Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00169/08.6BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/13/2014
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Cristina Flora
Descritores:MÉTODOS INDIRECTOS,
ONOROSIDADE NO APURAMENTO,
NÃO REGULARIZAÇÃO DA CONTABILIDADE
Sumário:I. O regime regra de determinação da matéria tributável é o da avaliação directa, em consonância com o princípio da capacidade contributiva, constitucionalmente consagrado no art. 104.º da Constituição da República Portuguesa;
II. A avaliação indirecta é uma forma subsidiária da avaliação directa da matéria tributável (n.º 1 do artigo 85.º da LGT), e excepcional uma vez que apenas pode ser aplicada nos casos e condições expressamente previstas na lei (art. 81.º, n.º 1 da LGT);
III. Cabe à AT a demonstração da verificação dos pressupostos do recurso à avaliação indirecta da matéria tributável, e ao sujeito passivo demonstrar o excesso na respectiva quantificação (art. 74.º, n.º 3 da LGT);
IV. A não regularização da situação contabilística pelo contribuinte é apenas um dos pressupostos para o recurso a métodos indirectos, tal como resulta da alínea a) do art. 88.º da LGT, sendo ainda necessário, para além do mais, que a insuficiência de elementos da contabilidade ou irregularidade inviabilize o apuramento da matéria tributável;
V. A não regularização da contabilidade pelo contribuinte não justifica que a AT se demita da obrigação legal de demonstrar que essa irregularidade contabilística inviabiliza a determinação da matéria tributável;
VI. A dificuldade, onerosidade ou morosidade de uma determinada operação necessária para o apuramento da matéria tributável não fundamenta o recurso à avaliação indirecta.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:B..., Lda.
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga que julgou procedente a impugnação judicial (e respectivos apensos) da liquidação de IRC de 2003, 2004 e 2005, apresenta por B..., LDA, contribuinte n.º 5….

A Recorrente FAZENDA PÚBLICA apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:

1. Foram verificadas pela inspecção tributária irregularidades praticadas pela contribuinte, ora recorrida, no âmbito da organização da sua contabilidade que deveria respeitar os normativos legais, reconhecidas essas irregularidades pela própria impugnante.

2. Entre essas irregularidades está a situação verificada pela Inspecção Tributária de a sua contabilidade não permitir uma (imediata) conciliação de cada um dos movimentos efectuados a crédito (entradas a dinheiro) nas contas bancárias sediadas em Espanha com cada uma das facturas de venda e vendas a dinheiro, emitidas pela contribuinte aos seus clientes em Espanha.

3. A falta dessa concreta conciliação é imputável à contribuinte e constitui, do mesmo passo, uma impossibilidade (se não absoluta), prática, onerosa e morosa, cuja remoção, não cabe à administração tributária, mas à contribuinte recorrida.

4. De facto, conforme consta do relatório da Inspecção Tributária, notificada foi a contribuinte em 26.10.2006 para remover esse obstáculo ao controlo dos dados e apuramentos inscritos na contabilidade, operando a referida conciliação, mas não deu qualquer resposta.

5. De facto, a movimentação das contas particulares dos sócios e da firma, domiciliadas em Espanha, com valores provenientes de vendas, constitui, para além de uma violação do princípio da separação patrimonial um facto apenas imputável à ora recorrida e seus sócios.

6. A falta dessa conciliação constitui um vício formal e material da contabilidade que lhe retira a necessária credibilidade e o exigível valor informativo.

7. A falta dessa concreta e exigível conciliação gerou uma incerteza fundada quanto às vendas e proveitos correspectivos, tornando, assim, impossível a comprovação e a quantificação directa e exacta da matéria tributável em sede de IRC, nos termos e para os efeitos previstos na al.b) do artº.87º. e na al.a) do artº. 88º. da LGT.

8. A existir dúvida (fundada) sobre a quantificação das vendas por métodos indirectos, terá a mesma de ser valorada contra quem tinha o ónus de remover os factos geradores dessa dúvida ou incerteza, nos termos do nº.2 do artº.100º. do CPPT, ou seja, contra a impugnante.

9. Assim sendo, ao decidir, como decidiu, terá o Mmº. Juiz a quo cometido erro de julgamento, por inadequada apreciação e valoração dos factos assentes e relevantes.
****
A Recorrida apresentou as seguintes conclusões nas contra-alegações:

A. A Fazenda Pública interpôs recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que deferiu na totalidade o pedido da Recorrida, determinando a anulação da liquidação de IRC que se contestou e o pagamento de juros indemnizatórios.

B. Esta decisão revela uma valoração correcta da matéria de facto dada como provada e sua subsunção nas normas aplicáveis, não violando qualquer disposição legal, pelo que deverá ser mantida na totalidade.

C. Entendeu o Tribunal a quo que, embora tenha a Administração Fiscal demonstrado a existência de irregularidades, a sua simples existência não justifica o recurso aos métodos indirectos. Tal, aliás, só poderá ocorrer – considerando o carácter excepcional da avaliação indirecta – quando as referidas irregularidades tornem inviável o apuramento da matéria tributável, o que não ocorre no caso em apreço.

D. Por outro lado, não aceitou que o facto de a contabilidade não permitir a conciliação entre os movimentos nas contas bancárias em Espanha e cada uma das facturas emitidas e vendas a dinheiro praticadas, signifique, necessariamente, que essa conciliação seja, em si mesma, inviável.

