Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00055/18.1BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/25/2022
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:FUNDO GARANTIA SALARIAL
DEVOLUÇÃO CRÉDITO PAGO PELO FGS
FALTA FUNDAMENTAÇÃO – APROVEITAMENTO ACTO – ACTO VINCULADO
QUESTÃO NOVA
Sumário:1. O princípio do aproveitamento do acto considerado ilegal (por violador daquelas duas invalidades formais ou procedimentais), nos termos possibilitados pelo art.º 163.º, n.º5 do CPA, dado entender-se que se tratava de um acto vinculado, atentas a subsunção fáctica apurada, importa pela improcedência da acção.
2. O valor fixado pelo FGS corresponde ao apoio, crédito que o Fundo, nos termos legais, concede à pessoa que, finalizado o seu contrato de trabalho, perante o não pagamento dos créditos laborais, de modo a, de certo modo, ajudar esse trabalhador, numa situação, de algum modo, deficitária financeiramente; ou seja, essa pessoa não tem de receber a totalidade do crédito; não é essa a finalidade da instituição do FGS.
3. Tendo recebido da massa insolvente mais que a quantia líquida recebida do FGS, deixa de fazer sentido a “ajuda” recebida pelo FGS, pelo que, atenta a sua estrita e legal finalidade, o valor recebido terá de ser devolvido.
4. Na medida que não foram apreciadas na sentença recorrida, porque até então nem sequer foram suscitadas, não cumpre conhecer ao tribunal de recurso questões novas, uma vez que, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação de decidido, não comportando, assim, ius novarum, ou seja a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Recorrente:AA
Recorrido 1:FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:
I
RELATÓRIO
1. AA, residente em ..., inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do TAF de Mirandela, datada de 22 de Abril de 2022, que julgou totalmente improcedente a acção administrativa que havia instaurado contra o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, na qual pedia a anulação do acto administrativo que lhe deferiu parcialmente o requerimento para pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho, o reconhecimento que a Recorrente é credora do Recorrido no montante de € 5.093.92, a não restituição ao R./Recorrido do valor total que aquele lhe pagou, no valor de € 6.235,18, mas sim e tão só a quantia recebida de € 1.141,26, por indevida.
*
Nas suas Alegações, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
«A- Embora considerando não ter havido fundamentação, o Tribunal a quo
B- entendeu que tal vício não implicava a anulação do despacho aqui em crise. Mas sem razão, salvo devido respeito.
C- Com efeito, a própria sentença do Tribunal a quo, considera que assiste razão à Autora, quando refere que o ato impugnado padece de falta de fundamentação.
D- Para além do exposto, existe também outro vício de que enferma o despacho do Senhor Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial de 30 de Outubro de 2017, “consubstanciado na violação do direito de audiência prévia, na medida em que a decisão em causa foi proferida no próprio dia em que a mesma exerceu o seu direito, sem que a sua pronúncia tenha sido considerada pela Entidade Demandada (sublinhado nosso).
E- Aceita-se que “Decorre da factualidade provada (factos n.º 18 e 19) que a Autora se pronunciou sobre a intenção de deferimento parcial da sua pretensão em 20.11.2017, tendo remetido a sua pronúncia por carta registada com aviso de recepção, recebida no dia seguinte, bem como por correio electrónico, no próprio dia 20 ao final da tarde, tendo sido notificada da decisão impugnada por ofício do mesmo dia. Por outro lado, o teor do ato impugnado não evidencia, nem sequer sugere, que a pronúncia da Autora, tenha sido analisada, ponderada e refutada com argumentos válidos.”
F- Ora o art. 121º, n.º 1 do CPA estatui que “Sem prejuízo do disposto no artigo 124.º, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”
G- Não se verificando, no caso em apreço, quaisquer circunstâncias que permitiam dispensar a audiência prévia, tal como previsto no artigo 124.º do CPA, nem tal foi invocado na decisão final, tanto mais que a Autora foi notificada para esse efeito.
H- Sustenta a sentença a quo que “A razão de ser da audiência prévia é a de permitir a participação dos interessados nos processos de tomada das decisões que lhes dizem respeito (cfr. Artigo 12.º do CPA), bem como de evitar a emissão de decisões que colham de surpresa os seus destinatários.
I- O Princípio da Audiência Prévia deve aqui ser interpretado no sentido de que ao administrado deve ser-lhe concedida a efetiva possibilidade, não apenas de ter uma participação ativa, como os seus argumentos serem tidos em conta na ponderação que leva à decisão a proferir pela administração (a este propósito cf. por todos Manchete, Pedro. “A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo”, p. 453.)
J- Destarte, reconhece a douta sentença recorrida, “não há dúvida que ocorreu a violação do direito de audiência prévia da Autora, constituindo na mesma um vício de procedimento que importa a anulabilidade do ato (cfr. Artigo 163.º, n.º 1 do CPA).”
K- Contraditoriamente, entendeu o Sr. Juiz que não deve ser de aplicar ao ato impugnado, o consequente efeito anulatório, recorrendo-se ao “subterfúgio” do Art. 163.º n.º 5 do CPA, que refere “(...) 5 - Não se produz o efeito anulatório quando: a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível”; (...) porquanto estamos perante “um ato de conteúdo vinculado, dado que a Entidade Demandada (FGS) não tinha margem de discricionariedade para tomar uma decisão acerca do requerido pela Autora, estando estritamente sujeita ao princípio da legalidade (cfr. Artigo 3.º, n.º 1 do CPA). (sic)
L- PORÉM, o entendimento do princípio da legalidade não é unívoco, neste caso, ao contrário do que entende o Sr. Juiz.
M- Entende a recorrente, estribada na Constituição e na Lei, como abaixo melhor se demonstrará, que, quer a Constituição quer a Lei, impõem uma decisão contrária à que foi tomada, a qual viola o princípio constitucional e legal do direito ao salário.
