Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
1.1. S..., S.A. (Recorrente), notificada da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, pela qual foi julgado totalmente improcedente o recurso da decisão de aplicação de coima proferida no processo de contra-ordenação n.º 039...264, por falta de prestação do IVA apurado dentro do prazo legal, inconformada vem dela interpor o presente recurso jurisdicional.
Alegou, formulando as seguintes conclusões:
«B.2. Conclusões
45. A Recorrente conclui pelos factos descritos e pelo Direito invocado que:
a) O facto julgado não provado (“A Recorrente apenas não pagou atempadamente a prestação do IVA aqui em causa por mera carência de tesouraria”)
46. Decorre da atividade exercida pela Recorrente, que as faturas das vendas ou prestações de serviços a clientes, tenham prazo de vencimento de 60 / 90 dias;
47. O que faz com que, na declaração periódica relativa a um determinado período, conste um valor de IVA liquidado superior ao valor de IVA efetivamente recebido pela Recorrente;
48. Foi o que aconteceu no período de janeiro de 2016 aqui subjacente, conforme demonstrado no presente recurso;
49. A maioria das faturas emitidas pela Recorrente no período em questão foram pagas depois, ou muito depois, da data limite de pagamento do IVA (10 de março de 2016);
50. A Recorrente não se locupletou indevidamente de imposto repercutido aos seus clientes em detrimento da sua entrega aos cofres do Estado;
51. A Recorrente padeceu de uma carência de tesouraria no período aqui em questão, tal como gerou noutros períodos referidos na sentença recorrida que determinaram a instauração de processos de contraordenação;
52. Esta situação não configurou qualquer vantagem competitiva relevante para a Recorrente porque, por um lado, a Recorrente não dispunha do valor do imposto cuja entrega não realizou no prazo legal previsto para o efeito e, por outro lado, a Recorrente não retira qualquer benefício ou vantagem pelo atraso na entrega do IVA ao Estado;
53. A verdade é que a Recorrente acaba sempre por entregar o imposto ao Estado, não o fazendo dentro do prazo legal previsto para o efeito relativamente aos períodos em que padece de carência de tesouraria pelo atraso que, por sua vez, verifica no recebimento do montante das faturas que emite;
54. Nestes termos, podemos concluir que deverá ser considerado como provado o facto de que a Recorrente apenas não entregou o IVA aqui em apreço no prazo legal previsto para o efeito por mera carência de tesouraria e, consequentemente, a sentença recorrida deverá ser revogada quanto a este aspeto, por erro nos pressupostos de facto;
b) A verificação dos pressupostos da aplicação de admoestação
55. O Tribunal a quo considerou não haver lugar à aplicação de admoestação porque a gravidade da infração e a culpa da Recorrente não justificam tal medida;
56. O Tribunal a quo não teve em conta os factos demonstrados anteriormente neste recurso relativamente aos pagamentos “tardios” realizados pelos clientes da Recorrente;
57. Perante a evidência de que a Recorrente recebeu mais de metade do valor das faturas emitidas no mês de janeiro de 2016 após a data limite de entrega do IVA do mesmo período, podemos concluir que a gravidade da conduta e da culpa da Recorrente é diminuta;
58. A Recorrente entregou o montante do imposto em causa logo que teve condições para o fazer e não teve intenção de prejudicar nem de se locupletar às custas do património do Estado;
59. A Recorrente, através do pagamento do imposto e acréscimos legais antes da decisão do processo de contraordenação aqui subjacente, demonstrou o reconhecimento absoluto e expresso da sua responsabilidade, não tendo praticado quaisquer atos de ocultação;
60. Deste modo, podemos concluir que o presente recurso deve ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, quanto a esta questão, porquanto estão verificados os pressupostos para aplicação de admoestação (artigo 51º do RGCO);
c) A atenuação especial da coima
61. O Tribunal a quo considerou que, em razão da gravidade e culpa associada à conduta da Recorrente, a coima a aplicar não pode ser especialmente atenuada;
62. O Tribunal a quo considerou que estão preenchidos os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 32º do RGIT quanto à atenuação especial da coima;
63. Contudo, o Tribunal a quo entendeu, com base no pressuposto de que a Recorrente se locupletou temporariamente de um montante de imposto repercutido aos seus clientes, não dever aplicar uma coima especialmente atenuada;
64. A Recorrente não entregou o montante do IVA ao Estado dentro do prazo legal previsto para o efeito, porque, no termo desse prazo, ainda não tinha recebido mais de metade do valor da faturação do período em questão;
65. Ora, atendendo à proporcionalidade que deverá estar inerente na fixação da coima e a culpabilidade subjacente à infração, e por se encontrarem integralmente preenchidos os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 32º do RGIT, a coima aqui em apreço deverá ser especialmente atenuada;
66. Deste modo, podemos concluir que o presente recurso deve ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, quanto a esta questão, porquanto estão verificados os pressupostos para aplicação da coima especialmente atenuada (artigo 32º, n.º 2 do RGIT).
