Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01685/20.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/14/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL. ESPECIFICAÇÕES TÉCNICAS.
Sumário:I) – Cfr. art.º 49º, do CCP: «8 - A menos que o objeto do contrato o justifique, as especificações técnicas não podem fazer referência a determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas ou produtos. 9 - As referências mencionadas no número anterior só são autorizadas, a título excecional, no caso de não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato nos termos do n.º 7, devendo, no entanto, ser acompanhada da menção 'ou equivalente'.».*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:L., LDA
Recorrido 1:MUNICIPIO (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

L., Ldª (Avª. (…)) interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF do Porto, que, em acção de contencioso pré-contratual intentada contra o Município (...) (Edif. (…)) e contra-interessadas id. nos autos, julgou “a presente acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolve-se a Entidade Demandada e as contra-interessadas do pedido”, pedido no qual solicitou “(…) que seja a presente ação julgada procedente e, em consequência, a) Seja declarada a ilegalidade do caderno de encargos do concurso em causa, com a consequente anulação do mesmo por serem ilegais as especificações técnicas, nos termos do artigo 103º CCP, e para salvaguarda da igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento, deverá a R. aprovar um outro, expurgado do referido vicio. b) Seja declarada a tempestividade da reclamação apresentada pela A. a 13/07/2020. c) Seja anulada da decisão do recurso hierárquico por ter sido decidido por quem não tinha competência para tal”

Conclui:

A. Na douta sentença recorrida, entendeu o Tribunal a quo considerar a acção despoletada pelo aqui A/recorrente totalmente improcedente, por entender, em súmula, que o caderno de encargos impugnado preenchia os requisitos da lei, não sendo discriminatório ou impeditivo do livre acesso ao procedimento concursal, nem limitativo da concorrência.
B. Não pode a recorrente aceitar tal argumentação que apenas remete para a letra da lei sem fazer uma análise concreta e prática do caso em apreço e uma aplicação sensata dos normativos em causa.
C. Do ponto de vista factual, a Douta Sentença recorrida considerou, no ponto III da decisão, provados os factos constantes dos pontos 1 a 13, que aqui se dão por reproduzidos e nada mais deu como provado.
D. Contudo, deveria ter considerado como provado que as especificações técnicas ínsitas no caderno de encargos correspondem à letra às especificações técnicas das marcas mencionadas in fine de cada item da cláusula 30 do dito caderno de encargos.
E. E deveria tê-lo considerado provado, sobretudo, porque resulta da prova documental dos autos e do cotejo como o Processo Administrativo (PA), nomeadamente a proposta da N., de fls. 274 a 289 do PA, onde se pode verificar que as ditas especificações técnicas do caderno de encargos, não são mais que cópias das especificações das marcas indicadas pela concorrente N., onde inclusive as dimensões e pesos são idênticos ao milímetro e ao grama, conforme exemplos transcritos.
F. De modo que, deveria ter sido dado como provado que as especificações técnicas do caderno de encargos correspondem às especificações das marcas e modelos nele anunciados.
G. Ora, assim sendo, não podia a Meritíssima Juiz a quo agarrar-se apenas à letra da lei, concluindo que o caderno de encargos preenche os requisitos da lei, optando a entidade adjudicante pelo mecanismo de cariz excepcional do n.º 9 do art.º 49 do CCP, o qual, segundo a mesma, não merece qualquer censura.
H. O dito art.º 49 do CCP faz, efectivamente, o enquadramento legal na matéria.
I. Conforme dispõe o artigo 49º nº4 do CCP “as especificações técnicas devem permitir a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não devem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência.”.
J. Acrescentando o n.º 8 do mesmo artigo que “a menos que o objeto do contrato o justifique, as especificações técnicas não podem fazer referência a determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados pode determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas ou produto”.
K. O nº 9 do artigo 49º CCP permitir a autorização de que tais referências, mas a verdade é que essa situação só poderá verificar-se, a título excepcional, “no caso de não ser possível descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato”,
L. Ora, cotejando o caderno de encargos, em parte alguma do mesmo se fundamenta ou explicita a razão da entidade adjudicante ter escolhido aquelas especificações e não outras, nem sequer que não era possível uma descrição suficientemente precisa do contrato com outras especificações.
M. A seleção das especificações técnicas a incluir no caderno de encargos não é uma tarefa do livre alvedrio do órgão adjudicante (a quem cabe a aprovação das peças do procedimento), estando juridicamente sujeita a determinados requisitos legais, nomeadamente à observância de uma escala hierárquica de normalização técnica ou, especificações técnicas de referência ou por referência não a produtos ou serviços normalizados, mas ao seu desempenho ou exigências funcionais (cfr. o Acórdão do TCAS de 27/10/2011 e 12/04/2012; TCAN de 11/02/2015).
N. Ora, no caso em apreço, nada disso aconteceu, sendo que a entidade adjudicante escolheu as especificações ipsis verbis das marcas que cita no caderno de encargos, sem que para tal se saiba porquê e sem fundamentação, como impõe a lei.
O. Ou seja, o mecanismo de excepção previsto no n.º 9 do citado artigo, transformou-se em regra no caderno de encargos em apreço.
P. Não só as especificações técnicas remetem para marca e modelos específicos, como também a expressão “ou equivalente” está desprovida de qualquer conteúdo, não bastando a simples aposição dessa palavra para que se entenda cumprida a lei.
Q. Até as dimensões, ao milímetro, e peso do equipamento são idênticos aos da marca e modelo referenciados.
R. Deste modo, este tipo de especificações técnicas impede, na prática, qualquer outro equipamento equivalente de ser escolhido, já que não terá as especificações referidas por não corresponderem a marca e modelo específico.
S. Ou seja, na prática não existe qualquer possibilidade de real concorrência entre empresas, a entidade adjudicante, mormente o júri do concurso posto a escolher entre dois equipamentos, um que corresponda “exactamente” às características “pedidas” ou outro “equivalente”, tenderá sempre a escolher o equipamento que pediu.
T. Como aliás aconteceu no caso.
U. No lote n.º 1, a maior parte dos equipamentos de áudio e iluminação ali constantes, considerados como equipamentos de referência, são importados e representados em Portugal por uma única empresa, a contrainteressada N., nomeadamente, entre outros, os equipamentos D&B, ZSound, ETC, MA Lighting, Robe, Leding, Look Solutions.
