Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01750/05.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/27/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Margarida Reis
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL;
JUROS COMPENSATÓRIOS; REQUISITOS;
CULPA; ART. 35.º DA LGT;
Sumário:
I. A responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a atuação do contribuinte, bem como da possibilidade de formular um juízo de censura à sua atuação (a título de dolo ou negligência).

II. A culpa pode e deve ser excluída quando se mostre, à luz das regras de experiência e das provas obtidas, que o contribuinte atuou com a diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais, designadamente quando o retardamento da liquidação se ficou a dever a uma compreensível divergência de critérios entre a AT e o contribuinte quanto ao enquadramento da situação tributária, no caso, relativamente ao modo de imputação à matéria coletável do benefício fiscal concedido.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório
"Y, S.A.", inconformada com a sentença proferida em 2019-07-25 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação que interpôs contra a liquidação de juros compensatórios n.º ..........7702 no montante de EUR 70.400,83 decorrente da liquidação adicional de IRC do exercício de 1999 n.º .............1102, no montante de EUR 262.936,59, vem dela interpor o presente recurso.
A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
V) Conclusões
1. A Sentença é ilegal, por errónea apreciação da matéria de facto (relevante) e ilegal interpretação e aplicação do direito (art. 35.º, 68.º e 99.º da LGT e art 13.º e 114.º a 119.º do CPPT).
2. A Sentença erra na identificação do autor (impugnante, agora recorrente), quando tal prova foi inserida no processo (doc. 1 da PI).
3. A Sentença indica que a recorrente não fez prova de factos relevantes para o conteúdo da Sentença (indicando que o ónus era seu) - qual seja, que atuou de acordo com indicações do IAPMEI; mas não fez essa prova, apenas porque o juiz a quo recusou ouvir as testemunhas arroladas pela recorrente para provar esses factos (em violação do art. 99. º da LGT, e art.13.º e 114.º a 119.º do CPPT).
4. Impõe-se a apreciação do recurso desse despacho interlocutório [fls. 105 a 108 do SITAF], cujas conclusões se dão por reproduzidas nestas conclusões.
5. A Sentença é ilegal ao indicar que a recorrente deveria ter consultado a AT (em informação vinculativa) e não o IAPMEI, sobre se e como deveria registar o benefício fiscal em 1999.
6. Se, à época, o IAPMEI (em representação do Estado Português) estava a negociar o contrato financeiro e fiscal com a recorrente, era normal (e imperativo) que as dúvidas interpretativas fossem perguntadas e esclarecidas com e pelo IAPMEI.
7. Até Maio de 2000, a recorrente tinha de decidir se e como registaria o benefício fiscal na sua declaração fiscal de 1999; é do conhecimento público que a AT demorava muito tempo (superior ao prazo legal que, à época, era de 6 meses [art. 57.º da LGT]) na resposta ao pedido de informação vinculativa, e a recorrente não poderia retardar a entrega da modelo 22 do ano de 1999, esperando por essa resposta (ainda que proferida no prazo legal dos 6 meses), sob pena de incumprimento do prazo de entrega e autoliquidação do IRC de 1999 (com liquidações adicionais e coimas ou crimes por esse mesmo atraso).
8. A Sentença é ilegal ao assumir que a recorrente conhecia, à época, a lei e o contrato que regulava o benefício fiscal. O contrato (com as suas cláusulas e remissão expressa para a lei geral) foi assinado após a entrega da modelo 22 de 1999 - e portanto, nesse momento (entrega da declaração fiscal), a recorrente não sabia (não tinha que saber) qual era a fonte legal em que se estribava o benefício - a atuou, como atuou, porque confiou no que lhe foi dito pelo IAPMEI.
9. Os juros compensatórios exigem a culpa do sujeito passivo, no sentido de omissão de um dever de diligência, que origina o retardamento da liquidação e pagamento do imposto. Donde, excluída a culpa pelo retardamento do imposto - é afastada a responsabilidade pelo pagamento de juros compensatórios.
10. Exclui-se a culpa (e os juros compensatórios) se o agente retardou a liquidação do imposto porque (i) se está perante uma questão fiscal complexa, (ii) tendo o sujeito passivo efetuado, à época, uma interpretação plausível da lei fiscal (reforçada pela confiança na interpretação transmitida pelo Estado) (iii) e desde que a atuação do contribuinte não se funde num intuito de evasão fiscal.
