Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00518/23.7BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/04/2023
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:ABSTENÇÃO DE CONDUTA;
REJEIÇÃO LIMINAR TUTELA INIBITÓRIA;
TUTELA REATIVA;
Sumário:
I – A tutela cautelar requerida nos autos tem enquadramento na alínea i) do nº 2 do artigo 112º do C.P.T.A., enquanto providência cautelar consubstanciada na intimação para abstenção de uma conduta por parte da Administração, precisamente o não acionamento de garantia bancária e comunicação dos factos subjacentes a tal execução ao IMPI.

II- Esta presente providência cautelar, porque instrumental, é dependente da ação principal prevista na alínea c) [ou mesmo h)] do nº.1 do artigo 37º do C.P.T.A.

III- A previsão deste tipo de fórmula processual principal suscitou, inicialmente, algumas dificuldades de articulação com a ação impugnatória de atos administrativos, o que foi ultrapassado com a adoção jurisprudencial de um critério “preclusivo”, que estabeleceu que a propositura de uma ação inibitória só se justificava quando proporcionasse uma tutela que não poderia ser obtida através das formas de tutela reativa, como sejam a impugnação de actos administrativos e o recurso complementar a providências cautelares.

IV- Assim, na exata medida em que não vem questionado qualquer ato administrativo, imediatamente se conclui que é de admitir a tutela cautelar inibitória pretendida nos autos, sob pena de violação da lei processual vigente, ademais e especialmente, do princípio constitucionalmente consagrado da tutela jurisdicional efetiva.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar para Abstenção duma Conduta (CPTA) - Recurso jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
1. [SCom01...], LDA., Requerente nos presentes autos de INTIMAÇÃO PARA ABSTENÇÃO DE UMA CONDUTA em que é Requerido o Município ..., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da decisão judicial do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, editada em 04.08.2023, que rejeitou “(…) liminarmente o requerimento da presente providência (…)”
2. Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
Primeira: A decisão do Tribunal a quo, de rejeição liminar da providência cautelar, assenta apenas na sua convicção de que não é provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal seja procedente, ou seja, conclui pela inexistência do fumus boni iuris, com base no seguinte entendimento:
"Com efeito, a atuação a que a Requerente pretende obstar consubstancia-se numa proposta de atuação, inexistindo, ainda, ato administrativo definidor da situação, mas apenas a comunicação dessa intenção para efeitos de audiência prévia da Requerente, como, de resto, expressamente decorre do teor da respetiva notificação (cfr. doc. ...5 junto com o requerimento inicial).
Segunda: Ora, com a concreta providência cautelar requerida - Intimação para Abstenção de uma Conduta, prevista no artigo 1129 nº. 1 e nº. 2 alínea i) do CPTA, pretende a Recorrente impedir uma atuação do Recorrido, sendo contraditório afirmar que, para tal, este terá de pratear o ato. Ou seja, o entendimento do Tribunal a quo vai no sentido de que apenas se poderia intimar o Município ... para não executar a caução e não comunicar ao IMPIC, depois de tais atos serem praticados, o que é incompreensível, porquanto, a qualquer momento, sem necessidade de qualquer outro ato ou comunicação por parte do Recorrido, pode este executar a caução e/ou comunicar ao IMPIC, atos estes que, precisamente, a Recorrente pretende impedir.