V. Basta ver o relatório preliminar do concurso, de 3 de setembro, de fls 1002 a 1008 do PA, para constatar a veracidade do atrás alegado.
W. A concorrente F., que propondo equipamentos equivalentes esbarrou nas especificações técnicas exigidas, com a justificação “equipamentos que não cumprem as especificações técnicas do caderno de encargos”, acrescentando em cada ponto do dito caderno que “propõe equipamento diferente do exigido no caderno de encargos,” ou seja a marca e modelo indicados.
X. Qualquer equipamento equivalente será sempre diferente do exigido no caderno de encargos e, por isso, não cumprirá as especificações técnicas do caderno de encargos.
Y. Foi, por isso, que a recorrente não apresentou proposta, uma vez que sabia que a mesma iria esbarrar nas especificações técnicas diferentes, apesar de equivalente, dos seus equipamentos, estando o dito concurso viciado à partida.
Z. Ora, como se disse, a referência a marcas e modelos está estritamente enquadrada pelo Código dos Contratos Públicos, devendo a Recorrida Câmara fundamentar a utilização das mesmas, o que manifestamente não fez.
AA. Assim, foram violadas as normas constantes do art.º 1-A n.º 1, e do art.º 49º n.º 4, 8, 9 do CCP.
BB. A reclamação apresentada em 13 de julho de 2021, é tempestiva, na conjugação dos art.º 167º n.º 1, 169º n.º 2, do CCP e 197º n.º 1 do CPA.
CC. A decisão que indeferiu o recurso hierárquico deverá ser anulada uma vez que quem o decidiu foi a mesma pessoa que decidiu da reclamação, quando deveria ter sido pelo superior hierárquico e em última análise o próprio Presidente da Camara.
DD. Foram, por isso, também violadas as normas contidas nos art.º 194º e 195º do CPA.

O recorrido Município contra-alegou, e ampliou, concluindo:

1. Bem decidiu o Tribunal a quo a questão principal em apreciação nos autos através da sentença prolatada, não lhe sendo imputáveis os erros de julgamento alegados pela Recorrente;
2. Quanto à matéria de facto, apenas têm de se dar por assentes os factos que se tenham por suficientes para a solução da questão de direito que se tem por aplicável e o Tribunal a quo apreciou os factos relevantes para a decisão da causa e da questão;
3. A Recorrente não demonstra como do peticionado aditamento à matéria provada se obtém resultado diverso da fundamentação de direito e das conclusões obtidas, sendo aqueles irrelevantes para a solução da questão em apreço nos autos e insuscetíveis de alterar a mesma;
4. Contrariamente ao alegado, os factos pretendidos aditar não integram “implicitamente (n)a fundamentação da decisão”, da qual não resulta qualquer referência ao exposto, mas se assim fosse então deveria ter sido invocada a nulidade da sentença ao art.º 615.º CPC, o que não sucede;
5. Sem prejuízo, as especificações em apreço nos autos são relativas apenas ao lote 1 e não a “cada item da cláusula 30 do dito caderno de encargos” conforme art.º 6.º do requerimento, sendo que a petição inicial apenas incidia sobre o bem identificado a 2.4, incumbindo o ónus da prova à Autora aqui Recorrente sobre a extensão do argumento aos demais bens do lote n.º 1;
6. Quanto à matéria de direito, o Tribunal a quo aplicou corretamente o art.º 49.º do CCP, porquanto as especificações técnicas identificadas no CE são legais e delas consta além da indicação do modelo e marca de referência, menção de “equivalência”, formulação à qual a entidade adjudicante pode recorrer dentro da sua margem discricionariedade na fixação e apreciação das especificações técnicas, sem prejuízo do cumprimento do disposto no art.º 49.º do CCP;
7. O principio da concorrência (e para o efeito da igualdade) apenas será limitado se as referidas especificações apenas permitissem que um único concorrente estivesse em condições de apresentar proposta, o que não se verifica objetivamente no caso, porquanto existem bens equivalentes no mercado já identificados pelo MA e pela CI, e como se comprova pelo equipamentos equivalentes que o concorrente F. apresentou, dos quais apenas 5 não cumpriam com as especificações do CE, razão pela qual viu a sua proposta excluída, especificando o Relatório Preliminar quais os concretos pontos onde a proposta apresentava características diferentes;
8. Pelo que existindo no mercado equipamentos equivalentes aos indicados, não ocorre qualquer limitação da concorrência (que o art.º 49.º pretende acautelar);
9. Apesar da Recorrente alegar que o recurso ao n.º 9 do art.º 49.º do CCP apenas é possível em caso de impossibilidade de descrição do objeto do contrato e que tal não é manifestamente o caso, não prova porquê nem refere que estão em causa bens de elevada complexidade técnica;
10. Ainda mais num procedimento cujo critério de adjudicação era o da proposta economicamente mais vantajosa – art.º 74.º do CCP e Cláusula 12.º do Programa do Procedimento – e propostas foram avaliadas apenas em função do preço apresentado;
11. Considerando que se tratam de bens de elevada complexidade técnica e multiplicidade de funções e características, não podem aquelas ser resumidas de forma sumária, sob pena de vincular a entidade adjudicante à adjudicação de bens que não cumprissem com níveis mínimos de garantia de qualidade, fiabilidade e desempenho;
12. Por isso, a especificidade que a Recorrente reputa de excessiva, destina-se a estabelecer um patamar mínimo de qualidade e desempenho técnico, de modo a que as propostas não contemplassem equipamentos com baixa prestação, fraca qualidade construtiva, e garantia técnica e assistência deficitária;
13. Relembrando que os bens em causa se destinavam a equipar o Teatro (...), o que implica a sua incorporação e compatibilização com as preexistências do Teatro, a fim de se poderem completar e expandir os sistemas sonoros e de iluminação instalados, consideradas as concretas especificidades da sala;
14. Teatro que é uma sala de espetáculos de referência e relevo nacional (e local), dispondo de programação em diversas áreas culturais e que integra os circuitos nacionais e internacionais de programação de eventos e artistas, enquanto parte da estrutura municipal de programação regular, que se destaca como um espaço de produção e apresentação por excelência e que disponibiliza uma sala principal para 603 espectadores (equipada com fosso de orquestra, material de iluminação e sonorização cénica bem como de projeção de vídeo), um salão nobre com capacidade para acolher 300 pessoas (cujo equipamento de luz e som para eventos de diversas tipologias concede multifuncionalidade ao espaço) e ainda uma sala estúdio (com régie) com capacidade para acolher até 150 pessoas, no qual em 2020 recebeu 20.512 espectadores, e no corrente ano (apesar de encerrado desde 15 de janeiro a 2 de setembro) recebeu 5933 espectadores até outubro e que integra a estratégia municipal para a cultura, com a qual (…) se candidata a Cidade Europeia da Cultura em 202_;