N- Reconhecendo-se na situação em concreto, estarmos perante um ato anulável, deve produzir-se o consequente efeito anulatório, com a destruição dos seus efeitos jurídicos, pois, efetivamente, o conteúdo do ato anulável, podia e devia ser outro.
O- Na verdade, à autora foi-lhe atribuído por sentença judicial do Tribunal de Trabalho de ..., de 02.10.2013, confirmada posteriormente em sede de recurso por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em 03.09.2014, o valor de €11.732,49, a título de créditos salariais sobre a sua Entidade Patronal, sociedade P... Lda. (factos provados n.ºs 2, 3 e 4).
P- Considerando que a Entidade Patronal não pagou a quantia em que foi condenada, a Autora reclamou o seu crédito, atualizado para € 12.947,53 (sublinhado nosso), no Processo de Insolvência n.º 2.../14...TBGMR, da ex Entidade Patronal, que correu os seus termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de ... o qual foi certificado para efeitos de reclamação junto do FGS, por declaração emitida pelo Sr. Administrador de Insolvência, em 20.01.2015 (factos provados n.ºs 6, 7, 8).
Q- Analisando os factos provados de 9 a 17, conclui-se, do seu escrutínio que a Autora detinha créditos laborais a haver, no montante de € 12.947,53.
R- Tendo recebido da Massa Insolvente, o valor de € 7.853,61, conforme o mapa de rateio final e do FGS, o montante líquido de € 6.235,18, e o alegado valor bruto de € 8.730,00 (com retenção de IRS de 2.494,22),
S- Para receber a totalidade do salário a que tinha direito a recorrente teria de receber da Massa Insolvente e do FGS o valor de 12.947,53 euros, devendo restituir apenas a quantia que recebeu e excedia este valor, 1.141,26 euros e não a totalidade da quantia recebida do FGS.
T- A não ser assim ficaria violado o princípio do direito ao salário como abaixo melhor se verá.
U- Não sendo a interpretação da Lei unívoca, bem pelo contrário, impondo a Lei uma interpretação contrária à que consta da douta sentença recorrida, não pode haver aproveitamento do ato em crise nesta ação, pelo que o mesmo deverá ser anulado.
V- Sucede até que o FGS incorre noutra violação da Lei. Isto porque não poderia o FGS efetuar a retenção do IRS pela taxa de 28%.
W- Na verdade, as quantias em causa referem-se a créditos laborais que não foram pagos mas que, mensalmente, não ultrapassavam o valor do salário mínimo nacional.
X- Sendo assim, quando a matéria tributável se reporta a quantias referentes ao valor do Salário Mínimo Mensal, que devia estar isento de IRS e de retenção na fonte, nos termos do Despacho n.º ...11, (IIª Serie DR), de 3 de Fevereiro.
Y- Por isso, mais uma razão para a interpretação da Lei não ser unívoca, ao contrário do que entendeu a douta sentença recorrida, reforçando os argumentos da recorrente para que o ato fosse anulado.
Z- Para além disso, como pode o Despacho do Senhor Presidente do Conselho do FGS, e o próprio Senhor Juiz a quo, não terem tido em conta na sua decisão, de que a Autora não recebeu a totalidade dos seus créditos laborais, no montante de € 12.947,53, por parte da Massa Insolvente, mas tão somente o montante de € 7.853,61, Sendo a Autora ainda credora do montante, a título de créditos laborais, de € 5093,92 (€ 12.947,53 - € 7.853,61), o qual deveria ser pago pelo FGS. E, nessa medida competia à Autora, devolver ao FGS, apenas o montante de € 1.141,26.
AA- Refira-se que foi a própria Autora que alertou o FGS, através de carta registada da sua Mandatária, de 31 de Agosto de 2017, de que já havia recebido parte do montante relativo aos créditos laborais em dívida, através de pagamento da quantia de € 7.853,61 pela Massa Insolvente, pelo que deveria o Fundo deveria ser recalculado o valor a atribuir à Recorrente, por parte da supramencionada entidade pública.
BB- Não obstante o FGS prosseguiu com o pagamento do valor líquido de €6.235,18, através de transferência bancária, datada de 22/09/2017, para a conta da Autora, ignorando os seus alertas.
CC- Prosseguindo com tal conduta, atentou o FGS contra o Princípio da Boa Administração, plasmado no art. 5.º do CPA que refere “1 - A Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a Administração Pública deve ser organizada de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada.”
DD- Alega-se na douta sentença recorrida o seguinte: “No entanto, como é bom de ver, neste caso a Entidade Demandada já não teria qualquer possibilidade de se reembolsar junto da massa insolvente, uma vez que a mesma já havia pago à Autora os créditos laborais que lhe correspondiam em função do mapa de rateio final, nada mais podendo ir buscar àquela, na exata medida em que o direito da sub-rogante já tinha sido satisfeito.”
EE- Mas tal não é motivo para não pagar ou para reaver o que pagou como pretende. Na verdade, até poderia suceder que a massa insolvente fosse insuficiente para pagar as custas do processo e ao administrador da insolvência. E, neste caso, embora tendo o direito de se sub-rogar ao trabalhador, o FGS nada poderia ir buscar à Massa Insolvente, e isso não constituía qualquer impedimento a que pagasse aquilo que o trabalhador peticionara ao FGS
FF- Argumenta ainda o Sr. Juiz na douta sentença recorrida: “Aliás, do disposto no mencionado artigo 322.º, mas também do artigo 589.º do Código Civil, não resulta existir qualquer preclusão nos casos em que não seja exercido o direito de sub-rogação no processo de insolvência.”
