Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00975/16.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/30/2016
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR; RATIFICAÇÃO DO EMBARGO EXTRAJUDICIAL;
COMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TAF
Sumário:I-Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, nomeadamente quando a Administração ocupa imóveis de propriedade privada sem proceder à respectiva expropriação;
I.1-é competente para a presente acção o Tribunal Administrativo nos termos dos artigos 2º/2/alínea i) do CPTA e 4º/1/alínea i) do ETAF, na redacção do DL 214-G/2015, de 2/10.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:APG e MCVGC
Recorrido 1:Município de Paços de Ferreira
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento cautelar de Ratificação de Embargo Extrajudicial
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
APG e MCVGC intentaram providência cautelar de ratificação judicial de embargo extrajudicial de obra nova contra o Município de Paços de Ferreira, todos melhor identificados nos autos, pedindo a ratificação do embargo extrajudicial, determinando ao Requerido que se abstenha, até ser proferida uma decisão final em processo a propor, de prosseguir com a obra no prédio dos Requerentes.
Por decisão proferida pelo TAF de Penafiel foi declarada a incompetência absoluta do tribunal para apreciar a acção e rejeitado liminarmente o requerimento inicial.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, os Requerentes formularam as seguintes conclusões:
I- Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram claramente a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, nomeadamente quando a Administração ocupa imóveis de propriedade privada sem proceder à respectiva expropriação (cf. obras citadas Assis Raimundo, Anabela Fernandes Neves e Mário Aroso Almeida)
II-É competente para a presente acção o Tribunal Administrativo nos termos dos artigos 2º n.º 2 alínea i) do CPTA e artigo 4º n.º 1 alínea i) do ETAF, na redação do DL 214-G/2015.
III- Violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 2º n.º 2 alínea i) do CPTA e artigo 4º n.º 1 alínea i) do ETAF , na redação do DL 214-G/2015.
IV - Deve ser julgado procedente o presente recurso, substituindo-se a decisão recorrida por outra que julgue competente o tribunal administrativo com as consequências legais.
Assim se fará, Justiça
Não foram juntas contra-alegações.
O MP emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO/DE DIREITO

É objecto de censura o despacho do TAF de Penafiel que declarou a incompetência absoluta do tribunal para apreciar a acção e rejeitou in limine o requerimento inicial.
Na óptica dos Recorrentes a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 2º/2/al. i) do CPTA e 4º/1/al. i) do ETAF, na redação introduzida pelo DL 214-G/2015.
Cremos que lhes assiste razão.
Antes, atente-se no seu discurso jurídico fundamentador:
“Nos termos do disposto no artigo 13º do NCPTA, “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”, i.e, ao contrário do que sucede no CPC, no âmbito do NCPTA todas as questões relativas à competência dos tribunais administrativos são simplificadas e de conhecimento oficioso, precedendo o conhecimento de qualquer outra questão.
A competência material do tribunal afere-se pela relação material controvertida tal como configurada pelo Autor na petição inicial.
Para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender –se à relação jurídica, tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir)(1).
A incompetência do Tribunal em razão da matéria constitui excepção dilatória cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa dando lugar à absolvição da instância.
In casu, atendendo à causa de pedir tal qual configurada pelos requerentes coloca-se a questão de saber se a jurisdição administrativa é materialmente competente para conhecer do presente litígio.
Nos termos do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (na redacção dada pela 7.ª revisão constitucional), compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações administrativas e fiscais.
Neste mesmo sentido, o artigo 1.º, n.º 1, do E.T.A.F. dispõe que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal têm competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Relativamente a litígio semelhante ao dos autos pronunciou-se o Sr. Cons. Madeira dos Santos, na declaração de voto do Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16/02/2012, n.º 018/11 cuja fundamentação se acompanha e aqui se reproduz por se concordar inteiramente com a mesma:
“(…) Mediante o procedimento cautelar dos autos, a ora recorrente visa, em primeira linha, a ratificação do embargo extrajudicial de uma obra do Estado que afirma ser violadora do seu direito de propriedade sobre um terreno.
