qual estes são competentes para o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Desta forma, deixaram os tribunais administrativos e fiscais de ter uma competência especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, para constituírem os tribunais comuns ou ordinários em matéria administrativa.
Porém, muito embora compita, em regra, aos tribunais administrativos e fiscais conhecer dos litígios em matéria administrativa e fiscal, a lei consente que questões de natureza administrativa e fiscal possam ser atribuídas, mediante lei especial habilitante, a outros tribunais.
Consagra-se, desta forma, não a reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos e fiscais, mas o princípio da reserva relativa de competência.
A existência de várias categorias de tribunais [cf. art.º 209º, n.º 1, alíneas a) e b) da CRP] pressupõe a existência de um critério de repartição de competências. Optou o legislador por estabelecer um critério de natureza objectiva, atendendo essencialmente à natureza das questões, e não um critério subjectivo, em função da categoria das pessoas.
A Constituição reserva a jurisdição judicial ou comum como sendo de competência residual, para todas as matérias não atribuídas às restantes categorias ou ordens judiciais, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 211º da CRP.
Mas importa ainda conjugar esta regra com determinados regimes especiais de atribuição de competência, como sejam os litígios que envolvam os titulares de determinados órgãos de soberania, o contencioso eleitoral ou o conhecimento dos litígios resultantes de alguns processos de contra-ordenação. Pelo que, determinadas matérias são ressalvadas da competência dos tribunais administrativos.
Neste sentido aponta a Exposição de Motivos à Proposta de Lei n.º 93/VIII, que aprovou o ETAF: “Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de «relações jurídicas administrativas e fiscais». Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática (…)”.
Conforme refere o Tribunal de Conflitos, no seu Acórdão n.º 02/12, de 20/09/2012, “A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos, sendo que em sede da indagação a proceder a este nível irreleva o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão.” – no mesmo sentido, vd. MANUEL DE ANDRADE, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 91.
Assim, «para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir)» – cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25/11/2010 (proc. 021/10). Isto é, deve atender-se à pretensão material do autor bem como aos factos invocados com relevância jurídica que, segundo este, preenchem a previsão normativa invocada.
Pelos presentes autos o A. pretende que a R. seja condenada a reconhecer o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial; a reconstituir a situação existente mediante delimitação do prédio; e, a título subsidiário, a indemniza-lo pelo valor da parcela de terreno perdida a favor do caminho por fim e a pagar-lhe uma indemnização a título de danos patrimoniais pela queda das árvores.
Examinando a causa de pedir, verifica-se, em suma, a seguinte alegação:

- o A. é proprietário do prédio rústico, situado na (…), FREGUESIA DE (...), concelho de Vinhais, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número 412 e inscrito na matriz predial rústica da FREGUESIA DE (...) sob o artigo 2234;
- o referido prédio veio à posse do A. por doação e partilha em vida de seus pais, anteriores possuidores;
- que por si e ante possuidores há mais de 10 e 20 anos que tal prédio se encontra na sua posse, ignorando lesar direitos de outrem, à vista de toda a gente, sem violência ou oposição e praticando sobre o mesmo os actos de um proprietário;
- quanto mais não fosse, sempre o A. o teria adquirido por usucapião;
- no prédio em causa o A. tem vindo a desenvolver a cultura de cerejeiras para madeira e, nas extremas, no topo de um talude, carvalhos, azevinhos e cedros;
- em final de Abril, princípio de Maio de 2015, o A. constatou que havia sido removida a base dos taludes de suporte das árvores que ali tem plantadas, em toda a extrema do seu prédio para alargamento do caminho da (...);
- o que provocou a derrocada de parte do terreno e a alteração da configuração do prédio, com perda de 66 m2 a favor desse caminho;
- há mais de 10 anos que, na extrema sul do prédio do A. está situado um tubo danificado que transporta água para a aldeia;
- na mesma altura da remoção da base dos taludes, a R. abriu igualmente uma vala ao longo e dentro da propriedade do A., removendo, também aí, a base de sustentação do talude e ocupando uma faixa de terreno do A. de aproximadamente 19,40 m2, impossibilitando o A. de entrar na sua propriedade.