E. Realce-se também que não concordou o Tribunal a quo com a conclusão da Administração Fiscal segundo a qual, não sendo possível estabelecer a correspondência exacta entre as facturas ou vendas a dinheiro e os depósitos, tal significa que esses movimentos não se encontram, de todo, reflectidos na contabilidade.

F. Por fim, a mesma sentença sublinha que, se efectivamente se tratasse de uma omissão de declaração das vendas efectuadas aos clientes espanhóis e, estando apurado o montante dessas vendas pela Administração Fiscal, bastaria proceder a correcções meramente aritméticas, sem que fosse necessário o recurso aos métodos indirectos.

G. As alegações apresentadas pelo Fazenda Pública enfermam de erro de direito e de facto, como iremos demonstrar e, se bem as compreendemos, reflectem o entendimento de que estão verificados os pressupostos de aplicação dos métodos indirectos.

H. Nelas se considera, em suma, que a falta de conciliação de cada um dos movimentos efectuados a crédito nas contas existentes em Espanha, com cada uma das facturas emitidas para clientes espanhóis, bem como das vendas a dinheiro, configura uma impossibilidade onerosa e morosa, cuja remoção não cabe à Administração Fiscal, mas antes ao contribuinte e constitui um vício formal e material da contabilidade, que se vê assim, sem a necessária credibilidade e valor informativo.

I. A Fazenda Pública afirma igualmente que a falta da conciliação entre aqueles valores importa a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável em sede de IRC, considerando verificados os arts. 87.º, al. b) e 88.º, al. a) da LGT, bem como o disposto pelo art. 100.º, n.º 2 do CPPT, por alegadamente recair sobre a Recorrida o ónus de remover os factos geradores da dúvida sobre a quantificação das vendas por métodos indirectos.

J. Perante o alegado, cumpre esclarecer que em causa não se encontra uma impossibilidade da conciliação, mas antes irregularidades contabilísticas, reconhecidas pela Recorrida, que se explicam por vários motivos – adiante desenvolvidos – e que, de todo o modo, não interferem no apuramento da matéria tributável.

K. Conforme bem decidiu o Tribunal a quo, “da constatação de tais irregularidades não decorre, necessariamente, que se encontre legitimado o recurso a métodos indirectos de tributação”.

L. A Recorrida sempre colaborou com a Administração Fiscal e esclareceu detalhadamente as divergências encontradas, tendo feito a correspondência entre cerca de 90% dos documentos de venda e dos respectivos depósitos.

M. Contudo, nunca a Administração Fiscal explicou, ainda que de forma mínima, como integrou no seu itinerário decisório as justificações que foram dadas pela Recorrida, que inequivocamente conciliavam facturas com depósitos e que levaram a Perita da Administração Tributária, na acta do procedimento de revisão, a afirmar “reconhecer em termos de tese geral a razoabilidade dos argumentos do Perito do Contribuinte”.

N. Assim, entende a Recorrida que a liquidação deve ser revogada, conforme bem decidiu o Tribunal a quo, pelos seguintes motivos:
a) A existência de irregularidades não implica, por si só, a aplicação dos métodos indirectos;
b) As divergências com base nas quais decidiu a Administração Fiscal aplicar os métodos indirectos encontram-se, na sua maioria, justificadas.

O. As irregularidades contabilísticas apenas são susceptíveis de legitimar a aplicação de métodos indirectos quando tornem inviável a determinação directa e exacta da matéria tributável, nos termos dos arts. 87.º, al. b) e 88.º da LGT.

P. Ora, neste caso, as inexactidões verificadas não inviabilizam a determinação directa e exacta da matéria tributável, porquanto têm natureza financeira e em nada influenciam os proveitos do exercício, nem, consequentemente, o resultado líquido apurado, pelo que não são tidas por relevantes para efeitos de justificar o apuramento da matéria colectável em IRC por métodos indirectos – que, não esqueçamos, assumem sempre um carácter subsidiário face à avaliação directa.

Q. A Recorrida reconhece a existência, à data, de debilidades contabilísticas decorrentes do facto de os fluxos financeiros – mas não os económicos – não estarem devidamente expressos na contabilidade, por não serem relevados contabilisticamente através da “Conta 121 – Depósitos à ordem” mas sim através da “Conta 11 – Caixa”.

R. Não obstante, a ora Recorrida cumpriu sempre as obrigações de apresentação da contabilidade organizada e procedeu à entrega atempada das declarações de rendimentos, tendo igualmente disponibilizado os seus extractos bancários para que pudessem ser consultados e analisados pela Administração Fiscal na formação da sua decisão, sem reservas e desde o primeiro momento.

S. Deste modo, a Recorrida não aceita que se refira a Fazenda Pública às suas obrigações tributárias como se as mesmas não tivessem sido cumpridas, uma vez que tal afirmação – [a] ora impugnante que, possuindo contabilidade organizada, estava obrigada a apresentar, nos termos legais os suportes dos dados e apuramentos inscritos nessa contabilidade, permitindo à Inspecção Tributária o controlo desses dados e apuramentos” – não se reflecte no plano dos factos.