Esse pedido cautelar enquadra-se perfeitamente na previsão do art. 412° do CPC; e a relação jurídica de que o procedimento emerge é a que se estabelece entre o titular do direito real e, no pólo oposto, o dono da obra que, erigindo-a em terreno alheio, terá incumprido a obrigação passiva universal. Ora, a índole privada dessa relação jurídica é manifesta; e não se descaracteriza pela circunstância acidental da obra porventura se dever a imperiosas razões de interesse público. Donde a competência dos tribunais comuns para conhecerem do meio cautelar. Contra esta conclusão não pode argumentar-se com a possibilidade da recorrente vir a propor, a título principal, uma acção de indemnização contra o Estado.
Desde logo, porque tal possibilidade seria espúria, já que as acções de que os embargos de obras são dependência só podem ser reais ou possessórias – como do art. 412°, n.° 1, do CPC claramente flui. E o facto da requerente da providência nela anunciar a dedução futura de um pedido indemnizatório é irrelevante; pois, nesta fase, isso apenas significará que, ao pedido principal de «reivindicatio»
(reconhecimento do direito de propriedade e restituição do terreno ocupado – «statu quo ante», isto é, restituição após se demolir o que ilicitamente se erigiu), se somará um pedido acessório de indemnização por danos eventualmente causados. E também é vão argumentar-se com o teor do art. 414° do CPC. «Primo», porque esta norma, pressupondo que o litígio se reporte «a uma relação jurídico administrativa», não pode servir para caracterizar as relações do género – sob pena de se incorrer em «petitio principii». «Secundo», porque ela, ao proibir o embargo de determinadas obras do Estado, tem a ver com o mérito das providências, e não com a competência «ratione materiae» para delas conhecer. Aliás, não se percebe por que razão uma impossibilidade legal de decretar o embargo – fosse em que jurisdição fosse – haveria de subtrair o procedimento dos tribunais comuns e deferi-lo aos tribunais administrativos.
Creio, portanto, que o conhecimento do meio cautelar dos autos incumbia aos tribunais comuns, já que o pedido formulado a título principal – afinal, o decisivo na atribuição da competência – emerge de uma relação jurídica de direito privado, de que se não ocupa a jurisdição administrativa”.
Assim sendo, como é, as relações emergentes do presente litígio não constituem relações jurídicas administrativas, cujo litígio em concreto não deve ser dirimido pelos Tribunais Administrativos mas sim pelos Tribunais integrados na Jurisdição Comum, verificando-se a incompetência absoluta em razão da matéria deste tribunal conducente à absolvição da instância, cfr. art.º 99º nº1 do CPC.
Porém, encontrando-se os presentes autos em fase de apreciação liminar e não tendo ocorrido a citação da entidade requerida, verificando-se a incompetência absoluta em razão da matéria impõe-se não a absolvição da instância mas sim a rejeição liminar do requerimento inicial, nos termos do disposto no art.116º nº 2 alínea f) do NCPTA.”
X
Vejamos:
Para dirimir a questão em análise importa saber se a matéria colocada como objecto da causa, maxime o pedido e a causa de pedir configuram alguma das situações em que a lei atribui a competência especificamente aos tribunais administrativos.
Vejamos, portanto, se a matéria se enquadra na previsão do artº 1º do ETAF aprovado pela Lei 13/2002, isto é, se deve qualificar-se como litígio emergente de relação jurídica administrativa.
Para ajudar a delimitar o conceito de relação jurídica administrativa o nº 4º do mesmo diploma efectua uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos encontrar critérios ou efectuar uma delimitação de fronteiras, usando as técnicas de interpretação da lei.
A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.

Fazendo apelo ao preceituado no artº 13° do CPTA, é seguro que a competência do tribunal é de ordem pública e deve preceder o conhecimento de qualquer outra matéria.