GG- Porém, não lhe assiste razão. A letra da lei aplicável à situação em apreço, designadamente os Artigos 317.º a 326.º do Regulamento do Código do Trabalho (uma vez que o requerimento da Recorrente ao FGS é anterior à data de publicação do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, DL 59/2015 de 21 de Abril) e sobretudo o seu espírito, visto à luz de uma interpretação sistemática e teleológica, impõe, salvo melhor opinião, o entendimento de que a sub-rogação só deve operar depois de os trabalhadores terem recebido a totalidade dos seus créditos.
HH- A ser de outra forma, o FGS não estaria a assegurar o pagamento dos créditos, mas antes, a adiantar parte dos mesmos, o que é uma coisa bem diferente.
II- Nos termos da lei, o FGS não adianta pagamentos, antes garante e efetua esse pagamento aos trabalhadores, verificados os requisitos legais.
JJ- Resulta assim, que os Recorrentes devem, com preferência sobre o Fundo de Garantia Salarial, receber o valor que resulta da diferença entre o valor dos seus créditos laborais reconhecidos por sentença, e o valor liquidado pela Massa Insolvente, o que reforça a ideia de que os trabalhares devem receber a totalidade do seu salário.
KK- O limite consagrado no regulamento do FGS do triplo de seis salários mínimos mensais funciona para o FGS, não para a limitação do direito ao salário do trabalhador.
LL- Ora o número 1, alínea a), o nº 2 alínea a) e o nº 3 do artigo 59 da Constituição da República impõem que o trabalhador tenha direito à totalidade do seu salário, e não apenas a uma parte dele.
MM- Ora a sentença recorrida vai no sentido de que a recorrente tem direito apenas a uma parte do seu salário e não à totalidade do mesmo, pelo facto da Massa Insolvente já lhe ter pago €7.853,61, quando na verdade a totalidade dos seus créditos laborais, reconhecidos por sentença judicial e confirmados por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, cifram-se em €12.947,53, faltando assim receber o valor remanescente de € 5093,92.
NN- A manter-se a sentença em crise, tal significaria uma violação manifesta ao direito dos trabalhadores à retribuição e demais valores emergentes da vigência e cessação do contrato de trabalho, e à assistência material pelo FGS, prevista nas alíneas a) e e) do supramencionado preceito constitucional.
OO- No mesmo sentido vai a Diretiva Comunitária 2008/94/CR, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência, no seu preâmbulo - E ainda com a mesma orientação, vão o artigo 336º do Código do Trabalho, o artigo 1º -1 a) do REGIME DO FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, e também o artigo 317º da Lei nº 35/2004.
PP- O limite para tal, nos termos do artigo 320º da Lei nº 35/2004 são apenas os seis meses o triplo da retribuição mínima mensal garantida, conforme considera o próprio Presidente do Conselho de Gestão do FGS no seu despacho de 31/07/2017.
QQ- A Autora não viu satisfeitos os seus créditos laborais na totalidade, no âmbito do processo de insolvência, falta ainda ser ressarcida do montante de € 5.093,92.
RR- Da colação dos vários diplomas legislativos aplicáveis ao caso sub judice, desde a Diretiva Comunitária 2008/94/CE, Constituição da República Portuguesa, mormente os Artigos 59.º e 62.º, o Código do Trabalho, Artigo 336.º, Regulamento do Código do Trabalho e ainda o Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, em nenhum deles é referido que o FGS se desobriga de pagar os créditos laborais devidos ao trabalhador, se este receber parte dos seus créditos por via da Massa Insolvente.
SS- Reitera-se que o pagamento parcial dos créditos laborais ao trabalhador, não é nem pode ser causa de exclusão para que o FGS não cumpra a sua importante função social, de assegurar o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes, ou da sua violação ou cessação (artigo 1.º do DL n.º 59/2015), verificados os requisitos legais, que a situação em apreço cumpre.
TT- Tanto mais, que a data de pagamento, pela Massa Insolvente da ex Entidade Patronal, à Autora, de parte dos seus créditos, é cronologicamente anterior, à data de pagamento por parte do FGS.
UU- O que deveria ter acontecido, nesta situação, é o FGS ter recalculado o montante do pagamento devido à Recorrente, tendo em conta o novo facto de liquidação parcial dos seus créditos laborais, por parte da Massa Insolvente, e que foram atempadamente comunicados por parte da Mandatária da Autora, por carta de 31 de Agosto de 2017.
VV- Como não o fez, e procedeu ao pagamento do valor de €6. 235,18, deverá agora a Autora proceder à restituição, ao Fundo de Garantia Salarial (FGS) do valor excedente de € 1.141, 26 (resultante da operação aritmética, (€ 6235,18 + 7. 853,61) - € 12. 947,53).
WW- E não se diga que a recorrente ficaria assim beneficiada em relação a outros trabalhadores. É que, se as outras trabalhadoras não requereram ao FGS as quantias que deste tinham direito a receber, sibi imputat. E a recorrente não pode ser prejudicada pela inércia de outros colegas de trabalho.
XX- A douta sentença recorrida violou as supracitadas disposições constitucionais e legais pelo que:
YY- Deverá ser revogada a douta sentença do tribunal a quo, por o ato impugnado violar os deveres de fundamentação e audiência prévia decretando-se a anulação do despacho em crise com legais consequências.
CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA, DEVE REVOGAR-SE, AINDA ASSIM, A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA E DECIDIR-SE QUE:
ZZ- Seja reconhecido que a Recorrente é credora da Recorrida, no montante de € 5.093,92, a título de créditos emergentes de contrato de trabalho, não pagos pela massa insolvente da sociedade comercial P... Lda., e consequência, que a Recorrente não terá que restituir ao Recorrido o valor total que aquele lhe pagou, no valor de € 6.235,18, mas sim e tão só a quantia de € 1.141,26, por indevidamente recebida.»
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3. O Recorrido, FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, não apresentou Contra-alegações.
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4. A Digna Magistrada do M.º P.º neste TCA, notificada nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, não se pronunciou.