11. ln casu, à recorrente não pode ser assacado qualquer culpa e responsabilidade pelo retardamento do imposto, por preenchimento destes três requisitos - e daí a Sentença é ilegal, por errónea apreensão dos factos e ilegal interpretação e aplicação do art. 35.º LGT.
12. Está-se, in casu, perante uma questão fiscal complexa, não cabalmente esclarecida pelos contratos e pela lei - como é aliás assumido pela AT e pela Sentença (p. 14): os contratos não definem os critérios temporais da imputação; os critérios e cálculos a efetuar, descritos no relatório inspetivo e vertidos na Sentença (p. 8 a 11), revelam a dificuldade técnica de análise e perceção da solução legal.
13. A recorrente, à data (Maio de 2000), efetuou uma interpretação plausível da lei fiscal:
14. Atuou, por um lado, em conformidade com a posição indicada do IAPMEI, em resposta à questão por si formulada (atendendo à complexidade da questão).
15. Por outro lado, a lei (Dec. Lei n.º 409/99) foi redigida a pensar no caso típico em que o investimento dura menos de um exercício e não, como sucedeu in casu, quando o investimento se prolonga por dois exercícios (1999 e 2000).
16. Neste caso (dos autos), a lei não é esclarecedora: indica (no art. 5.º, n.º 7) que o crédito fiscal está associado à matéria coletável imputável ao projeto de investimento (numa inclinação para que o registo só ocorresse em 2000, ano do início da laboração do forno); mas refere também (no art. 5.º , n.º 5 e 6), que a dedução (crédito de imposto) é efetuada no exercício em que foram realizadas as aplicações relevantes - e algumas aplicações relevantes (investimento) foram efetuadas em 1999.
17. Donde, uma leitura plausível das leis fiscais aplicáveis (efetuada, aliás, pelo IAPMEI - e assumida, pela recorrente) ia no sentido de que a recorrente já podia registar (parte) do benefício fiscal em 1999, pois nesse ano foram realizadas aplicações relevantes; sendo que, além disso, a matéria coletável de 1999 já reflete o investimento no projeto elegível (a quota parte consumada em 1999) - e tais verbas contribuíram para a matéria coletável desse ano (1999), não via proveitos, mas via gastos do investimento.
18. A recorrente não teve qualquer intuito evasivo: a sentença não o dá como provado: a AT (a quem incumbe o ónus da prova), nem sequer o alegou; o extenso prazo temporal para a utilização (10 anos) do benefício fiscal não permite concluir que o contribuinte já saberia, em 1999, que não aproveitaria este crédito - e que por isso, tinha de o “descarregar” já em 1999; os dados reais da empresa confirmam a boa-fé do contribuinte, que teve capacidade para acomodar todo o benefício até 2004; com o novo forno é expectável que os lucros incrementassem os lucros - com a utilização do crédito fiscal decorrente.
19. Se a Sentença advoga que são sempre devidos juros compensatórios, por decorrência da violação do princípio da legalidade, então é ilegal, por violação do art. 35.º da LGT: o juro compensatório não se funda na mera ilegalidade da liquidação do imposto. Exige a verificação de um ato culposo do agente, nesse retardamento.
20. Ao invés, se a sentença advoga que o juro compensatório pressupõe um ato culposo do agente no retardamento da obrigação de imposto, então também é ilegal, por violação do art. 35. º da LGT, quando assume que a ilegalidade do comportamento da recorrente faz nascer a incidência do juro compensatório, numa relação de causalidade tipo sine qua non;
21. E/ou, porque, perante os dados factuais e jurídicos do caso concreto, não pode ser assacada qualquer juízo de culpa ao agente no retardamento do pagamento do imposto. A recorrente atuou com base numa interpretação plausível de uma lei fiscal (leis fiscais) complexas, sem qualquer intuito evasivo.
22. E quando tomou consciência do erro, pagou imediatamente o imposto devido (sem o contestar), bem como os juros - sinal também da sua total boa-fé, e ausência de culpa no momento do cumprimento espontâneo da obrigação relativa ao ano de 1999.