15. Por isso, os equipamentos necessários não são bens comuns ou de gama baixa, sendo de suma importância que os mesmos possuam efetiva garantia de qualidade, fiabilidade e nível de desempenho, adequados à utilização, organização e características físicas do espaço em causa, e compatibilidade com o equipamento preexistente num Teatro desta dimensão e programação;
16. Motivos e condicionalismos que orientaram o Município (...) na indicação dos bens aptos a desempenhar as funções pretendidas, e cujas especificações técnicas concretamente selecionadas, garantem a qualidade e garantia técnica comprovada, salvaguardando-se de cópias ou equipamentos da baixa qualidade, que cumprissem especificações genéricas se aquelas fossem menos detalhadas;
17. Do exposto decorre a fundamentação da escolha do recurso ao referido mecanismo do n.º 9 ainda que o art.º 49.º CCP não prescreva a necessidade de fundamentação do recurso àquele: esse é aferido pela dificuldade da suficiência das especificações que permitam aos concorrentes inteligir o que a entidade adjudicante pretende adquirir;
18. Questão distinta é a Recorrente se encontrar limitada no seu âmbito de atuação em virtude de não dispor de equipamentos equivalentes, por não ter representação de marcas de equipamento dentro da mesma gama (facto ao qual o Município (...) é totalmente alheio) e que nem sequer apresentou proposta ao lote, limitando-se a extrair do CE sem comprovar, a sua impossibilidade de concorrer;
19. Sobre a alegada omissão de pronúncia da sentença sobre a (in)tempestividade da reclamação, bem como sobre o pedido de anulação da decisão sobre o recurso hierárquico, andou bem o Tribunal a quo ao desconhecer os pedidos atento a que os mesmos são irrelevantes para a decisão da causa e a apreciação das questões fica prejudicada pela solução dada à questão prévia e principal da alegada ilegalidade do CE na parte atinente às especificações técnicas;
20. Sem prejuízo e por mera cautela de patrocínio e considerando que o Município (...) invocou a exceção de caducidade do direito à ação quanto aos atos administrativos de indeferimento da reclamação (e logo, do recurso hierárquico) – bem como da ilegitimidade e falta de interesse em agir - , impõe-se então recorrer da decisão tomada em sede de Despacho Saneador de 18/6/2021 que deu a(s) exceção(ões) por improcedente(s), porquanto se entender esse douto Tribunal apreciar a questão conforme solicitada pela Recorrente, também a(s) exceção(ões) deve ser reapreciada;
21. E tendo aquela sido proferida em sede de despacho saneador e não se enquadrando nas situações previstas no art.º 644.º do CPC, não cabe apelação autónoma, mas impugnação em sede de recurso interposto da decisão final, como ora se faz;
22. E sobre aquelas, por lapso evidente, a Meritíssima Juiz não reparou que a exceção de caducidade do direito de ação foi invocada apenas sobre os pedidos de apreciação da tempestividade da reclamação e da anulação do recurso hierárquico e não sobre a impugnação das peças do procedimento;
23. E quanto àqueles pedidos e considerando que o Anúncio do procedimento n.º 6534/2020 foi publicitado a 22/6/2020 (e logo o CE acessível ao conhecimento de todos), nos termos do n.º 1 e alínea a) do n.º 3 do art.º 59.º ex vi art.º 101.º ambos do CPTA, inicia-se nessa data a contagem do prazo processual;
24. Considerando o prazo legal para interposição da ação de um mês (art.º 101.º CPTA) e o disposto sobre a suspensão do prazo de impugnação contenciosa (n.º 4 do art.º 59.º ex vi art.º 101.º ambos do CPTA), tendo a aqui Recorrente apresentado reclamação graciosa após o prazo de 5 dias previsto no art.º 270.º CCP, a intempestividade da reclamação impede o preenchimento dos requisitos para a suspensão do prazo previstos no citado n.º 4 do art.º 59.º, pelo que o indeferimento da reclamação e consequente recurso hierárquico não podem ser apreciados no âmbito da presente ação;
25. Isto porque as impugnações graciosas facultativas no âmbito das garantias do CCP dispõem de um prazo específico de 5 dias úteis, apenas sendo aplicável subsidiariamente o CPA ao que não estiver expressamente regulado nos artigos 267.º e ss CCP, o que não sucede, considerando que a aprovação do CE é uma “decisão administrativa equiparada”, expressamente prevista no n.º 1 do art.º 269.º CCP;
26. Mas ainda que assim não se entendesse, atento o prazo de interposição da ação de um mês (art.º 101.º CPTA) e o disposto sobre a suspensão do prazo de impugnação contenciosa previsto no n.º 4 do art.º 59.º CPTA, a Recorrente apenas poderia interpor ação quanto aos atos administrativos de indeferimento até ao dia 21/8/2020, o que não sucedeu, verificando-se assim a caducidade do direito à ação na parte a que se referem os artigos 10.º a 16.º e 28.º a 40.º da PI, o que constitui uma exceção perentória nos termos do n.º 3 do art.º 89.º CPTA, e n.º 3 do art.º 576.º e art.º 579.º CPC ex vi art.º 1.º CPTA, que importa a absolvição parcial do pedido;
27. De igual forma, decidiu aquele saneador que a aqui Recorrente “tem sério interesse em participar” e que fica “demonstrada a vantagem e/ou benefício específico com a declaração de ilegalidade do caderno de encargos do procedimento concursal nos autos bem assim como o seu interesse em agir, julgam-se improcedentes as exceções que vinham suscitadas.”;
28. No entanto, a mesma desistiu do pedido formulado de aplicação da medida provisória de suspensão do procedimento nos termos do art.º 103.º-B CCP, aceitando e conformando-se com os efeitos da não suspensão e a consequente tramitação e adjudicação a 1/7/2021, não cumprindo com ónus da concreta impugnação autónoma dos respetivos atos de aplicação a que o documento se refere, ié, o CE, nos termos do n.º 3 do art.º 103.º CCP;
29. Pelo que, a Recorrente não detém qualquer interesse juridicamente acautelado, afastando-se assim qualquer efeito útil da decisão a proferir nos autos, que tenha repercussão na sua esfera jurídica, demonstrando-se a desnecessidade da tutela jurídica e a inutilidade da decisão superior, até porque é a própria que confessa não ter qualquer expetativa de concorrer no futuro;
30. Demonstrada a ausência de interesse da Recorrente no procedimento e a efetiva falta de interesse em agir da mesma, verifica-se uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, dando lugar à absolvição do Réu da instância, e que prejudica e esvazia de conteúdo a sindicância (cfr n.º 1 do art.º 95.º CPTA, aplicável ex vi artigo 102.º, n.º 1, do mesmo Código);
31. Aliás, o contrato para o lote n.º 1 foi celebrado a 18/8/2021, tendo sido parcialmente fornecidos os bens (entrega está atrasada por falta de componentes face às dificuldades causadas pela pandemia no mercado de matérias-primas) e pago parte do preço contratual no montante de €107.733,73;
32. Não podendo a atitude da Recorrente ser premiada por portas travessas, se a decisão resultasse na anulação de um documento conformador do procedimento de formação do contrato, onde o dever de reconstituir a situação implica a anulação do procedimento e lançamento de novo concurso, e assim se substituísse a sua obrigação legal de impugnação específica da adjudicação.
