Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00507/13.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:CEMITÉRIO; SEPULTURA; CONCESSÃO; TESTAMENTO.
Sumário:1. A utilização de terrenos nos cemitérios para sepultura ou para jazigos é uma das formas de utilização do domínio público pelos particulares.

2. O título constitutivo dessa utilização ou uso privativo pode passar por acto ou negócio jurídico bilateral, isto é, um contrato, sendo este um contrato de concessão.

3. A disposição da concessão de sepultura ou jazigo atribuída traduz a prática de um acto administrativo com objecto impossível e, portanto, nulo, nos termos do artigo 133º, nº 2, alínea c), do Código de Procedimento Administrativo (de 1991).

4. Assim um averbamento à concessão não pode traduzir a privação do direito de beneficiários já existentes; apenas pode resultar desse averbamento que outros beneficiem também dessa concessão por título legítimo.

5. É válido o averbamento que resulta de testamento a favor de herdeiros que beneficiaram da mesma disposição da concessão que beneficiaram os actuais concessionários da sepultura.*
* Sumário elaborado pelo relator.
Recorrente:R. e Outros
Recorrido 1:Freguesia de (...) e Outros
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

R. veio interpor o presente recurso jurisdicional, em acção administrativa comum, com processo sumário, instaurada pela Recorrente e Outros contra a Freguesia de (...) e na qual são intervenientes principais, I., A. e M., do saneador-sentença, de 20/10/2014, proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pelo qual foi julgada totalmente improcedente, por não provada, a presente acção e consequentemente, absolvidos a Ré e os intervenientes principais dos pedidos formulados pelos Autores de reconhecimento do direito destes à titularidade da concessão número 69, no Cemitério Municipal da Freguesia de (...), conforme o teor do averbamento segundo ao referido título de concessão; de declaração de nulidade do averbamento terceiro ao referido título de concessão, lavrando-se o competente termo de cancelamento e de inexistência; ordem de retirada dos restos mortais dos corpos que eventualmente vierem a ser sepultados nesse jazigo, contra a vontades dos Autores; de pagamento aos AA. da quantia peticionada de 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais.

Invocou para tanto em síntese que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 607º, n os 3, 4 e 5 e 615º, n.º 1, alíneas b), c) e d), todos do Novo Código de Processo Civil.

A Ré e os Intervenientes Principais não apresentaram contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*
I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1- Entendeu o julgador que:

a) "Os Autores por um lado e os Intervenientes Principais por outro, são co-titulares da concessão a que se reporta o jazigo n.º 69 do cemitério da Freguesia de (...)";
b) "Que essa co-titularidade resulta do que está vertido nos averbamentos datados de 02-11-2010 e 13-08-2012, como resultado da apreciação levada a cabo pela Ré enquanto entidade administrativa com responsabilidade e deveres conexos em torno do reconhecimento da titularidade da concessão, em face do resultado final dos procedimentos administrativos que para esse efeito correram termos no seu seio".

2- Conforme o referido no requerimento inicial e na Audiência Prévia de 10/10/2014, a posição dos Autores foi sempre a mesma, a de que a concessão do jazigo n.0 69 do Cemitério da Freguesia de (...), "que apenas se mantêm válido e em regime de exclusividade, apenas a favor dos Autores, o averbamento da sucessão efectuado em 07-08-2010 e que o averbamento efectuado com data de 03-08-2012, deve ser declarado nulo".

3- O Tribunal "à quo" nunca podia ter dado por assente na matéria de facto, como deu, no seu ponto segundo, isto é: "Sobre esse termo foram efectuados três averbamentos, e para efeitos do que se aprecia nestes autos, estão válidos e actuais, o averbamento efectuado de 02 de Novembro de 2010 (efectuado a favor dos Autores), e o averbamento efectuado em 13 de Agosto de 2012 (efectuado a favor dos Intervenientes Principais) — cf. versão dactilografada a fls. 156 dos autos".

4- Sobre a concessão n. 0 69 foram efectuados três averbamentos (cf. o referido título de concessão), mas o Tribunal "a quo" não apurou, nem pouco mais ou menos, qual deles validamente está válido e actual, se o averbamento efectuado em 02/Novembro/2010 (efectuado a favor dos Autores), se o averbamento efectuado em 13/Agosto/2012 (efectuado a favor dos Intervenientes Principais).

5- Pois o Tribunal "à quo" não procurou indagar do fundo da questão, da razão de ser dos direitos dos intervenientes processuais.

6- Por sua vez, a Ré não fez prova, como lhe competia, da razão de ser, da causa e da fundamentação para ter lavrado o terceiro averbamento a favor dos Intervenientes Principais, averbamento que deu causa à presente acção.

7- Sendo irrelevante alegar a Ré agora e verbalmente, em sede de audiência prévia e audiência de julgamento, que realizou tal averbamento terceiro em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor dos Autores e dos Intervenientes Principais, dizendo que os averbamentos segundo e terceiro não colidem uns com os outros.

8- Aliás, em nenhuma parte da contestação junta pela Ré aos autos foi mencionado ou confessado que a demandada realizou tal averbamento terceiro em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor dos Autores e dos Intervenientes Principais.

9- Se assim fosse, a Ré deveria ter feito tal menção escrita de comunhão no averbamento terceiro ao título de concessão, comum ao averbamento segundo, o que não aconteceu.

10- O averbamento terceiro sobrepõe-se a qualquer um dos averbamentos anteriores, pois expressamente estabelece uma ruptura, uma nova realidade de direito que está em manifesta oposição com quaisquer direitos anteriores, em especial com o direito dos Autores.

11- Face ao exposto, o Tribunal "à quo" não podia dar como assente a comunhão de direitos entre os averbamentos segundo e terceiro à concessão pública em apreço - nada lhe chegou às mãos para concluir dessa forma.

12- E a sentença em recurso nunca podia concluir que os Autores por um lado e os Intervenientes Principais por outro, são co-titulares da concessão a que se reporta o jazigo n. 0 69 do cemitério da Freguesia de (...)", por essa co-titularidade resultar do que está vertido nos averbamentos datados de 02-11-2010 e 13-08-2012.

13- Essa co-titularidade não está escrita ou declarada em tais averbamentos, expressa ou tacitamente.

14- Por outro lado, se a Ré em 03 de Agosto de 2012, por deliberação do mesmo dia, averbou o direito ao título de concessão objecto dos autos, a favor dos Intervenientes Principais, conforme averbamento terceiro à referida concessão — cf. doc. n.0 1, fê-lo de forma exclusiva para estes, infundada e ilegalmente, ou seja:

a) Exclusiva para os Intervenientes Principais, pois nesse averbamento consta ser feito em comum e sem determinação de parte ou direito apenas para os Intervenientes Principais, afastando irredutivelmente da concessão quaisquer outros concessionários, nomeadamente os demandantes;
b) Infundadamente, pois deveria ter suportado tal acto administrativo na sucessão e sequência dos direitos constantes dos averbamentos anteriores, em especial o segundo averbamento; e
c) Ilegalmente, pois a Ré devia ter dado oportunidade aos Autores para responderem à pretensão e documentos utilizados pelos Intervenientes Principais quando requereram o acto administrativo ao órgão autárquico.

15- A Ré actuou da forma descrita sem o consentimento e contra a vontade dos Autores, violando as obrigações decorrentes de ter concedido o uso exclusivo e perpétuo, aos Autores, da indicada sepultura, conforme o descrito no averbamento segundo ao título de concessão em apreço.

16- Pois, ficou mencionado no referido título de concessão, através do segundo averbamento, entre os Autores e a Ré Freguesia de (...), que o jazigo descrito, concessão de uso público, lhes pertencia em exclusivo e de forma perpétua, face às transmissões sucessórios descritas, direitos que os demandantes sempre viram reconhecidos publicamente, por si e ante possuidores e ante concessionários, direitos que nunca foram alvo de qualquer tipo de impugnação judicial, administrativa ou cível, nestes mais de 100 anos que perdura a concessão, quer por parte da Ré quer por parte daqueles indicados no averbamento terceiro ao mencionado título de concessão.

17- Concessão que a Ré retirou aos Autores em definitivo, ilegalmente e unilateralmente.

18- A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 607º, n os 3, 4 e 5 e 615º, n.º 1, alíneas b), c) e d), todos do Novo Código de Processo Civil.
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II –Matéria de facto.

Defende a Recorrente que o Tribunal recorrido não poderia dar como assente nos termos em que deu o ponto dois dos factos provados:

“Sobre esse termo foram efectuados três averbamentos, e para efeitos do que se aprecia nestes autos, estão válidos e actuais, o averbamento efectuado de 02 de Novembro de 2010 (efectuado a favor dos Autores), e o averbamento efectuado em 13 de Agosto de 2012 (efectuado a favor dos Intervenientes Principais) — cf. versão dactilografada a fls. 156 dos autos".”

E no essencial tem razão, neste aspecto.

Este ponto da matéria de facto contém matéria conclusiva e de direito.

Matéria que acaba por resolver, na fixação da matéria de facto, o litígio dos autos, o que é suposto só suceder no enquadramento jurídico.

Estamos a referirmo-nos ao trecho:

“… para efeitos do que se aprecia nestes autos, estão válidos e actuais, …”

Sendo matéria conclusiva deverá ser expurgada deste ponto da matéria de facto.

Deverá ainda aditar-se a referência ao primeiro averbamento, omitido na matéria de facto mas documentado no processo e fixado por acordo das partes (artigos 6º da 12º e documentos 1,2 e 3 da petição inicial, e artigos 2 e 3 da contestação).

Deveremos assim dar como provados os seguintes factos:

1 - Em 1906, no dia 16 de Julho, na secretaria da Junta de Freguesia de (...), foi elaborado o termo de concessão de jazigo n.º 69 - confrontar por facilidade, a versão dactilografada a folhas 255 dos autos.

2 - Sobre esse termo foram efectuados três averbamentos: o averbamento de 31 de Agosto de 1966, a favor de M. e irmã J., o averbamento de 02 de Novembro de 2010 (efectuado a favor dos Autores), e o averbamento efectuado em 13 de Agosto de 2012 (efectuado a favor dos Intervenientes Principais) — cf. versão dactilografada a folhas 156 dos autos; documentos 1,2 e 3 da petição inicial, e acordo das partes.

3 - E., efectuou testamento nos termos enunciados a fls. 172 a 175 dos autos, cuja versão manuscrita foi dactilografada e consta a folhas 260 dos autos.

4 - A petição inicial que motiva os presentes autos foi remetida a este Tribunal via electrónica em 28.02.2013.

5 - Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os documentos referidos na matéria de facto supra.
*
III - Enquadramento jurídico.

Foram os seguintes os pedidos principais deduzidos no articulado inicial, todos julgados improcedentes pela decisão recorrida.

A). Reconhecer o direito dos Autores à titularidade da concessão n.º 69, no Cemitério Municipal da Freguesia de (...), conforme teor do averbamento segundo ao referido título de concessão.

B). Considerado nulo o averbamento terceiro ao referido título de concessão.

C). Retirar os restos mortais dos corpos que eventualmente vierem a ser sepultados nesse jazigo, contra a vontade dos demandantes.

D). Pagar aos Autores a quantia peticionada de cinco mil euros a título de danos não patrimoniais.

O presente recurso circunscreve-se à improcedência dos 3 primeiros pedidos.

Dito isto, vejamos.

Como se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 22.06.2011, processo 00482/06.7BEBRG:

“A utilização de terrenos nos cemitérios para sepultura ou para jazigos é uma das formas de utilização do domínio público pelos particulares.

O título constitutivo dessa utilização ou uso privativo pode passar por acto ou negócio jurídico bilateral, isto é, um contrato, sendo este um contrato de concessão.

O contrato de concessão de uso privativo do domínio público é um contrato administrativo (artigo 9º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n. 129/84, de 27 de Abril, e artigo 178º, n.º2, alínea e) do Código de Procedimento Administrativo).

Assim, da afectação do uso dos cemitérios através de contrato, ou acto, de concessão, resultam direitos reais administrativos, os quais, se encontram subordinados ao direito administrativo.

Neste sentido, pacífico, ver, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27.10.1988, processo n.º 025546, de 07.03.1989, processo n.º 026036, de 24.09.1998, processo n.º 43843, de 06.03.2002, processo n.º 046143, acórdão do Tribunal dos Conflitos de 08.07.2003, processo n.º 010/02, acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.04.2010, processo n.º 01249/04.2BEVIS, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.11.2002, processo n.º 0251136; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.2005, processo n.º 987/05-1; na doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, 8.ª edição, pág. 849; Freitas do Amaral, A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, pág. 173; Vítor Manuel Lopes Dias, Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, pág. 329 e seguintes.

O deferimento de um pedido por deliberação dos órgãos das autarquias locais ou decisão dos seus titulares, que implique conferir aos particulares direitos duradouros, como é o caso, deve ser titulado por um alvará expedido pelo respectivo presidente – art.º 94 da actual Lei das autarquias locais, Lei nº 169/99, de 18/09.”

Como se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 03.05.2013, processo 01423/04.

E há que ter presente que o alvará constitui o documento firmado por uma autoridade pública, mediante o qual se atesta a existência de certo direito constituído em proveito de determinada pessoa.

Esta configuração, resultava, desde logo, do disposto no art. 356º do Código Administrativo, que estabelecia que o alvará «é o título dos direitos conferidos a particulares por deliberações…que os invistam em situações jurídicas permanentes.

No específico campo de sepulturas perpétuas em cemitérios municipais, resulta ainda do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado pelo Decreto 48770, de 18/12/1968, cujo art. 36º estabelece que a concessão de terrenos é titulada por alvará, do qual constarão os elementos do concessionário e da sepultura concessionada.”

A disposição da concessão de sepultura ou jazigo atribuída traduz a prática de um acto administrativo com objecto impossível e, portanto, nulo, nos termos do artigo 133º, nº 2, alínea c), do Código de Procedimento Administrativo (de 1991).

Neste sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19.02.2016, no processo 562/11.7 VIS.

Ora no caso concreto não houve nova concessão: apenas um averbamento novo, o terceiro, a favor de outros interessados.

O que nos permite uma primeira conclusão: o averbamento não se destinou a substituir os anteriores beneficiários da concessão, apenas acrescentou novos titulares ao mesmo direito de concessão.

O terceiro averbamento não traduz, portanto, uma privação do direito dos Autores. Do averbamento apenas resulta que esse direito não é exclusivo dos Autores, sendo também, a partir dessa data, dos Contra-Interessados.

Outra interpretação – que de resto é a da própria Autora do acto, a Junta de Freguesia de (...) – não é permitida pelo texto nem pelo contexto do terceiro averbamento.

A causa e fundamentação do terceiro averbamento resulta manifestamente dos factos dados como provados: por morte de E., herdaram a concessão do jazigo nº 69 os seus herdeiros testamentários, M., J., ambos 1ºs sobrinhos, o seu cunhado J. e a sua 2ª sobrinha M., por força do testamento dado como provado em 3 e reproduzido em 5.

Ora, quer os Autores, quer os Intervenientes Principais sucederam aos referidos herdeiros testamentários de E..

Provada ficou a co-titularidade da concessão do jazigo nº 69 da Freguesia de (...) de uns e outros, em cada uma das suas linhas sucessórias.

A Autora não logrou provar a exclusividade da concessão a que se vem aludindo com fundamento na exclusiva linha sucessória de M. e J., porque se provou que existe também a linha sucessória de J. e da M., da qual são sucessores os intervenientes principais, sendo que na exclusividade da titularidade da concessão do referido jazigo assentava a causa de pedir das suas pretensões.

Pelo que o terceiro averbamento não é nulo, antes plenamente válido, traduzindo a legal transmissão do original direito de concessão do jazigo.

Sendo forçoso concluir que todos os pedidos são improcedentes, tal como decidido.

A decisão recorrida – com a rectificação acima exposta da matéria de facto – mostra-se clara, coerente, suficientemente fundamentada e acertada.

O que nos conduz, a par da improcedência da acção, à improcedência do recurso.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.
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Porto, 17.04.2020




Rogério Martins
Luís Garcia
Frederico Branco