T. Mais, em cumprimento do que determina 59.º, n.º 1 da LGT – que faz recair o dever de colaboração recíproco, tanto sobre os órgãos da Administração Fiscal, como sobre os contribuintes –, e tal como se demonstrou em sede de prova testemunhal, a Recorrida efectuou diversas tentativas para que fossem facultadas, pelo Banco espanhol, as cópias dos talões de crédito e dos cheques depositados pelos clientes espanhóis, o que, no entanto, se revelou demasiado dispendioso e moroso, de tal modo que não surtiria qualquer efeito útil no âmbito da inspecção que então decorria e que estaria terminada aquando da obtenção daqueles documentos.

U. Nessa sequência, a Recorrida solicitou ao Serviço de Inspecção Tributário que, através dos mecanismos de cooperação, diligenciasse junto das autoridades fiscais espanholas, no sentido de ter acesso aos documentos necessários para provar que o pagamento correspondia às facturas emitidas.

V. Porém, nada foi feito pela Administração Fiscal, o que, ainda que fosse legítimo por se entender que o ónus da prova recai sobre a Recorrida – o que por mera hipótese de raciocínio de admite –, já o não é à luz do princípio da colaboração, o qual foi claramente incumprido pela primeira, bem como o próprio o princípio da verdade material a que se encontra vinculada, nos termos do artigo 5.º do RCPIT.

W. Perante a falta de cooperação da Administração Fiscal e as dificuldades encontradas junto do Banco em Tuy, procedeu o perito da Recorrida à elaboração de um mapa, em que ligou os movimentos da conta em Espanha ao respectivo cliente, número de factura/venda a dinheiro, data e lançamento contabilístico e que foi entregue à Administração Fiscal.

X. Assim, representando a conciliação conseguida cerca de 90% das transacções da Recorrida com Espanha, tal como demonstrado no âmbito da prova testemunhal, não corresponde à verdade que tenha ficado afectado, “de modo grave, o valor informativo da contabilidade”, como pretende fazer crer a Fazenda Pública, em sede de recurso.

Y. Atente-se, ainda, no facto de ter a testemunha sublinhado que, no que respeita aos restantes 10%, a falta de conciliação resultou da inexistência de tempo disponível – por referência ao período do procedimento inspectivo –, mais do que por se revelar tecnicamente impossível, em termos contabilísticos.

Z. Pois que, em causa não se encontram quaisquer tipos de omissões que possam acarretar o descrédito na contabilidade da Recorrida. Do que se trata é de uma contabilidade que, ainda que não cumprindo em rigor, e no que concerne à sua organização, as exigências e regras da normalização contabilística, nunca omitiu factos fiscalmente relevantes.

AA. De facto, ainda que aos fluxos financeiros da conta de Espanha não fosse dado o tratamento contabilístico devido, tal não significa que este não existiu; a verificação de um erro na expressão daqueles valores na contabilidade – reconhecido pela Recorrida – não equivale a afirmar que os mesmos foram simplesmente omitidos. Aliás, e conforme afirmou o Tribunal a quo, “o facto de os lançamentos não fazerem indicação da factura/venda a dinheiro que lhe deu origem não permite concluir que os movimentos nas contas bancárias no BBVA em Espanha não estão reflectidos na contabilidade”.

BB. Mais se refira que, na esteira do que sustenta a douta sentença do Tribunal a quo, que bem andou ao decidir nesse sentido, a verificar-se uma omissão na declaração de vendas efectuadas pela Recorrida – o que apenas por mera hipótese de raciocínio se concebe – e estando apurados, conforme afirma a Administração Fiscal, os montantes de tais vendas, “nem haveria, no rigor dos termos, necessidade do recurso a métodos indirectos. Bastaria efectuar correcções meramente aritméticas acrescendo à matéria tributável as vendas alegadamente omitidas”.

CC. Não podemos, pois, esquecer, o carácter excepcional da avaliação indirecta, apenas aplicável “nos casos em que não seja viável determi­nar a matéria tributável através de avaliação directa” (v. Ac. do TCA Sul, de 15.07.2008, processo n.º 03160/09, disponível em www.dgsi.pt). A mesma ideia é expressa pela sentença do TAF de Braga: ainda que cesse a presunção do art. 75.º da LGT, que opera a favor da Recorrida, estará a Administração Fiscal legitimada a efectuar a determinação da matéria tributável, preferencialmente com base nos métodos directos ou – e apenas quando tal não seja possível – nos métodos indirectos.

DD. Acresce que, como bem reconheceu o Tribunal a quo,a própria administração considerou que essa consequência, que a lógica discursiva fundamentante do acto impugnado implicaria, iria conduzir a «um aumento eventualmente excessivo das margens de rentabilidade do sujeito passivo»”.

EE. E que “esta contestação é a demonstração, no plano da razoabilidade das coisas, de que a conclusão da administração tributária no sentido de que os movimentos das contas domiciliadas em Espanha correspondem «em totum» a vendas não declaradas, não pode ter-se por provada”.

FF. Concluindo nessa sequência que, na dúvida sobre a verificação dos pressupostos do recurso a métodos indirectos, deve a mesma ser resolvida contra quem tinha o ónus da respectiva prova, ou seja, a administração tributária.

GG. O raciocínio da Administração Fiscal resulta na conclusão que todos os movimentos a crédito na conta em Espanha não se encontram reflectidos na Contabilidade, de onde se retira, assim, que todas as facturas emitidas a clientes espanhóis se encontravam em dívida.

HH. Todavia, não só a própria Administração Fiscal não detectou, durante o procedimento de inspecção, quaisquer factos que justificassem a bondade desta conclusão, como também da prova testemunhal resultou inequívoco que tal não se verificava.