Terceira: Consequentemente, face ao exposto, e a toda a documentação junta à petição inicial, que aqui se dá por reproduzida, existe fumus boni iuris, o que deve ser considerado e a providência cautelar admitida, o que requer a V. Excias. SEM PRESCINDIR,
Quarta: Ao contrário da fundamentação da douta sentença recorrida, já existe uma verdadeira atuação do recorrido Município ..., pois, em 30-10-2020 (doc. Nº. ... junto à PI), e em 14-04-2023 (doc. Nº. ...3 junto à PI), o Recorrido Município ... enviou comunicações à Recorrente, concedendo-lhe um prazo de 30 dias (que já foi ultrapassado) para fazer as obras, sob pena de executar a caução bancária e comunicar ao IMPIC, IP; e em 13-07-2023 (doc. Nº. ...5 junto à PI), comunicou o Recorrido Município ... à Recorrente [SCom01...], Lda., de que, através de reunião de câmara de 04-07-2023 foi deliberado mandar realizar os trabalhos de correção necessários e os trabalhos em falta, diretamente ou com recurso a terceiros, a expensas da vossa sociedade; executar a caução nos termos do artigo 2962 do CCP; e que o facto seja comunicado ao IMPIC.
Quinta: Ou seja, não obstante a Recorrente ter sido notificada para se pronunciar no prazo de 10 dias (o que veio a fazer, conforme se pode verificar do documento junto aos autos em 31-07-2023), certo é que o Recorrido já deliberou, ou seja, já praticou o ato administrativo definitivo e definidor da situação, pelo que, também por este motivo, a argumentação do Tribunal a quo não poderá ser considerada, o que requer a V. Excias, porquanto existe um ato impugnável e uma probabilidade de procedência da pretensão da Recorrente no processo principal a instaurar, verificando-se a existência de todos os requisitos legais necessários à concessão da providência cautelar requerida.
Sexta: Acresce que, no que respeita ao periculum in mora, são requisitos cumulativos para a concessão da providência cautelar conservatória a aparência do bom direito, a ameaça de lesão grave e dificilmente reparável deste direito e a ponderação de interesses, requisitos estes que, em concreto, se verificam - Neste sentido cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo 00064/15.2BEMDL, de 31-08-2015, 1- Secção - Contencioso Administrativo, havendo fundado receio da constituição de uma situação de facto consumada quando os factos concretos alegados pela Requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade.
Sétima: O risco de se constituir uma situação de facto consumado ou de se produzirem prejuízos de difícil ou impossível reparação tem de ser efetivo e não meramente eventual, sendo que só ocorre uma «situação de facto consumado» quando, a não se deferir a providência, o estado de coisas que a ação quer influenciar ganhará entretanto a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado ou acabado - ficando tal ação inutilizada «ex ante». Tal é o que acontecerá com a Recorrente, porquanto a execução da caução bancária implica repercussões financeiras irreversíveis e a comunicação ao IMPIC pode limitar ou exclui-la de concursos públicos, o que a prejudicará irreversivelmente.
Oitava: Por outro lado, a rejeição liminar do requerimento inicial de uma providência cautelar com fundamento na alínea d) do nº 2 do artigo 116º do CPTA, só deve ocorrer quando seja «manifesta» a falta de fundamento da pretensão, exigindo, por um lado, que seja imediatamente detetável perante os termos em que o requerente a formula e delimita no requerimento inicial, e, por outro, que outra conclusão não possa ser alcançada numa subsequente análise, mesmo que perfunctória, própria da decisão cautelar.; e o juízo sobre a manifesta falta de fundamento da pretensão, motivador da imediata rejeição, em sede de despacho liminar, do requerimento da providência cautelar, apela, assim, a um duplo critério: o da evidência, dispensando, assim, mais averiguações ou ponderações; e o da certeza, apoiado na convicção firme e segura de que a pretensão do requerente deverá ser, à luz do direito, indeferida. Neste sentido cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 02-10-2020, Processo 01049/20.2BEBRG, 1- Secção - Contencioso Administrativo. Ora, conforme se pode verificar dos presentes autos, tal duplo critério não se verifica, pelo que deve a providência cautelar ser admitida.
Nona : O Tribunal a quo violou, assim, o disposto nos artigos 51º,78º nº. 2, alínea f), 89º nºs 2 e 4, alínea i), 112 nº. 1 e nº. 2, alínea i), 114º nº 3, alíneas f) e g), 116º n.ºs 1 e 2, alínea d), 120º e 131º, todos do CPTA, e 5º do CPC, o que confere legitimidade à Requerente para a interposição do presente recurso (…)”.