Em resumo, o A. alega que a R. violou o seu direito de propriedade, já que, sem qualquer autorização ou consentimento, invadiu o seu prédio e aí destruiu plantações e construções existentes, impedindo-o inclusivamente de aceder ao seu prédio. Pretende que a R. seja condenada a reconhecer o direito de propriedade que detém, a delimitar o prédio pelos limites existentes antes da sua intervenção, bem como a indemnizar o A. pelos danos patrimoniais sofridos em consequência daqueles factos.
A questão material controvertida, tal como apresentada pelo A. na petição inicial, é o reconhecimento do direito de propriedade, a devolução do terreno no estado em que se encontrava, bem como a indemnização por danos patrimoniais.
A alegação do A. reside apenas na violação, pela R., do seu direito de propriedade.
Pelo teor da sua pretensão facilmente se percebe que o que está em causa é a violação do direito de propriedade do A., o que passa, desde logo, pelo reconhecimento do direito de propriedade do prédio em causa.
Na petição inicial não é identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer acto. Está em causa uma mera actuação material, imputada à R. que, no entender do A., viola o seu direito de propriedade sobre o prédio em questão. O que está em causa é apenas um reconhecimento do direito de propriedade de que o A. se arroga e saber se a actuação da R. violou ou não tal direito de propriedade, pois está em causa a delimitação daquele prédio.
Ora, o reconhecimento do direito de propriedade não integra a noção de relação jurídica de natureza administrativa, conforme resulta dos art.os 212º, n.º 3 da CRP, 1º e 4º do ETAF, dado inexistirem quaisquer normas de direito público que importe apreciar.
Assim, em face da forma concreta como é configurada a acção na petição inicial, estamos perante matéria cuja competência pertence aos tribunais comuns dirimirem. O Tribunal de Conflitos foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber quais os tribunais competentes para dirimirem os litígios que tenham por objecto o reconhecimento do direito de propriedade, tendo concluído que são os tribunais da jurisdição comum e não os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal – cf. Acórdãos do Tribunal de Conflitos n.os 035/13, de 27/11/2013, 024/13, de 15/05/2013, 018/13, de 18/12/2013, e 011/09, de 07/07/2009; bem como do Supremo Tribunal Administrativo de 21/05/2014 (proc. n.º 0663/12) e do Tribunal da Relação do Porto de 26/02/2013 (proc. n.º 292/08.7TBVLP.P1) e de 04/11/2013 (proc. n.º 790/08.2TVPRT.P2).
Da leitura da petição inicial constata-se que o A. apenas pretende defender os seus direitos relativamente ao imóvel em causa: pretende ser declarado proprietário do prédio em causa; que a R. seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade; e que o prédio seja restituído no estado em que se encontrava antes da intervenção nele efectuada pela R..
Está, portanto, em causa uma típica acção de reivindicação.
Acontece que, não há no ETAF uma norma que atribua competência à jurisdição administrativa para o conhecimento de acções de reivindicação (vd. art.º 4º). Solução que bem se compreende, pois o que nelas essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo dominus existe e é oponível ao réu, por forma a tirar a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público (se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção) – cf. Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 12/10, de 09/06/2010.
É certo que existe um pedido indemnizatório que se reporta a alegados danos patrimoniais sofridos pelo A. em decorrência dos aborrecimentos e angústias geradas pela invasão do seu prédio pela R., mas também é certo que tal pedido é formulado a título subsidiário no que tange aos danos decorrentes da eventual impossibilidade de obter a restituição do terreno à sua situação existente antes da intervenção da R. no mesmo.
E, por conseguinte, a presente acção poderia ser configurada como uma acção de responsabilidade da Freguesia, de modo a afirmar a competência dos Tribunais Administrativos, desde logo porque o montante em causa reporta-se a danos patrimoniais causados pela R. decorrentes de uma actuação material alegadamente ilícita, traduzida na invasão da propriedade do A..
Porém, o Tribunal de Conflitos conclui, no Acórdão n.º 08/11, de 12/01/2012, que “cabe aos tribunais comuns a competência para conhecer de acção ordinária, na qual os autores, invocando a qualidade de proprietários de prédio rústico abrangido por obras de construção de auto-estrada levadas a efeito pelas rés, sociedades de direito privado, pedem a condenação destas no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquele prédio, a reposição dos solos nas condições em que se encontravam anteriormente à intervenção das rés e, ainda, à respectiva condenação em indemnização pelos danos causados com tal intervenção”.
Aplicando esta jurisprudência à situação em apreço, caberá aos tribunais comuns a competência para conhecer de acção em que o autor, invocando a qualidade de proprietário de prédio ocupado por uma autarquia local, pede a condenação desta ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquele prédio, reconstrução das edificações demolidas, replantação de árvores arrancadas e reposição dos solos nas condições em que se encontravam anteriormente e ainda à respectiva condenação em indemnização por danos patrimoniais provocados por tal actuação. Entendimento entretanto reiterado pelo Tribunal de Conflitos nos seus Acórdãos n.º 048/15, de 07/07/2016, e 01/17, de 24/05/2017, em situações idênticas à dos presentes autos (acção de reivindicação com pedido indemnizatório formulado).
Assim, o litígio em causa está excluído da competência dos tribunais administrativos, competindo aos tribunais judiciais a competência para o julgamento da causa, conforme esta vem delineada pelo A..
Conclui, assim, este Tribunal pela absolvição da R. da presente instância por verificação da incompetência absoluta em razão da matéria, nos termos do art.º 14º, n.º 2 do CPTA e art.°s 96º, alínea a), 99º, e 278º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi art.º 1º do CPTA.»