Pedido:
Nestes termos e nos demais que V. Exa. não deixará de suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, deve:
a) O presente recurso deve ser julgado procedente e deverá ser considerado como provado o facto de que a Recorrente apenas não entregou o IVA aqui em apreço no prazo legal previsto para o efeito por mera carência de tesouraria e, consequentemente, a sentença recorrida deverá ser revogada quanto a este aspeto, por erro nos pressupostos de facto; sem prescindir,
b) O presente recurso deve ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, porquanto estão verificados os pressupostos para aplicação de admoestação (artigo 51º do RGCO); sem prescindir,
c) O presente recurso deve ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, porquanto estão verificados os pressupostos para aplicação da coima especialmente atenuada (artigo 32º, n.º 2 do RGIT. Pois só assim se fará inteira e sã JUSTIÇA!»
1.2. A Recorrida (Autoridade Tributária e Aduaneira), notificada da apresentação do presente recurso, não apresentou contra-alegações.
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a fls. 537 SITAF, no sentido da improcedência do recurso, formulando a final as seguintes conclusões que aqui se transcrevem:
«III – Conclusões:
a) - o recurso interposto pela arguida S..., S.A. deve ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se na Ordem Jurídica a douta decisão recorrida por estar conforme à lei e ao direito; e
b) - com custas processuais a cargo da arguida/recorrente [(cf. artigo 93º, n.º 3 do DL nº 433/82, de 27 outubro com as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas legais, Decreto-Lei 356/89, de 17 outubro, Decreto-Lei 244/95, de 14 setembro, e Lei 109/2001, de 24 dezembro - Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social [RGIMOS]) e artigo 513º, n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP) ex vi artigos 92º, n.º 1 do RGIMOS e 3º, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).]
É este, em suma, s.m.o., o sentido do nosso parecer.»
1.4. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
No artigo 75.º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (RGIMOS) estabelece-se que a decisão do recurso jurisdicional pode alterar a decisão recorrida sem qualquer vinculação aos seus termos e ao seu sentido, com a limitação da proibição da reformatio in pejus, tal como resulta do disposto no artigo 72.º-A do mesmo diploma, sendo estas disposições aqui aplicáveis ex vi art. 3.º, alínea b) do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
Não obstante, o objeto do recurso é delimitado pelas respetivas conclusões, tal como resulta do disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi artigo 74.º, n.º 4 do RGIMOS, ex vi artigo 3.º, alínea b) do RGIT, exceto quanto aos vícios de conhecimento oficioso. Por outro lado, o objeto do recurso pode abranger a matéria de facto e de direito – cf. artigo 83.º, n.º 2, primeira parte, do RGIT, a contrario sensu.
Assim sendo, cabe a este Tribunal, decidir sobre as questões colocadas pela Arguida, aqui Recorrente, e que, se reportam ao (i) erro de julgamento de facto, ao fixar como não provado a “…a carência de tesouraria” determinante do não pagamento atempado da prestação de IVA (conclusão 46. a 54.); (ii) do erro de julgamento ao não considerar verificados os pressupostos para a aplicação da pena de admoestação prevista no artigo 50º do RGCO (conclusão 55. a 60.) e, (iii) do erro de julgamento quanto à atenuação especial da coima, a qual cumpria aplicar, por estarem preenchidos integralmente os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 32.º do RGIT (conclusão 61. a 66.).
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada e não provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
«Com interesse para a decisão da presente lide, julga-se provados os seguintes factos:
A. Em 31-05-2013, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 12.500 € por atraso no pagamento de impostos, depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter aplicado o regime da atenuação especial da coima (fls. 181 do processo n.º 1...4/....5BEBRG);
B. Em 22-11-2013, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 32.351,49 € pela falta de entrega da prestação tributária dentro do prazo (IVA do período de 09-2012), depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter aplicado o regime da atenuação especial da coima – fls. 100 do processo n.º 1...1/....8BEBRG;
C. Em 12-12-2013, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 35.250 € por atraso no pagamento de impostos, depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter aplicado o regime da atenuação especial da coima (fls. 65 do processo n.º 9...7/....3BEBRG);
D. Em 12-12-2013, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 22.290€ por atraso no pagamento de impostos, depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter aplicado o regime da atenuação especial da coima (fls. 64 do processo n.º 9...8/.....1BEBRG);
E. Em 12-12-2013, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 19.267,50 € por atraso no pagamento de impostos, depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter aplicado o regime da atenuação especial da coima (fls. 89 do processo n.º 9...9/....0BEBRG);
F. Em 27-03-2016 foi emitida citação postal no âmbito do processo de execução fiscal n.º 039...395 no valor de 61.318,06 € em que é executada a Recorrente, para pagamento coercivo de dívidas de IVA de Janeiro de 2016 no valor de 61.038,15 € (fls. 39 dos autos);