Termina pedindo:
Nestes termos, solicita-se a anulação da Sentença recorrida, com a emissão de Acórdão que conclua pela ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios em causa, com as devidas consequências legais, nomeadamente ordenando a devolução da quantia paga (70.400,83€), acrescida de juros indemnizatórios, à taxa legal, desde a data do pagamento (15/6/2005) até integral reembolso (como solicitado na PI).
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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Os autos foram oportunamente apresentados ao Digno Magistrado do M.º Público para parecer.
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Os vistos foram dispensados com a prévia concordância dos Ex.mos Juízes Desembargadores-Adjuntos, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 657.º do CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT.
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Questões a decidir no recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT.
Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a sentença sob recurso padece de erro de julgamento, ao concluir que a Recorrente atuou com dolo no modo como calculou o benefício fiscal obtido no âmbito de contrato celebrado ao abrigo do PEDIP II, com impacto na autoliquidação de IRC do exercício de 1999, assim decidindo pelo preenchimento do requisito da culpa, pressuposto da liquidação de juros compensatórios em causa.

II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto
Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. DE FACTO
Com relevância para a decisão da causa, o Tribunal julga provado:
1. Em 02/06/2000, entre a Impugnante e o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento (IAPMEI), foi celebrado documento escrito particular denominado pelas partes de “CONTRATO DE INVESTIMENTO E DE CONCESSÃODE INCENTIVOS FINANCEIROS”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e se transcreve parcialmente:
«(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
2. A impugnante foi sujeita à acção de inspecção credenciada pela Ordem de Serviço/Despacho n.º ...85, relativa ao exercício de 1999, tendo sido elaborado Relatório Inspectivo e respectivos Anexos em 27/10/2004 e sancionado superiormente em 27/10/2004, cujo conteúdo se dá por reproduzido e se transcreve parcialmente:
«(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)»
3. A impugnante foi notificada da demonstração de acerto de contas n.º ............6160, da qual resultou montante a pagar de €262.936,59 de IRC e €70.400,83 de Juros Compensatórios - cfr. fls. 19 e 20 dos autos do p.f. e 52 do PA;
4. Em 15/06/2005 a Impugnante pagou o valor do imposto e dos juros compensatórios - cfr. fls. 19 e 20 dos autos do p.f.;
5. Em 08/09/2005, a impugnante intentou a presente impugnação - cfr. fls. 2 do p.f.;
6. Os trabalhos de construção do forno objecto do contrato referido em 1. foram iniciados em Agosto de 1999 e o forno em causa iniciou o seu funcionamento em 20/08/2000 (admitido por confissão – cfr. artigo 13.º da PI).
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III. 2 FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram os seguintes factos:
I - Que o IAPMEI respondeu às dúvidas da Impugnante e indicou o cálculo do crédito fiscal a deduzir no exercício de 1999 (cfr. pontos 43.º a 47.º da PI).
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III. 3 MOTIVAÇÃO
O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e ao PA, que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados – art. 74º da LGT - também são corroborados pelos documentos juntos aos autos art. 76º nº 1 da LGT e arts. 362º e ss do Código Civil (CC) – identificados em cada um dos factos provados.
Quanto aos factos não provados, (cfr. I. de III. 2), não foi apresentada qualquer prova dos mesmos, não apresentando a Impugnante qualquer documento comprovativo do seu pedido de esclarecimentos ao IAPMEI, nem qualquer resposta daquele instituto.
Os restantes factos alegados não foram julgados provados ou não provados, em virtude de não ter sido produzida prova por constituírem considerações pessoais ou conclusões de facto ou de direito e não terem relevância para a decisão da causa.
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II.2. Fundamentação de Direito
Tal como se deixou sumariado acima, a Recorrente imputa à sentença recorrida erros de julgamento de facto e de direito, não se conformando com a conclusão a que ali se chegou quanto ao preenchimento do requisito da culpa exigido para a liquidação dos juros compensatórios, no caso, decorrente da liquidação adicional de IRC do exercício de 1999.
Contextualizando, a liquidação adicional de IRC de 1999 em causa decorre da correção técnica efetuada pelos serviços de inspeção tributária ao método utilizado pela aqui Recorrente para efetuar o cálculo do benefício fiscal (crédito fiscal em sede de IRC) concedido ao abrigo de Contrato de Investimento e Concessão de Incentivos Fiscais celebrado no âmbito do Programa Estratégico de Dimensão e Modernização da Indústria Portuguesa – PEDIP II, celebrado com o IAPMEI, em representação do Estado.