2. Da tese da recorrente

Insurgindo-se quanto ao decidido, o recorrente, defende, em suma, nos termos que expôs nas suas alegações de recurso e reconduziu às respetivas conclusões, que resulta inequivocamente da petição inicial da ação que através dela visa responsabilizar a ré FREGUESIA DE (...) pelos danos causados com a sua atuação, no âmbito da limpeza que aquela levou a cabo em violação do seu direito de propriedade e que assim deve ser constituída na obrigação de indemnizar, nos termos da Lei nº 67/2007, sendo tal matéria da competência dos Tribunais Administrativos nos termos dos artigos 37º alínea k) do CPTA e 4º nº 1 alínea f) do ETAF, e que a ação não configura uma ação de reivindicação a que se refere o artigo 1311º do Código Civil, como erradamente, do seu ponto de vista, entendeu o Tribunal a quo.

3. Da análise e apreciação e recurso

3.1 Desde 1989 que a Constituição da República Portuguesa consagra a separação entre os tribunais judiciais, que compõem a jurisdição comum, da jurisdição administrativa e fiscal (cfr. atuais artigos 209º a 212º da CRP), separação que vinha já instituída pela legislação de 1984/85, com a aprovação do Estatutos dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF (Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de abril) e com a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos –LPTA (Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de julho). A repartição de competências entre as duas ordens de tribunais é feita, nos termos da Constituição, atribuindo aos tribunais judiciais competência genérica ou não discriminada, o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cfr. artigo 211° n.° 1 da CRP, nos termos do qual “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”).

Ao invés, os Tribunais Administrativos e Tributários têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas, competindo-lhes “o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cfr. nº 3 do artigo 212º da CRP).

Aquela norma incorpora, assim, uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos Tribunais Administrativos dos «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas», e que assim constitui a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais: os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas são, em regra, julgados nos tribunais administrativos. Podendo afirmar-se, atualmente, que os Tribunais Administrativos são os tribunais comuns em matéria administrativa, detendo reserva de jurisdição nessas matérias, exceto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição – (a propósito das teses contrapostas da existência de uma reserva material de jurisdição atribuída pela Constituição aos Tribunais Administrativos, de natureza absoluta ou de natureza relativa, vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, inConstituição Anotada”, 3ª Edição, 1993, e Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in, Código de Processo Nos Tribunais Administrativos, Vol. I, pp. 21-25, e Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in As Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, pp. 21 e segs.. José Carlos Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 4ª Edição, p. 107 e segs., José Manuel Sérvulo Correia, in, “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes”, 1995, p. 254, Rui de Medeiros, in “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, nº 16, pp. 35 e 36, Jorge Miranda, in, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, nº 24, p. 3 e segs.).

3.2 O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, encontra-se atualmente definido no artigo 4º do ETAF, o qual sofreu, desde o diploma aprovador (a Lei nº 13/2002, na versão final revista que viria a entrar em vigor com o início da vigência da reforma de 2002-2004, dada pelas Leis nº 4-A/2003, de 19 de fevereiro e n.º 107-D/2003, de 31 de dezembro), as modificações introduzidas pela Lei nº 59/2008, de 11 de setembro, pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de outubro (este no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto) e mais recentemente pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro.