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5. Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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6. Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts. 1.º e 140.º, ambos do CPTA.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA de FACTO
São os seguintes os factos fixados na sentença recorrida, cuja fidelidade e completude não se mostram questionadas em sede recursiva:
1. A Autora manteve uma relação laboral com a sociedade comercial P... Lda., desde o dia 01/03/2010, com contrato de trabalho a termo certo de 3 meses, que se converteu em contrato por tempo indeterminado, em que sob as suas ordens, direção e fiscalização prestou trabalho próprio da categoria profissional de auxiliar de pastelaria, auferindo uma retribuição mensal ilíquida fixada em € 475,00, acrescida de € 3,00 de subsídio de refeição por cada dia de trabalho, num total em média de € 63,00/ mês (cfr. fls. 14-18 do suporte físico do processo e acordo das partes).
2. Em 15 de junho de 2012 a Autora instaurou contra a referida sociedade comercial uma ação emergente de Contrato Individual de Trabalho, com processo declarativo comum, no Tribunal de Trabalho de ..., que correu termos sob o n.º 241/12...., com vista à condenação daquela no pagamento da quantia de € 18.201,25, a titulo de remunerações vencidas e não liquidadas, bem como de subsídio de férias, proporcionais de férias, subsídio de natal, indemnização por violação do direito a férias e de descanso compensatório, bem como de trabalho suplementar efetuado ao longo da vigência do contrato de trabalho celebrado entre as partes, acrescida de juros vencidos desde a citação para a ação e vincendos (cfr. fls. 14-18 do suporte físico do processo e acordo das partes).
3. Em 02/10/2013, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a referida sociedade P... Lda. no pagamento da quantia global de € 11.732,49, traduzida em € 1.065,32 a título de salários referentes aos meses de julho e agosto de 2011, em € 1.068,75 de subsídio de férias de 2010, de proporcionais de férias, subsídio de férias e de natal de trabalho prestado até 1/09/2011, em € 388,64 de violação do direito a férias nos anos de 2010 e 2011, em € 5.721,12 de trabalho suplementar, em € 2.367,36 pela inexistência de registo de trabalho suplementar e em € 1.121,30 pelo não gozo de descanso compensatório, bem como de juros de mora vencidos à taxa legal desde a citação, e os vincendos até integral pagamento (cfr. fls. 14-18 do suporte físico do processo).
4. A referida sociedade interpôs recurso de apelação junto do Tribunal da Relação do Porto, que por douto Acórdão, proferido em 16/6/2014, o considerou improcedente, mantendo a sentença recorrida, tendo a aludida sentença transitado em julgado em 03/09/2014 (cfr. fls. 14-26 verso do suporte físico do processo).
5. Dado que a sociedade P... Lda. não pagou a quantia em que foi condenada, a Autora instaurou um processo de insolvência de pessoa coletiva contra a mesma sociedade, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Instância Central de ..., 1ª Secção de Comércio – J3, sob o nº 3144/14.... (cfr. fls. 27 do suporte físico do processo).
6. Esse processo de insolvência veio a ser declarado extinto porquanto existia um pedido anterior de declaração de insolvência, que deu origem ao processo n.º 2.../14...TBGMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Instância Local Cível de ... -J3, no âmbito do qual foi proferida sentença de declaração de insolvência em 18/12/2014, já transitada em julgado (cfr. fls. 27-30 do suporte físico do processo).
7. Em 7/01/2015, a Autora reclamou os seus créditos sobre a insolvente, no montante de € 11.732,49, bem como os juros legais vencidos, calculados até ao termo do prazo para a reclamação de créditos – 21 de janeiro de 2015 -, no valor de € 1.215,04, perfazendo a quantia total de € 12.947,53 (doze mil novecentos e quarenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos) – (cfr. fls. 31-33 do suporte físico do processo).
8. Este crédito foi certificado para efeitos de reclamação junto do FGS, por declaração emitida pelo Sr. Administrador de Insolvência em 20 de janeiro de 2015 e remetida por aquele à Autora em 5 de fevereiro de 2015 (cfr. fls. 34 e 37 e verso do suporte físico do processo).
9. Em 10/02/2015, a Autora requereu ao Fundo de Garantia Salarial (FGS) o pagamento dos seus créditos salariais, no citado montante de € 12.947,53 (cfr. fls. 2 do processo instrutor).
10. Os aludidos créditos da Autora foram graduados por sentença de 02/06/2015, no âmbito do referido processo de insolvência (cfr. fls. 35-36 do suporte físico do processo).
11. Em 13/06/2017, a Autora foi notificada nos referidos autos de insolvência, do mapa de rateio final, em que o seu crédito figura com o valor de € 7.853,61 (cfr. fls. 39 do suporte físico do processo e acordo das partes).
12. Por ofício emitido pelo Instituto da Segurança Social, datado de 31/07/2017 e rececionado em 7/08/2017, a Autora foi notificada, para efeitos de audiência prévia, de que por despacho do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, proferido naquela mesma data, o seu requerimento seria deferido parcialmente, arbitrando-se o valor a atribuir, ilíquido de € 8.730,00 e líquido de € 6.235,18 (com retenção de IRS de € 2.494,82), com o seguinte fundamento: “Os créditos requeridos e abrangidos pelo Fundo de Garantia Salarial ultrapassam o plafond legal no seu limite global, que não pode exceder 6 (seis) vezes o triplo da retribuição mínima mensal garantida, conforme estabelecido nos termos do n.º 1 do artigo 320.º da Lei n.º 35/ 2004,de 29 julho” (cfr. fls. 38 do suporte físico do processo).