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A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta foi notificada nos termos do art.º 146º, nº 1, do CPTA, não emitindo parecer.
*
Os factos fixados na sentença como provados:
1) O objeto social da Autora é de “Importação, exportação, comercialização, representação, agente do comércio por grosso e aluguer de equipamento e material de iluminação, cinematográfico, som, teatro, bem como a instalação dos mesmos e a sua assistência técnica; comercio importação, exportação e representação de livros e revistas; exploração de bar; compra venda e aluguer de bens imobiliários; produção de produtos agrícolas; lavagem e limpeza a seco de têxteis e peles” – cf. doc. De fls. 1189;
2) Em 22 de Junho de 2020 o Município (...) publicou anúncio no DR, II série, procedimento nº 6534/2020 tendo em vista a “Aquisição de Equipamento Técnico para o Teatro (...)” com o preço base do procedimento: 275 201.44 EUR – cf. doc. 1 junto com a contestação da contra-interessada A., Lda;
3) No referido anúncio estabelece-se, designadamente, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

4) Estabelece a cláusula 1ª do Programa de Procedimento o seguinte:
1 O presente procedimento por concurso público internacional tem como objeto a aquisição e montagem de diverso equipamento técnico para o Teatro (...), nos termos definidos no caderno de encargos e demais documentos pateteados a concurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do art.º 20º do Código dos Contratos Públicos (doravante designado por CCP), aprovado pelo Decreto-lei nº 18/2008, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 111- B/2017, de 31 de agosto, com as retificações promovidas pelas Declarações de Retificação nº 36-A/2017, de 30 de outubro, e nº 42/2017, de 30 de novembro.2(…).3. O objeto do presente procedimento têm a seguinte referência CPV (Classificação Estatística de Produtos por Atividade): 39300000-5 – Equipamento Diverso, a que se refere o Regulamento (CE) nº 213/2008 da Comissão de 28 de Novembro de 2007, qua altera o Regulamento (CE) nº 2195/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo ao Vocabulário Comum para os Contratos Públicos (CPV), relativas aos processos de adjudicação de contratos, no que respeita à revisão do CPV, publicado no JOUE (Jornal Oficial da União Europeia) L74 de 15/03/2008”.
5) Estabelece a cláusula 1ª do Caderno de Encargos:
“1. O presente Caderno de Encargos compreende as cláusulas a incluir no contrato a celebrar na sequência do procedimento pré-contratual que tem por objeto principal o fornecimento de diverso equipamento técnico para o Teatro (...), cujo preço base é de €275.201,44, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, distribuído pelos seguintes Lotes: 2. LOTE 1 - EQUIPAMENTO TÉCNICO SOM E LUZ – preço base de €235.189,96, acrescido de IVA à taxa legal em vigor; 3.LOTE 2 – EQUIPAMENTO TÉCNICO VIDEO – preço base de €19.554.28, acrescido de IVA à taxa legal em vigor; 4.LOTE 3 – EQUIPAMENTO TÉCNICO INFORMÁTICA – preço base de €8.000,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor; 5.LOTE 4 – EQUIPAMENTO TÉCNICO FOTOGRAFIA – preço base de €5.759,10, acrescido de IVA à taxa legal em vigor; 6.LOTE 5 – EQUIPAMENTO TÉCNICO MECÂNICA DE CENA – preço base de €6.698.10, acrescido de IVA à taxa legal em vigor(…)”.
6) Estabelece a cláusula 30ª do caderno de encargos o seguinte:– especificações técnicas – e quanto ao Lote 1 que é aquele que está em causa nos autos, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

7) No dia 13 de julho de 2020, a A. apresentou Reclamação com fundamento no facto do Caderno de Encargos do concurso conter as especificações técnicas de tal forma pormenorizadas, contendo um nível de detalhe excessivamente exaustivo, que só correspondem aquelas marcas e modelos, que impossibilita a abertura à participação a outros operadores económicos no concurso – cf. doc. 2 junto com a p.i.;
8) No dia 21 de julho de 2020, a A. foi notificada da rejeição da sua reclamação com fundamento na sua apresentação extemporânea, uma vez que foi considerado que o prazo para intentar a reclamação seria de 5 dias conforme o estabelecido no artigo 270º do Código dos Contratos Públicos e assim que a apresentação da reclamação só poderia ser feita até ao dia 29/06/2020 – cf. doc. 3 junto com a p.i.;
9) A. apresentou em 24/07/2020 recurso hierárquico da decisão de rejeição da reclamação, fundamentando a sua tempestividade, de modo ver a sua situação de novo apreciada – cf. doc. 4 junto com a p.i.;
10) A A. foi notificada por ofício datado de 14/8/2020 do indeferimento do ora recurso hierárquico, que confirmou a decisão tomada em sede de resposta à reclamação, reafirmando a extemporaneidade da reclamação enviada pela A. em 13/07/2020 – cf. doc. 5 junto com a p.i.;
11) A A. não apresentou proposta no âmbito do procedimento concursal referido no ponto 1. supra (facto admitido por acordo);
12) O relatório preliminar do procedimento concursal identificado no item 2) foi elaborado em 3/9/2020.