Na impugnação judicial a Recorrente, não questionando as correções efetuadas em sede de IRC, não se conforma com a liquidação de juros compensatórios, pois entende que a sua conduta não foi censurável, atendendo a que o método de apuramento do crédito fiscal em questão não se encontrava definido no contrato de investimento, e a que tudo fez para esclarecer junto do IAPMEI as dúvidas que esta questão lhe suscitou.
Para julgar improcedente a impugnação judicial interposta pela Recorrente contra a liquidação de juros compensatórios, e sancionando integralmente a argumentação expendida na contestação da Recorrrida, sustentou-se na sentença em crise, em síntese, que (i) a Recorrente não provou “as indicações recebidas” do IAPMEI, pois não apresentou “qualquer documento ou pedido de esclarecimentos do IAPMEI nem qualquer resposta daquele Instituto”, e que, ainda que o tivesse feito, (ii) atendendo a que o novo forno (investimento) apenas entrou em funcionamento em 28 de agosto de 2000, no ano de 1999 não existiu qualquer atividade produtiva imputável ao projeto de investimento, pelo que “não havia nenhum critério a seguir eventualmente indicado pelo IAPMEI”, fundando-se para chegar a esta conclusão no disposto no n.º 7 do art. 5.º do DL 409/99, de 15 de outubro, e que (iii) a Recorrente deveria ter acautelado a sua posição requerendo à Administração fiscal a emissão de uma informação vinculativa.
Alega a Recorrente no seu recurso, e em síntese, que (i) a sentença erra quando nela se conclui que não apresentou prova de que solicitou e obteve indicações do IAPMEI, pois arrolou três testemunhas para esse efeito, tendo o tribunal prescindido do seu depoimento por não o considerar útil; (ii) encontrando-se a Recorrente a negociar os contratos de incentivos financeiros e fiscais até junho de 2000, data em que os mesmos foram assinados, e tendo de entregar a declaração Modelo 22 referente ao exercício de 1999 até final de maio de 2000, o procedimento normal e correto seria o de procurar obter esclarecimento das dúvidas interpretativas suscitadas pelo mesmo junto do IAPMEI, que ali representava o Estado, sendo ainda certo que nunca teria obtido uma informação vinculativa da Administração fiscal em tempo, tanto mais que na data não existia a correspondente modalidade urgente; (iii) em maio de 2000, data em que teve de proceder à entrega da declaração Modelo 22, desconhecia ainda, porque o contrato não tinha sido celebrado, a remissão para o diploma legal habilitante, no caso, o DL 409/99; (iv) não está provado que tenha tido qualquer comportamento evasivo, prova essa que sempre caberia à Administração fiscal; (v) atuou de boa fé, tendo pago o imposto e correspondentes juros; (vi) estando em causa uma questão fiscal complexa, fez uma interpretação plausível da lei fiscal, tendo atuado de acordo com a posição que lhe foi transmitida pelo IAPMEI, sendo certo que nesta matéria o próprio DL 409/99 não tem uma redação clara, pois se por um lado ali se dispõe que o crédito fiscal está associado à matéria coletável imputável ao projeto de investimento (cf. art. 5.º, n.º 7), por outro também ali se refere que a dedução do crédito de imposto é efetuada no exercício em que foram realizadas as aplicações relevantes (investimentos) (cf. art. 5.º, n.ºs 5 e 6), que no caso, foram, em parte, efetuadas em 1999.
Vejamos então.
Antes de mais, há que dar razão à aqui Recorrente, quando alega que não podia na sentença concluir-se não estar provado “Que o IAPMEI respondeu às dúvidas da Impugnante e indicou o cálculo do crédito fiscal a deduzir no exercício de 1999”, sem se terem ouvido as testemunhas que diz ter arrolado para o efeito, esclarecendo tratarem-se as mesmas de “funcionários do IAPMEI que prestaram as informações em que a recorrente se fundou para a decisão que tomou”.
De facto, e atendendo a que da lei não resulta a necessidade de produção de prova documental para o efeito, o meio de prova apresentado pela Recorrente afigura-se idóneo, pelo que não podia concluir-se, como na sentença, não se terem provado os factos alegados nos artigos 43.º a 47.º da PI, sem que fosse produzida a prova testemunhal oportunamente requerida.