G. Em 23-04-2016 foi proferida decisão de aplicação de coima no processo de contra-ordenação n.º 039...264, no valor de 20.618,68 €, com o conteúdo que infra se reproduz (fls. 20-21 do processo de contra-ordenação):
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
H. A decisão supra veio acompanhada da seguinte informação (fls. 19 do processo de contra-ordenação):
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
I. Em 02-05-2016, o Chefe do Serviço de Finanças de ... emitiu Notificação nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 039...264, com o conteúdo que infra se reproduz (fls. 11 do processo de contra-ordenação):
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
J. Em 05-05-2016, a Recorrente pagou o IVA a que se refere a citação do ponto F do probatório (fls. 40 dos autos);
K. Em 22-12-2016, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga aplicando admoestação à Recorrente na sequência de recurso de decisão de aplicação de uma coima de 23.091,69 € pela falta de entrega integral de prestação tributária deduzida nos termos da lei [art. 41.º/1/a) do CIVA] – fls. 106 do processo n.º 3...4/....6BEBRG;
L. Em 31-05-2017, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, aplicando admoestação à Recorrente na sequência de recurso de decisão de aplicação de uma coima de 25.517,85 € pela falta de entrega integral de prestação tributária deduzida nos termos da lei (IRS) – fls. 87 do processo n.º 4...8/....1BEBRG;
M. Em 09-07-2018, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 22.722,69 €, por falta de entrega de prestação tributária dentro do prazo (IVA do período de 06-2014), depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter aplicado o regime da atenuação especial da coima (fls. 82 do processo n.º 3...8/....6BEBRG);
N. Em 29-10-2018, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, aplicando admoestação à Recorrente na sequência de recurso de três decisões de aplicação de coima pela falta de entrega integral da prestação tributária deduzida nos termos da lei [art. 41.º/1/a) do CIVA] – fls. 74 e ss. do processo n.º 2...4/....8BEBRG;
O. Em 15-01-2020, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, aplicando admoestação à Recorrente na sequência de recurso de decisão de aplicação de coima no valor de 45.000 € pela falta de pagamento de imposto – IVA [art. 41.º/1/a) do CIVA] – fls. 63 e ss. do processo n.º 2...4/....2BEBRG;
P. Em 27-01-2020, a Directora de Finanças de Braga proferiu despacho com o conteúdo que infra se reproduz (fls. 14 dos autos):
[dá-se por reproduzido(a) o(a) documento/imagem conforme original]
Q. Em 20-02-2020, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima no valor de 10.640,39 €, por não pagamento de IRS retido na fonte, depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga proceder à aplicação do regime da atenuação especial (fls. 92 do processo n.º 2...6/....0BEBRG);
R. Em 23-03-2020, a Recorrente foi condenada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga no pagamento de uma coima no montante de 3.225,45 €, depois de o tribunal ter aplicado o regime da atenuação especial da coima (fls. 51 e ss. do processo n.º 1...1/....1BEBRG);
S. Em 31-03-2020, o Tribunal Administrativo de Braga dispensou a Recorrente de coima aplicada pela falta de entrega de pagamento especial por conta, referente ao período de 10-2016 (fls. 121 e ss. do processo n.º 2...9/...7BEBRG)
T. Em 01-04-2020, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga dispensou a Recorrente de coima aplicada pela falta de pagamento especial por conta, referente ao período de 10-2015 (fls. 131 do processo n.º 2...9/....0BEBRG);
U. Em 22-06-2020, a Recorrente foi condenada no pagamento de três coimas por não pagamento dos valores apurados em sede de IVA dentro do prazo legal, nos montantes de 22.500 €, 18.010,51 € e 10.385,55 €, após a aplicação, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, do regime da atenuação especial da coima (fls. 79 e ss. do processo n.º 1...9/....0BEBRG);
V. Em 22-10-2020, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de 2.698,24 € por falta de pagamento de IVA do período de 05-2018 [art. 41.º/1/a) do CIVA] após a aplicação, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, do regime da atenuação especial da coima (fls. 48 do processo n.º 2...4/...7BEBRG);
Com interesse para a decisão da lide, julga-se não provados os seguintes factos:
1. A Recorrente apenas não pagou atempadamente a prestação do IVA aqui em causa por mera carência de tesouraria.
A convicção do Tribunal formou-se com recurso aos meios de prova indicados junto de cada facto dado como provado (documentos juntos aos autos e não impugnados pelas partes – cf. 362.º e ss. do CC).
O processo de contra-ordenação encontra-se junto ao processo n.º 2...4/....7BEBRG.
O ponto 1 do probatório foi julgado não provado tendo em conta que nada nos autos o indicia – antes, a proximidade temporal do pagamento e a notificação da possível instauração de um processo de natureza criminal e a reiteração das condutas omissivas do pagamento atempado do imposto em vários processos que correram termos neste Tribunal leva a concluir que o não pagamento não se tratou de uma mera falha de tesouraria.
O demais alegado não foi nem julgado provado nem não provado por ser conclusivo, matéria de direito, ou não relevar para a decisão da causa.»
2.2. De direito
A Recorrente discorda da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga por via da qual foi mantida a decisão de coima e custas, no montante global de 18.311,45 €, coima aquela aplicada por falta de entrega do IVA apurado dentro do prazo legal (infração p. e p. nos artigos 41.º/1/a) e 27.º/1 do CIVA e artigos 114.º/2 e 26.º/4 do RGIT).