13) A A. intentou a presente acção no dia 10 de Setembro de 2020 e nela vem peticionada que a) seja declarada a ilegalidade do caderno de encargos do concurso em causa, com a consequente anulação do mesmo por serem ilegais as especificações técnicas, nos termos do artigo 103º CCP, e para salvaguarda da igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento, deverá a R. aprovar um outro, expurgado do referido vicio; b) Seja declarada a tempestividade da reclamação apresentada pela A. a 13/07/2020; c) Seja anulada da decisão do recurso hierárquico por ter sido decidido por quem não tinha competência para tal.
*
A apelação:
Conclui a recorrente que “deveria ter sido dado como provado que as especificações técnicas do caderno de encargos correspondem às especificações das marcas e modelos nele anunciados” (remetendo em suporte para a “proposta da N., de fls. 274 a 289 do PA, onde se pode verificar que as ditas especificações técnicas do caderno de encargos, não são mais que cópias das especificações das marcas indicadas pela concorrente N., onde inclusive as dimensões e pesos são idênticos ao milímetro e ao grama”), “até porque a Meritíssima Juiz a quo assim o admite implicitamente na fundamentação da sua decisão.” (corpo de alegações).
Mas, então, se no próprio ver da recorrente essa é suposição presente no julgamento feito - por uma admissão, ainda que implícita -, então significa que é circunstancialismo que não foi arredado de contributo para a solução de direito; não é preciso aditar o que estará já presente; a falta da sua consignação em elenco autónomo expresso não retira préstimo.
Se foi tido, ou não, em/para boa serventia, ou não, isso coloca-se em plano que não é o do juízo de facto, antes do direito.
E a propósito do direito, vendo da similitude, recordamos aqui Ac. do TCAS, de 18-03-2021, proc. n.º 929/19.2BEBRG, a respeito de concurso público com vista à “Aquisição de Sistema de Som para o Teatro do Bairro Alto”, onde se sumariou:
I- As especificações técnicas consubstanciam, no caso dos contratos de aquisição de bens móveis, o elenco de características exigidas a um produto, tais como os níveis de qualidade, desempenho, avaliação do produto, segurança, dimensões, níveis de desempenho ambiental, etc.. Por conseguinte, a entidade adjudicante deve conduzir ao caderno de encargos a descrição detalhada do bem que pretende adquirir, especialmente, dos termos de desempenho e dos requisitos funcionais, por forma a permitir que os concorrentes identifiquem de modo claro e inequívoco o objeto do contrato (cfr. art.º 49.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CCP).
II- A identificação clara das especificações técnicas, bem como o concreto modo como estas são apresentadas, constituem ainda uma garantia de igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação, e não devem criar obstáculos injustificados ao desenrolar da concorrência no mercado que é convocado a oferecer o produto que a entidade adjudicante pretende adquirir (cfr. art.º 49.º, n.º 4 do CCP).
III- Ou seja, é possível identificar uma proibição genérica de descrição de um bem por referência a processos de fabrico ou a procedimentos que caracterizem um determinado fornecedor ou a marcas comerciais.
IV- Esta regra de proibição- explica PEDRO COSTA GONÇALVES (Direito dos Contratos Públicos, setembro, 2020, 4.ª edição, Almedina, pp. 625 e 626)- “só não se aplica, a título excecional, quando não é possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato, caso em que se exige que a referência seja acompanhada da menção «ou equivalente»”. Neste caso, “a entidade adjudicante deve exigir que o concorrente apresente, desde logo na sua proposta, a prova da equivalência dos produtos que propõe em relação aos definidos nas referidas especificações técnicas”.
V- Quer isto dizer que, o n.º 9 do art.º 49.º do CCP contém uma derrogação à proibição geral inscrita no n.º 8 do mesmo preceito legal, que deve ser interpretada casuisticamente e em termos estritos, por forma a manter intacto o princípio da concorrência ou beliscá-lo o menos possível.
VI- Realmente, a omissão da menção «ou equivalente», na situação em que a descrição do bem concursado é realizada por referência a uma marca, arrasta um risco intolerável de violação da concorrência. Como assinala o Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão proferido em 25/10/2018, no processo C-413/17- Roche Lietuva, a ausência da aludida menção «ou equivalente» “pode não só dissuadir os operadores económicos que utilizem sistemas análogos a esse produto de apresentar propostas, mas também entravar as concorrentes de importação no comércio transfronteiriço da União, reservando o concurso apenas aos fornecedores que se proponham utilizar o produto especificamente indicado”.
VII- No caso versado, o contraente público procedeu, nas peças do concurso, à enumeração minuciosa das características técnicas e tecnológicas dos bens concursados, indicou a marca e consignou a menção «ou equivalente».
VIII- Por conseguinte, apesar da indicação da marca, não se descortina no caso posto uma restrição à concorrência, dado que, a abertura do procedimento ao mercado é, ainda assim, determinada quer pela enunciação minuciosa das características dos bens, quer pela existência da menção «ou equivalente».
Mas, volvendo ao nosso caso.
Norteia o CCP, no seu:

Artigo 49.º
Especificações técnicas
1 - As especificações técnicas, tal como definidas no anexo vii ao presente Código, do qual faz parte integrante, devem constar no caderno de encargos e devem definir as características exigidas para as obras, bens móveis e serviços.
2 - As características exigidas para as obras, bens móveis e serviços podem também incluir uma referência ao processo ou método específico de produção ou execução das obras, bens móveis ou serviços solicitados ou a um processo específico para outra fase do seu ciclo de vida, mesmo que tais fatores não façam parte da sua substância material, desde que estejam ligados ao objeto do contrato e sejam proporcionais ao seu valor e aos seus objetivos.
3 - As especificações técnicas podem concretizar se é exigida a transmissão de direitos de propriedade intelectual.
4 - As especificações técnicas devem permitir a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não devem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência.