Pelo que a fixação deste “facto não provado” encerra, desde logo, uma errada interpretação da lei, da qual, por um lado, não resulta a exigência de um qualquer meio de prova específico para a produção da prova pretendida, e que, por outro, não legitima o Tribunal a recusar um meio de prova idóneo para depois concluir que a Impugnante, aqui Recorrente, não fez prova da factualidade em questão.
Donde há que dar razão à Recorrente quando alega que ao assim decidir a sentença erra na interpretação que faz, desde logo do disposto nos art. 114.º e 115.º, n.º 1 do CPPT, dos quais resulta, respetivamente, que não estando em causa uma questão apenas de direito ou uma questão de facto para a qual o processo forneça os elementos necessários – circunstâncias em que, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 13.º do CPPT, o tribunal deverá conhecer imediatamente do pedido, sem proceder à abertura de fase instrutória – devem ser ordenadas as diligências de produção de prova necessárias, e que no processo tributário são admitidos os meios gerais de prova.
Por outro lado, sempre se dirá que também metodologicamente esta abordagem se revela incongruente, atendendo a que o Tribunal de primeiro conhecimento da causa tinha já recusado a produção de prova testemunhal por considerar que a mesma não era útil (cf. despacho constante a fls. 99 dos autos, na numeração do SITAF) e a que na sentença se insiste que a prova desta factualidade seria inútil, atendendo a que na tese da Recorrida sufragada pelo Tribunal, a questão resultaria solucionada por interpretação do disposto no n.º 7 do art. 5.º do DL 409/99, de 15 de outubro, pelo que “não havia nenhum critério a seguir eventualmente indicado pelo IAPMEI”.
Assim sendo, e uma vez que o facto não provado se sustenta numa errada interpretação da lei processual, deve o mesmo ser eliminado da fundamentação de facto da decisão, o que desde já aqui se determina.
Quanto ao demais, vejamos se a Recorrente tem razão.
Em causa está um contrato fiscal de concessão de benefícios fiscais relativo a um benefício fiscal dinâmico, por ter subjacente razões sobretudo económicas [cf. NABAIS, José Casalta – Contratos Fiscais (reflexões acerca da sua admissibilidade). Coleção Studia iurídica, 5. Coimbra: Coimbra editora, 1994, pág. 123], como resulta da sua integração num contrato económico, no caso, o contrato de investimento e de concessão de incentivos financeiros celebrado no contexto do PEDIP II, entre o Estado, representado pelo IAPMEI, e a aqui Recorrente (cf. ponto 1, da fundamentação de facto).
Concretamente, está em causa um crédito fiscal em sede de IRC, que de acordo com o contrato corresponderia a 10% das aplicações relevantes do projeto consideradas para os efeitos do cálculo do incentivo fiscal, efetivamente realizadas (cláusula 4.1 do contrato, cf. ponto 1, da fundamentação de facto).
Do clausulado do contrato resulta ainda que este crédito fiscal consistiria na dedução ao montante apurado nos termos da (então) alínea a) do n.º 1 do art. 71.º do CIRC (ou seja, da matéria coletável apurada pelo sujeito passivo) da quantia resultante da aplicação da percentagem de 10% ao valor das aplicações relevantes consideradas para efeitos do cálculo do incentivo fiscal efetivamente realizadas em cada um dos exercícios que decorressem até 31 de dezembro de 2008 (cláusula 4.4 do contrato, cf. ponto 1, da fundamentação de facto), mais dali resultando que a dedução seria efetuada na liquidação de IRC respeitante ao exercício em que fossem realizadas as aplicações relevantes consideradas para efeitos do cálculo do incentivo fiscal, ou quando o não pudesse ser integralmente, poderia ainda ser deduzida, nas mesmas condições, na liquidação dos exercícios seguintes até ao termo da vigência do contrato (cláusula 4.5 do contrato, cf. ponto 1, da fundamentação de facto).
Embora nos contratos em questão não se defina exatamente o que se deve entender por “aplicação relevante”, Recorrente e Recorrida estão de acordo em que a aplicação relevante se traduz no investimento consistente na construção de um novo forno para produção de vidro, que tal como se refere no RIT se destinaria a substituir três fornos que se encontravam no limite de vida útil (ponto 2, a fls. 3 do RIT, cf. ponto 2 da fundamentação de facto).