Acresce que a incompetência absoluta se configura como uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que conduz à absolvição da instância, sendo, de resto, do seu conhecimento oficioso, conforme resulta das disposições conjugadas dos artºs 576°/1 e 2, 577°/al. a), 578º/1ª parte e 278°/1, al. a), do novo CPC, (artºs 62º/2, 101º, 102º, 105º/1, 288º/1, al. a), 493º/1 e 2 e 494º/al. a), todos do antigo CPC, ex vi artº 1º do CPTA).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo um dos elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida. Como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto da lide, tal como é configurado pelo autor.
Desta forma, o problema da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvido em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo. Dito de outra maneira, a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, constituindo uma questão que será decidida de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, não importando averiguar quais deviam ser as partes ou os termos dessa pretensão. É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência do Tribunal - cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139.
Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram -Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, ob. cit./197.
Com efeito, o artº 212°/3 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Acresce que, em sintonia com o referido normativo, estatui o artº 1º/1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na arquitectura deste quadro legal, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto, além do mais, a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal - artº 4°/1/al. a) do ETAF.
Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. O que nos permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativo e sob a égide da realização do interesse público.
O critério material da distinção assenta, assim, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade em Justiça Administrativa, 9ª ed., 103. Já Fernandes Cadilha, em Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118, afirma: por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
A competência do Tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos Autores é determinante, sublinha o Ac. do STA de 27/01/2010, proc. 017/09.
Assim sendo, há que atentar na configuração que o A. faz da acção, a saber, o pedido formulado e a concreta causa de pedir em que se baseia.
No caso em apreço, os aqui Recorrentes instauraram providência cautelar de embargo de obra nova contra o Município de Paços de Ferreira, com fundamento em falta de título para a obra no seu prédio e a correspondente integração de parte do mesmo na via pública, invocando quanto à competência do TAF para acção o artigo 4º, nº 1, alínea i) do Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais, pelo que também para a presente providência, convidados a darem cumprimento ao disposto no artigo 114º, nº 2, alínea e) do CPPT, declararam que a acção declarativa de que o procedimento iria depender ainda não estava proposta, e seria uma acção administrativa comum com vista à condenação do Município de Paços de Ferreira ao restabelecimento do direito dos autores a que se refere o artigo 2,º nº 2, alínea i) do CPTA e artigo 4º, nº 1, alínea i) do ETAF .
A decisão impugnada, já se viu, entendeu que a acção a intentar e portanto a providência cautelar estaria fora da competência dos TAFs, decidindo, por isso, declarar a incompetência do tribunal e rejeitar o requerimento inicial.
Porém, tal como advogado, não fez a melhor leitura do Direito aplicável.
Com efeito, com a alteração introduzida ao CPTA pelo DL 214-G/2015, de 2/10, o legislador alargou o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos ao caso presente.
Na verdade, o art° 4° do ETAF passou a dispor:
Âmbito da jurisdição
1-Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
….
i)Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
E no artigo 2° do CPTA estatui-se o seguinte:
Tutela jurisdicional efectiva
1-O princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, e mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão.
2-A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter:
….…
i)A condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao estabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime:
O Prof. Mário Aroso de Almeida, em Manual do Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2ª ed., pág.171, escreve o seguinte a respeito desta alteração introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro:
“d)Litígios relativos a situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime (Artigo 4°, n° 1, alínea i).
Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”. Neste mesmo sentido, cfr. o Professor Assis Raimundo, em “Âmbito de Jurisdição-Contratos e Responsabilidade Civil Extracontratual”, aqui trazido pelos Recorrentes, segundo o qual é claramente positiva a previsão da remoção de situações em vias de facto, citando, a este respeito, dois acórdãos contraditórios do Tribunal de Conflitos - o nº 18/2013 de 18/12/2013 e o nº 18/2011 de 16/02/2012 -, onde estavam em causa respectivamente a reivindicação de um terreno por um particular, ocupado por ente público e um embargo de obra nova contra entidade pública, por um particular que invocava a propriedade do terreno, decidindo pela competência no primeiro caso do tribunal comum e no segundo do tribunal administrativo.