Como já se referiu supra, em sede de delimitação do objecto do presente recurso, a arguida imputa vários erros à sentença sub judice, desde logo (i) do erro de julgamento de facto, que redunda em erro nos pressupostos de facto, decorrente do facto julgado não provado, a saber, de que “A Recorrente apenas não pagou atempadamente a prestação do IVA aqui em causa por mera carência de tesouraria”, o qual deveria ter sido reconduzido ao elenco da matéria de facto dada como provada, (ii) do erro de julgamento ao não considerar verificados os pressupostos para a aplicação da pena de admoestação prevista no artigo 50º do RGCO e, (iii) do erro de julgamento quanto à atenuação especial da coima, a qual cumpria aplicar, por estarem preenchidos integralmente os pressupostos previstos no n.º 2 do artigo 32.º do RGIT
2.2.1. Do erro de julgamento de facto
Avançando no conhecimento da questão de facto, anotamos que o artigo 431.º do Código de Processo Penal (CPP), estatui que, «sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
c) Se tiver havido renovação de prova.».
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do artigo 431.º do CPP.
Esta alínea b) do artigo 431.º do CPP, conjugada com o artigo 412.º, n. º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar: «a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devam ser renovadas».
O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.».
Assim, em recurso, a reapreciação da prova depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites.
No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um tríplice ónus, qual seja:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação, no caso em que esta tenha ocorrido – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do encimado artigo 412.º);
- Indicar que provas pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas [alínea c) do n.º 3 do mesmo art.º 412.º].
«O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.» [Cf. acórdão do STJ, de 8 de Março de 2006, in processo n.º 185/06-3.ª]
«A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.» [Cf. acórdãos do STJ, de 10 de Janeiro de 2007 e de 15 de Outubro de 2008, in, respectivamente, processos n.ºs 3518/06-3.ª 2894/08-3.ª]
O recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
«O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito.» [Cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18 de Janeiro de 2006, proferido no processo n.º 199/05, da 2.ª secção, publicado no DR, II.ª Série, de 13 de Abril de 2006].
In casu, a Recorrente especifica, nas conclusões da motivação, o ponto de facto que considera incorretamente julgado ao ter sido conduzido à matéria de facto não provada. No entanto apesar de indicar um discurso plausível assente por si em factos, dilação do pagamento das facturas que por si poderia reconduzir a carências de tesouraria, não indica as concretas provas produzidas nos autos que impõem decisão diversa da recorrida.
Este tribunal ad quem considera, assim, que a recorrente, arguida, apenas deu cumprimento parcial ao estabelecido no artigo 412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do CPP e pelo que o ataque preconizado não se julga apto a modificar a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, pelo que se conclui pela inexistência de erro de julgamento de facto.
Cumpre além do mais referido, precisar que num Estado de Direito Democrático o princípio fundamental em matéria de prova, é o princípio da livre apreciação da prova. Este princípio, previsto no artigo 127.º do CPP, estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» [Cf. Prof. Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág.300].
Quanto à livre convicção do juiz, ela não se confunde com a apreciação arbitrária ou contrária da prova efetivamente produzida. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a convicção do juiz não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” [Cf. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.]
Ora, por força do princípio da livre valoração da prova, previsto pelo citado artigo 127.º, salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador.
Regras de experiência são regras que se colhem, ao longo dos tempos, da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos que se sedimentam no espírito do homem comum como juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade. Livre convicção é um meio de descoberta da verdade, através da livre apreciação, subordinada à razão e à lógica, mas isenta de prescrições formais exteriores. Não se confunde com uma afirmação infundamentada da verdade, puramente impressionista ou emocional.
Na tarefa da valoração da prova exige-se ao julgador uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, nas da lógica e da ciência, sem descurar a percepção – que a imediação potencia – da personalidade do depoente.
A jurisprudência penal, com plena aplicação nos autos, vem entendendo, unanimemente, que a reapreciação da prova na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal recorrido tem suporte adequado perante os elementos existentes nos autos e produção de prova oral.
Assim, o ponto de partida para sindicar a observância do princípio da livre apreciação da prova, é a fundamentação da decisão de facto feita em primeira instância, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência» [Cfr. Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal / O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.].
Por outro lado, reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicada pelo recorrente.
Delimitado o campo de intervenção deste tribunal, cumpre atentar à motivação revelada na sentença “A convicção do Tribunal formou-se com recurso aos meios de prova indicados junto de cada facto dado como provado (documentos juntos aos autos e não impugnados pelas partes – cf. 362.º e ss. do CC).
O processo de contra-ordenação encontra-se junto ao processo n.º 2...4/....7BEBRG.
O ponto 1 do probatório foi julgado não provado tendo em conta que nada nos autos o indicia – antes, a proximidade temporal do pagamento e a notificação da possível instauração de um processo de natureza criminal e a reiteração das condutas omissivas do pagamento atempado do imposto em vários processos que correram termos neste Tribunal leva a concluir que o não pagamento não se tratou de uma mera falha de tesouraria.
O demais alegado não foi nem julgado provado nem não provado por ser conclusivo, matéria de direito, ou não relevar para a decisão da causa.”