Tal como resulta da sustentação do ato de liquidação de IRC de 1999, por dependência do qual foram liquidados os juros compensatórios com os quais a aqui Recorrente não se conforma, não obstante a Administração fiscal ali admitir expressamente que do regime aplicável não resultava esclarecida uma concreta metodologia de imputação do benefício e aceitar que, em abstrato, nada impediria o reconhecimento retroativo do beneficio fiscal – ali se referindo a este propósito que “De acordo com as disposições aplicáveis (artigo 8º do DL 409/99) o benefício fiscal deveria estar reconhecido, o que só acontece com o despacho do Ministro das Finanças, à data em que a declaração de rendimentos é entregue. Todavia, logo que reconhecido o benefício fiscal, o sujeito passivo sempre teria direito a fazer retroagir os seus efeitos aos exercícios do investimento, o que seria efectuado pela entrega da declaração de rendimentos de substituição. Desta forma, não obstante o benefício fiscal só ter sido reconhecido em data em que a declaração de rendimentos já havia sido entregue, não se justificaria, por este motivo, qualquer correcção” (ponto 3.2, a fls. 3 do RIT, cf. ponto 2, da fundamentação de facto) – a aplicação do benefício fiscal no exercício de 1999 não foi aceite, por naquele exercício não ter ocorrido qualquer “atividade produtiva imputável ao novo forno”.
Com efeito, e a este propósito, é referido no relatório de inspeção tributária que sustenta a liquidação adicional em causa que “Nos termos do n.º 7 do artigo 5.º do DL 409/99 a dedução terá como limite a colecta imputável ao investimento abrangido pelo contrato, sem que, todavia, sejam definidos quaisquer critérios que devam ser utilizados na referida imputação”, “O sujeito passivo apurou o valor total das aplicações relevantes do exercício, as quais à data apenas totalizavam € 2.639.178,70, e seguidamente calculou 10% das mesmas, que seria o valor máximo de benefício que poderia usufruir em 1999, ou seja € 463.917,87. Na indicação do valor da matéria colectável imputável o sujeito passivo limita-se ao cálculo do seu valor a partir do benefício fiscal máximo pretendido, ou seja não utiliza um verdadeiro critério de imputação da matéria colectável” e “Relativamente a 1999, dada a ausência de qualquer actividade produtiva imputável ao novo tomo, o qual só entrou em funcionamento em Agosto de 2000, não se poderá concluir por qualquer MC que lhe possa ser imputada, logo, não será de aceitar a totalidade do BF que foi objecto de dedução” (destacado nosso; cf. ponto 2, da fundamentação de facto).
Ora, e tal como já aqui foi referido, resulta expressamente do regime aplicável aos juros compensatório, consagrado no n.º 1 do art. 35.º da LGT, e no n.º 1 do (então) art. 80.º do CIRC (a que atualmente corresponde o n.º 1 do art. 102.º do CIRC) que são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.
Com efeito, em causa nos presentes autos não está a legalidade do ato de liquidação adicional de IRC, que não foi questionada pela Recorrente, mas a verificação da sua culpa, na modalidade de dolo ou negligência, de forma a sustentar a liquidação dos juros compensatórios em causa.
Ou seja, e dito de outro modo, da circunstância de a aqui Recorrente não ter utilizado a metodologia correta no apuramento do crédito de IRC que materializava o benefício fiscal contratual, o que sustenta a liquidação adicional de imposto, cuja legalidade não questiona, não decorre automaticamente a obrigação de pagamento de juros compensatórios, pois para tanto a lei exige o apuramento da sua culpa, tal como expressamente decorre do disposto no n.º 1 do art. 35.º da LGT e do então n.º 1 do art. 80.º do CIRC (atualmente, n.º 1 do art. 102.º do CIRC).