O referido autor aplaude a previsão nas competências do Tribunal Administrativo e Fiscal relativamente a situações de acções de reivindicação em que a administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munido do competente título que a habilite (as chamadas actuações em vias de facto), existindo, aliás, uma expressa referência a essa nova competência no preâmbulo do diploma. Também Anabela Fernanda Neves, em Âmbito de Jurisdição e outras alterações ao ETAF, pág. 14, Revista Electrónica de Direito Público, refere:
"1.2.7. As "situações constituídas em via de facto” pela Administração são uma expressão intrusiva, ademais sem título jurídico, do agir administrativo, que contendem com a tutela dos direitos de outros sujeitos. Se a intervenção dos tribunais administrativos já poderia ser obtida no âmbito geral da “tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”, o certo é que, tradicionalmente, a proteção jurisdicional contra tais situações estava associada à ideia dos tribunais judiciais como guardiões da propriedade e da liberdade”.
De facto não se compreende outro conteúdo e alcance a dar às alíneas i) do do artigo 4º do ETAF e do nº 2 do artigo 2º do CPTA, que não a da atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação em que a Administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munida do competente título que a habilite, conforme foi interpretado pelos referidos autores, tanto mais que, tais casos mereciam usualmente, no foro, o epíteto de "atuações em vias de facto".
Temos, assim, conforme alegado, que a decisão recorrida traduz uma posição ultrapassada pelo DL 214-G/2015, de 2/10.
Em suma:
-a competência em razão da matéria afere-se pelo pedido formulado e pela natureza da relação jurídica que serve de fundamento a esse pedido, tal como a configura o autor - neste sentido, os Acórdãos da Relação de Évora de 8/11/1979, Colectânea de Jurisprudência, 1979, IV, p. 1397, do Supremo Tribunal de Justiça de 3/2/1987, BMJ 364, p. 591, e de 9/5/1995, Colectânea de Jurisprudência /acórdãos STJ, 1995, II, p. 68; do Supremo Tribunal Administrativo de 10/3/1988, proc. 25.468, de 27/11/1997, proc. 34.366, e do Tribunal dos Conflitos, de 23/9/2004, proc. 05/04; e, na doutrina, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1ª ed., vol. I, pág. 88;
-aos tribunais administrativos cabe dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (artº 1º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, e artº 212º/3 da Constituição da República Portuguesa);
-como advertia Manuel de Andrade em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra 1979, pág. 91: “(...) a competência do tribunal … afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; (….)É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão …" - no mesmo sentido, e entre outros, o Acórdão do STA de 03/05/2005, proc. 046218;
-com a reforma de 2015, os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, nomeadamente quando a Administração ocupa imóveis de propriedade privada sem proceder à respectiva expropriação;
-os aqui Recorrentes intentaram providência cautelar de embargo de obra nova contra o Município de Paços de Ferreira, com fundamento em falta de título para a obra no seu prédio e a correspondente integração de parte do mesmo na via pública, invocando, quanto à competência do TAF para a acção, o artigo 4º/1/al. i) do ETAF;
-atentos os preceitos atrás citados e a doutrina mencionada, a competência material para dirimir o presente pleito pertence à jurisdição administrativa - vide artigos 2º/2/al. i) do CPTA e 4º/1/al. i) do ETAF, na redacção do DL 214-G/2015, de 2/10.
Não tendo sido este o entendimento sufragado pelo despacho sob escrutínio, não será mantido na ordem jurídica.
Procedem, assim, as conclusões dos Recorrentes.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso e se revoga a decisão que declarou a incompetência material do TAF de Penafiel para conhecer do presente pleito.
Sem custas.

Notifique e DN.

Porto, 30/11/2016
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Frederico Branco
Ass.: Rogério Martins
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Neste sentido, Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 9.6.10 (Proc. n.º 05/10)