5 - Em relação a todos os contratos cujo objeto se destine a ser utilizado por pessoas singulares, quer seja o público em geral quer o pessoal da entidade adjudicante, as especificações técnicas devem, salvo em casos devidamente justificados, ser elaboradas de modo a ter em conta os critérios de acessibilidade para as pessoas com deficiência ou de conceção para todos os utilizadores.
6 - Sempre que existam normas de acessibilidade obrigatórias adotadas por ato legislativo da União Europeia, as especificações técnicas devem ser definidas por referência a essas normas, no que respeita aos critérios de acessibilidade para as pessoas com deficiência ou de conceção para todos os utilizadores.
7 - Sem prejuízo das regras técnicas nacionais vinculativas, na medida em que sejam compatíveis com o direito da União Europeia, as especificações técnicas devem ser formuladas segundo uma das seguintes modalidades:
a) Em termos de desempenho ou de requisitos funcionais, que podem incluir critérios ambientais, desde que os parâmetros sejam suficientemente precisos para permitir que os concorrentes determinem o objeto do contrato e que a entidade adjudicante proceda à respetiva adjudicação;
b) Por referência a especificações técnicas definidas e, por ordem de preferência, a normas nacionais que transponham normas europeias, a homologações técnicas europeias, a especificações técnicas comuns, a normas internacionais e a outros sistemas técnicos de referência estabelecidos pelos organismos europeus de normalização ou, quando estes não existam, a normas nacionais, a homologações técnicas nacionais ou a especificações técnicas nacionais em matéria de conceção, cálculo e execução das obras e de utilização dos fornecimentos, devendo cada referência ser acompanhada da menção 'ou equivalente';
c) Em termos do desempenho ou dos requisitos funcionais a que se refere a alínea a), com referência às especificações técnicas a que se refere a alínea b) como meio de presunção de conformidade com esse desempenho ou com esses requisitos funcionais;
d) Por referência às especificações técnicas a que se refere a alínea b), para determinadas características, e por referência ao desempenho ou aos requisitos funcionais a que se refere a alínea a), para outras.
8 - A menos que o objeto do contrato o justifique, as especificações técnicas não podem fazer referência a determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas ou produtos.
9 - As referências mencionadas no número anterior só são autorizadas, a título excecional, no caso de não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato nos termos do n.º 7, devendo, no entanto, ser acompanhada da menção 'ou equivalente'.
10 - Sempre que a entidade adjudicante recorra à possibilidade de remeter para as especificações técnicas a que se refere na alínea b) do n.º 7, não pode excluir uma proposta com o fundamento de que as obras, bens móveis ou serviços dela constantes não estão em conformidade com as suas especificações técnicas de referência, se o concorrente demonstrar na sua proposta por qualquer meio adequado, nomeadamente os meios de prova referidos no artigo seguinte, que as soluções propostas satisfazem de modo equivalente os requisitos definidos nas especificações técnicas.
11 - Sempre que a entidade adjudicante recorra à possibilidade, prevista na alínea a) do n.º 7, de formular especificações técnicas em termos de exigências de desempenho ou de requisitos funcionais, não deve excluir uma proposta que esteja em conformidade com uma norma nacional que transponha uma norma europeia, uma homologação técnica europeia, uma especificação técnica comum, uma norma internacional ou um sistema técnico de referência estabelecido por um organismo de normalização europeu, quando essas especificações corresponderem aos critérios de desempenho ou cumprirem os requisitos funcionais impostos.
12 - O concorrente pode demonstrar na sua proposta, por qualquer meio adequado, incluindo os meios referidos no artigo 49.º-A, que a obra, bem móvel ou serviço em conformidade com a norma em questão corresponde ao desempenho exigido ou cumpre os requisitos funcionais da entidade adjudicante.

Vejamos.
Depois de dar em pano de fundo o enquadramento normativo e de lembrar o que factualmente ficou fixado a respeito das condições técnicas anunciadas/enunciadas, o tribunal “a quo” entendeu:
«(…)
Como vimos, a inclusão no caderno de encargos de menções que contrariem o estabelecido no art.49º do CCP, designadamente, as que, pela sua natureza, possam ter um efeito discriminatório e, portanto, impeditivo do livre acesso aos procedimentos adjudicatórios, prejudicando, consequentemente, a concorrência, poderá vir a afectar a validade do procedimento concursal
Por isso, como já referido, os cadernos de encargos não podem, em regra, conter especificações técnicas que mencionem determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados, que tenha por efeito favorecer ou eliminar determinadas entidades ou determinados bens (cfr. nº8 do art.49º do CCP e primeira parte do nº8 do artigo 23º da Directiva 2004/18/CE).
Estas menções só excepcionalmente são admitidas e devem ser acompanhadas da menção “ou equivalente” (cfr. nº9 do art.49º do CCP).
Todavia, na fixação das especificações técnicas, a entidade contratante goza de uma certa margem de discricionariedade, tal como decorre do previsto no citado artigo 49º do CCP, que evidentemente se enquadra nos parâmetros legais que aí se encontram definidos. O que significa que pode prever especificações técnicas, exigindo características técnicas e funcionais mínimas obrigatórias, sem que sequer haja qualquer indicação quanto a elementos de fabricante e modelo.
O legislador criou, assim, um regime de excepção que admite as sobreditas referências, nomeadamente, a marcas ou modelos, desde que acompanhadas da menção “ou equivalente”, no caso “de não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objecto do contrato” (cfr. segunda parte do nº8 do artigo 23º da Directiva 2004/18/CE) ou, como transposto para o nº9 do artigo 49º do CCP, “no caso de não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objecto do contrato nos termos do nº7, devendo, no entanto, ser acompanhada da menção “ou equivalente”.
No caso em apreço, as características técnicas obrigatórias de cada um dos equipamentos que constituem o lote 1 foram definidos pela Entidade Adjudicante de acordo com o seu desempenho, funcionalidade e características específicas, tendo sido elaborada a discriminação técnica para cada um dos equipamentos a adquirir, com a menção “tipo” bem assim como o “modelo” “ou “equivalente”, pelo que, ao contrário do que concluiu a Autora, era admissível a apresentação de equipamentos de outras marcas e ou modelos, desde que equivalentes aos modelos de referência ou às características pretendidas.