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3. Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Município ..., produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)
I - Entendendo a Recorrente que o ato administrativo a ordenar a execução da garantia bancária já foi praticado, não podia fazer uso da intimação para a abstenção de uma conduta, uma vez que a providência cautelar adequada aos fins pretendidos seria a de suspensão da eficácia do ato administrativo praticado.
II - Com efeito, a intimação para a abstenção de uma conduta, sendo um meio de tutela subsidiária, só deve ser utilizado quando outros meios de tutela sejam incapazes de assegurar a tutela dos direitos invocados pela Requerente, o que não é o caso.
III - Porém, não tendo ainda sido praticado o ato administrativo, como bem salienta a sentença, uma vez que a Recorrente foi apenas notificada para se pronunciar sobre a intenção, ou proposta, do Recorrido o praticar, também não andou bem em escolher o referido procedimento.
IV - Por um lado, como se diz na sentença, por se tratar de um ato inimpugnável, acarreta uma falta de interesse em agir relativamente ao procedimento cautelar.
V - Por outro lado, são muito exigentes os pressupostos da admissibilidade de uma ação administrativa inibitório, da qual a providência cautelar de intimação à abstenção de uma conduta teria de ser antecipatória, o que, no caso, não se verifica.
VI - Para além disso, a Recorrente não faz qualquer ponderação de interesses públicos e privados em presença, pelo que está o Tribunal impedido de apreciar esse critério de decisão.
VII - A Recorrente também não invoca uma qualquer norma jurídica ou princípio geral de direito violados pelo Recorrido no alegado ato administrativo praticado, nem se verifica nenhuma ilegalidade, de conhecimento oficioso, não sendo, por isso, possível fazer qualquer juízo de prognose antecipada, ainda que meramente perfunctória, sobre a probabilidade de que a pretensão a formular no processo principal venha ser julgada procedente.
VIII - Não se verifica, assim, o requisito do fumus boni iuris.
IX - Também não é invocado nenhum risco sério de constituição de uma situação de facto consumado, limitando-se a concluir que a execução da caução bancária e a comunicação ao IMPIC, IP, “acarretarão sérios e graves prejuízos para a Requerente”.
X - De todo o modo, a execução de uma garantia bancária de cerca de 30.000,00 euros não se afigura de molde a criar nenhum facto consumado, que a sentença na ação principal não reverta, nem sequer de produzir prejuízos de difícil reparação a uma empresa de construção civil e obras públicas, como a Recorrente, pois, a obter ganho de causa na ação principal, teria direito à reposição da quantia executada e ao pagamento dos prejuízos causados com a prática do ato ilegal.
XI - Finalmente, a comunicação ao IMPIC não é suscetível de criar, como consequência necessária, qualquer prejuízo, seja de outra natureza económica, seja outro qualquer outra.
XII - Não se verifica, assim, o requisito do periculum in mora.
XIII - Como os referidos requisitos são de verificação cumulativa, mesmo que a providência não tivesse sido liminarmente rejeitada, teria necessariamente de improceder.
XIV - Assim, a sentença não merece qualquer reparo e, como tal, deverá ser confirmada, negando provimento ao recurso (…)”.
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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não exerceu a competência prevista no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do “(…) disposto nos artigos 51º,78º nº. 2, alínea f), 89º nºs 2 e 4, alínea i), 112 nº. 1 e nº. 2, alínea i), 114º nº 3, alíneas f) e g), 116º n.ºs 1 e 2, alínea d), 120º e 131º, todos do CPTA, e 5º do CPC, o que confere legitimidade à Requerente para a interposição do presente recurso (…)”.