13. No dia 14 de agosto de 2017, foi enviada à Autora uma carta, datada de 11 do mesmo mês e ano, subscrita pelo Sr. Administrador de Insolvência, Dr. BB, com o cheque n.º ...74, à sua ordem, sacado sobre o Banco BIC Português, S.A., datado de 11.8.2017, no valor de € 7.853,61, conforme mapa de rateio final, para pagamento de parte dos créditos laborais a que a Autora tem direito (cfr. fls. 39-40 verso do suporte físico do processo).
14. Por ofício emitido pelo Instituto da Segurança Social, datado de 22/08/2017, a Autora foi notificada de que por despacho do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial de 31 de julho de 2017, o seu requerimento para pagamento dos créditos foi deferido parcialmente, arbitrando-se o valor ilíquido de € 8.730,00 e líquido de 6.235,18 (com retenção de IRS de 2.494,82), com o seguinte fundamento: “Os créditos requeridos e abrangidos pelo Fundo de Garantia Salarial ultrapassam o plafond legal no seu limite global, que não pode exceder 6 (seis) vezes o triplo da retribuição mínima mensal garantida, conforme estabelecido nos termos do n.º 1 do artigo 320.º da Lei n.º 35/ 2004, de 29 julho” (cfr. fls. 41 do suporte físico do processo).
15. Em resposta ao ofício que lhe foi dirigido, a Autora dirigiu, através da sua mandatária, ao FGS uma carta registada, datada de 31/08/2017 e rececionada em 4/09/2017, em que informou que, no dia 14 de agosto de 2017, recebeu a carta e cheque acima aludidos em 13. para pagamento de parte dos créditos a que tem direito, expondo que através do ofício que lhe foi dirigido constatou que iria auferir do FGS a quantia de € 6.235,18, excedendo o valor a que tem direito (€ 7.853,61 + € 6.235,18 = € 14.088,79), existindo um valor acrescido de € 1.141,26 (€ 14.088,79 – € 12.947,53 = € 1.141,26), pelo que requereu que o pagamento do FGS tivesse em conta o valor que auferiu da massa insolvente, reduzindo-se o valor a atribuir no montante de € 1.141,26, devendo apenas ser-lhe atribuído o montante de € 5.093,92, em substituição do mencionado valor de € 6.235,18 (cfr. fls. 42-43 do suporte físico do processo).
16. Apesar de ter enviado essa carta, a Autora apurou posteriormente que o FGS havia transferido para a sua conta bancária, no dia 22/09/2017, a mencionada quantia de € 6.235,18 (cfr. acordo das partes).
17. Por ofício do Instituto da Segurança Social, datado de 31/10/2017 e rececionado em 06/11/2017, a Autora foi notificada, para efeitos de audiência prévia, de que, nos termos do despacho do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial de 30 de outubro de 2017, o seu requerimento para pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho que dirigiu ao FGS seria deferido parcialmente, efetuando-se o pagamento e retenções discriminados numa tabela em que consta como valor ilíquido e líquido de 0,01, com o seguinte fundamento: “Segundo informação prestada pela requerente, a Massa Insolvente da ex-Entidade Empregadora, procedeu à liquidação do montante de 7.853,61. Nesta decorrência, será emitida nota de reposição pela globalidade do valor assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, por indevido” (cfr. fls. 44 do suporte físico do processo).
18. A Autora exerceu o seu direito de audiência prévia por requerimento dirigido ao Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, enviado por cartas registadas com A/R, remetidas ao Diretor de Segurança Social – ISS de Braga e Centro Distrital da ...– datadas de 20 de novembro de 2017 e rececionadas em 21 de novembro de 2017, bem como por correio eletrónico remetido para o endereço eletrónico ..., e rececionado em 20 de novembro de 2017, pelas 18.17 horas (cfr. fls. 45-51 verso do suporte físico do processo, que aqui se dão por reproduzidas).
19. Por comunicação do Diretor de Segurança Social, datada de 20/11/2017, e rececionada em 23/11/2017, a Autora foi notificada de que o requerimento que dirigira ao FGS para pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, fora deferido parcialmente, nos termos do despacho de 30 de outubro de 2017, do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, efetuando-se o pagamento e retenções discriminados numa tabela em que consta como valor ilíquido e líquido de 0,01, com o seguinte fundamento: “Segundo informação prestada pela requerente, a Massa Insolvente da ex-Entidade Empregadora, procedeu à liquidação do montante de 7.853,61. Nesta decorrência, será emitida nota de reposição pela globalidade do valor assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, por indevido” (cfr. fls. 13 do suporte físico do processo).
20. A 11/12/2017, a Autora apresentou reclamação por escrito, dirigida ao Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, da decisão acima mencionada, mediante cartas registadas com A/R, remetidas ao Diretor de Segurança Social ISS de Braga e Centro Distrital da ..., com aquela data e rececionadas em 12.12.2017 (cfr. fls. 52 a 55 verso do suporte físico do processo que aqui se dão por reproduzidas).
21. Por ofício do Diretor de Segurança Social, datado de 25/01/2018, a Autora foi notificada de que, nos termos do despacho de 24 de janeiro de 2018, do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho por si apresentado foi deferido parcialmente, tendo sido deduzidos os valores discriminados, a titulo de contribuições para a Segurança Social e retenção na fonte para efeitos de IRS, constantes de tabela em que figura o valor ilíquido e líquido, a titulo de indemnização, de 0,01, com o seguinte fundamento: “Analisada a reclamação da mandatária datada em 11/12/2017, em que não concorda com a anulação da totalidade do pagamento feito e que deu origem ao pedido da sua restituição, considera-se não assistir razão à requerente porquanto o valor pago pelo AI é superior ao valor liquido que a mesma recebeu do FGS, a regularização da situação passará pela reposição do montante líquido recebido pela requerente do FGS” (cfr. fls. 56 e verso do suporte físico do processo).