II. Ainda assim, a Administração Fiscal desconsiderou todas as explicações da Recorrida, esquecendo que, ao utilizar as referidas divergências como pressuposto de aplicação de métodos indirectos, o ónus da prova da impossibilidade de apuramento da matéria tributável recai, nos termos do art. 74.º, n.º 3 da LGT, sobre si e não sobre a Recorrida.

JJ. Como bem decidiu o Tribunal a quo, “no caso dos autos, a administração tributária faz assentar o recurso aos métodos indirectos essencialmente no facto de a contabilidade da Impugnante não permitir efectuar uma conciliação de cada um dos movimentos efectuados a crédito (entradas de dinheiro) nas contas bancárias existentes em Espanha com cada uma das facturas emitidas, bem como as vendas a dinheiro praticadas”.

KK. Assume, portanto, inegável relevância, in casu, que a divergência entre as facturas ou as vendas a dinheiro e os valores depositados na conta em Espanha seja encarada, pela Administração Fiscal, como pressuposto de aplicação dos métodos indirectos e não apenas como critério de quantificação da matéria tributável.

LL. E, se de facto, é possível justificar a existência de correspondência entre as facturas e os pagamentos em grande parte das situações, o que, aliás, foi reconhecido pela Perita da Administração Fiscal no âmbito do procedimento de inspecção, o raciocínio estabelecido fica totalmente inquinado.

MM. “Ora, a desconsideração dessas circunstâncias acarreta necessariamente uma falha em toda a cadeia lógico-dedutiva, a inquinar a validade do resultado apurado, pois que só com base em factos indiciários comprovadamente apropriados ao caso concreto e por meio de uma cadeia sem falhas, é possível chegar a um resultado válido no silogismo, que é sempre a determinação do valor tributável por meio de métodos indiciários, onde precisamente o valor tributável só é uma conclusão silogística legítima se tiver sido apurado de modo formal e substancialmente diverso” (v. Ac. TCA Sul de 03.06.2003, no Processo n.º 7440/02, disponível em www.dgsi.pt).

Pelas razões expostas, é manifesto que não estão reunidos os pressupostos de aplicação de métodos indirectos – que, de qualquer modo, nunca poderiam levar à tributação do montante corrigido, conforme alegado na petição inicial – e, que resulta inequivocamente provado que a douta sentença, posta em crise pela Fazenda Pública, dever ser integralmente mantida.
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Foram os autos a vista do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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A questão invocada pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir do erro de julgamento da sentença determinando se estavam, ou não, reunidos os pressupostos para o apuramento da matéria colectável por métodos indirectos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