Como resulta, quer da motivação, quer das suas conclusões, o recorrente não deu cumprimento ao que a lei determina, pois se precisou o facto que pretende seja considerado provado (ao invés do decidido pela negativa) [A Recorrente apenas não pagou atempadamente a prestação do IVA aqui em causa por mera carência de tesouraria], nada especificou sobre quais os documentos ou outros elementos de prova que levariam a essa conclusão, com a sua concreta localização no processo informático.
Como a norma indicada impõe e tem sido decido, não basta ao recorrente manifestar a sua divergência quanto à convicção que o Tribunal formou. É necessário que especifique em concreto do que discorda e porque discorda, com reporte para as especificas provas que imporão a decisão contrária.
Como assim, não tendo sido questionada a matéria de facto através dos meios adequados, a mesma não pode ser devidamente sindicada por este Tribunal ad quem, a que acresce a motivação coerente e suficientemente esclarecedora por via da qual a 1ª instância fundamentou a sua convicção que afasta qualquer dúvida, subjacente ao julgamento de facto e do qual a Recorrente manifestou discórdia.
Improcede, pois, nesta parte o recurso.
2.2.2. Da admoestação
Cumpre subsequentemente aquilatarmos se o acervo factual acolhido se mostra devidamente enquadrado de direito em sede do quantum e medida da pena (coima), e seguindo a ordem apresentada pela recorrente, apreciar do erro de julgamento ao não ter sido desconsiderada a aplicação da pena de admoestação.
Discordando do decidido, a Recorrente alega a existência de erro de julgamento, porquanto, se verificam os pressupostos para aplicação da pena de admoestação nomeadamente quanto aos pressupostos da “… reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente”, que não foram praticados atos de ocultação da infração e não ter havido prejuízo efetivo para a Fazenda Pública.
Mas adianta-se sem razão.
Com efeito, aderimos sem qualquer reserva à fundamentação constante da sentença recorrida que, em sede de alegações de recurso, não foi minimamente posta em causa, razão pela qual nada mais há a acrescentar ao que naquela ficou dito e que ora reproduzimos:
«A Recorrente pugna pela aplicação de sanção de admoestação, invocando os elementos contidos na decisão de fixação da coima [i) não terem sido praticados actos de ocultação da infracção; ii) esta ter sido meramente acidental; iii) ter havido prejuízo efectivo para a Fazenda Pública; iv) não se ter verificado qualquer tentativa de suborno; v) a arguida não ter especial obrigação de cometer a infracção e; vi) a sua situação económico-financeira ser baixa].
Acerca do prejuízo sofrido pela Fazenda Pública, a Recorrente alega que o atraso de 56 dias na entrega da prestação tributária se deveu apenas a carência de tesouraria da Recorrente.
Defende que pagou a prestação em falta dentro do prazo fixado na citação e muito antes da notificação da decisão de aplicação de coima aqui em causa. Mais chama a atenção o facto de não ter colocado em causa a sua responsabilidade pela infracção.
Invoca os arts. 18.º/1 e 51.º do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO) e o art. 60.º/4 do Código Penal.
Vejamos o art. 51.º do RGCO:
1 - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.
Este deve ser lido na sequência do art. 18.º/1 do RGCO, de onde se retira que as finalidades da infracção contra-ordenacional não são a tradicional prevenção geral positiva, de reforço da confiança comunitária na eficácia das normas, mas, no essencial, funções de prevenção negativa, de dissuasão.
Veja-se, neste sentido, o Ac. Uniformizador do STJ n.º 6/2018:
“Constituindo a sanção um elemento nuclear na caracterização das contraordenações, esta “serve essencialmente “como mera admonição, como especial advertência ou reprimenda, relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas” (Figueiredo Dias, ob. e loc. cit) e tendo em vista finalidades distintas das sanções penais - as “finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção” (Figueiredo Dias, ob. e loc. cit, itálico nosso), considerando-se que poderá assumir relevância a finalidade de prevenção geral negativa (Mário Monte, Lineamentos de Direito das Contraordenações, 2.ª ed., Braga: AEDUM, 2014, p. 175).
(...)
E, neste seguimento, Taipa de Carvalho entende que “não cabem nas finalidades das sanções contraordenacionais as ideias de retribuição”, pese embora se possa dizer que “as funções principais destas sanções são de dissuasão geral (prevenção geral negativa) e de dissuasão individual (prevenção especial negativa): dissuasão de todos os destinatários das respectivas normas; dissuasão do infractor condenado em relação à reincidência. Logo: funções prevenção negativa” [Direito Penal. Parte Geral (Questões fundamentais. Teoria geral do crime), 3.ª ed., Lisboa: UCP, 2016, p. 142]. Todavia, Taipa de Carvalho vê ainda a possibilidade de as sanções contraordenacionais terem igualmente finalidades de prevenção positiva no sentido de promoveram a “consciencialização social comunitária” e “consciencialização social do próprio infractor” para a importância comunitária e/ou individual dos “valores ou bens jurídicos tutelados pelo direito de ordenação social” (idem).
Não podemos deixar aqui de sublinhar o ponto onde, citando Taipa de Carvalho, o Supremo Tribunal de Justiça aponta para a finalidade de dissuasão do infractor condenado em relação à reincidência.
Assim, além da mera gravidade da infracção e da culpa do agente, há que ponderar se a aplicação de uma sanção de admoestação levaria a Recorrente a corrigir a sua conduta e a abster-se de praticar esta infracção no futuro.
No que diz respeito à gravidade da infracção, há que ter em conta o montante de IVA em dívida – 61.318,06 € – e o atraso não despiciendo entre a data limite de pagamento do IVA e o seu efectivo pagamento.
De acordo com o art. 27.º do CIVA na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 64-B/2011 de 30-12, os sujeitos passivos de IVA que liquidem imposto devem proceder à sua entrega no mesmo prazo de entrega das declarações.
O artigo 41.º/1 do CIVA prevê que os sujeitos passivos de IVA sujeitos ao regime mensal devem remeter as suas declarações até ao 10.º dia do segundo mês seguinte àquele a digam respeito as operações.
A infracção é do IVA de Janeiro de 2016, logo a Recorrente teria até 10 de Março para efectuar o pagamento conjuntamente com a entrega da sua declaração de IVA.
Trata-se de um atraso de 54 dias na realização de um pagamento de 61.318,06 € o que se configura como uma vantagem competitiva relevante para uma sociedade comercial.
A natureza do imposto também assume aqui relevo – o não pagamento a que se alude é de imposto (IVA) que a Recorrente repercutiu aos seus clientes e que não entregou ao Estado. Nunca integrou o património da Recorrente, integrou o património do Estado às custas do qual a Recorrente se locupletou temporariamente.
No que concerne à culpa do agente também não se pode considerar que esta seja propriamente reduzida, uma vez que este só veio regularizar a situação depois de ter recebido uma notificação que dava conta «de que os factos que deram origem à instauração do processo acima identificado, são susceptíveis de consubstanciar indícios de prática do crime de abuso de confiança fiscal ... punido com pena de prisão ou multa».
Por outro lado, a Recorrente tem um longo historial de não pagamento atempado das suas obrigações fiscais, em montantes bastantes avultados, como decorre das várias sentenças proferidas neste tribunal.
Por último, deve entender-se que a aplicação de uma admoestação não cumpriria as finalidades de prevenção da prática da infracção, uma vez que a Recorrente já foi por várias vezes sancionada (umas vezes com admoestação, outras com dispensa de coima e ainda outras com recurso a atenuação especial) e sempre tem mantido a sua postura de desconsideração das normas atinentes ao pagamento dos impostos.
A aplicação de uma sanção de admoestação nesta situação seria uma recompensa e não um eficaz dissuasor, como o demonstra a experiência patente nos vários processos que correram termos neste Tribunal.» (fim de transcrição)
Não se verifica, pois, o invocado erro de julgamento.
A Recorrente discorda da sentença na parte em que nela se afastou aplicação da pena de admoestação, segundo as suas palavras, ao considerar “…não haver lugar à aplicação de admoestação porque a gravidade da infração e a culpa da Recorrente não justificam tal medida” (conclusão 55.), mas nada acrescenta em concreto que afaste os convincentes argumentos escamoteados na fundamentação transcrita.
Na verdade, não coloca em causa os factos assentes, nomeadamente em sede de reincidência de vital importância atenta a função da pena de admoestação em si.
Com efeito, conforme já afirmado, a Recorrente já em anteriores processos, em situações similares a dos autos, viu a coima aplicada reduzida à pena de admoestação e/ou atenuação especial da coima pelo tribunal de 1ª instância, pelo que dúvidas não podem persistir de que a conduta reincidente da arguida não se enquadra no conceito “de diminuta gravidade” para efeitos de aplicação de modum recorrente da pena de admoestação, sendo manifesto que por via do recurso da condenação por admoestação não se conseguiu o efeito preventivo pretendido com tal sanção, no sentido de a arguida não reincidir na prática da mesma conduta ilícita
Em suma, nenhuma censura merece a sentença sob recurso ao afastar aplicação de uma pena de admoestação.
E, mutatis mutandi, a fundamentação apresentada aproveita a actual previsão da aplicação da pena de admoestação no artigo 32º, n.º do RGIT [ redacção que decorre da Lei n.º 7/2021 e cuja entrada em vigor ocorreu a 01.01.2022] – que prevê que “Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.”, de aplicação aos autos se mais favorável, pois que a inclusão no RGIT da pena de admoestação em concreto, que afasta a aplicação do artigo 51º do RGCO ex vi art.º 3.º, al. b) do RGIT, nada nos oferece de novo, pois a alteração de redacção de “diminuta gravidade” para “reduzida gravidade”, são conceitos em si que se reconduzem à mesma realidade para efeitos de aferição da verificação dos pressupostos de aplicação.
Assim, e em síntese conclusiva, improcede esta questão suscitada pela recorrente, pelo que a sentença recorrida é de confirmar neste segmento.
2.2.3. Da atenuação especial da coima
A arguida/recorrente entende que o instituto da “atenuação especial da pena” lhe deve ser aplicado, já que a coima deve ser especialmente atenuada, em cumprimento ao disposto no artigo 32.º do RGIT, o qual dispunha (ao tempo da prática da infração):
“Dispensa e atenuação especial das coimas
1 - Para além dos casos especialmente previstos na lei, pode não ser aplicada coima, desde que se verifiquem cumulativamente as seguintes circunstâncias:
a) A prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tributária;
b) Estar regularizada a falta cometida;
c) A falta revelar um diminuto grau de culpa.
2 - Independentemente do disposto no n.º 1, a coima pode ser especialmente atenuada no caso de o infractor reconhecer a sua responsabilidade e regularizar a situação tributária até à decisão do processo.”
Com a Lei n.º 07/2021, de 26 de fevereiro, que entrou em vigor a 01 de janeiro de 2022 (artigo 17.º, n.º 5), o artigo passou a ter a seguinte redação:
“Artigo 32.º
Atenuação especial das coimas
1 - A coima pode ser especialmente atenuada a pedido do infrator, no prazo concedido para a defesa, caso este reconheça a sua responsabilidade e, no mesmo prazo, regularize a situação tributária.
2 - Quando houver lugar à atenuação especial da coima, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade, não podendo resultar um valor inferior ao que resultaria da aplicação do artigo 30.º, nem ser inferior a 25 €.
3 - Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.”
Temos então, que nos termos do artigo 32.º do RGIT, na redação em vigor ao tempo da infração e da prolação da sentença recorrida (22.05.2021), a atenuação especial da coima dependia da verificação de dois pressupostos: i) o reconhecimento da responsabilidade por parte do infrator; e ii) da regularização da situação tributária até à decisão do processo.
Estes pressupostos são cumulativos, o que significa que apenas estando os dois preenchidos, pode haver lugar à atenuação especial da coima.
A sentença recorrida entendeu neste particular, o que não é colocado em questão, se bem entendemos as alegações de recurso, que:
«A atenuação especial da coima tem dois requisitos centrais – o reconhecimento da sua responsabilidade e a regularização da situação tributária até à decisão do processo.
Quanto ao primeiro requisito cremos que este se verifica, embora não se possa acompanhar a justificação da Recorrente de que apenas cometeu a infracção estritamente por razões de tesouraria e de efectuou o pagamento em falta “logo que teve possibilidades financeiras para o fazer”, na situação explanada na motivação da matéria de facto.
Quanto ao segundo requisito também resulta provado que a Recorrente regularizou a situação tributária antes da decisão de aplicação de coima.
Assim deve recalcular-se os limites máximo e mínimo da infracção para metade, nos termos do art. 18.º/3 do RGCO [aplicável ex vi art. 3.º/b) do RGIT].
O art. 144.º do RGIT contém o seguinte:
1 - A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2 - Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será aplicável coima variável entre 15 % e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
Nos termos do art. 26.º/4 do RGIT, os limites mínimo e máximo são elevados para o dobro quando o infractor seja uma pessoa colectiva.
O imposto em falta foi imposto sobre o valor acrescentado (IVA) de 61.038,15 €, de onde se retira o limite mínimo nos termos do art. 114.º/2 do RGIT de 18311,45 € (30% do montante do imposto em falta) e o limite máximo de 61.038,15 €.
Se reduzirmos estes limites para metade, aplicando o regime da atenuação especial da coima chegamos aos valores de 9.155,72 € e de 30.519,08 €.» (fim de transcrição)
No mais não podemos concordar com o decidido, ao não retirar as devidas consequências da aplicação do regime da atenuação especial da coima, ao sufragar que em sede de aplicação concreta da pena, atenta a gravidade da infracção e culpa da arguida estas impedem uma aplicação da coima inferior aquela que foi fixada administrativamente e de que “… ainda que se aplique o regime de atenuação especial da coima, não se pode concluir pela aplicação de coima diferente da aplicada pela AT, por virtude da proibição da reformatio in pejus (art. 72.º-A do RGCO)”
Ora, se bem entendemos a decisão emanada pelo tribunal a quo aquele penderia, apesar dos limites mínimos e máximos fixados por aplicação da atenuação (entre 9.155,72 € e de 30.519,08), distintos para menos do que aqueles que administração estabeleceu (entre 18.311,45 € e de 61.038,15 €), não alteraria a coima para mais em virtude da reformatio in pejus – artigo 72º - A do RGCO).
Vejamos.
No artigo 32º n.º 2 do RGIT prevê-se uma situação de atenuação especial da coima, que tem como efeito que os limites máximo e mínimo sejam reduzidos a metade, conforme preceitua o artigo 18º nº 3 do RGCO (neste sentido, Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in “Regime Geral das Infrações Tributárias”, anotado, 10.ª Edição 2010, Áreas Editora, pág. 321).
Por outro lado, estabelece o n.º 3 do artigo 18º do RGCO, ex vi art.º 3.º, al. b) do RGIT, que “Quando houver lugar à atenuação especial da punição por contraordenação, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade”.
No caso concreto, a arguida/recorrente foi condenada no pagamento da coima de € 18.311,45 €, ou seja, pelo mínimo, conforme consta do item do probatório P. e onde consta concretamente que “Para a fixação da coima em concreto teve-se em conta a informação a que alude o artigo 27º do RGIT:
Não foram praticados quaisquer actos de ocultação da infracção;
a) A infracção é meramente acidental;
b) Houve efectivo prejuízo para a Fazenda Pública, consubstanciado no atraso de arrecadação do imposto (foram-lhe instaurados vários processos, processos de redução de coima, contra-ordenações e crime);
c) Não se verificou qualquer tentativa de suborno ou de obtenção de vantagens ilegais;
d)A arguida não tinha especial obrigação de não cometer a infracção;
e) A situação económica e financeira é baixa.
Assim considerando os factos referidos, face ao disposto no n.º 2 do art.º 114º do RGIT, conjugado com o n.º 4 do art.º 26º do mesmo diploma, aplico a coima de ”.
Consta, ainda, do probatório que a arguida/recorrente efetuou o pagamento da prestação tributária em falta, em 05.05.2016, ou seja, com 56 dias de atraso, dentro do prazo que lhe foi fixado e antes da prolacção da decisão de aplicação de coima, observando-se, deste modo, o disposto no nº 2 do artigo 32º do RGIT.
Assim, tendo em conta que a arguida reconheceu a sua responsabilidade e regularizou a situação tributária até à decisão do processo, recuperando nesta sede o vertido na sentença sob recurso de que se encontram reunidos os pressupostos para que a coima seja especialmente atenuada, ao abrigo do disposto no artigo 32º nº 2 do RGIT, com a consequente redução a metade dos limites mínimo e máximo da coima, pelo que, o limite mínimo fixa-se em € 9.155,72, e o máximo em € 30.519,08 (artigo 18°, n° 3, do RGCO).
Neste contexto, dispõe o artigo 27º nº 1 do RGIT que, “Sem prejuízo dos limites máximos fixados no artigo anterior, a coima deverá ser graduada em função da gravidade do facto, da culpa do agente, da sua situação económica e, sempre que possível, exceder o benefício económico que o agente retirou da prática da contraordenação”.
Mais acrescenta o n.º 2 que, “Se a contraordenação consistir na omissão da prática de um ato devido, a coima deverá ser graduada em função do tempo decorrido desde a data em que o facto devia ter sido praticado”.
Assim, considerando a factualidade assente e os elementos tidos em conta na própria decisão administrativa, designadamente as alegadas dificuldades financeiras, a situação económica e financeira da arguida qualificada como “baixa”, considerando ainda que a arguida actuou de forma negligente (vide item P. do probatório), a não existência de actos de ocultação e a regularização da situação tributária, ainda na pendência do processo de contra ordenação que teve instauração de imediato, o terem mediado apenas 56 dias entre a falta e a regularização o que vai de encontro com as dificuldades financeiras atestadas pela Fazenda Pública e, a experiência nos ensina ser prática corrente a existência de dilação temporal entre a emissão da facturação e o pagamento das mesmas, reputa-se adequada e proporcional às circunstâncias do caso concreto, designadamente à gravidade do facto, culpa do agente e sua situação económica, a fixação da coima em € 9.155,72, que corresponde ao mínimo aplicável no caso vertente, o que se determinará.
2.3. Conclusões
I. A alínea b) do artigo 431.º do CPP, conjugada com o artigo 412.º, n. º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devam ser renovadas.
II. Sendo o critério de aplicação da pena de admoestação exclusivamente preventivo, tendo-se concluído que a mesma não é adequada à satisfação das necessidades de prevenção especial de socialização e que as exigências de prevenção geral, mostra-se afastada a possibilidade da sua aplicação.
III. Nos termos do artigo 32.º do RGIT, na redação em vigor ao tempo da infração e da prolação da sentença recorrida, a atenuação especial da coima dependia da verificação cumulativa dos pressupostos atinentes ao i) reconhecimento da responsabilidade por parte do infrator; e da ii) regularização da sua situação tributária até à decisão do processo.
IV. Num caso como no dos autos, em que o período em que o imposto devido (IVA) esteve em falta 56 dias verifica-se uma culpa diminuta da arguida, um prejuízo à receita tributária pouco relevante que permite que se considere adequado ao grau de ilicitude e culpa do agente a aplicação da coima pelos mínimos.
3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência:
- Revogar a decisão recorrida na parte em que, não retirou efeitos da aplicação da atenuação especial da coima, e confirmou a condenação da recorrente na coima de 18,311,45 €;
- Atenuando especialmente a coima aplicada, condenar a arguida/recorrente no pagamento da coima de € 9.155,72 (nove mil e cento e cinquenta e cinco euros e setenta dois cêntimos).
Do acima exposto, resulta que o recurso procede parcialmente, sendo, no entanto, desfavorável à arguida/recorrente, pelo que lhe incumbe a responsabilidade pelo pagamento das custas, que se fixam no mínimo legal (1 UC), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 92º, nº 1 e 3, 93º nº 3 e 4 e 94º nº 3, do RGCO e artigos 513º e 524º do Código de Processo Penal (vide ainda os artigos 3º, nº 1, 8º, nº 7 e 8, 13º, nº 1 e 30º, nº 3, al. e) e Tabela III, do RCP).
Porto, 03 de novembro de 2022
Irene Isabel das Neves
Ana Paula Santos
Margarida Reis |