2. MATÉRIA de DIREITO
No caso dos autos, delimitando o objecto do recurso, atentas, por um lado, as conclusões das alegações supra transcritas, por outro, a sentença recorrida, nos seus fundamentos e dispositivo, sendo que o Fundo de Garantia Salarial – FGS - não contra alegou, importa objectivar concretamente o dissídio que nos cumpre apreciar decidir.
Efectivamente, a sentença recorrida depois de, num primeiro momento, ter balizado correcta e assertivamente a matéria atinente ao enquadramento legal (nomeadamente sucessão legislativa que culminou com o Dec. Lei 59/2015, de 21 de Abril) --- que aqui se reitera sem necessidade de repetições subsequentes --- que baliza a concessão e limites do direito à concessão de um subsídio, créditos salariais, emergentes de contratos de trabalho pelo Fundo de Garantia Salarial, e, num segundo momento, ter enunciado a factualidade relevante para a situação dos autos, da A./Recorrente, continua, analisando as invalidades formais suscitadas pela Recorrente, concretamente, a falta de fundamentação e a falta de audiência prévia que considera verificadas.
Porém, dando operacionalidade ao princípio do aproveitamento do acto considerado ilegal (por violador daquelas duas invalidades formais ou procedimentais), nos termos possibilitados pelo art.º 163.º, n.º5 do CPA, dado entender que se tratava de um acto vinculado, atentas a subsunção fáctica apurada – aliás, não questionada pela A./Recorrente – a sentença recorrida, fundamentadamente [ao invés do que refere a A./Recorrente (v.g., conclusão A)] conclui pela improcedência da acção.
Evitando repetições desnecessárias, relembremos assim a essencialidade da sentença recorrida, sublinhando nós os pontos mais relevantes para o âmbito desta apreciação recursiva, como segue:
Deste modo, como se enunciou acima, as questões a decidir consistem em saber se o ato impugnado incorre nos vícios que lhe foram assacados pela Autora e, para além disso, se deve ser reconhecido que esta era credora da Entidade Demandada no montante de 5.093,92€, devendo restituir-lhe somente a quantia de 1.141,26€, por indevida.
Isto posto, o artigo 336º do Código do Trabalho prescreve que “o pagamento de créditos de trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil, é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação específica”.
O Fundo de Garantia Salarial, criado pelo Decreto-Lei nº 219/99, de 15 de junho, tem como principal função assegurar aos trabalhadores o pagamento de créditos emergentes de contratos de trabalho. Este diploma legal foi depois revogado pela Lei nº 35/2004, de 29 de julho, que veio regulamentar o Código do Trabalho.
Por seu turno, por força do artigo 12º, nº 6, alínea o) da Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho e que revogou a Lei nº 35/2004, mantiveram-se em vigor os artigos 317º a 326º deste diploma legal até que fosse aprovada uma nova regulamentação do Código do Trabalho. Tal viria a acontecer com a entrada em vigor do novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 59/2015, de 21 de abril, o qual só se aplica aos requerimentos apresentados após a data da sua entrada em vigor, tendo sido revogados, nos termos do seu artigo 4º, alínea a), os artigos 316º a 326º da Lei nº 35/2004.
Neste caso, o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho foi apresentado pela Autora em 10/02/2015, pelo que o regime legal aplicável à sua apreciação e decisão é o do Regulamento do Código do Trabalho, aprovado pela citada Lei nº 35/2004.
Ora, estabelece o artigo 317º da Lei n.º 35/2004 que “o Fundo de Garantia Salarial assegura, em caso de incumprimento pelo empregador, ao trabalhador o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação nos termos dos artigos seguintes”.
Nesse sentido, “o Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento dos créditos a que se refere o artigo anterior, nos casos em que o empregador seja judicialmente declarado insolvente” (cfr. artigo 318º, nº 1 do mesmo diploma legal).
Em todo o caso, “os créditos são pagos até ao montante equivalente a seis meses de retribuição, não podendo o montante desta exceder o triplo da retribuição mínima mensal garantida” (cfr. artigo 320º, nº 1 da citada Lei).
Assim, o legislador estabeleceu dois limites diversos: um valor limite global máximo de créditos derivados de retribuições a pagar, correspondente a 6 meses de retribuição; e um limite máximo de retribuição mensal a considerar, correspondente ao triplo da RMMG (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 20 de outubro de 2017, Proc. nº 00858/15.9, publicado em www.dgsi.pt).
Por outro lado, efetuado o pagamento dos créditos laborais, conforme estabelece o artigo 322º do referido diploma legal, o Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respetivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efetuados, acrescidos dos juros de mora vincendos.
Portanto, efetuado o pagamento dos créditos laborais aos trabalhadores, o Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos destes, devendo, para o efeito, requerer no respetivo processo de insolvência o pagamento dos créditos laborais pagos.
Aliás, esta solução legal não difere substancialmente da que vigora no regime legal atual: com efeito, nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21 de abril, o Fundo fica sub-rogado nos direitos e nos privilégios creditórios do trabalhador, na medida dos pagamentos efetuados, acrescidos de juros de mora vincendos e, sendo os bens da massa insolvente insuficientes para garantir o pagamento da totalidade dos créditos laborais, são graduados os créditos em que o Fundo fica sub-rogado a par com o valor remanescente dos créditos laborais.
Neste caso, a Autora requereu o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho que totalizavam 12.947,53€. E a Entidade Demandada deferiu parcialmente, numa primeira fase, o requerimento da Autora, atribuindo-lhe a indemnização ilíquida de 8.730,00€, a que correspondia o valor líquido de 6.235,18€, de modo a respeitar o referido limite global máximo.
Porém, a Autora recebeu, entretanto, da massa insolvente parte dos créditos que havia reclamado, concretamente a quantia de 7.853,61€, conforme mapa de rateio final elaborado no processo de insolvência da sua ex-empregadora, tendo disso dado conta à Entidade Demandada e pedido que lhe fosse descontado o excesso de 1.141,26€ no montante a pagar-lhe.