Atendendo ao tipo de bens em causa no referido lote 1 a Entidade Demandada optou, quanto a um desses equipamentos, por recorrer ao mecanismo de cariz excepcional previsto no nº9 do art.49º do CCP, conduta essa que não se vislumbra ser merecedora da censura que a Autora lhe faz.
Na verdade, em cada um dos equipamentos a fornecer a Entidade Adjudicante cuidou de mencionar: “O equipamento a fornecer deverá ser do tipo d&b, modelo Y7P ou equivalente; O equipamento a fornecer deverá ser tipo d&b, modelo B6-SUB ou equivalente; O equipamento a fornecer deverá ser tipo d&b, modelo 8S ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo marca Electro-Voice, modelo ZLX-12P ou equivalente. Deverá ser fornecido sistema de suspensão para coluna de 10”, compatível com o modelo d&b 10S, e composto por um conjunto de lira dupla rotativa e suporte customizado que permite a correta integração na infraestrutura existente. Deverá ser fornecida lira dupla rotativa para suspensão de coluna de 12”, compatível com o modelo d&b 12S. O equipamento a fornecer deverá ser tipo d&b, modelo 30D ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo d&b, modelo 10D ou equivalente; O equipamento a fornecer deverá ser tipo Soundcraft, modelo Ui24R ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Behringer, modelo Xenyx 802 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo DPA, modelo DPA KIT-4099-DC-4C ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Shure, modelo ULXD4D ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Shure, modelo ULXD1 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Shure, modelo ULXD2/B58 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo the t.bone, modelo HeadmiKe - Shure ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Shure, modelo WL185 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Shure, modelo UA8 ou equivalente. Deverá ser fornecido cabo de rede Cat6 com 50 metros de comprimento, roldana apropriada e fichas macho Neutrik etherCon ou equivalente nas pontas. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Kenwood, modelo TK-3501 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo ETC, modelo Source Four LED Series 2 Lustr ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo ETC, modelo Source Four Zoom 15/30 Lens Tube ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo ETC, modelo Source Four Zoom 25/50 Lens Tube ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo LEDING, modelo SparkMax Wash 4C ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo ROBE, modelo T1 Profile ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo LEDING, modelo SolarZoom RGBW ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo ROBE, modelo LEDBeam 150 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Swisson, modelo XND-8R5 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Swisson, modelo XSP-5R-5R ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Look Solutions, modelo Unique 2.1 ou equivalente. O equipamento a fornecer deverá ser tipo Guil, modelo ABZ-07/E-N ou equivalente. A ficha a fornecer deverá ser tipo PCE, modelo 013-6x ou equivalente”.
E, assim sendo, não se revela procedente a conclusão retirada pela Autora, aquando da consulta do caderno de encargos, segundo a qual, as especificações técnicas dos equipamentos a fornecer têm um nível de detalhe excessivamente exaustivo, fazendo, inclusivamente, referência a marcas comerciais e patentes, o que impossibilita a que qualquer equipamento da Autora possa corresponder ao exigido, afrontando assim o disposto no artº 49º do CCP bem assim como os princípios da concorrência, da não discriminação e da igualdade. É que também neste aspecto fica por demonstrar que, da selecção das concretas especificações técnicas que constam do caderno de encargos e relativas às características do equipamento de luz e som a adquirir, resulte o alegado efeito discriminatório e impeditivo do livre acesso aos procedimentos concursais em condições de igualdade aos diversos operadores económicos e, portanto, limitativo da concorrência, tanto mais que o juízo de desconformidade com o quadro legal aplicável que a A. fez, foi resultado da mera consulta do caderno de encargos, do qual adveio a conclusão (não confirmada, como se viu) de que seria impossível que qualquer equipamento da A. que oferecesse as mesmas características técnicas descritas na cláusula 30ª do caderno de encargos pudesse corresponder ao exigido, com a consequente não aceitação da eventual proposta que viesse a apresentar.
Donde, falece por completo a tese sustentada pela Autora.
(…)».
Um primeiro passo de raciocínio, perante o que o recurso confronta, versa o uso de indicação de marca/modelo.
Assinala o Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão proferido em 25/10/2018, no processo C-413/17- Roche Lietuva, que “a regulamentação da União relativa às especificações técnicas reconhece uma ampla margem de apreciação à entidade adjudicante no âmbito da formulação das especificações técnicas de um contrato. Esta margem de apreciação é justificada pelo facto de que são as entidades adjudicantes quem melhor conhece os fornecimentos de que necessita e quem está melhor posicionado para determinar os requisitos que devem estar preenchidos para obter os resultados pretendidos. No entanto, a Diretiva 2014/24 estabelece determinados limites que a entidade adjudicante deve respeitar. Designadamente, exige-se no artigo 42.o, n.o 2, da Diretiva 2014/24 que as especificações técnicas permitam a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e que não possam criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência.”.
Na definição constante do Anexo VII da Directiva 2014/24 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26/02/2014, entende-se por «Especificação Técnica», “No caso de contratos públicos de fornecimentos ou de serviços, uma especificação constante de um documento que define as características exigidas a um produto ou a um serviço, tais como os níveis de qualidade, os níveis de desempenho ambiental e climático, a conceção que preveja todas as utilizações (incluindo a acessibilidade por parte das pessoas com deficiência) e a avaliação da conformidade, o desempenho, a utilização do produto, a segurança ou as dimensões, incluindo as prescrições aplicáveis ao produto no que se refere ao nome sob o qual é vendido, a terminologia, os símbolos, os ensaios e métodos de ensaio, a embalagem, a marcação e rotulagem, as instruções de utilização, os procedimentos e métodos de produção em qualquer fase do ciclo de vida do produto ou serviço e os procedimentos de avaliação da conformidade. [n.º 1,b)]; também no Anexo VII do CCP.
Como foi transposto na lei interna, «8 - A menos que o objeto do contrato o justifique, as especificações técnicas não podem fazer referência a determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas ou produtos. 9 - As referências mencionadas no número anterior só são autorizadas, a título excecional, no caso de não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato nos termos do n.º 7, devendo, no entanto, ser acompanhada da menção 'ou equivalente'.».
Portanto, a “referência a determinado fabrico ou proveniência, a um procedimento específico que caracterize os produtos ou serviços prestados por determinado fornecedor, ou a marcas comerciais, patentes, tipos, origens ou modos de produção determinados” só cabe, excepcionalmente, por “não ser possível uma descrição suficientemente precisa e inteligível do objeto do contrato nos termos do n.º 7”.