3.3 Tendo a presente ação sido instaurada em 08/09/2016 (cfr. fls. 1 do SITAF) importa coligir a redação do artigo 4º do ETAF na versão dada pelo DL. nº 214-G/2015, de 2 de outubro, em vigor à data, na medida em que a competência se fixa no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações que ocorram posteriormente (cfr. artigo 5º do ETAF).

Vejamos, então.
3.4 N
os termos do disposto no artigo 4º do ETAF (na versão do DL. nº 214-G/2015), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto as seguintes questões, enunciadas nas alíneas a) a o) do seu nº 1, nos seguintes termos:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.

E compete também aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do nº 2 daquele mesmo artigo 4º do ETAF, dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

Encontrando-se expressamente excluídas do âmbito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, para além das ações que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa, das decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal e dos atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões (cfr. nº 3 do artigo 4º do ETAF) os processos que visem, nos termos enunciados nas alíneas a) a no nº 4 do artigo 4º do ETAF:

«a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.»

3.5 Ressuma, assim, que o artigo 4º do ETAF (versão do DL. nº 214-G/2015) identifica e enumera os litígios cuja resolução compete aos tribunais administrativos (critério positivo) e aqueles que estão excluídos do seu âmbito de jurisdição (critério negativo), como concretização da cláusula geral fundada na CRP (jurisdição comum do direito administrativo), sem prejuízo de a enumeração positiva poder ser aditiva, quando visa atribuir competências que não caberiam no âmbito dessa cláusula e a enumeração negativa subtrativa quando visa retirar competências que restringem tal âmbito - (vide, a este respeito, José Carlos Vieira de Andrade, in, “A Justiça Administrativa, Lições”, Almedina, 15ª edição, 2016, pág. 104).

3.5 O critério material de competência dos tribunais administrativos assente no conceito de relações jurídicas administrativas, tomará como referência, atenta a multiplicidade de definições daquela relação, as destacadas por Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos anotado”, Vol. I, Almedina, 2004, pág. 147, e com reporte a jurisprudência e a doutrina, nos termos seguintes: “(…) em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas coletivas públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjetivas públicas e relações interorgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios claros da sua pertinência ao direito privado; aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), atua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v. Acórdão do TC n.º 746/96, de 29 de Maio, e Vieira de Andrade, A Justiça..., cit., p. 55 e 56); aquelas em que esse sujeito atua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137).”.

Revelando-se útil, neste contexto, convocar a síntese efetuada no acórdão do Tribunal de Conflitos de 24/05/2017, Proc. nº 030/16, disponível in, www.dgsi.pt/jcon, acerca dos critérios a utilizar para a identificação dos litígios da competência da jurisdição administrativa à luz do artigo 4º nº 1 do ETAF, que assim ali foi feita: “Na opinião de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Cfr "Constituição da República Portuguesa - Anotada", Vol. II, 4ª edição revista, 2010, Coimbra Editora, pág. 566/567.), em anotação ao art. 212°, nº 3, da CRP «na jurisdição administrativa estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza "privada" ou "jurídico civil". Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr ETAF, art. 4.º).
O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de actuação (acto, contrato e regulamento), complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administração do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de junções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do «novo direito administrativo», mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmática das formas de actuação administrativa.»
Vieira de Andrade (Cfr "A Justiça Administrativa", Lições, Almedina, 9.ª Edição, 2007, pág. 55.) diz ser a relação jurídica administrativa (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) "aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido''.
Mário Aroso de Almeida (Cfr "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", 2005 - 4.ª Edição, Revista e Actualizada, Almedina, pág. 57.) refere que "as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis. São, assim, jurídico-administrativas as relações jurídicas que, independentemente do estatuto dos sujeitos nelas intervenientes, sejam reguladas por normas de direito administrativo - isto é, segundo a melhor doutrina, por normas que atribuam prerrogativas ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público, que não intervêm no âmbito de relações de natureza jurídico-privada. São por isso, de direito administrativo muitas relações jurídicas litigiosas que eclodem entre privados, designadamente no domínio das agressões ao ambiente, quando a actividade dos particulares se encontra regulada por normas de direito administrativo e a lesão que, no desenvolvimento dessa actividade, elas causam às condições ambientais de outrem resulta especificadamente da infracção dessas normas."
É perante este conceito genérico de relação jurídica administrativa que se deve aferir o âmbito da jurisdição respectiva.