De facto, e como de resto é corretamente enunciado na sentença sob recurso, são requisitos essenciais da liquidação de juros compensatórios a existência de uma dívida de imposto, de um atraso na efetivação de uma liquidação desse imposto e da imputabilidade do atraso à atuação culposa do contribuinte, dependendo assim a responsabilidade por juros compensatórios de nexo causal adequado entre o atraso na liquidação e a atuação do contribuinte, bem como da possibilidade de se formular um juízo de censura à sua atuação, seja a título de dolo ou de negligência (neste sentido, veja-se o Acórdão do Pleno da Seção de Contencioso Tributário do STA proferido em 2014-01-22, no proc. 01490/13, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
E tal como vem sendo apurado pela jurisprudência, consistindo a culpa na omissão reprovável de um dever de diligência, que tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência de um bonus pater famílias “não se pode formular um juízo de censura à actuação do contribuinte que, com base numa interpretação plausível das regras legais aplicáveis” não procedeu à liquidação e pagamento do tributo (cf. neste sentido o Acórdão proferido pelo STA 23-04-2013, no proc. n.º 01195/12, disponível para consulta em www.dgsi.pt), podendo e devendo ser excluída a culpa “… quando se mostre, à luz das regras de experiência e das provas obtidas, que o contribuinte actuou com a diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais, considerando, dessa forma, que não são devidos juros compensatórios quando o retardamento da liquidação se ficou a dever, por exemplo, a compreensível divergência de critérios entre a AT e o contribuinte quanto ao enquadramento e/ou qualificação de determinada situação tributária (como, por exemplo, a nível de custos fiscais) ou a erro desculpável do contribuinte, acrescendo ainda que não basta uma mera divergência de critérios entre a AT e o contribuinte quanto ao enquadramento e/ou qualificação de determinada situação tributária para que seja excluída a culpa do contribuinte, é, ainda, necessário que tal divergência seja “compreensível” …” (cf. Acórdão proferido pelo STA em 02-02-2022, no proc. n.º 0671/18.1BELLE, disponível para consulta em www.dgsi.pt)
Como já aqui foi referido, entendeu-se na sentença sob recurso, e em total sintonia com a argumentação da Recorrida, que, não obstante do contrato em apreço não resultar claro qual o método de imputação correto, atendendo ao disposto no n.º 7 do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 409/99, de 15 de outubro - que veio regulamentar o regime de benefícios fiscais contratuais, condicionados e temporários, suscetíveis de concessão a projetos de investimento em Portugal -, era manifesto que o benefício fiscal não podia ser reconhecido no exercício de 1999, porque o forno objeto do investimento não se encontrava ainda a laborar.
Sucede, no entanto, que do disposto no citado preceito não resulta, como é imprecisamente referido no RIT, que “a dedução terá como limite a colecta imputável ao investimento abrangido pelo contrato”, mas sim que “[a]penas será considerada para efeitos de atribuição do crédito fiscal previsto neste artigo a parte da matéria colectável imputável ao projecto de investimento.” (destacado nosso).
Ora, e atendendo a que não é controverso nos autos que os trabalhos para a construção das infraestruturas necessárias e do próprio forno objeto do investimento tiveram início em agosto de 1999 (veja-se a propósito o que é referido no ponto 2 do RIT, cf. ponto 2, da fundamentação de facto), e ainda que admitindo que nesse exercício a Recorrente não tenha beneficiado de qualquer subsídio para o efeito, a referida construção não pode deixar de ter tido impacto no apuramento da matéria coletável – que como é sabido, é calculada com base o resultado contabilístico apurado pelo sujeito passivo (cf. n.º 1 do art. 17.º do CIRC) - fosse pelo reconhecimento isolado dos custos com a respetiva construção, tal como é alegado pela Recorrente, fosse por força do eventual reconhecimento do próprio ativo fixo tangível (que deveria ser reconhecido numa conta de investimentos por contrapartida de uma conta de rendimentos).
Esta interpretação é, aliás, a mais consistente com a circunstância de resultar dos n.ºs 5 e 6 do mesmo artigo 5.º do DL 409/99, respetivamente, que o benefício fiscal em sede de IRC consiste na dedução ao montante autoliquidado de imposto da quantia resultante da aplicação das percentagens de dedução “ao valor das aplicações relevantes realizadas em cada exercício” e que a dedução é feita na liquidação de IRC respeitante ao exercício em que foram realizadas as aplicações relevantes ou, quando o não possa ser integralmente, a importância ainda não deduzida poderá sê-lo, nas mesmas condições, na liquidação dos exercícios até ao termo da vigência do contrato.