Entretanto, a Entidade Demandada acabou por lhe fazer a transferência integral do valor líquido acima aludido, tendo reagido tardiamente à comunicação da Autora.
Ora, desde logo, a Autora incorre numa incorreção no seu raciocínio, dado ter feito os seus cálculos com base no montante líquido que lhe foi atribuído pela Entidade Demandada, quando, na verdade, devia ter considerado o valor ilíquido que lhe foi deferido pela mesma.
De facto, o valor que foi retido na fonte pela Entidade Demandada não deixa de ser rendimento da Autora, entrando depois na sua liquidação de IRS do ano em causa como imposto já pago, podendo haver lugar a reembolso ou pagamento, como decorre do artigo 2º, nº 3 do citado diploma legal, bem como do Código do IRS.
Nessa medida, somando o valor recebido da massa insolvente com aquele que lhe foi pago pela Entidade Demandada, apura-se o total de 16.583,61€, o qual excede em 3.636,08€ o montante dos seus créditos laborais reconhecidos.
Deste modo, pelo menos, a Autora teria de restituir à Entidade Demandada a quantia de 3.636,08€ e não apenas o montante de 1.141,26€.
Vejamos, portanto, se é assim ou se a Entidade Demandada tem razão, havendo lugar à restituição integral do montante por si pago à Autora.
Como decorre da fundamentação do ato impugnado, “segundo informação prestada pela Requerente, a Massa Insolvente da ex-Entidade Empregadora procedeu à liquidação do montante de 7.853,61€. Nesta decorrência, será emitida nota de reposição pela globalidade do valor assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, por indevido”.
Por outro lado, em sede de resposta à reclamação da Autora, a Entidade Demandada aduziu que “Analisada a reclamação da mandatária datada em 11/12/2017, em que não concorda com a anulação da totalidade do pagamento feito e que deu origem ao pedido da sua restituição, considera-se não assistir razão à requerente porquanto o valor pago pelo AI é superior ao valor liquido que a mesma recebeu do FGS, a regularização da situação passará pela reposição do montante líquido recebido pela requerente do FGS”.
A Autora entende, desde logo, que o ato impugnado padece de falta de fundamentação e a verdade é que não lhe falta razão.

Deste modo, não há dúvida de que ocorreu a violação do direito de audiência prévia da Autora, constituindo a mesma um vício de procedimento que importa a anulabilidade do ato (cfr. artigo 163º, nº 1 do CPA).
Todavia, não se pode perder de vista que o efeito anulatório não se produz nas hipóteses previstas no artigo 163º, nº 5 do CPA.
Neste caso, não há dúvida que estava em causa um ato de conteúdo vinculado, dado que a Entidade Demandada não tinha margem de discricionariedade para tomar uma decisão acerca do requerido pela Autora, estando estritamente sujeita ao princípio da legalidade (cfr. artigo 3º, nº 1 do CPA).
Por outro lado, considerando o regime normativo emanado dos artigos 316º e segs. da citada Lei nº 35/2004, afigura-se que, neste caso em concreto, não havia outra solução legalmente possível.
Na verdade, efetuado o pagamento à Autora, é indubitável que cabia à Entidade Demandada a faculdade de requerer a sub-rogação dos créditos pagos à mesma, nos termos do artigo 322º da Lei nº 35/2004.
No entanto, como é bom de ver, neste caso a Entidade Demandada já não teria qualquer possibilidade de se reembolsar junto da massa insolvente, uma vez que a mesma já havia pago à Autora os créditos laborais que lhe correspondiam em função do mapa de rateio final, nada mais podendo ir buscar àquela, na exata medida em que o direito da sub-rogante já tinha sido satisfeito.
Aliás, do disposto no mencionado artigo 322º, mas também do artigo 589º do Código Civil, não resulta existir qualquer preclusão nos casos em que não seja exercido o direito de sub-rogação no processo de insolvência.
Em rigor, não exercendo a Entidade Demandada o referido direito no processo de insolvência, na qualidade de sub-rogado, isso não significa que a Autora se possa licitamente arrogar ao pagamento ou à retenção de uma quantia que não tem, pelo menos de forma superveniente, qualquer cobertura legal.
Com efeito, reconhecidos e pagos os créditos laborais da Autora no âmbito do processo de insolvência, deixou de existir fundamento legal para o pagamento que foi efetuado pelo Fundo de Garantia Salarial, destinado, nos termos da lei, a assegurar o pagamento de créditos laborais que não sejam satisfeitos pelos empregadores, o que manifestamente não se verifica nos presentes autos.
De resto, a entender-se de outro modo, a Autora teria um tratamento privilegiado em relação aos demais credores da sua ex-entidade patronal, dado que receberia os seus créditos por dois lados, em montante superior ao que lhe coube no mapa de rateio final. Ou, visto por outro prisma, a Autora acabaria por receber o mesmo crédito duas vezes.
É certo que a Autora não recebeu a totalidade dos créditos laborais de que era titular, pelo que a solução legal poderá ser considerada algo injusta, mas a verdade é que esta não ofende o conteúdo mínimo do seu direito à segurança social nem o conteúdo essencial do seu direito ao mínimo de existência condigna (cfr. artigos 63º e 2º da Constituição da República Portuguesa, respetivamente), pelo que não incorre em inconstitucionalidade.
De facto, na densificação do conteúdo do direito fundamental à segurança social, o legislador goza de ampla margem de conformação, atendendo nomeadamente aos recursos públicos disponíveis, pelo que é aceitável que o Fundo de Garantia Salarial não tenha de suportar a totalidade dos créditos laborais dos trabalhadores de empresas insolventes, mas somente até a um limite máximo, na hipótese de este não ser satisfeito pela massa insolvente.