Sendo que, de todo o modo, como ali também se referiu, a enumeração exemplificativa feita no artigo 4º do ETAF quanto às questões ou litígios sujeitos ou excluídos do foro administrativo, é feito “(…) ora em concordância com a cláusula geral do art. 1º do ETAF, ora em desconformidade com ela”, na medida em que “(…)no art. 4.º do ETAF temos a determinar a competência da jurisdição administrativa através de uma enumeração positiva e uma enumeração negativa que referem litígios cuja solução compete ou não compete aos tribunais administrativos, circunstância que permite eliminar algumas dúvidas e determinar com mais exatidão o âmbito da respetiva jurisdição. Tal não significa, porém, que não subsistam problemas quanto a esse âmbito, seja porque as enumerações são exemplificativas, seja porque, sendo impossível uma identificação de todos os litígios ou até a sua classificação exaustiva, utilizam conceitos que carecem de precisão, seja ainda porque não prejudicam necessariamente a existência de legislação especial divergente. (...) A enumeração positiva é, em princípio, meramente concretizadora da cláusula geral que deriva da Constituição, mas tem de ser considerada aditiva, quando seja inequívoca que visa atribuir competências que não caberiam no âmbito definido por essa cláusula.

3.6 Pode, em face do sobredito, resumir-se, em termos gerais, e com vista à caracterização de uma relação material controvertida como configurativa de uma relação jurídica administrativa submetida de princípio, à luz do artigo 212º nº 3 da CRP, à competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, que para que se reconheça estar-se perante uma relação jurídica administrativa se impõe que uma das partes integre a Administração, seja um ente administrativo, e que atue dotada do seu ius imperium ou a coberto de normas públicas, ou que, não o sendo, esteja investida, por lei, no exercício de poderes públicos (vide, neste sentido, entre muitos outros, o acórdão deste TCA Norte de 20/12/2019, Proc. nº 2670/17.1BEBRG e o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 15/05/2013, Proc. nº 08/13, in, www.dgsi.pt/jsta).

3.6 Simultaneamente importa ter presente que, como é consensualmente entendido e aceite, seja na doutrina seja na jurisprudência, a competência do material tribunal deve ser aferida em função dos termos em que o autor configura a ação, ou seja, com base nos pedidos formulados e nos fundamentos que para tanto são invocados e que consubstanciam a causa de pedir.

A este propósito Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 3ª Edição, pág. 125 afirmam que “…a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual, tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado.”. Tal como ensinava, também, Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 91, dizendo que a competência do Tribunal se afere pelo quid disputatum ou o “quid decidendum” em antítese com aquilo que será mais tarde o “quid decisum, e, por conseguinte, de acordo com configuração que o autor faz da relação processual fundamentada nos factos e no direito constantes da Petição inicial, não dependendo, pois, da legitimidade das partes, nem da procedência da ação.

O que é secundado, entre muitos outros, pelos acórdãos do Tribunal de Conflitos de 19/01/2021, Proc. nº 063/19; de 19/01/2021, Proc. nº 018/20; de 03/11/2020, Proc. nº 045/19; de 06/02/2020, Proc. 022/19 ou de 19/06/2019, Proc. n.º 051/18, todos disponíveis in, www.dgsi.pt/jtcon.

3.7 Na situação dos autos o autor formulou a final da Petição Inicial da ação o seguinte pedido nos seguintes termos:
a) A reconhecer a propriedade do A. sobre o prédio rústico, situado na (...), FREGUESIA DE (...), concelho de Vinhais, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número 412 e inscrito na matriz rústica da FREGUESIA DE (...) sob o artigo 2234, com os limites configuração e área de 21.467,42m2 constantes da planta topográfica junta sob Doc. nº 10 e assinalado a tracejado verde, abstendo-se de qualquer ato que contenda com tal direito;
b) A reconstituir a situação existente, com a consequente delimitação do prédio pelos limites existentes antes da intervenção da Ré e delimitada na planta topográfica (Doc. 10) a tracejado verde;
c) Verificando-se impossível a reposição dos limites iniciais do prédio, deverá ser a Ré condenada a pagara ao A. indemnização correspondente ao valor por m2 perdido a favor do caminho, a liquidar em execução de sentença e,
d) Ser a Ré condenada a pagar ao A. indemnização resultante do dano provocado pela queda e morte das árvores situadas na extrema sul e poente, a liquidar em execução de sentença.