9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
11. O Tribunal a quo não fixou factos, em face do que aqui se impõe estabelecer a matéria de facto, rectius, ocorrências processuais, mais relevante à decisão a proferir:
A- Em 28.07.2023, a Requerente, aqui Recorrente deduziu a presente providência cautelar de intimação para abstenção de conduta no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro [cfr. fls. 1 e seguintes dos autos – suporte digital -, teor se dá por integralmente reproduzido].
B- Nela demandou o Município ... [idem].
C- E formulou o seguinte petitório:”(…)
Termos em que, por todo o exposto, requer a V. Exa. se digne :
- Intimar o Requerido Município ... a abster-se de executar a garantia bancária nº ...77, no valor de 33.760,94 €, prestada pelo Banco 1..., S.A., em 21-08-2014;
- Intimar o requerido Município ... a abster-se de comunicar os factos aqui em discussão ao Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P.;
- Ordenar que a citação seja urgente e reconhecer a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo, decretando, no despacho liminar, a providência requerida ou aquela que julgue mais adequada, no prazo de 48 horas;
- Subsidiariamente, se o Requerido já acionado a garantia bancária ou feito qualquer comunicação ao IMPIC, I.P., que seja intimado a promover ações no sentido de reverter as situações.” [idem].
D) Após declaração de incompetência em razão do território por parte do T.A.F. de Aveiro, foram os atos remetidos ao T.A.F. do Porto, que, em 04.08.223, promanou decisão judicial a rejeitar liminarmente a interposição da presente providência cautelar [cfr. fls. 75 e seguintes dos autos – suporte digital -, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
E) Sobre esta decisão judicial sobreveio, em 22.08.2023, o presente recurso jurisdicional [cfr. fls. 112 e seguintes dos autos -suporte digital, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].
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III.2 – DE DIREITO
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12. A Requerente intentou a presente providência cautelar de intimação de abstenção de conduta, peticionando o provimento do referido meio processual por forma a ser o Requerido intimado a abster-se de (i) executar a garantia bancária nº. ...77, no valor de 33.760,94 €, prestada pelo Banco 1..., S.A., em 21.08.2014, e ainda de (ii) comunicar os factos em discussão nos presentes autos ao IMPI, mais requerendo, subsidiariamente, para a eventualidade do Requerido ter já promovido tais diligências, a sua intimação a promover ações no sentido da sua reversão.
13. Após algumas vicissitudes processuais, o T.A.F. do Porto, como sabemos, rejeitou liminarmente a interposição da presente providência cautelar.
14. A ponderação de direito que ancorou tal juízo de rejeição foi a seguinte: “(…)
Estabelece o artigo 116.°, n.° 1 do CPTA que, uma vez distribuído, o processo cautelar é concluso ao juiz, com a maior urgência, para despacho liminar, constituindo fundamento de rejeição liminar, nos termos do disposto no n.° 2 do mesmo preceito, nomeadamente, a manifesta falta de fundamento da pretensão formulada (al. d)).
A falta de fundamento da pretensão prende-se com a aplicação dos critérios de que depende a adoção das providências cautelares e funda-se num juízo negativo sobre o preenchimento de algum dos pressupostos de que depende a aplicação desses critérios, de acordo com o regime comum dos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.° do CPTA.
O decretamento de providências cautelares está dependente do preenchimento cumulativo dos três requisitos enunciado em tal preceito - comuns, desde a alteração do CPTA introduzida pelo DL n.° 214-G/2015, de 02/10, às providências antecipatórias ou conservatórias -, a saber:
i. Que haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que os requerentes visam assegurar no processo principal - o denominado periculum in mora (cfr. artigo 120.°, n.° 1, 1a parte);
ii. Que seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal seja julgada procedente - o denominado fumus boni iuris (cfr. artigo 120.°, n.° 1, 2.a parte) e
iii. Que, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão não se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências - a denominada ponderação de interesses, que constitui uma “cláusula de salvaguarda” nas palavras de Mário Aroso de Almeida (cfr. M. AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2a edição, 2016, Almedina, p. 453), destinada a acautelar e proporcionalidade e adequação da providência (cfr. artigo 120.°, n.° 2).