“a) A Impugnante é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio a retalho de vestuário para adultos, possuindo CAE 052421, estando enquadrada para efeitos de IVA no regime normal de periodicidade trimestral, sendo tributado em termos de IRC através do sistema de contabilidade organizada.
b) A sua actividade consiste, essencialmente, na comercialização de artigos de vestuário no mercado espanhol.
c) Os únicos sócios da Impugnante são H… e M….
d) A Impugnante possui domiciliada em Tuy (Espanha), uma conta do Banco Bilbao Viscaya Argentaria (BBVA) cujos movimentos se iniciaram em 6 de Agosto de 2004.
e) Os dois sócios da empresa já possuíam em Tuy (Espanha) uma conta no BBVA cujos movimentos se iniciaram em 25 de Abril de 2001 e que terminaram em 6 de Agosto de 2004.
f) Tais contas destinavam-se aos pagamentos dos seus clientes com domicílio ou sede em Espanha.
g) A contabilidade da Impugnante somente a partir do exercício de 2005 passou a evidenciar os movimentos financeiros através da conta do BBVA.
h) A contabilidade da Impugnante foi objecto de uma acção inspectiva levada a efeito pela Divisão de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Viana do Castelo incidindo sobre os exercícios de 2003, 2004 e 2005, na sequência da qual foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária, cujo teor consta de fls. 43 a 69 e aqui se dá por reproduzido.
i) No Relatório referido na alínea anterior escreveu-se, a dado passo, o seguinte:
“Procedendo a uma avaliação da conta particular (fluxos financeiros), juntamente com os movimentos contabilísticos da sociedade (fluxos económicos), retiramos as seguintes conclusões, conforme passamos a mencionar: a) não é possível efectuar uma conciliação de cada um dos movimentos efectuados a crédito (entradas de dinheiro) nas contas existentes em Espanha com cada uma das facturas emitidas, bem como das vendas a dinheiro praticadas; b) verificou-se que durante os anos de 2003, 2004 e 2005 foram movimentados a crédito das contas (entradas de dinheiro) os montantes de €232.079,00, €489.620,00 e €260. 31,05 (…); c) analisando a prática contabilística da sociedade em análise concluímos que todos os movimentos de vendas praticadas (reflectidas na conta 71) são movimentados na Conta 111 (Caixa), independentemente de se tratar de vendas a crédito ou a dinheiro, indicando que não há coerência entre o movimento contabilístico e a natureza da operação; d) que os valores movimentados, nas contas “particular” e da firma, em Espanha não foram reflectidos, quer na Conta Caixa (111) quer nas Contas Depósitos à Ordem (12101 - CGD e 12102 BBVA) dado que nenhum dos lançamentos efectuados naquelas contas faz indicação à correspondente factura/venda a dinheiro que lhe deu origem; e) que na Conta Depósitos à Ordem apenas são reflectidos os movimentos a crédito (pagamentos), sendo os movimentos a débito registados genericamente, sem que houvesse qualquer ligação/relação com as referidas contas de Espanha; que através dos movimentos efectuados nas referidas contas não é possível identificar os indivíduos nem a procedência dos mesmos; g) Notificado o sujeito passivo, em 26.10.2006, para responder a um questionário sofre qual a proveniência dos depósitos efectuados, não nos foi dada qualquer resposta, razão pela qual se inverte o ónus da prova previsto no art. 74° da LGT; h) Saliente-se que a conciliação financeira com os movimentos contabilísticos e documentais correspondentes é indispensável para a formação de juízo sobre a verdadeira realidade tributária que estará subjacente à tributação pelo lucro real, o que no caso presente não se verifica. Assim, os factos antes relatados impossibilitam a comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria colectável em sede de CIRC e CIVA, ou seja, não existindo condições de garantir uma tributação pelo sistema do lucro real, iremos proceder à determinação do lucro tributável recorrendo aos métodos indirectos, em conformidade com o n° 1 do art. 52° do CIRC e nas condições previstas na alínea b) do art. 87°, conjugado com a alínea a) do art. 88° e tomando em consideração o definido no art. 90°, todos da Lei Geral Tributária (LGT)”.
j) Sob a epígrafe “Critérios e cálculos dos valores corrigidos com recurso a métodos indirectos” consta do referido Relatório o seguinte: “Do exposto, resulta que a determinação da matéria tributável por métodos indirectos irá ter em conta os elementos disponíveis, que no caso em apreço envolve a inserção do valor dos depósitos efectuados na conta/contas sediadas em Espanha, na tributação em sede de CIRC e CIVA, tendo em conta, ainda, o determinado no art. 90º da LGT, uma vez presumirem-se que tais valores corresponderão a vendas não declaradas quer para efeitos de IVA quer de IRC. Assim, partindo do valor dos montantes movimentados a crédito durante os exercícios de 2003, 2004 e 2005 nos montantes de €232.079,00, €489.620,00 e €260. 731,05, respectivamente, e distribuídos por cada um dos períodos de imposto conforme quadros em baixo, na certeza de que são valores relativos a vendas de mercadorias mas que não foram registados na contabilidade iremos proceder às devidas correcções tanto em sede de IVA, bem como em sede de IRC”.
k) Mais adiante sob a epígrafe “Em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC)” exarou-se no Relatório em referência: “Para efeitos de IRC iremos acrescer ao montante das vendas de mercadorias realizadas durante os exercícios de 2003, 2004 e 2005, cujos valores ascendem a €196.785,73, €522.400,70 e €504.123,45, respectivamente, o montante do somatório dos valores creditados nas contas particular e da sociedade, localizadas em Espanha, para cada um dos exercícios em causa (...). Não obstante o que foi referido anteriormente, iremos ter em consideração o facto de que o acréscimo ao volume de facturação implicará um aumento eventualmente excessivo das margens de rentabilidade do sujeito passivo, pelo que parece-nos razoável que simultaneamente consideremos custos de proveitos, eventualmente ocorridos e não contabilizados, tudo isto tendo por escopo a maior aproximação possível de tributação pelo lucro real (…)”.
1) Na sequência da acção inspectiva que temos vindo a referir, a administração tributária apurou os seguintes lucros tributáveis corrigidos:
- Exercício de 2003: 100.519,89 euros
- Exercício de 2004: 118.994,58 euros
- Exercício de 2005: 84.085,48 euros
m) Sobre esse Relatório foi lavrado o seguinte despacho do Senhor Director de Finanças de Viana do Castelo: “Concordo.”
n) Em 9 de Março de 2007, o Impugnante requereu a revisão da matéria tributável nos termos que constam de fls. 155 a 164 dos autos.
o) No procedimento de revisão, o perito da administração tributária e o perito do contribuinte não chegaram a acordo.
p) Em 10 de Agosto de 2007, foi proferida decisão no âmbito do procedimento de revisão de indeferimento total da petição do Reclamante cujo teor consta de fls. 215 a 219 dos autos e aqui se dá por reproduzido.
q) Em resultado das correcções da matéria tributável, vieram a ser efectuadas as liquidações de IRC cujas demonstrações constam de fls. 35 dos presentes autos, de fls. 36 dos autos de Impugnação 171/08.8 e de fls. 35 dos autos de impugnação 171/08.6 e aqui se dão por reproduzidas no seu teor.
r) Por outro lado, foram efectuadas liquidações de juros compensatórios cujas demonstrações constam de fls. 278 dos presentes autos (ano de 2005), de fls. 284 da Impugnação 171/08.8 (ano de 2004) e de fls. 281 da Impugnação 172/08.6 (ano de 2003).
s) O prazo limite de para pagamento voluntário das liquidações terminou em 7 de Novembro de 2007 (anos de 2005 2004) e em 5 de Novembro de 2007 (ano de 2003).
t) As petições iniciais das presentes impugnações foram apresentadas em 4 de Fevereiro de 2008.
2.2. Matéria de facto não provada
Da que era relevante para a decisão da causa não há matéria de facto que importe registar como não provada.
2.3. Motivação da decisão de facto
A decisão sobre a matéria de facto baseou-se na análise da prova documental junta aos autos e no depoimento da testemunha inquirida a qual demonstrou conhecimento dos factos.”.
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2. Do Direito

Conforme resulta dos autos, a sentença recorrida julgou procedente a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrida, entendendo, em síntese, que havia dúvida sobre a verificação dos pressupostos para o recurso a avaliação da matéria colectável por métodos indirectos, e assim sendo, a dúvida devia ser resolvida contra a AT que tinha o ónus da respectiva prova, nos termos do art. 74.º n.º 3 da LGT.