E para sustentar aqueles pedidos alegou, sumariamente, que:

- é proprietário daquele identificado prédio rústico, do qual tem a posse, por si e pelos ante possuidores, há mais de 10 e 20 anos;
- que naquele prédio tem vindo a desenvolver a cultura de cerejeiras para madeira e, nas extremas, no topo de um talude, carvalhos, azevinhos e cedros;
- que no final do mês de abril e princípio do mês de maio de 2015 constatou que havia sido removida a base dos taludes de suporte das árvores que ali tem plantadas, em toda a extrema do seu prédio para alargamento do caminho da (...), o que provocou a derrocada de parte do terreno e a alteração da configuração do prédio, com perda de 66 m2 a favor desse caminho;
- que há mais de 10 anos que, na extrema sul daquele prédio está situado um tubo danificado que transporta água para a aldeia;
- que na mesma ocasião da remoção da base dos taludes a ré FREGUESIA abriu igualmente uma vala ao longo e dentro da propriedade do autor removendo, também aí, a base de sustentação do talude e ocupando uma faixa de terreno do autor de aproximadamente 19,40 m2, impossibilitando-o de entrar na sua propriedade;
- que nessa sequência, se viu forçado a tapar a dita vala e colocando postes de madeira na extrema do seu terreno, procurando salvaguardar, nessa parte, os limites do seu prédio;
- e que solicitou também à ré FREGUESIA em 16/02/2016 que procedesse à reparação dos danos causados, sem qualquer resposta;
- que a ré FREGUESIA violou ilicitamente o direito de propriedade do autor, ficando constituída na obrigação de indemnizar pelos prejuízos causados nos termos dos artigos 9º e 3º da Lei nº 62/2007, de 31 de dezembro.

3.8 O Tribunal a quo considerou da leitura da petição inicial se retiraria que o autor apenas pretende defender os seus direitos relativamente ao imóvel em causa, pretendendo ser declarado proprietário daquele prédio sendo a ré condenada a reconhecer o seu direito de propriedade, e este restituído no estado em que se encontrava antes da intervenção nele efetuada pela ré e que, assim, a causa configuraria uma típica ação de reivindicação.

3.9 O recorrente sustenta no presente recurso que resulta inequivocamente da petição inicial da ação que através dela visa responsabilizar a ré Freguesia pelos danos causados com a sua atuação, no âmbito da limpeza que aquela levou a cabo em violação do seu direito de propriedade e que assim deve ser constituída na obrigação de indemnizar, nos termos da Lei nº 67/2007, sendo tal matéria da competência dos Tribunais Administrativos nos termos dos artigos 37º alínea k) do CPTA e 4º nº 1 alínea f) do ETAF, e que o Tribunal a quo incorretamente configurou a ação como uma ação de reivindicação a que se refere o artigo 1311º do Código Civil.

3.10 É incontroverso que a ação de reivindicação a que se refere o artigo 1311º do Código Civil, onde se dispõe, sob a epígrafe “ação de reivindicação” que “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” (nº 1) e que “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei” (nº 2) se destina a afirmar o direito de propriedade e a pôr fim à situação decorrente de atos que o violem, visando a declaração de existência desse direito e a restituição da coisa objeto do mesmo, tida como usurpada ou detida por outrem, pondo fim à sua violação, configurando, pois, tal ação uma ação real, distinta das ações de responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente, decorrente de atos lesivos do direito de propriedade.

Pelo que, como tal, tais ações não se enquadram no âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos, mas antes dos Tribunais Judiciais, cuja competência é residual, como tem vindo a ser entendimento jurisprudencial unânime do Tribunal dos Conflitos – vide, entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, de 18/12/2013, Proc. nº 18/13; de 05/06/2014, Proc. nº 4/14; de 22/04/2015, Proc. nº 1/15; de 10/03/2016, Proc. nº 50/15; de 04/02/2016, Proc. nº 46/15; de 07/07/2016, Proc. nº 048/15; de 26/01/2017, Proc. nº 52/14; de 24/05/2017, Proc. nº 01/17; de 27/09/2018, Proc. nº 15/18; de 13/12/2018, Proc. nº 43/18, disponíveis in, www.dgsi.pt/jtcon.

Em tais casos, e como se disse no Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 04/02/2016, Proc. nº 46/15, o que “essencialmente se discute é a questão, puramente de direito privado, de saber se o direito real invocado pelo «dominus» existe e é oponível ao réu, por forma a tirar-lhe a detenção da coisa; e só acidentalmente se colocará um problema ligado ao direito público – se o detentor se socorrer de regras desta ordem para titular e legitimar a sua detenção.”.

Ou seja, e como se disse no acórdão do Tribunal de Conflitos, de 18/12/2013, Proc. nº 18/13, “a questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, não obstante uma das partes ter feição pública (...) e de ter sido cumulado um pedido indemnizatório pela ocupação ilegítima da propriedade. Com efeito, a ação de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC, é uma típica manifestação do direito de sequela, visando afirmar o direito de propriedade e pôr fim a situação ou atos que o violem, tendo como primeiro objetivo a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objeto desse direito. (Salientam Antunes Varela e Pires de Lima: «A ação de reivindicação prevista neste artigo (art. 1311.º do CC é uma ação petitória que tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela» – cf. Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume III pág.112). Compete aos autores, nesta ação, provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da ação de reivindicação, tendo eles de alegar, como o fizeram, que a coisa se encontra em poder do réu. Destarte, para a procedência da ação, tornar-se-á necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjetivo, que consiste em serem os autores os proprietários da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objetivo, consistente na identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelo réu, cujo ónus da prova incumbe aos autores/reivindicantes, por serem factos constitutivos do seu direito - art. 342.º, n.º 1, do CC. Comprovada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição - cf. 1311.º, n.º 2, do CC -, mediante a alegação e prova, pelo demandado - por via de exceção -, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem – cf. art. 342º, n.º 2, do CC.”.

3.11 Sucede que o artigo 4º nº 1 do ETAF, na versão decorrente da revisão operada pelo DL. n.º 214-G/2015, de 2 de outubro expressamente contempla no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, para além as situações referentes à efetivação da responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público a que se refere a alínea f) do nº 1 do artigo 4º, que o autor claramente visou na ação, as que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, a que se refere a alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF na versão decorrente do DL. nº 214-G/2015, que é aqui a aplicável, como já vimos.

3.12 Aliás, lê-se no preâmbulo do DL. n.º 214-G/2015 que no que “(…) respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo atual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.

3.13 A este respeito refere Mário Aroso de Almeida in,Manual do Processo Administrativo”, Almedina, 2016, pág. 171 que “(…) a nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”.

Evidenciando Carla Amado Gomes, in, “Temas e problemas da justiça administrativa”, AAFDL, 2018, págs. 39-56, em “Via de facto e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título”, in Revista do Ministério Público nº 15º Abril/Junho, 2016, págs. 89-109, que a competência da jurisdição administrativa para o conhecimento das situações de ocupação, sem título, de imóveis pela Administração, em “via de facto” - que já se verificava antes de 2015 e que a alteração legislativa só veio reforçar (por se estar, ainda, perante autuações materialmente administrativas da Administração) - não prejudica a competência dos tribunais judiciais para os casos em que a questão da titularidade do bem for controvertida.

Referindo a este propósito Jorge Pação, in, “Novidade em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4º nº 1 do ETAF”, em “Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA”, AAFDL EDITORA, 2ª edição, 2016, pág. 197, defende ser de concluir que “(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum”.

3.14 Na situação dos autos o autor peticiona na ação a condenação da ré FREGUESIA a reconhecer a propriedade do autor sobre o prédio rústico com os limites, configuração e área, e que não se abstenha de qualquer ato que contenda com tal direito, bem como proceda à reconstituir a situação existente, com a consequente delimitação do prédio pelos limites existentes antes da intervenção que levou a cabo (pedidos que formulou sob as alíneas a) e b)), e bem assim, que verificando-se ser impossível a reposição dos limites iniciais do prédio, seja a ré FREGUESIA condenada a pagar ao autor indemnização correspondente ao valor por m2 perdido a favor do caminho, a liquidar em execução de sentença (pedido que formulou sob a alínea c)). E cumuladamente peticiona ainda a condenação da ré FREGUESIA a pagar ao autor indemnização resultante do dano provocado pela queda e morte das árvores situadas na extrema sul e poente, a liquidar em execução de sentença (pedido que formulou sob a alínea d)).