Desde logo, a verificação do requisito do fumus boni iuris pressupõe que, numa análise perfunctória da causa, se tenha criado uma convicção positiva, uma perspetiva de êxito relativamente à pretensão do Requerente, face aos fundamentos para o efeito invocados.
É, pois, ao requerente da providência que compete alegar e provar, ainda que de forma sumária ou perfunctória, dada a natureza cautelar da tutela, que a sua pretensão será, muito provavelmente, julgada procedente em sede principal, devendo, para isso, cumprir o ónus de alegação e de substanciação do pedido e da causa de pedir que sobre si recai.
Para tanto, cabe-lhe alegar e provar os factos essenciais - na aceção prevista no artigo 5.° do CPC aplicável ex vi 1.° do CPTA - nos quais suporta a sua pretensão, tendo, ainda, de fundamentar o pedido que formula tanto de facto como de direito - cfr. artigo 78.°, n.° 2 alínea f) e Artigo 114.°, n.° 3 alínea f) e g), ambos do CPTA.
No caso dos autos, tendo em conta, por si só, o objeto da providência, não é, de todo, possível concluir, pela provável procedência da pretensão que vier a ser formulada na ação principal.
Com efeito, a atuação a que a Requerente pretende obstar consubstancia-se numa proposta de atuação, inexistindo, ainda, ato administrativo definidor da situação mas apenas a comunicação dessa intenção para efeitos de audiência prévia da Requerente, como, de resto, expressamente decorre do teor da respetiva notificação (cfr. doc. ...5 junto com o requerimento inicial).
Como está bom de ver, o ato em apreço não é definitivo, na medida em que se traduz na mera comunicação de uma intenção de atuação do Requerido, sobre a qual é, ainda, facultada à Requerente a possibilidade de pronúncia.
A respeito da inimpugnabilidade do ato por falta de definitividade, referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ª. edição, 2017, pp. 338, em anotação ao artigo 51.°, que “...Na caracterização do ato administrativo impugnável que o n.° 1 deste artigo 51.° nos oferece, o acento tónico reside, antes de mais, no conteúdo decisório do ato: só são impugnáveis as decisões, os atos que contêm decisões. Fora do âmbito dos atos impugnáveis, estão, por isso, todas as declarações ou manifestações da Administração que não contêm uma definição jurídica unilateral.”, por não conterem segmento decisório, raciocínio transponível, por maioria de razão, para o ato posto em crise através da presente providência, o qual configura um projeto de decisão/atuação, sujeito, ainda, a uma eventual pronúncia do destinatário, propósito para o qual foi notificado.
No mesmo sentido, e especificamente em relação ao atos mediante os quais é assegurado o exercício do direito de audiência prévia, se pronuncia a jurisprudência, designadamente no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 16.03.2018, proferido no Processo n.° 02109/16.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que “ A notificação para o exercício de audiência prévia, sem mais, não é um acto impugnável pela simples, cristalina e evidente razão de que um acto que se destina a assegurar um direito (neste caso de audiência prévia) e só um direito sem qualquer imposição (.) é logicamente incompatível com a possibilidade de ser verificar qualquer lesividade nesse acto, para efeitos do previsto no artigo 51.°, n.° 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”.
Dessa inimpugnabilidade conclui-se, aliás, no aresto citado, decorrer também “a falta originária de interesse em agir: não há legítimo interesse impugnar um acto que não produz efeitos jurídicos (sequer potencialmente) lesivos na esfera jurídica do autor, pelo contrário, se destina a assegurar um direito essencial no procedimento, o direito de audiência prévia.”, o que redunda na falta de um pressuposto processual, gerador ele próprio, igualmente, da absolvição da instância.