Neste contexto, a Recorrente Fazenda Pública, insurge-se contra o decidido, entendendo que, in casu, é impossível a comprovação e a quantificação directa e exacta da matéria tributável.

Apreciando.

Enquanto a avaliação directa tem por fim a determinação dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação com base no valor real (n.º 1 do art. 83.º da LGT), já a avaliação indirecta parte de indícios, presunções ou outros elementos de que a Administração Tributária (AT) tenha à sua disposição (n.º 2 do mesmo preceito legal).

A avaliação indirecta é uma forma subsidiária da avaliação directa da matéria tributável (n.º 1 do artigo 85.º da LGT), e excepcional uma vez que apenas pode ser aplicada nos casos e condições expressamente previstas na lei (art. 81.º, n.º 1 da LGT).

Deste modo, o regime regra de determinação da matéria tributável é o da avaliação directa, em consonância com o princípio da capacidade contributiva, constitucionalmente consagrado no art. 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Dispõe o art. 87.º da LGT, sob a epígrafe, “Realização da avaliação indirecta”, sobre os casos em que é admissível a avaliação indirecta:

“A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de:
a) Regime simplificado de tributação, nos casos e condições previstos na lei;
b) Impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto;
c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar, sem razão justificada, mais de 30% para menos ou, durante três anos seguidos, mais de 15% para menos, da que resultaria da aplicação dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica referidos na presente lei.
d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificada, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A;
e) Os sujeitos passivos apresentarem, sem razão justificada, resultados tributáveis nulos ou prejuízos fiscais durante três anos consecutivos, salvo nos casos de início de actividade, em que a contagem deste prazo se faz do termo do terceiro ano, ou em três anos durante um período de cinco.
(Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro)
f) Acréscimo de património ou despesa efectuada, incluindo liberalidades, de valor superior a (euro) 100 000, verificados simultaneamente com a falta de declaração de rendimentos ou com a existência, no mesmo período de tributação, de uma divergência não justificada com os rendimentos declarados.
(Red. do art.º 2.º da Lei n.º 94/2009-01/09)
2 - No caso de verificação simultânea dos pressupostos de aplicação da alínea d) e da alínea f) do número anterior, a avaliação indirecta deve ser efectuada nos termos dos n.ºs 3 e 5 do artigo 89.º-A. (Redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro)”.

Segundo a al. b), do supra citado preceito legal, uma das situações que determina a possibilidade de se recorrer à avaliação indirecta é “[i]mpossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto”, sendo que essa impossibilidade pode resultar das anomalias e incorrecções previstas nas alíneas a) a d) do art. 88.º da LGT, quando inviabilizem o apuramento da matéria tributável.

Com efeito, dispõe, o art. 88.º da LGT:

“A impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável para efeitos de aplicação de métodos indirectos, referida na alínea b) do artigo anterior, pode resultar das seguintes anomalias e incorrecções quando inviabilizem o apuramento da matéria tributável:
a) Inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais;
b) Recusa de exibição da contabilidade e demais documentos legalmente exigidos, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação;
c) Existência de diversas contabilidades ou grupos de livros com o propósito de simulação da realidade perante a administração tributária e erros e inexactidões na contabilidade das operações não supridos no prazo legal.
d) Existência de manifesta discrepância entre o valor declarado e o valor de mercado de bens ou serviços, bem como de factos concretamente identificados através dos quais seja patenteada uma capacidade contributiva significativamente maior do que a declarada. (Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro)”.

No que diz respeito à fundamentação da decisão de tributação com recurso à avaliação indirecta o art. 77.º, nos seus n.º 4 e n.º 5, estabelece as regras a respeitar em matéria de fundamentação da decisão da AT.

Deste modo, a fundamentação deve especificar “os motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directas e exacta da matéria tributável, ou descreverá o afastamento da matéria tributável do sujeito passivo dos indicadores objectivos da actividade de base científica ou fará a descrição dos bens cuja propriedade ou fruição a lei considerar manifestações de fortuna relevantes, ou indicará a sequência de prejuízos fiscais relevantes, e indicará os critérios utilizados na avaliação da matéria tributável.” (n.º 4).

Por outro lado, se estivermos perante o caso de aplicação de métodos indirectos por afastamento dos indicadores objectivos de actividade de base científica, então, “a fundamentação deverá também incluir as razões da não aceitação das justificações apresentadas pelo contribuinte nos termos da presente lei.” (n.º 5).

Relativamente à distribuição do ónus da prova, dispõe o art. 74.º, n.º 3 da LGT que cabe à AT a demonstração da verificação dos pressupostos do recurso à avaliação indirecta da matéria tributável, cabendo ao sujeito passivo demonstrar o excesso na respectiva quantificação.

Passemos, então, ao caso dos autos.