Das considerações acima expendidas resulta inelutavelmente que a Autora retém indevidamente e sem causa justificativa a quantia líquida de 6.235,18€, como a própria, de resto, deu conta à Entidade Demandada.
Deste modo, inexistindo causa legítima para o pagamento ordenado no âmbito do respetivo procedimento, está a Entidade Demandada vinculada, ao abrigo do princípio da legalidade, a exigir o pagamento das quantias que pagou, mas que se tornarem supervenientemente indevidas, como resulta do artigo 60º, nº 2 da Lei de Bases da Segurança Social, aprovada pela Lei nº 4/2007, de 16 de janeiro: “as prestações pagas aos beneficiários que a elas não tinham direito devem ser restituídas nos termos previstos na lei”.
Pelo exposto, há lugar ao aproveitamento do ato impugnado, pese embora as invalidades de que padece, nos termos do artigo 163º, nº 5 do CPA.
Nessa medida, a ação tem necessariamente que improceder, uma vez que não é possível condenar a Entidade Demandada à prática de outro ato diferente, nomeadamente com o conteúdo pretendido pela Autora, pelo que soçobram todos os pedidos formulados por esta”.
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Nesta sede recursiva, aceitando – obviamente – as invalidades dadas como verificadas, a A./Recorrente questiona a decisão do TAF de Mirandela no que se refere à consideração de se tratar de acto vinculado, assim o mantendo na ordem jurídica, com a improcedência da acção e consequente obrigação de devolução da quantia recebida do FGS.
OU SEJA, a questão que se coloca é a seguinte:
Pese embora o acto contenciosamente impugnado seja acometido dos vícios de falta de fundamentação e falta de audiência prévia (melius, quanto a esta a mesmo existiu mas, objectivamente, foi totalmente ignorada, perfeitamente perceptível até pela sequência cronológica) que importariam a sua anulação e reconstituição da situação actual hipotética, ou seja, in casu, teria de ser proferida nova decisão fundamentada de facto e de direito e analisando a bondade (ou não) da argumentação apresentada pela A. em sede de audiência prévia, sempre, atentos os factos provados e as normas legais aplicáveis, a decisão teria necessariamente de ser a mesma, ou seja, ordenada a restituição de toda a quantia paga à A., na parte líquida, no valor de 6.235,18€.
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Vejamos!
Entendemos que não assiste razão à A./Recorrente.
Na verdade, a posição defendida pela Recorrente passa pelo entendimento de que, tendo direito a receber a quantia de 12.947,53€ (11.732,49+juros), fixada definitivamente pela sentença, de 2/10/2013, proferida pelo Tribunal de Trabalho de ..., confirmada pelo Acórdão de 16/6/2014, do TR do Porto, e tendo recebido, no âmbito do processo de insolvência entretanto instaurado, apenas a quantia de 8.853,61€, porque também recebeu do FGS a quantia de 6.235,18€ --- o que - convenhamos – não é verdade, na medida em que recebeu do FGS a quantia de 8.730,00€, da qual, legalmente, foi retido IRS no valor de 2.494,82€ --- apenas teria de devolver a quantia de 1.141,26€ (ainda que, mesmo nesta óptica, este valor devesse ser corrigido – como se diz fundamentadamente na sentença – para o valor de 3.636,08€) de modo a ver satisfeito todo o crédito reconhecido pelo Tribunal de Trabalho de ....
Mas, não é assim.
O valor fixado pelo FGS – 8.730,00€ (ilíquido), não questionado, aliás, pela Recorrente -, corresponde ao apoio, crédito que o Fundo, nos termos legais, concede à pessoa que, finalizado o seu contrato de trabalho, perante o não pagamento dos créditos laborais, de modo a, de certo modo, ajudar esse trabalhador, numa situação, de algum modo, deficitária financeiramente.
Ou seja, essa pessoa não tem de receber a totalidade do crédito; não é essa a finalidade da instituição do FGS.
Tendo recebido da massa insolvente mais que a quantia líquida recebida do FGS, deixa de fazer sentido a “ajuda” recebida pelo FGS, pelo que, atenta a sua estrita e legal finalidade, o valor recebido terá de ser devolvido.
Uma vez que o acto impugnado ordena essa reposição, no estrito cumprimento e melhor interpretação das normas legais aplicáveis, estamos perante um acto vinculado, pelo que, devidamente fundamentado e apreciando a pronúncia apresentada, em sede de audiência prévia, não poderia deixar de ser o mesmo.
Concluímos, deste modo, pela total assertividade da sentença recorrida, que abrange também a análise/decisão quanto à sub-rogação (art.º 322.º da Lei 35/2004, de 29 de Julho) e inexistência de quaisquer violação de direitos constitucionais e/ou directivas comunitárias.
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Quanto à alegação no que se refere à eventual ilegalidade da retenção na fonte de IRS, pela taxa de 28% - cfr. conclusões V a Y - e violação do princípio da boa administração cfr. conclusões Z a CC – por se tratarem de questões novas, na medida que não foram apreciadas na sentença recorrida, porque até então nem sequer foram suscitadas - se o tivessem sido teria de ser questionada a sua nulidade, por omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al d) do Cód. Proc. Civil) -, delas não cumpre conhecer, uma vez que, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação de decidido, não comportando, assim, ius novarum, ou seja a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. arts. 627.º, n.º1, 631.º, n.º1 e 639.º, todos do Cód. Proc. Civil e unânime e reiterada jurisprudência dos tribunais superiores, sejam da jurisdição comum, seja da administrativa).
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Concluindo …. importa, sem mais, em negação de provimento ao recurso, manter a decisão judicial do TAF de Mirandela.
III. DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter a sentença recorrida.
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Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Notifique-se.
DN.
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Porto, 25 de Novembro de 2022
Antero Salvador)
(Helena Ribeiro)
(Nuno Coutinho)