A realidade de facto e de direito que a Requerente pretende evitar não se encontra ainda definida juridicamente de forma definitiva, porquanto o Requerido apenas a notificou para que exercesse o seu direito de audição, e, nessa medida, não é, ainda, juridicamente sindicável.
Ora, a ininimpugnabilidade configura uma exceção dilatória cuja verificação obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição instância (cfr. artigo 89.°, n.° 4, i) do CPTA), sendo que, assumindo-se o processo cautelar, nos termos do disposto no artigo 113.° do CPTA, como instrumental a uma ação principal já instaurada ou a instaurar, a sua subsistência fica sujeita às vicissitudes relativas ao processo principal e à respetiva viabilidade.
Consubstanciando-se o requisito do fumus boni iuris na probabilidade de procedência da pretensão formulada no processo principal, a existência de circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito dessa ação impede, desde logo, que se possa ter por verificado tal requisito.
Havendo, in casu, inimpugnabilidade do ato posto em crise, circunstância que constitui um obstáculo ao prosseguimento do processo de acordo com o preceituado no artigo 89.°, n.ºs 2 e 4, i) do CPTA e inexistindo, ainda, decisão definitiva do Requerido sobre a questão que opõe as partes, mostra-se, necessariamente, inviabilizada a apreciação de mérito da ação principal que tenha por objeto esse ato/essa realidade, e, por consequência, a sustentabilidade da presente providência.
De referir que, pese embora a Requerente não configure a ação cautelar como uma suspensão de ato propriamente dita, mas sim como uma intimação para abstenção de conduta, não deixa de estar em causa a tentativa de paralisação de uma realidade que não é, nos termos expostos, definitiva, e, que, por consequência, não é ainda juridicamente sindicável.
Do exposto resulta, pois, ser manifesta a inexistência de fumus boni iuris, o que determinaria, necessária e forçosamente, a improcedência da presente providência, atento o caráter cumulativo dos requisitos legais estabelecidos para a respectiva concessão, impondo-se impedir, ab inito, a prossecução de uma ação votada ao insucesso por falta de verificação dos necessários pressupostos legais, numa perspetiva de mínima viabilidade, precisamente o escopo da apreciação liminar instituída na tutela cautelar.
Nesta conformidade, dúvidas não existem, pelos fundamentos expostos, sobre a manifesta falta de fundamento da pretensão formulada, motivo de rejeição liminar, nos termos do disposto no artigo 116.°, n.ºs 1 e 2, d) do CPTA, o que cumpre determinar. (…)”.
15. Sintetizando a motivação de direito que se vem de transcrever, dir-se-á que foi a consideração de que a atuação da Administração visada nos autos consubstanciava uma mera proposta comunicação da intenção da Administração para efeito de audiência prévia que cimentou a convicção do Tribunal a quo no sentido da existência da exceção dilatória de inimpugnabilidade de ato obstativa de da verificação do requisito do fumus boni iuris, e nessa medida, determinativa da rejeição liminar da presente providência cautelar.
16. Com o assim decidido não se conforma a Recorrente, por manter a firme convicção de que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito.
17. Realmente, e no mais fundamental, clama a Recorrente que a presente providência cautelar visa impedir uma atuação futura do Recorrido, sendo, por isso, contraditório afirmar – como afirmou o Tribunal Recorrido - que este terá que praticar o primeiramente o ato cuja produção se visa impedir.
18. Não prescindindo, apregoa ainda que existe já uma verdadeira atuação do corrido, pois foi-lhe comunicado que, “(…) através de reunião de câmara de 04.07.2023, foi deliberado mandar realizar os trabalhos de correção necessários e os trabalhos em falta , diretamente ou com recurso a terceiros, a expensas da vossa Sociedade, executar a caução nos termos do artigo 269º do CCP e comunicar tal facto ao IMPIC (…)”, razão pela qual a argumentação do Tribunal a quo não pode ser considerada.
19. Espraiado o pensamento da Recorrente vazada nas conclusões de recurso, adiante-se, desde já, que a sua pretensão é de atender.