A Recorrente insurge-se contra a sentença recorrida que entendeu, em síntese, que havia dúvida sobre a verificação dos pressupostos para o recurso a avaliação da matéria colectável por métodos indirectos, e assim sendo, a dúvida devia ser resolvida contra a AT que tinha o ónus da respectiva prova, nos termos do art. 74.º n.º 3 da LGT.

Entende a Recorrente que “a falta dessa concreta e exigível conciliação gerou uma incerteza fundada quanto às vendas e proveitos correspectivos, tornando, assim, impossível a comprovação e a quantificação directa e exacta da matéria tributável em sede de IRC, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do art. 87.º e na al. a) do art. 88.º da LGT.” (conclusão n.º 7) e “[a] existir dúvida (fundada) sobre a quantificação das vendas por métodos indirectos, terá a mesma de ser valorada contra quem tinha o ónus de remover os factos geradores dessa dúvida ou incerteza, nos termos do n.º 2 do art. 100.º do CPPT, ou seja, contra a impugnante.” (conclusão 8).

Conforme resulta da matéria dada como provada, a AT procedeu à determinação da matéria colectável de vários exercícios, com recurso a métodos indirectos, nos termos da alínea b) do art. 87.º, conjugado com a alínea a) do art. 88.º, com o fundamento, em síntese, de que não é possível efectuar uma conciliação de cada um dos movimentos efectuados a crédito (entradas de dinheiro) nas contas existentes em Espanha com cada uma das facturas emitidas, bem como das vendas a dinheiro praticadas, concluindo pela impossibilidade de comprovação e quantificação directa da matéria tributável.

Ou seja, a correcção funda-se na alínea b) do art. 87.º da LGT: “[i]mpossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto”, e resulta da anomalia e incorrecção prevista na alínea a) do art. 88.º da LGT “[i]nexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais.”.

Deste modo, e de acordo com as regras do ónus da prova prevista no art. 74.º, n.º 3 da LGT, cabia à AT demonstrar a verificação dos pressupostos da determinação da matéria tributável por métodos indirectos.

In casu, atento aos fundamentos de direito da correcção, cabia à AT demonstrar que a irregularidade encontrada na contabilidade do contribuinte, e que não foi suprida no prazo legal, inviabiliza, impossibilita o apuramento da matéria tributável por métodos directos, pois só assim se encontra legitimado o recurso a este meio de avaliação subsidiária e excepcional (alínea b) do art. 87.º conjugada com a) do art. 88.º, ambos da LGT).

Ora, não vem discutido nos autos, sendo reconhecido pela Recorrida, que a contabilidade apresentava as deficiências detectadas pela AT, no que diz respeito aos movimentos financeiros referente a uma conta bancária que o contribuinte movimentava em Espanha.

Portanto, a questão que se coloca é a de saber se a AT demonstrou suficientemente que a irregularidade na contabilidade relacionada com os movimentos financeiros daquela conta, inviabiliza o apuramento da matéria colectável por métodos directos, mais concretamente, se havia ou não impossibilidade de “efectuar uma conciliação de cada um dos movimentos efectuados a crédito (entradas de dinheiro) nas contas existentes em Espanha com cada uma das facturas emitidas, bem como das vendas a dinheiro praticadas”.

A questão da impossibilidade de efectuar a conciliação, tal como vem afirmada no relatório de inspecção, não está devidamente comprovada, pois o facto de os movimentos financeiros ocorridos na conta bancária de Espanha não se encontrarem reflectidos na contabilidade do contribuinte não significa que a conciliação dos movimentos não seja viável.

A AT limita-se a afirmar a impossibilidade da conciliação, sem grandes justificações, que não seja o facto de ter solicitado ao contribuinte que procedesse ao esclarecimento dos movimentos, e que não tendo feito “invertia-se o ónus da prova”.

Dito de outro modo, a AT assume o entendimento de que, havendo irregularidades na contabilidade, cabe ao contribuinte, e não à AT, supri-las, in casu, por meio da conciliação de movimentos financeiros, e que não o tendo feito, então, encontrava-se legitimado o recurso a métodos indirectos.

Sucede que, há que não olvidar que é à AT que cabe o ónus da prova da impossibilidade do apuramento da matéria tributável por meio da avaliação directa, e deste modo, cabe-lhe demonstrar que seria impossível, em termos objectivos, proceder à conciliação dos movimentos financeiros, que tal conciliação seria inviável, o que não sucede no caso dos autos, onde resulta evidenciada a possibilidade material de se efectuar a conciliação financeira.

Saliente-se que a não regularização da situação contabilística pelo contribuinte, apesar de lhe ser concedido prazo para o efeito, é apenas um dos pressupostos para o recurso a métodos indirectos, tal como resulta da alínea a) do art. 88.º da LGT, sendo ainda necessário, para além do mais, que a insuficiência de elementos da contabilidade ou irregularidade inviabilize o apuramento da matéria tributável, e como já referimos, cabe à AT o ónus da prova dessa impossibilidade (art. 74.º, n.º 3 da LGT).

Ou seja, a não regularização da contabilidade pelo contribuinte não justifica que a AT se demita da obrigação legal de demonstrar que essa irregularidade contabilística inviabiliza o apuramento da matéria tributável.

Deste modo, não assiste razão à Recorrente quando na 3.ª conclusão das alegações de recurso afirma que “[a] falta dessa concreta conciliação é imputável à contribuinte e constitui, do mesmo passo, uma impossibilidade (se não absoluta), prática, onerosa e morosa, cuja remoção, não cabe à administração tributária, mas à contribuinte recorrida.”.