O que, no caso, nos parece suceder.
Trata-se de fornecer equipamento relativo ao “LOTE 1 - EQUIPAMENTO TÉCNICO SOM E LUZ”.
Se até se pode admitir que na descrição desse equipamento seria também possível acompanhar especificações técnicas formuladas segundo uma das modalidades previstas nos termos do n.º 7 - quando se sabe que, no tipo de produtos que é, também cada um dos equipamentos individualizados se fabrica e comercializa por referência a múltiplos padrões e em respeito a inúmeras referências, seja de qualidade seja de normalização - temos também como correcto juízo que, na sua especificidade, mesmo que até com comum partilha de obediência a tais especificações entre uma multiplicidade de equipamentos, mas ainda assim com acentuada variedade de distinção entre eles, uma tal formulação não seja “suficientemente precisa e inteligível”.
Pelo que, no caso, não vemos óbice ao recurso de indicação de marca/modelo acompanhada da menção “ou equivalente”; que as demais referências que antecedem sejam as da marca/modelo indicada, em nada o desdiz, antes indo de encontro à referência, e com melhor elucidação; que seja marca/modelo comercializada por uma única empresa também não alija o peso significativo “ou equivalente”, com abertura de concorrência a outras propostas.
Já num segundo passo.
Não se estranha o impulso de afirmação da recorrente apontando que “este tipo de especificações técnicas impede, na prática, qualquer outro equipamento equivalente de ser escolhido, já que não terá as especificações referidas por não corresponderem a marca e modelo específico”; ainda que a afirmação tenha de ser extirpada do exagero que ontologicamente a desconexa; quando a par da especificação de “marca e modelo específico” se admite um “equipamento equivalente”, não se “impede, na prática, qualquer outro equipamento equivalente de ser escolhido”, quando é escolha admitida, de regra feita para a prática.
Mas percebe-se o que se quis dizer, por referência à pormenorização das especificações técnicas.
É claro que quanto mais pormenorizadas forem as especificações técnicas maior é o risco de os produtos de um dado operador económico serem privilegiados [obviamente que não significa, como a recorrente avançou em p. i. (art.º 6º), “que todas as outras empresas que operem em Portugal com equipamentos idênticos, mas com marcas distintas, embora tenham estas especificações, ficam excluídas”; a norma regulamentar relativa a essas especificações não dá abrigo a tal pensar, quando as formula por referência a marca “ou equivalente”, precisamente admitindo que propostas com “marcas distintas, embora tenham estas especificações” sejam também admitidas].
Todavia, quod erat demonstrandum.
A recorrente sustenta a afirmação por exemplo com o que terá já sucedido no procedimento em que “A concorrente F., que propondo equipamentos equivalentes esbarrou nas especificações técnicas exigidas, com a justificação “equipamentos que não cumprem as especificações técnicas do caderno de encargos”, acrescentando em cada ponto do dito caderno que “propõe equipamento diferente do exigido no caderno de encargos,” ou seja a marca e modelo indicados.”.
Mas este não é idóneo exemplo.
O que está em discussão coloca-se a nível regulamentar, numa aferição de conformidade segundo enunciação geral e abstracta.
Não lhe serve uma aplicação concreta, que até pode estar, ou não, eivada de erro.
Objecta a recorrente que “a maior parte dos equipamentos de áudio e iluminação ali constantes, considerados como equipamentos de referência, são importados e representados em Portugal por uma única empresa, a contrainteressada N., nomeadamente, entre outros, os equipamentos D&B, ZSound, ETC, MA Lighting, Robe, Leding, Look Solutions”.
Mas que assim aconteça também em nada perturba de restrição, já que não é por isso - por um único operador deter comercialização da marca de referência - que não podem ser propostos equipamentos com especificações que não sejam de tal marca, antes por equipamento “equivalente” de outras marcas; aliás, não se encontra adquirido que assim suceda [a entidade adjudicante até avançou que isso não sucederia (cfr. artºs. 28º, 29º, 30º, da contestação)]; e não é por no concreto procedimento até acabar por não surgir proposta que vá de encontro que tal proposição se releva; múltiplas razões podem caber; desde a álea desse intento depender do conhecimento a que a concorrência atentou ou não, de uma disponibilidade do bem a fornecer que possa ser mais ou menos oportuna no tempo, de (outros) factores do concurso não suscitarem interesse na apresentação de proposta, etc.
Ou seja, nada contraria que a entidade adjudicante, com a formulação das regras técnicas de que se serviu, não tenha observado dever de “a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não devem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência”, na fórmula usada no art.º 49º (n.º 4) do CCP, e na concretização que por sua via se cuida de assegurar os princípios da concorrência, da transparência e da igualdade de tratamento.
Posto isto, não se impõe maior conhecimento.
Como se decidiu, sem omissão, “mostra-se prejudicado o conhecimento do que vem alegado a propósito das impugnações administrativas apresentadas pela Autora junto da Entidade Demandada”, conhecimento de mérito a respeito da reclamação, administrativamente decidida como intempestiva, e da competência na decisão do recurso hierárquico.
Também, a propósito da ampliação do objecto do recurso, quanto ao decidido em saneador (em que excepções de caducidade do direito de acção, ilegitimidade activa e falta de interesse em agir foram julgadas improcedentes) [e ao não decidido: tempestividade da impugnação judicial das impugnações administrativas], já que “a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, prevista no artigo 636º do CPC, visa, como a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo deixou consignado em arestos anteriores: permitir ao recorrido a reabertura da discussão sobre determinados pontos [fundamentos] que foram por si invocados na acção [e julgados improcedentes], mas só e apenas se o recurso interposto, sem essa apreciação, for de procedência [AC STA de 23.09.99 no recurso 41187 e AC STJ de 17.06.99 no processo 98B1051, entre muitos outros]. Portanto, a possibilidade de apreciar o pedido de ampliação do objecto do recurso está dependente de uma outra possibilidade, a de o recurso interposto pelas recorrentes poder proceder - neste sentido ver AC de 12.04.2007, processo 01207/06.” (Ac. do STA, de 09-06-2021, proc. n.º 0285/18.6BECBR).
*
Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.

Custas: pela recorrente.

Porto, 14 de Janeiro de 2022.

Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre
Isabel Costa