20. Na verdade, a tutela cautelar requerida nos autos tem enquadramento na alínea i) do nº 2 do artigo 112º do C.P.T.A., enquanto providência cautelar consubstanciada na intimação para abstenção de uma conduta por parte da Administração, precisamente o não acionamento de garantia bancária e comunicação dos factos subjacentes a tal execução ao IMPI.
21. Esta presente providência cautelar, porque instrumental, é dependente da ação principal prevista na alínea c) [ou mesmo h)] do nº.1 do artigo 37º do C.P.T.A.
22. A previsão deste tipo de fórmula processual principal suscitou, inicialmente, algumas dificuldades de articulação com a ação impugnatória de atos administrativos, o que foi ultrapassado com a adoção jurisprudencial de um critério “preclusivo”, que estabeleceu que a propositura de uma ação inibitória só se justificava quando proporcionasse uma tutela que não poderia ser obtida através das formas de tutela reativa, como sejam a impugnação de actos administrativos e o recurso complementar a providências cautelares.
23. De facto, sempre que estiver em causa um ato administrativo, deve entender-se que o interessado não poderá lançar mão deste tipo de tutela preventiva, devendo antes providenciar pela dedução da respetiva ação impugnatória ou condenatória à prática de ato devido no caso dos atos de indeferimento.
24. Munidos destes considerandos de enquadramento, e regressando ao caso concreto, cabe notar que, da leitura que se faz, e se tem que fazer, do teor dos documentos n.ºs ...3 e ...5 do requerimento para o qual se remete a identificação da atuação da Administração abordada nos autos, não se pode deixar de concluir que se tratam de meros projetos de decisão da Administração que determinaram a audiência prévia do interessado, e que reclamam a emissão de novos atos após essa fase de audiência, atos esses que são os, efetivamente, lesivos dos direitos ou interesses do interessado quando desfavorável à sua pretensão e só esses são suscetíveis de impugnação contenciosa à luz dos arts. 51° segs. do CPTA.
25. Não se tratam, portanto, de atos administrativos que produzam efeitos jurídicos na esfera de interesses da Recorrente, mas apenas de meros projetos de decisão sem eficácia externa e sem lesividade própria.
26. De resto, foi também este o alcance extraído pela Recorrente e pelo Tribunal a quo da atuação em questão, não subsistindo qualquer controvérsia a este propósito.
27. Assim, na exata medida em que não vem questionado qualquer ato administrativo, imediatamente se conclui que é de admitir a tutela cautelar inibitória pretendida nos autos, sob pena de violação da lei processual vigente, ademais e especialmente, do princípio constitucionalmente consagrado da tutela jurisdicional efetiva.
28. Neste enquadramento, não se pode deixar de concluir que não andou bem a MMª. Juiz a quo julgar de forma diversa, sendo inclusive surpreendente a alusão à existência de matéria excetiva apenas equacionável a propósito de atos administrativos, que a própria assumiu não estar sequer em causa.
29. Uma nota final apenas para referir o óbvio, ou seja, que, em face da formulação subsidiária contida no petitório inicial, não há lugar a qualquer verificação de uma situação de inutilidade superveniente da lide eventualmente emergente do acionamento da garantia bancária por parte da Administração no decurso do presente pleito.
30. Assim deriva, naturalmente, que se impõe conceder provimento ao presente recurso, devendo-se revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos autos à 1ª instância, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que admita o requerimento inicial, seguindo-se os demais termos até final, se a tal nada mais obstar.
31. Assim se decidirá.

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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, revogar a decisão judicial recorrida e determinar a baixa dos autos à 1ª instância, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que admita o requerimento inicial, seguindo-se os demais termos até final, se a tal nada mais obstar.
Custas pelo Recorrido.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 04 de Outubro de 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Antero Pires Salvador
Helena Maria Mesquita Ribeiro