Atentos os fundamentos da ação, tal como foram externados na respetiva petição inicial, o autor pretende reagir e defender-se face aos atos materiais alegadamente levados a cabo pela ré FREGUESIA quanto à base dos taludes para alargamento do caminho da (...), com derrocada de parte do terreno e alteração da respetiva configuração do prédio, com perda de 66 m2 a favor desse caminho, e com abertura de uma vala ao longo e dentro da propriedade do autor ocupando uma faixa do seu terreno de aproximadamente 19,40 m2, e impossibilitando-o de entrar na sua propriedade.

3.15 Se aos Tribunais Administrativos não compete, à luz do sobredito, a declaração e o reconhecimento do direito de propriedade privada, o que foi efetivamente solicitado pelo autor na alínea a) do petitório (e aí não, deixa, com efeito, de estar em causa a delimitação da propriedade do autor, isto é, e como ele se referiu na ação, aos limites, configuração e área do identifica prédio rústico) já lhes competes, por se configurar como litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, apreciar e decidir se o imóvel de cuja propriedade o autor se arroga foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público, no caso a ré FREGUESIA, através dos atos materiais consubstanciados na destruição ou remoção de taludes para alargamento de um caminho, com derrocada de parte do terreno e alteração da respetiva configuração do prédio, e com abertura de uma vala ao longo dele, de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior, ou então, indemnizado pelos danos causados, mormente quanto ao valor da área do terreno que lhe foi, alegadamente, ocupado e retirado.

3.16 O que significa que os Tribunais Administrativos são materialmente competentes, à luz do artigo 4º nº 1 alíneas f) e i) do ETAF (na versão do DL. nº 214-G/2015) aos pedidos formulados pelo autor nas alíneas b), c) e d) do petitório.
Errou, pois, o Tribunal a quo ao decidir, tout court, pela sua incompetência material para apreciar e decidir a ação que lhe foi submetida em juízo. Assistindo, nesta parte, razão ao recorrente. Devendo a decisão recorrida ser revogada.

3.17 Isto, sem se olvidar que nos termos do disposto no artigo 15º nº 1 do CPTA, “quando o conhecimento do objeto da ação dependa, no todo em parte, da decisão de uma ou mais questões da competência de tribunal pertencente a outra jurisdição, pode o juiz sobre na decisão até que o tribunal competente se pronuncie” (nº 1) ficando a suspensão sem efeito se tal ação não for proposta no prazo de dois meses ou se ao respetivo processo não for dado andamento por negligência das partes (nº 2), situação em que a ação administrativa deve prosseguir, “sendo a questão prejudicial decidida com efeitos a ele restritos” (nº 3), consubstanciando, assim, em tal caso, uma situação de extensão de competência dos tribunais administrativos à decisão de questões prejudiciais pertencentes a outra ordem jurisdicional.

Isto mesmo já se entendeu, designadamente, nos acórdãos deste TCA Norte de 18/12/2019, Proc. nº 725/19.7BEPNF-S1, e de 31/01/2020, Proc. nº 249/18.0BEPNF, por nós subscritos como adjuntos.

3.18 Aqui chegados, merece provimento o recurso, devendo revogar-se, pelos fundamentos vertidos supra, a decisão recorrida que com fundamento na verificação da exceção dilatória de incompetência material dos tribunais administrativos absolveu o réu.

Determinando-se, em consequência, a baixa dos autos para prosseguimento dos mesmos, se a tanto nada mais obstar.
O que se decide.
*
IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se a baixa dos autos para prosseguimento dos mesmos, se a tanto nada mais obstar.
*
Sem custas nesta instância de recurso, em face da ausência de contra-alegações e do decidido provimento – artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013) e artigos 7º e 12º nº 2 do RCP (artigo 8º da Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro) e 189º nº 2 do CPTA.
*
Notifique.
*
D.N.
*
Porto, 5 de fevereiro de 2021


M. Helena Canelas (relatora)
Isabel Costa (1ª adjunta)
Rogério Martins (2º adjunto)