Ora, tanto é quanto basta para que se conclua não só que não resultava manifesto do regime legal aplicável que o exercício de 1999 não era elegível para o reconhecimento, ainda que parcial, do benefício fiscal concedido, como que também do DL 409/99 não resultava de forma inequívoca a existência de um determinado critério de imputação como sendo o único correto ou possível, pelo que a interpretação feita pela Recorrente do regime jurídico enquadrador se afigurava pertinente e totalmente plausível.
Assim sendo, e não obstante o critério proposto pela Administração fiscal no RIT, com apoio na atividade efetivamente exercida, em cada exercício fiscal, através do forno objeto do investimento, refletida nas vendas de mercadorias cozidas no mesmo não ser questionado pela Recorrente, a verdade é que não só tal critério não resultava inequivocamente do contrato, ou do disposto no DL 409/99, como, e em face do teor de um e de outro, o método de imputação seguido pela aqui Recorrente para o exercício de 1999 não se afigura manifestamente errado ou, sequer, despropositado, resultando de uma interpretação possível e pertinente do regime aplicável.
Quanto ao argumento adiantado pela Recorrida na sua contestação e corroborado na sentença, de que a exculpação da Recorrente para este efeito dependeria da prévia solicitação perante a Administração fiscal de uma informação vinculativa, tal interpretação da lei não é aceitável, por se revelar contrário ao princípio da proporcionalidade, na sua vertente estrita ou de justa medida, revelando-se excessivo.
Com efeito, e atendendo a que na época não existia um procedimento urgente – que como é sabido, foi consagrado no n.º 2 do art. 68.º da LGT através da alteração introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro (LOE 2017) -, e que, como é comummente conhecido, decorrendo das regras de experiência comum, constituindo presunção judicial (cf. arts. 349.º e 351.º do Código Civil - CC), ou ainda que assim não se entendesse, sempre deveria ser considerado facto notório, nos termos do disposto nos art. 412.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e, do CPPT, que a resposta a tal solicitação era habitualmente significativamente demorada, tal exigência colocaria a Recorrente perante o risco sério de incumprir atempadamente com as suas obrigações declarativas relativamente ao exercício em questão.
Donde, atendendo a que a metodologia seguida pela Recorrente se sustentou numa interpretação pertinente e plausível do regime aplicável, e que, como alega, nada foi alegado que ponha em causa a sua boa fé ou a seriedade do seu comportamento fiscal, nunca tendo sido invocado qualquer facto que levasse a crer que tenha pretendido furtar-se às suas obrigações fiscais ou que a sua atuação se tenha dirigido a uma eventual evasão às mesmas, há que concluir que não se provou nos autos a verificação do requisito da culpa, indispensável ao apuramento dos juros compensatórios.
Assim sendo, e em face do exposto, há que concluir que a sentença sob recurso padece de erro de julgamento, tendo pelos motivos apontados, sufragado uma incorreta interpretação do disposto no n.º 1 do art. 35.º da LGT e no n.º 1 do art. 80.º do CIRC, devendo por isso ser o presente recurso julgado procedente.
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Atento o decaimento da Recorrida, é sua a responsabilidade pelas custas, pelo presente recurso e na 1.ª instância, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, não lhe sendo devida taxa de justiça pelo presente recurso, visto que nele não contra-alegou (cf. art. 7.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais – RCP).
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Conclusão:
Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

I. A responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a atuação do contribuinte, bem como da possibilidade de formular um juízo de censura à sua atuação (a título de dolo ou negligência).

II. A culpa pode e deve ser excluída quando se mostre, à luz das regras de experiência e das provas obtidas, que o contribuinte atuou com a diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais, designadamente quando o retardamento da liquidação se ficou a dever a uma compreensível divergência de critérios entre a AT e o contribuinte quanto ao enquadramento da situação tributária, no caso, relativamente ao modo de imputação à matéria coletável do benefício fiscal concedido.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao presente recurso, e em consequência, revogar a sentença recorrida, julgar a impugnação judicial procedente, e, em consequência, anular a liquidação de juros compensatórios decorrente da liquidação adicional de IRC do exercício de 1999.
Custas pela Fazenda Pública, em ambas as instâncias.

Porto, 27 de setembro de 2023 - Margarida Reis (relatora) – Tiago de Miranda – Conceição Soares.