A obrigação da AT em apurar a matéria tributável por métodos directos subsiste nos casos em que existe uma dificuldade, uma complexidade no apuramento da matéria tributável. Com efeito, apenas a inviabilidade, e não a mera dificuldade justifica o recurso ao regime excepção que é a avaliação indirecta, e por conseguinte, há que demonstrar solidamente, com clareza a existência dessa inviabilidade.

Do exposto resulta que, se for viável o apuramento da matéria tributável por métodos directos, ainda que se traduza materialmente num trabalho moroso, então, a AT deve fazê-lo, pois a lei impõem-lhe esse dever, não podendo servir de justificação o facto de não ser uma tarefa fácil.

Ou seja, ao contrário do alegado pela Recorrente, ainda que a falta de conciliação seja imputável ao contribuinte, cabe à AT efectuar essa conciliação efectuando as correcções que se mostrem necessárias, e deste modo, apurar directamente a matéria tributável de acordo com o lucro real da sociedade, ainda que essa operação seja onerosa e morosa.

Dito de outro modo, apenas a inviabilidade de conciliação, casuisticamente aferida poderá afastar essa obrigação, e já não, a dificuldade, onerosidade ou morosidade da operação.

Em alternativa, sempre a AT poderia ter demonstrado, in casu, a existência de uma impossibilidade material da conciliação. Ou seja, poderia ter demonstrado que, perante as circunstâncias concretas do caso, não seria materialmente possível à AT proceder à conciliação financeira.

Porém, para além de não haver qualquer fundamentação no sentido da impossibilidade objectiva da conciliação financeira, afirma-se que tal obrigação é do contribuinte, e tal como já referimos, o entendimento exarado no relatório de inspecção não tem respaldo na lei.

Por outro lado, o facto de o contribuinte ter facultado, ainda no âmbito da acção de inspecção, todos os extractos bancários da conta bancária de Espanha, ficava ao dispor da AT a possibilidade de análise de tais documentos juntamente com os movimentos das contas correntes dos clientes de Espanha, que segundo o contribuinte informara na acção de inspecção, estariam na origem dos depósitos evidenciados na conta bancária.

Ora, a AT nada diz a respeito das contas correntes dos clientes do contribuinte e da impossibilidade da sua análise em comparação com os extractos bancários disponibilizados pelo contribuinte, nem da impossibilidade de conciliação dos movimentos.

Repare-se que não dizemos que da análise dos extractos de conta corrente de clientes de Espanha resultaria a conciliação dos movimentos financeiros pretendida pela AT, mas tão-somente que poderia ser possível essa conciliação, e é quanto basta para que se possa afirmar que a AT não cumpriu com o ónus que sobre si recaia.

Aliás, há que sublinhar que o contribuinte, já em sede de reunião da Comissão de Revisão demonstra a possibilidade daquela conciliação.

Ou seja, pese embora o contribuinte não tenha procedido à conciliação dos movimentos financeiros durante a acção de inspecção, certo é que apresentou documentos na reunião da comissão de revisão tendo sido reconhecido que em parte os valores coincidiam, e apesar disso, por ter sido apenas uma demonstração parcial, nem sequer na parte demonstrada se aceitou alterar as correcções ou se diligenciou em proceder à conciliação total, face à falta de tempo para a conciliação total que foi alegada pelo contribuinte, e que não parece ser desrazoável face à morosidade da operação que a própria Fazenda Pública reconhece.

Em suma, a AT não demonstrou a impossibilidade da conciliação financeira dos movimentos em causa nos autos, e deste modo, não demonstrou a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável.

Assim sendo, não se encontram preenchidos os pressupostos para o recurso à avaliação por métodos indirectos, e deste modo, o recurso da Fazenda Pública não merece provimento.

3. Sumário do acórdão

I. O regime regra de determinação da matéria tributável é o da avaliação directa, em consonância com o princípio da capacidade contributiva, constitucionalmente consagrado no art. 104.º da Constituição da República Portuguesa;

II. A avaliação indirecta é uma forma subsidiária da avaliação directa da matéria tributável (n.º 1 do artigo 85.º da LGT), e excepcional uma vez que apenas pode ser aplicada nos casos e condições expressamente previstas na lei (art. 81.º, n.º 1 da LGT);

III. Cabe à AT a demonstração da verificação dos pressupostos do recurso à avaliação indirecta da matéria tributável, e ao sujeito passivo demonstrar o excesso na respectiva quantificação (art. 74.º, n.º 3 da LGT);

IV. A não regularização da situação contabilística pelo contribuinte é apenas um dos pressupostos para o recurso a métodos indirectos, tal como resulta da alínea a) do art. 88.º da LGT, sendo ainda necessário, para além do mais, que a insuficiência de elementos da contabilidade ou irregularidade inviabilize o apuramento da matéria tributável;

V. A não regularização da contabilidade pelo contribuinte não justifica que a AT se demita da obrigação legal de demonstrar que essa irregularidade contabilística inviabiliza a determinação da matéria tributável;

VI. A dificuldade, onerosidade ou morosidade de uma determinada operação necessária para o apuramento da matéria tributável não fundamenta o recurso à avaliação indirecta.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.

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Custas pela Recorrente.
D.n.
Porto, 13 de Novembro de 2014.
Ass. Cristina Flora
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos