Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00219/04.5BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2016
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:RECURSO JURISDICIONAL; ALTERAÇÃO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO;
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; ACIDENTE DE VIAÇÃO.
Sumário:1- O tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.

2. Afastada, por iniciativa da autora, a responsabilidade da empresa Estradas de Portugal pelo dever de vigilância relativamente à via onde ocorreu o acidente - uma estrada nacional que a autora insistiu em classificar como municipal - e não se provando a ligação causal entre as obras levadas a cabo no local do acidente quer pela (agora) empresa Estradas de Portugal quer pela (agora) empresa águas de Coimbra, forçoso é concluir pela improcedência da acção em que se pretende efectivar a responsabilidade civil extracontratual decorrente dos prejuízos causados por esse acidente.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:MPPPV
Recorrido 1:Município de Coimbra e Outro(s)...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
MPPPV veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 16.06.2014, pela qual foi julgada improcedente a acção administrativa comum, na forma ordinária, intentada pela recorrente contra AC-Águas de Coimbra, E.M. e Município de Coimbra, na qual foram chamadas E.P. – Estradas de Portugal, SA, A..., SA e F... Companhia de Seguros, SA, para exigir a responsabilidade civil extracontratual dos recorridos, com vista a obter o pagamento da indemnização de 831.428,25 euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela recorrente, acrescida de juros, calculados à taxa legal, que se vencerem sobre o montante indemnizatório que vier a ser fixado, desde a citação até ao momento do integral e efectivo pagamento desse mesmo montante à autora.

Invocou para tanto que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, dando como não provada matéria de facto que se provou e que determina a procedência da acção, ao contrário do decidido; invocou ainda que a decisão recorrida aplicou incorrectamente o artigo 6º nº1 alínea c) do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro, dada a sua inconstitucionalidade na interpretação segundo a qual a tabela resultante deste Decreto-Lei aplica-se às perícias posteriores à sua entrada em vigor, perícias essas, de lesões anteriores ao Decreto-Lei nº 352/2007, por violação do artigo 2º, 13º, 18º nº.3 e 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, o Decreto-Lei nº 341/93, de 30 de Setembro bem como as normas dos artigos 2º nº 1, 4º nº1 e 6º do Decreto-Lei nº 48 051, de 22 de Novembro de 1967, o artigo 483º, nº 1, 487º, 493 e 563º do Código Civil, o artigo 5º nº 1 do Código da Estrada, o artigo 96º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, o artigo 325º, nº1, do Código de Processo Civil e o artigo 6º do Decreto-Lei nº 227/2002, de 30 de Outubro.

Os recorridos contra-alegaram defendendo a manutenção da sentença recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi lavrado projecto de decisão no sentido de julgar ao menos parcialmente procedente o recurso na procedência parcial da acção na parte dirigida contra o Município de Coimbra.

Contra este projecto insurgiu-se o Município de Coimbra – secundado pela AC – Águas de Coimbra – e pela F... Companhia de Seguros, S.A., essencialmente por não se ter provado que integrasse, mercê de um acordo que foi junto aos autos, a rede viária municipal. A autora manteve o que já anteriormente tinha articulado.


*
Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1º Salvo o devido respeito, foi incorrectamente julgada a parte final do quesito 1º da douta base Instrutória, onde se perguntava “não existia ali qualquer sinalização estradal destinada a veículos ou pessoas”, na medida que ficou completamente demonstrada a inexistência de sinalização, na data do acidente.

2º O Tribunal a quo não levou em consideração o facto de o acidente ter ocorrido há 11 anos atrás e a consequente impossibilidade de os depoimentos das testemunhas serem garantidamente seguros (que não o podiam ser), como se o acidente tivesse ocorrido ontem.

3º Ainda assim foi seguro o testemunho de FFA, que presenciou o acidente, e declarou peremptoriamente e sem margem para qualquer dúvida que passava todos os dias naquele local e que ali não havia qualquer tipo de sinalização de perigo ou de aviso. (CD1, 3:07 a 3:11)

4º E também a testemunha agente da GNR que tomou conta da ocorrência (o Agente VMSG) declarou clara e incisivamente que não havia no local nenhum sinal de trânsito ou de aviso, garantindo “com toda a firmeza” que se ali estivesse qualquer sinal de perigo ou aviso, obrigatoriamente o teria feito constar do auto, o que não fez.

5º E assim, no próprio documento elaborado pela GNR de fls. 32 e 33 não consta mencionado qualquer sinal de aviso ou perigo naquele local.

6º Como não se vê qualquer sinal também de aviso ou de perigo nas fotografias de fls. 27 a 29, que todas as partes e todas as testemunhas reconheceram e aceitaram como reproduzindo o local do acidente no tempo em que o mesmo se verificou.

7º E vê-se também de forma irrecusável que nenhuma das partes e nenhuma outra testemunha afirmou ou demonstrou o contrário do que acima é dito.

8º Resulta pois claro – e isso se requer – que, alterando e complementando a resposta dada ao quesito 1º da base instrutória, declarem igualmente provado a segunda parte do quesito 1º, isto é que no local do acidente e na data do acidente não existia ali qualquer sinalização estradal destinada a veículos ou a pessoas, avisadora dos perigos emergentes das obras, da água transbordante da caixa de visita/saneamento e da consequente formação de gelo.

9º Deve também dar-se como provado, ao contrário do que é dito na douta sentença sobre recurso (a fls. 1223) que na ocasião do sinistro ocorria ou acabava de ocorrer, em concreto, o fenómeno descrito em 5 dos factos provados, ou seja que “naquele Inverno, por ignoto motivo, frequentemente águas pluviais ou de superfície entravam no colector de saneamento das águas domésticas que estava a ser intervencionado naquele local e, não tendo por onde sair, pois o colector ainda não estava ligado à rede, transbordavam da caixa de visita ali existente, que é a fotografada no documento nº.1 da PI, saindo e escorregando para a faixa de rodagem, congelando, inclusivamente, sobre a faixa de rodagem, quando a temperatura o permitia”.

10º Com efeito – e contraditoriamente – o Juiz a quo considerou como provado as comunicações constantes dos pontos 28 e 29 correspondentes aos quesitos 101 e 102 da base instrutória, nomeadamente a comunicação entre a Estradas de Portugal e o seu empreiteiro “R... Construções S.A.” de 13 de Janeiro de 2003 onde consta que “Estão a chegar a esta DE reclamações de utentes, motivadas por situações de águas que atravessam a estrada em zonas ainda não pavimentadas designadamente em Valongo junto à rua da Nº. Sª. da Conceição, que devido às baixas temperaturas que se têm verificado, provocam gelo no pavimento e consequentemente despistes de veículos. Assim no sentido de evitar estes perigos, e garantir as necessárias condições de segurança na circulação, solicita-se que, com urgência, procedam ao encaminhamento das águas superficiais que, especialmente nesses troços que ainda não têm a última camada, tenham tendência de atravessar o pavimento, reforçando a sinalização se for necessário”.

11º E em resposta a tal comunicação o empreiteiro “R... Construtores S.A.” informa que “Ao Km 13 600 a obra executada por conta dos SMASC deixou “abandonada” no meio da faixa de rodagem uma caixa de visita que permanentemente despeja água para o pavimento. (...)”

12º Assim, dando como factos provados, por meio da prova documental constantes das fls 311 e 312 o Juiz a quo não pode deixar de aceitar, salvo o devido respeito, que aquela água presente na estrada provinha da caixa de visita ali existente e que se demonstra no documento 1 da petição inicial, fls. 27 do processo.

13º Ora conjugando tal facto provado com a alínea c) dos factos dados como não provados, nomeadamente o de que “as obras referidas em 4 dos factos provados obstruíram temporariamente o curso de águas do regueiro referido nos factos assentes impedindo ou dificultando o normal curso das mesmas, que assim invadiram o colector da rede de saneamento”.

14º E tendo em conta que o Tribunal a quo considera que o gelo se formava a partir de águas afluídas à faixa de rodagem e que tinha uma de duas proveniências: a caixa de visita, que frequentemente derramava, ou em alternativa, os terrenos limítrofes, nomeadamente a ribeira referida na matéria de facto assente, que saliente-se, se encontrava semi-encanada em manilhas.

15º Aceitando também que a ribeira não se encontrava obstruída e por isso não ocupava com a sua água a estrada e por outro lado tendo-se dado como provado que existia na estrada água e disso mesmo resulta da comunicação presente no ponto 28 da douta sentença, bem como a comunicação constante do ponto 29 que salienta que nesta zona existia uma caixa de visita que permanentemente despeja água para o pavimento.

16º Não pode pois deixar de concluir-se que a água que originou o gelo, naquele dia, provinha – só podia mesmo provir – da caixa de visita/saneamento.

17º E tanto mais que está também demonstrado que o tempo estava bom e sem chuva, facto dado como provado no ponto 3 dos factos provados, e que a ribeira não se encontrava obstruída, ou seja não galgando a estrada, pelo que só é possível concluir por uma e única fonte de proveniência daquela água: a caixa de visita, pertencente aos SMASC, actualmente Águas de Coimbra.

18º Mas isso resulta também do inequívoco depoimento da testemunha FFA: (CD1 03:24), quando afirmou que o piso estava seco até ali e que a água vinha da tampa de saneamento. Estava a nascer daquela zona à volta da tampa.

19º E também a testemunha NPPV (CD2 02:39 a 02:41), quando afirmou que da tampa brotava água, e que viu a água a sair dessa tampa. E fazia aquela peliculazinha de gelo.

20º No dia do acidente, tempo bom, sem chuva, mas com água transbordante da tampa da caixa de visita/saneamento, que formava um pelicula de gelo no pavimento.

21º Também o facto referido na alínea j) dos factos improvados (fls. 1224), correspondente ao quesito 50 da douta base instrutória, deve ser dado como provado.

22º Com efeito trata-se de um facto que só a prova testemunhal pode demonstrar. E, neste caso, tais testemunhas, para bem conhecerem este facto, terão obrigatoriamente de ser muito próximas da autora.

23º E demonstra-o. Diz a testemunha NPPV, se lhe pergunta: (CD2 03:04 a 03:05), ao dizer que a autora toda a vida foi, e só, costureira/modista profissão que aprendeu desde pequena, não sabendo exercer outra qualquer.

24º E assim também a testemunha DJPF (CD2 04:36 a 04:37) que afirma que a autora não sabe exercer qualquer outra profissão.

25º Ao contrário do que consta da sentença sob recurso, deve também dar-se como provado o facto que consta da alínea l) da mesma (fls. 1224), e que corresponde ao quesito 55 da douta base instrutória.

26º Tal facto, é, com efeito, sustentado por documento particular de fls. 492, jamais impugnado, e antes até confessado pela própria testemunha, que subscreveu esse documento, ARMC.

27º Com a alteração da matéria de facto, como acima se requer, ou até mesmo sem essa alteração, a decisão de Direito terá que ser, obrigatoriamente e em justiça, no sentido da procedência da acção.

28º Desde logo o facto dado como provado no ponto 11 da sentença sob recurso (fls. 1220) que, escravizando-se vinculadamente a uma perícia realizada 9 anos depois do acidente e com base em legislação que surge nova quase 5 anos depois desse mesmo acidente, despreza as anteriores perícias médico-legais e relatórios feitos, que seriam as que teriam valia se o processo tivesse sido tramitado e julgado em tempo útil normal, e assim de acordo com os ditames da justiça.

29º Com efeito, e após a consolidação das lesões, uma primeira perícia médico-legal, atribui à autora uma Incapacidade Permanente Parcial de 40%, baseada na Tabela Nacional de Incapacidades (por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais), do Decreto-Lei nº. 341/93, de 30 de Setembro, então em vigor, como em vigor estava à data do acidente.

30º Uma segunda perícia e relatório da insuspeita Junta Médica de Saúde Pública da Sub-Região de Saúde de Coimbra e igualmente de acordo com a mesma Tabela Nacional de Incapacidades (por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais), do Decreto-Lei nº. 341/93, de 30 de Setembro, atribuiu à apelante uma incapacidade de quarenta e cinco por cento.

31º. E, em 2012, passado 9 (nove) anos do acidente e 8 (oito) da entrada em juízo da presente acção, realizou-se uma outra perícia no Instituto Nacional de Medicina Legal. Tal perícia só se realizou passado este enorme e incompreensível período de tempo em consequência das delongas processuais e da morosidade judiciária, de que a Autora nenhuma culpa tem e pela qual não deverá sofrer consequências negativas.

32º Relatório este que, (porque passados nove anos do acidente) já veio a ser elaborado de acordo com a nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e com a Tabela Nacional para a Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, prevista no Decreto-Lei nº. 352/2007, de 23 de Outubro, que veio revogar o Decreto-Lei nº. 341/93, de 30 de Setembro.

33º E assim, pelas mesmas lesões que sofreu em tempo anterior vê a sua incapacidade reduzida de uma forma, com o devido respeito, abismal. E inaceitável, até porque incompreensível.

34º Sendo que esta última perícia e relatório não teriam sido feitos com base no Decreto-Lei nº. 352/2007, de 23 de Outubro, se a justiça tivesse respondido em tempo normal e minimamente adequado à pretensão da autora, e assim também o INML tivesse também respondido em tempo adequado.

35º Tudo se teria passado – como seria normal, desejável e justo – unicamente no domínio do Decreto-Lei nº. 341/93, de 30 de Setembro. E assim, teria sido com base em tal legislação que seriam analisadas, verificadas e ponderadas as lesões sofridas pela autora em Janeiro de 2003.

36º E isto aconteceu assim apenas porque este processo da autora não foi tramitado em tempo que correspondesse ao adequado, aos princípios elementares da justiça: não é pois aceitável que a nova tabela do Decreto-Lei nº. 352/2007, de 23 de Outubro, agora aplicável à perícia respeitante a um acidente ocorrido em Janeiro de 2003, cuja acção deu entrada em Abril de 2004, no seguimento da qual é requerida uma perícia em 2010 e que afinal só vem a ser realizada em 2012.

37º Com efeito, ninguém acreditará que o legislador considere normal, e muito menos aceitável, que uma peritagem venha a ser feita, por causa da morosidade judiciária e da morosidade do INML, nove anos depois de ter ocorrido a lesão a peritar!!!

38º Com efeito, o foco de atenção desta alínea c) do nº 1 do artigo 6º deveria ser – e crê-se que será - a lesão sofrida e o momento em que o foi. E não o momento em que, por mera circunstância processual e aleatória (e pela morosidade), a perícia vem tão tardiamente a ser realizada.

39º Reduzir-se a incapacidade atribuída à lesada apenas em consequência de uma imponderável e imprevista alteração legislativa, aquela está a ser prejudicada, não em função da maior ou menor gravidade da lesão que sofreu, mas unicamente em função daquele demorado e atrasado momento processual em que vem a ser realizada uma perícia que há muito tempo deveria ter sido feita.

40º Até mesmo, não pode deixar-se de considerar que se fosse previsível uma nova e surpreendente tabela e a lesão pudesse perspectivar-se à luz da nova tabela aprovada pelo decreto-lei nº. 352/2007, de 23 de Outubro, outro poderia ter sido o pedido, naturalmente.

41º É pois inconstitucional, apreciar uma lesão produzida e consolidada na vigência de determinada tabela à luz de uma outra, nova e surpreendente, que entra em vigor quase quatro anos após a entrada da acção em juízo e a formulação do respectivo pedido, tão-só em consequência das delongas e morosidade processual e das delongas e morosidade do ritmo de trabalho do próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, e mais de cinco anos depois da produção daquela mesma lesão. Inconstitucionalidade de que aqui, com o devido respeito, se deixa desde já feita a correspondente arguição, tendo em vista o disposto no nº. 4 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa:

“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”

42º Tivesse esta causa decorrido em “prazo razoável” e a questão que ora estamos a discutir nem sequer se colocaria, na medida em que as lesões sofridas pela autora e a peritagem das mesmas tinham acontecido dentro do período de vigência do Decreto-Lei nº. 341/93, de 30 de Setembro.

43º Realizar uma perícia médico-legal com base numa tabela de incapacidades diferente daquela que se encontrava em vigor à data da produção dos danos e da consolidação das lesões consubstancia uma desigualdade de tratamento da apelante relativamente a pessoas que, tendo sofrido lesões idênticas e em tempo idêntico ou até posteriormente, tenham instaurado acções e visto as perícias realizadas antes da entrada em vigor da nova tabela, o que garantidamente aconteceu em vários outros casos, nomeadamente nos tribunais judiciais!

44º E assim situações materialmente iguais acabariam por ser tratadas de modo diverso em desrespeito pelo princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, cuja arguição da inconstitucional também aqui, sempre com a devida vénia, não pode deixar de se fazer.

45º Viu assim a apelante, em vez disso, a dita lesão ser apreciada por uma tabela nacional de incapacidades que posteriormente entrou em vigor, em seu prejuízo, uma vez que nessa lhe foi atribuída uma pontuação de incapacidade inferior, 6 pontos, contra os 40% de IPP ou os 45% de IPP atribuídos em anterior parecer médico-legal e pela Junta Médica de Saúde Pública da Sub-Região de Saúde de Coimbra da ARS.

46º Com violação do princípio do Estado de Direito Democrático e do aí incluído princípio da Protecção da Confiança, decorrente da norma do artigo 2º da CRP.

47º Acontece ainda que o artigo 18º nº 3 da Lei Fundamental, “as novas leis não podem aplicar-se a situações ou actos passados, mas apenas aos verificados ou praticados após a sua entrada em vigor”.

48º Assim estamos, salvo outro entendimento, perante um caso de retroactividade inautêntica ou retrospectiva, em que a alínea c) do nº.1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº. 352/2007, de 23 de Outubro, embora proclame a vigência daquela norma para o futuro, afecta, neste caso, um direito ou uma posição jurídica radicada na lei anterior, posteriormente à implantação do respectivo direito indemnizatório na esfera jurídica patrimonial da ora apelante.

49º Pelo que não deverá ser aplicada ao caso concreto a tabela nacional de incapacidades prevista no Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro em resultante do artigo 6º n.º1 alínea c) deste diploma, dada a sua inconstitucionalidade na interpretação segundo a qual a tabela resultante deste Decreto-Lei aplica-se às perícias posteriores à sua entrada em vigor, perícias essas, de lesões anteriores ao decreto-lei nº. 352/2007, na medida em que estamos perante a violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição, o princípio da segurança e protecção da confiança integrador do Principio do Estado de Direito Democrático previsto no artigo 2º da Lei Fundamental, bem como por violação do artigo 18º nº.3 onde se consagra que “as Leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (…) não podem ter efeito retroactivo”.

50º Tendo presente que quaisquer perícias não vinculam o julgador mas devem ser por este apreciadas em seu alto critério e tomando em conta a situação concreta e todos os elementos constantes do processo, que, entre os dois valores de incapacidade que tem por base a tabela nacional de incapacidades que estava em vigor à data do acidente e se manteve em vigor nos cinco anos seguintes e nos quatro posteriores à entrada da acção, incapacidade essa que consta do relatório que foi junto com a petição inicial (documento 8 – fls. 37 a 45) e consta também do relatório da insuspeita Junta Médica de Saúde Pública da Sub-Região de Saúde de Coimbra, que foi junto com o requerimento instrutório de fl. 491, e o incompreensível e injustificável valor atribuído por uma perícia feita nove anos mais tarde e com base em diferente legislação, deverão aceitar o valor justo, periciado e relatado em tempo normal, ou, em última análise, apreciar os três valores (40%, 45% e 6 pontos percentuais), decidindo, em douto, justo e criteriosamente prudente arbítrio, em outro valor que melhor se enquadre, com verdadeira justiça, às lesões sofridas pela autora, ao tempo em que as mesmas aconteceram, e ao tempo em que o processo, com justiça deveria ter sido tramitado.

51º Daí que se considere inaceitável, porque injusto, o valor dos mencionados 6 pontos percentuais, considerando antes o de 45% ou de 40% de IPP, acima referidos.

52º Como acima está dito estão preenchidos todos os requisitos de onde emerge a responsabilidade civil extracontratual dos réus.

53º Provou-se que a água que originou o gelo e que deu causa ao acidente, provinha do colector/caixa de visita, isso mesmo resulta de prova documental e de prova testemunhal. Tal fenómeno do enchimento do colector e do transbordo da caixa de visita ocorria, como resulta da prova produzida, frequentemente nesse inverno.

54º O gelo que se formou na estrada e que deu causa ao presente acidente de viação resultou de água que naquele dia transbordava do colector/caixa de visita, a ré Águas de Coimbra, S.A., enquanto entidade que tinha a administração da rede de esgotos e de águas domésticas do Município de Coimbra e, portanto, detinha o dever de vigilância para que a mesma não causasse ilicitamente danos a terceiros é a primeira responsável, seja por acção, seja por omissão de deveres que lhe competiam e não cumpriu.

55º Mostra-se da prova produzida que as Águas de Coimbra, S.A., anteriormente SMASC, mesmo antes da ocorrência do acidente, já tinham conhecimento da existência de água a sair dos colectores e a correr pela estrada, que, saliente-se, encontrava-se em obras a cargo desta entidade (dona da obra), e mesmo assim não tomou os cuidados necessários a pôr termo à situação, quer reparando o colector, se fosse o caso, quer sinalizando a via em causa, avisando que naquele local, se formava um lençol de água, e ocorria, ou podia ocorrer, a formação de gelo.

56º E isto bem o sabia a ré Águas de Coimbra, S.A., como claramente se vê da prova produzida em julgamento.

57º Resultou também da discussão do julgamento que no local em concreto não existia qualquer tipo de sinalização, nem de obras nem de água no piso, nem mesmo de perigo de formação de gelo.

58º Ali não existindo em suma, sinalização adequada aos perigos para a circulação rodoviária emergentes do transbordo de água pela ou junto da tampa da caixa de visita/saneamento e da consequente formação de gelo na estrada.

59º Sendo que a primeira ré, tendo perfeito conhecimento da situação, não tomou cuidados, como devia, no sentido de não causar ilicitamente danos a terceiros, não procedeu à sinalização da via, pelo que é inquestionável a sua responsabilidade, tendo presente que era ela que tinha a administração da rede de esgotos e de águas domésticas do Município de Coimbra. E era a dona da obra.

60º O artigo 5º nº.2 do Código da Estrada “os obstáculos eventuais devem ser sinalizados por aquele que lhes der causa, por forma bem visível e a uma distância que permita aos demais utentes da via tomar as precauções necessárias para evitar acidentes.”

61º Tendo em conta que a água que levou à formação de gelo resultava da caixa de visita, que transbordava, a sinalização da mesma cabia à Ré Águas de Coimbra, S.A., pois era dona da obra que se verificava nesse local e nessa concreta caixa, incorrendo assim em responsabilidade civil nos termos do artigo 493º nº1 do Código Civil.

62º Não há pois dúvidas de que a água que veio a transformar-se em gelo provinha da caixa de visita, sendo claro o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

63º A ilicitude juridicamente relevante é, por força do disposto no artigo 6° do Decreto-Lei 48 051 de 22 de Novembro de 1967, a que resulta da violação de normas legais e ou regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como a que decorre da ofensa a regras de ordem técnica e de prudência comum, omissão de deveres, de cuidado e vigilância, pelo que nesta sede rege um conceito de ilicitude mais amplo que o consagrado na lei civil.

64º Nos termos do artigo 4° nº l do referido diploma, a culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487° do Código Civil.

65º Na interpretação deste preceito, é entendimento firme da jurisprudência de que a remissão do citado artigo 4° nº l é feita não apenas para o nº 2 do artigo 487º do Código Civil, onde se consagra o critério legal de apreciação da culpa, mas também para o nº l deste preceito, no qual se estabelece como regra que cabe ao lesado provar a culpa mas se prevê a possibilidade de inversão deste ónus em casos excepcionais, consagrados na lei.

66º Um dos casos em que se presume a culpa do lesante é precisamente o previsto no artigo 493°, nº l do Código Civil, em sede de culpa in vigilando.

67º De facto, tendo a ré Águas de Coimbra, S.A., conhecimento da existência de determinado perigo para os utilizadores da via e omitindo os seus deveres de cuidado, fiscalização e vigilância, como resultou claramente demonstrado em julgamento, a falta de cumprimento do dever de vigilância e sinalização desse perigo, criou assim uma condição sem a qual o resultado (despiste do automóvel conduzido pela apelante) não se produziria, devendo por isso a referida ré ser civilmente responsável pelo incumprimento desta sua obrigação.

68º Por outro lado, ficou claramente demonstrado que água que transbordava da caixa de visita e por conseguinte congelava é a causa do dano, pois se tal água não saísse da caixa não existiria gelo na via, pelo que esta é a condição sem a qual o dano não se teria verificado, bem como a causa adequada do mesmo, até porque ficou demonstrado que a restante parte do pavimento estava seca e o tempo era bom.

69º Tudo o exposto vem de acordo com o artigo 563º do Código Civil, segundo o qual “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

70º Ora tal artigo estipula um dos requisitos da responsabilidade civil, o nexo de causalidade, que aqui se verifica e que, salvo o devido respeito, o tribunal a quo, não conseguiu representar com clareza.

71º Resulta claro do julgamento, a água a sair da caixa de visita e que posteriormente congelava devido às baixas temperaturas é a condição segundo a qual o dano não se teria verificado. De facto se tal água não transbordasse daquela caixa, a mesma não teria congelado e o acidente não teria acontecido.

72º É pois, clara a relação imediata causa-efeito, e assim o nexo causal: o despiste do automóvel da apelante (dano) foi causado pelo gelo resultante de água que transbordava da caixa de visita a cargo do SMASC, antecessora das Águas de Coimbra, S.A. (causa).

73º E a omissão de sinalização, por parte da Águas de Coimbra, S.A., dona da obra e conhecedora dos perigos, constitui facto ilícito, a acrescer ao transbordo da água da caixa de visita/saneamento.

74º Sobre a Ré Águas de Coimbra, S.A., pende um dever de vigilância sobre as obras que realiza. Violado que foi esse dever, pois teve conhecimento da situação mesmo antes do acidente e nada fez, esta responde pelos danos causados em consequência de acidente de viação, salvo se provasse que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua (artigo 493º, nº 1, do C. Civil).

75º Prova que não fez, como sobre si impendia.

76º Tendo em conta toda a prova produzida, pode afirmar-se com probabilidade próxima da certeza que se água não transbordasse da caixa de visita/saneamento o acidente aqui em causa não teria ocorrido, pelo que, em termos de causalidade adequada, o comportamento da Águas de Coimbra como dona da obra e a omissão do seu dever de fiscalização, vigilância e sinalização, a torna responsável pelo acidente ocorrido.

77º Demonstrado o nexo de causalidade entre a acção e a inacção (omissão de comportamento devido), estão preenchidos os requisitos necessários à aplicação, entre mais, do artigo 493º, nº 1, do Código Civil, até mesmo no que respeita à presunção de culpa.

78º. De facto, o artigo 493º, nº 1, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa que é aplicável à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos fundada em acto ilícito, cabendo assim ao réu ilidir a mesma, o que não aconteceu.

79. Verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar como claramente dispõe o nº1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 48051, cumulativamente a existência de um nexo de causalidade adequada entre o dano e a conduta do ente público, a ilicitude da conduta causal e a culpa do sujeito da conduta, deve a ré Águas de Coimbra, S.A. ser responsabilizada, com os demais, pelos danos sofridos pela apelante em resultado do acidente de viação aqui em causa.

80º Por outro lado, demonstrada que está a responsabilidade dos SMASC, antecessor da Águas de Coimbra, S. A., e tendo em conta que aquela era na altura, um órgão dos Serviços da Câmara Municipal de Coimbra, esta não pode eximir-se das obrigações existentes na sua esfera jurídica ao tempo do acidente.

81º E tendo em conta que o SMASC era um órgão dos Serviços da Câmara Municipal de Coimbra o Município de Coimbra é também responsável, pois as suas obrigações eram as mesmas que as dos SMASC, pelo que deve esta também ser condenada solidariamente com as Águas de Coimbra, S.A. sua sucessora.

82º Por fim, quanto à Ré Estradas de Portugal, S.A., interveniente principal passiva nos termos do artigo 325º do Código de Processo Civil, por ser dona da obra que ao mesmo tempo decorriam na mesma estrada e local, deve também ser responsabilizada.

83º A intervenção principal provocada requerida pela Apelante deveu- -se ao facto da Ré Águas de Coimbra, S.A. e Município de Coimbra terem alegado que na mesma estrada e local ocorriam obras a cargo das Estradas de Portugal, S.A..

84º Quer a Águas de Coimbra, S.A, quer Estradas de Portugal S.A, contribuíram para a água que saía da caixa e, consequência das temperaturas baixas que se verificavam naquele inverno e no dia do acidente, levou ao seu congelamento e consequente despiste da Apelante.

85º E consubstancia facto notório que se a estrada aqui em causa não for municipal, a verdade é que a mesma pertence à área do Município de Coimbra; e se o seu domínio couber às Estradas de Portugal, S.A., como esta quer reconhecer, então também esta incorre em responsabilidade civil, para além daquela que resulta de ser também dona da obra que, juntamente com as Águas de Coimbra, S.A., estava na altura a ser realizada naquela via do município de Coimbra, e que levaram ao transbordo de água da mencionada caixa de visita/saneamento, ao seu congelamento no pavimento da via de circulação e ao consequente deslizamento e despiste do veiculo conduzido pela autora/apelante.

86º. Se pertencer também ao domínio das Estradas Nacionais, embora dentro da área municipal de Coimbra, impende também sobre as Estradas de Portugal, S.A., conjunta ou solidariamente, a obrigação de “relativamente às infra-estruturas rodoviárias nacionais não concessionadas, zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação”, nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei nº. 227/2002, de 30 de Outubro, diploma esse em vigor na altura do acidente.

87º As Estradas de Portugal, S.A., não fizeram qualquer prova de terem cumprido ou procurado cumprir as suas obrigações e atribuições, no sentido do concreto interesse público normativamente posto a seu cargo, concretizado em actuar de modo a manter aquela via em estado de conservação adequado à circulação automóvel.

88º De facto, esta entidade que também tinha conhecimento dos perigos e situação concreta que ali se verificavam, também não tomou qualquer medida no sentido de diminuir o risco de onde resultou o acidente destes autos.

89º E Águas de Coimbra, S.A. e Estradas de Portugal, S.A, responsáveis pela formação do gelo que ali ocorria, e assim por isso pelo acidente sofrido pela Apelante no dia 15 de Janeiro de 2003.

90º Devem pois, Águas de Coimbra, S.A, Município de Coimbra e Estradas de Portugal, S.A., serem tidas como solidariamente responsáveis e solidariamente condenadas no pedido formulado nestes autos pela autora.

91º E também as respectivas seguradoras, chamadas a estes autos, deveram ser condenadas, se bem for entendido que os respectivos contratos de seguro lhes transmitem a responsabilidade que cabe às suas seguradas.

92º. Assim a douta sentença de que se recorre decidiu em infracção, aplicou ou inaplicou incorrectamente o artigo 6º nº1 alínea c) do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro, dada a sua inconstitucionalidade na interpretação segundo a qual a tabela resultante deste Decreto-Lei aplica-se às perícias posteriores à sua entrada em vigor, perícias essas, de lesões anterior ao Decreto-Lei nº 352/2007, por violação do artigo 2º, 13º, 18º nº.3 e 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, o Decreto-Lei nº 341/93, de 30 de Setembro bem como as normas dos artigos 2º nº 1, 4º nº1 e 6º do Decreto-Lei nº 48 051, de 22 de Novembro de 1967, o artigo 483º, nº 1, 487º, 493 e 563º do Código Civil, o artigo 5º nº 1 do Código da Estrada, o artigo 96º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, o artigo 325º, nº1, do Código de Processo Civil e o artigo 6º do Decreto-Lei nº 227/2002, de 30 de Outubro.
*

II – Matéria de facto.

Invoca a recorrente erro na apreciação da prova que conduziu a erro na resposta dada à base instrutória.

Conforme já sustentado em acórdão com o mesmo relator no processo nº 00802/07.7BEVIS, de 13/09/2013, deste Tribunal Central Administrativo Norte e que ora damos por reproduzido:

“Determina o artigo 712º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu nº 1, aplicável por força do disposto no artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que:

«A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

(…)»

Na interpretação deste preceito tem sido pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida (neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10.05, processo nº 394/05, de 19.11.2008, processo nº 601/07, de 02.06.2010, processo nº 0161/10 e de 21.09.2010, processo nº 01010/09; e acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.05.2010, processo nº 00205/07.3BEPNF, e de 14.09.2012, processo nº 00849/05.8BEVIS).

Isto porque o Tribunal de recurso está privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância: a gravação da prova, por sua natureza, não fornece todos os elementos que foram directamente percepcionados por quem julgou em primeira instância e que ajuda na formação da convicção sobre a credibilidade do testemunho.

Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 657:

«Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar».

Por outro lado o respeito pela livre apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância impõe um especial cuidado no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável.”

Como consta do ponto 1 do sumário constante do referido acórdão:

“1- Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.”

Em sentido idêntico se pronunciam os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte:

- proc. nº 00168/07.5BEPNF, de 24/02/2012:

“1- O tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.”

- E proc. nº 00906/05.0BEPRT, de 07/03/2013:

“2. O tribunal de recurso apenas e só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão.”

No caso concreto vejamos o julgamento da matéria de facto agora posto em causa pela recorrente.

1º. Pede-se no recurso que se dê como provada a parte final do quesito 1º da base instrutória, onde se perguntava “não existia ali qualquer sinalização estradal destinada a veículos ou pessoas”, alegando-se que ficou completamente demonstrada a inexistência de sinalização, na data do acidente.

Discorda-se desta conclusão, já que a prova não foi inequívoca, segura, quanto a haver ou não sinalização no local.

Como bem se refere na sentença recorrida – pág. 12 – “O mais que se logrou obter das testemunhas (da Autora) foi que não se lembravam de haver sinalização naquele segmento da estrada, o que não é a mesma coisa que afirmar que a não havia”.

Não pode pretender-se pôr na boca das testemunhas o que estas não disseram com certeza.

A testemunha FFA não declarou perentoriamente que no dia do acidente não houvesse sinalização, antes disse “Que eu me recorde não havia ali sinalização de aviso de obras” e a seguir “Não me lembro de haver lá sinalização de obras. Já não tenho a certeza. Não posso afirmar com certeza”.

Quanto ao Agente da GNR VMSG, ele só chega à conclusão de que não havia sinalização de obras no local pelo facto de tal não estar mencionado no auto e não porque se lembre que efetivamente tenha memória de que não havia sinalização. O mesmo refere: “sinalização, não está referida sinalização no auto; se não está no auto não havia no local”. Destas expressões da testemunha infere-se que ela não se recorda de nada que não esteja no auto. Não é pelo que não está descrito no auto que se pode fundamentar a ocorrência ou não ocorrência de um facto.

Quanto ao facto das fotografias de fls. 27 a 29, que reproduzem o local dos factos não ostentarem nenhum sinal de obras, também não pode concluir-se que tal sinal ali não estava colocado, desde logo porque se desconhece quando foram tiradas tais fotografias e depois porque as zonas fotografadas podem não incluir tal sinal, mas ele existir lá antes ou depois ou em local diferente dos fotografados, por isso não é a partir delas que se pode concluir pela inexistência de sinal de obras no local do acidente.

Também não é pelo facto de nenhuma das outras testemunhas ter afirmado ou demonstrado o contrário que se pode dar como provado um facto, se não houver prova segura da sua ocorrência.

Confirma-se, por isso, a resposta de não provado dada pela sentença recorrida à segunda parte do quesito 1º

2º. Discorda-se que deva transitar da matéria não provada para a provada que na ocasião do sinistro ocorria ou acabava de ocorrer, em concreto, o fenómeno descrito em 5 dos factos provados, ou seja que “naquele Inverno, por ignoto motivo, frequentemente águas pluviais ou de superfície entravam no colector de saneamento das águas domésticas que estava a ser intervencionado naquele local e, não tendo por onde sair, pois o colector ainda não estava ligado à rede, transbordavam da caixa de visita ali existente, que é a fotografada no documento nº.1 da PI, saindo e escorregando para a faixa de rodagem, congelando, inclusivamente, sobre a faixa de rodagem, quando a temperatura o permitia”.

Com efeito, não se verifica qualquer contradição entre as comunicações constantes dos pontos 28 e 29 correspondentes aos quesitos 101 e 102 da base instrutória, nomeadamente a comunicação entre a Estradas de Portugal e o seu empreiteiro “R... Construções S.A.” de 13 de Janeiro de 2003 onde consta que “Estão a chegar a esta DE reclamações de utentes, motivadas por situações de águas que atravessam a estrada em zonas ainda não pavimentadas designadamente em Valongo junto à rua da Nº. Sª. da Conceição, que devido às baixas temperaturas que se têm verificado, provocam gelo no pavimento e consequentemente despistes de veículos.

Assim no sentido de evitar estes perigos, e garantir as necessárias condições de segurança na circulação, solicita-se que, com urgência, procedam ao encaminhamento das águas superficiais que, especialmente nesses troços que ainda não têm a última camada, tenham tendência de atravessar o pavimento, reforçando a sinalização se for necessário”.

E a resposta a tal comunicação do empreiteiro “R... Construtores S.A.” que informa que “Ao Km 13 600 a obra executada por conta dos SMASC deixou “abandonada” no meio da faixa de rodagem uma caixa de visita que permanentemente despeja água para o pavimento. (...)”

Estas comunicações não asseguram que estamos em presença do mesmo local onde ocorreu o acidente, já que as partes admitiram e foi logo dado provado na matéria de facto assente que o piso onde se deu o despiste era em asfalto betuminoso, de bom piso e sem irregularidades, quando nas comunicações se fala em zonas não pavimentadas. Tudo leva a crer que não se trata do mesmo local ou então que já se tinha procedido à pavimentação depois das ocorrências comunicadas nos termos supra descritos. Por outro lado, o facto de ter sido denunciada essa situação em princípios de Janeiro, tal não significa que a mesma perdurasse até 15 de Janeiro de 2003.

Por isso, dessas comunicações não resulta que tivesse sido a situação descrita nas mesmas que motivou o despiste em 15/01/2003, sendo que a fundamentação apresentada para se dar o aludido facto como não provado é suficientemente convincente da bondade das razões que justificam que o Tribunal não tivesse conseguido formar de modo seguro a sua convicção sobre a ocorrência de tal facto.

Assim, não se produziram provas nestes autos que permitam concluir que o gelo existente na estrada e que motivou o despiste provinha de água que transbordava da caixa de visita ali existente.

Como não se pode concluir, e, por isso, foi dado como não provado, que “as obras referidas em 4 dos factos provados obstruíram temporariamente o curso de águas do regueiro referido nos factos assentes impedindo ou dificultando o normal curso das mesmas, que assim invadiram o colector da rede de saneamento”.

Também não corresponde à realidade que o tribunal a quo tivesse considerado que o gelo se formava a partir de águas afluídas à faixa de rodagem e que tinha “uma de duas proveniências: a caixa de visita, que frequentemente derramava, ou em alternativa, os terrenos limítrofes, nomeadamente a ribeira referida na matéria de facto assente, que saliente-se, se encontrava semi-encanada em manilhas.”

Tudo quanto o tribunal deu como provado foi que “No mesmo local da faixa de rodagem formava-se e forma-se gelo, por vezes”, não indicando a causa dessa formação.

Por outro lado, o Tribunal a quo não deu como provado que a ribeira não se encontrava obstruída e por isso não ocupava com a sua água a estrada, nem que existia na estrada água, apenas deu como provado o que consta das comunicações presentes nos pontos 28 e 29 da sentença recorrida, que não permite extrapolar como a recorrente o faz para conclusões que não podem extrair-se dos factos dados como provados.

Quanto ao depoimento da testemunha Francisco José Romeiro de Albuquerque, pelo mesmo foi dito: “Esse gelo provinha de uma água que não era normal estar lá no local. Nos últimos dias juntava-se ali muita água, que não era normal. Nesse dia não estava a chover, mas estava muito frio. Não era normal, mas já não era a primeira vez que se formava ali gelo. Não era geada. Era água a correr (…) Já tinha acontecido mais vezes a água sair da caixa de saneamento (…), a estrada estava seca até àquele local e só ali havia água. Nesta zona era onde se formava mais gelo (…) Foi quando ela começou a fazer a curva, o carro virou e ela tentou endireitar a direção. Eu percebi que era gelo, pois já nos dias anteriores havia gelo. Eu já ia de sobreaviso.” Depois de, por mais de uma vez, falar da caixa de saneamento a dado momento disse: “Vi a água a correr, mas não fui verificar se era da caixa”. Perante um depoimento que não é constante e coerente, não podemos formar qualquer convicção de que o gelo proveio de água que corria da caixa que efetivamente existia nas imediações do local do embate.

Também a testemunha NPPV não revelou isenção e imparcialidade no seu depoimento e considerando ser irmão da autora, este não serviu para formar uma convicção segura, certa dos factos que a recorrente pretende que sejam considerados provados.

3º. Na sentença recorrida dá-se como não provado que a profissão de modista seja a única que a autora sabe exercer e foi única toda a sua vida (alínea j) dos factos não provados), com o fundamento de que não foi produzida prova consistente sobre este aspecto.

Pede a recorrente que tal facto seja dado como provado porque a prova testemunhal assim o demonstra e indica duas testemunhas que referiram o facto, as testemunhas NPPV e DJPF. Tal prova efetivamente não é consistente, porque a primeira testemunha é irmão da autora e a segunda, é cunhado da autora, pelo que os seus depoimentos não se consideraram isentos e imparciais, de forma a que o Tribunal formasse uma convicção segura da verificação de tais factos.

4. Naquela sentença também se dá como não provado que, durante os três meses de convalescença, a Autora pagou a uma testemunha a remuneração de 1.200€ mensais (alínea l) dos factos dados como não provados), porque tal facto não foi confirmado pela testemunha.

Pede a recorrente que tal facto seja dado como provado com o fundamento de que está titulado pelo documento particular de fls. 492, jamais impugnado, e antes até confessado pela própria testemunha, que subscreveu esse documento, ARMC.

Subscreve-se a leitura da prova sufragada na sentença recorrida, uma vez que a testemunha não confirma o teor do documento de fls 492, declarando apenas que ajudava a autora nos trabalhos de costura, esta pagava-lhe bem, porque também era tida por “careira”, esteve aproximadamente três meses com gesso e colete e nesse período dava-lhe banho e amparava-a, e foi lá a casa, e por uma vez, fazer limpezas e isso não é conforme ao teor do aludido documento. Como o documento particular só faz prova plena dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante e neste caso não são contrários, antes são favoráveis, se tais factos não forem confirmados por prova testemunhal credível, não podem dar-se como provados, tendo sido isso o que aconteceu no caso concreto.

5º. Quanto aos seis pontos de défice funcional permanente da integridade física e psíquica atribuídos à autora, o relatório do INML foi vital na decisão tomada na medida em que se trata de perícia médico-legal sujeita a contraditório e as conclusões foram confirmadas em audiência pela Drª RLS, que justificou de forma que convenceu o Tribunal as razões porque tal défice era de 6 pontos.

A nova tabela de avaliação do dano civil inspira-se nas tabelas do chamado “Concours Medical” e não na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo DL nº 341/93 de 30/09 (ver Francisco Manuel Lucas, Avaliação das Sequelas em Direito Civil, Coimbra, 2005, págs. 40-50).

Já desde data anterior à data do acidente em apreciação nos autos, e consequentemente, das lesões sofridas pela autora e cuja avaliação se contesta, a avaliação do dano civil se fazia pelo referido “Concours Medical”, nos nossos Institutos de Medicina Legal, como tal a questão da inconstitucionalidade do art. 6º nº 1 alª c) do DL nº 352/2007, de 23 de Outubro não se coloca, já que os critérios são os mesmos antes e depois da verificação das lesões, em matéria de avaliação do dano civil.

Não pode, pois, concluir-se, como o fez a recorrente, que “é inconstitucional, apreciar uma lesão produzida e consolidada na vigência de determinada tabela à luz de uma outra, nova e surpreendente, que entra em vigor quase quatro anos após a entrada da acção em juízo e a formulação do respectivo pedido, tão-só em consequência das delongas e morosidade processual e das delongas e morosidade do ritmo de trabalho do próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, e mais de cinco anos depois da produção daquela mesma lesão.”

No caso em apreciação, a perícia médico-legal conduziria ao mesmo resultado, se efetuada em 2004 ou em 2010, uma vez que os critérios do “Concours Medical”, usados desde data anterior a 2003 pelos Institutos de Medicina Legal inspiraram o anexo ao Decreto-Lei nº 352/2007, de 23/10, respeitante à avaliação do dano civil.

Deverão assim, dar-se como provados os seguintes factos:

1) Factos assentes:

A. Pouco antes das 8 horas do dia 15 de Janeiro de 2003, ocorreu na Estrada Nacional n.º 110-2, no lugar de Valongo, freguesia de Antanhol, concelho de Coimbra, envolvendo a ora autora quando conduzia o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros marca H.., modelo C…, matrícula **-**-DR.

B. Nesse local e naquela data, a Estrada Nacional n.º 110-2 era uma via com dois sentidos de trânsito, desenvolvia-se, atento o sentido Valongo – Casais do Campo, em linha recta, descrevendo depois uma curva para a direita e continuando depois novamente em recta no sentido Casais do Campo.

C. O pavimento era em asfalto betuminoso, de bom piso e sem irregularidades.

D. Nos terrenos contíguos à estrada e do lado direito dela, atento o sentido Valongo Casais do Campo, corre um pequeno regueiro natural e pluvial, até perto do início da curva acima referida.

E. Nesse ponto, as águas desse regueiro estavam semi-encanadas em manilhas, pelas quais atravessavam subterraneamente a estrada e eram encaminhadas para o ribeiro que corre do outro lado da mesma estrada.

F. Também perto da mencionada curva, mas antes dela, atento o sobredito sentido, estava colocada uma das caixas de visita da rede de esgotos de efluentes domésticos.

G. Em 15 de Janeiro de 2003, a autora contava com 47 anos de idade.

2) Factos resultantes da discussão da causa:

1. No local e data referidos na alínea A, a Estrada Nacional 110-2 era uma via sem marcações no pavimento.

2. O pavimento encontrava-se seco, com excepção de um local a montante do sítio do embate, entre trinta e quarenta metros, atento o sentido Valongo Casais do Campo.

3. O tempo estava bom, sem chuva.

4. No troço da Estrada Nacional 110-2 onde ocorreu o despiste e a colisão do veículo DR, vinham a ser realizadas, por iniciativa dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Coimbra, obras de remodelação da rede de abastecimento de água e da rede de esgotos domésticos e pluviais, situadas na Estrada.

5. Naquele Inverno, por ignoto motivo, frequentemente as águas pluviais ou de superfície entravam no colector de saneamento das águas domésticas que estava a ser intervencionado naquele local e, não tendo por onde sair, pois o colector ainda não estava ligado á rede, transbordavam da caixa de visita ali existente, que é fotografada no documento n.º1, da petição inicial, saindo e escorrendo para a faixa de rodagem, congelando, inclusivamente, sobre a faixa de rodagem, quando a temperatura o permitia.

6. À faixa de rodagem, no local onde a autora se despistou, por vezes no Inverno, afluíam e afluem águas de superfície de terrenos limítrofes.

7. No mesmo local da faixa de rodagem, formava-se e forma-se, por vezes, gelo.

8. Nos sobreditos dia e hora a autora conduzia um seu acima identificado veículo automóvel pela Estrada Nacional n.º 110-2 na localidade de Valongo, da freguesia de Antanhol, do concelho de Coimbra, no sentido Valongo – Casais do Campo.

9. Ao entrar na curva acima mencionada a viatura começou a deslizar sobre uma camada de gelo existente, pelo que a autora perdeu o controlo daquela viatura que, evoluindo por inércia, galgou o passeio pedonal do lado esquerdo da via e foi embater violenta e “fragorosamente” no pilar terminal de um muro de uma casa de habitação com o n.º 151 de polícia, á esquerda do seu sentido de circulação”.

10. Com o embate a autora sofreu as lesões corporais descritas nos relatórios de perícia médica de fs. 717 a 722 (papel), esclarecido a fs. 791 e seguintes (papel).

11. As sobreditas lesões corporais causaram dores cujo quantum é fixável em grau 5 numa escala de 7; consolidaram em 12/5/2003, com um dano estético fixável em 2 numa escala até 7; e determinaram 75 dias de défice funcional total, 72 dias de défice funcional parcial, 147 dias de repercussão total na capacidade de exercício de actividade profissional, tendo consolidado em 12/5/2003 com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos, défice compatível com o exercício da actividade profissional habitual, embora com necessidade de esforços suplementares, tudo consoante a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, constante do anexo II ao DL nº 352/2007 de 23 de Outubro.

12. Às mesmas lesões consolidadas correspondia, na Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo DL nº 341/93 de 30/9, uma Incapacidade Permanente para o Trabalho em geral, de 35 a 40%.

13. À data do acidente, a autora exercia, em exclusividade, a profissão de costureira-modista, actividade que exercia todos os dias, de segunda-feira a sábado, inclusive.

14. Nessa actividade ganhara em 2002 um total de pelo menos 9.155,93 €.

15. Segundo o Instituto Nacional de Estatística a esperança média de vida das mulheres em Portugal vai além dos 70 anos.

16. Em transportes e deslocações para tratamentos médicos a autora gastou pelo menos 2.894,35 €.

17. Em consultas médicas, medicamentos e taxas moderadoras gastou, pelo menos, a quantia de 501,80 €.

18. Durante os primeiros três meses de incapacidade total, a autora teve de contratar uma amiga, a testemunha ARMC, a fim de a ajudar na realização dos actos mais básicos do seu dia-a-dia pessoal e doméstico, remunerando-a com ignota quantia.

19. A reparação do "H.. C… Coupé LSI” da autora foi orçada num concessionário da marca em 11.309,31 €.

20. Antes do acidente, a autora tinha intenção de trocar aquele seu automóvel por um outro novo.

21. O automóvel da autora ficou parcialmente destruído e insusceptível de circular.

22. A respectiva concessionária tinha avaliado o automóvel da autora em 8.230,17 €, valor que lhe garantiu oferecer pelo veículo

23. Em virtude do acidente o concessionário não manteve a oferta.

24. A autora ficou temporariamente privada do uso do seu automóvel, que usava diariamente.

25. Durante o despiste e a colisão a autora sentiu pânico.

26. Naqueles data e troço da Estrada Nacional 110-2 também estava em curso a execução de uma obra promovida pelo Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária, antecessor legal da ré Estradas de Portugal, S.A., cujo objecto era a beneficiação da Estrada Nacional com passeios lancis e valetas.

27. A certa fase do desenvolvimento dos trabalhos de ambas as empreitadas, por acordo entre ambos os donos das obras e respectivos empreiteiros, para que os trabalhos de uma e de outra empreitada não conflituassem, a obras dos Serviços Municipais de Águas e Saneamento de Coimbra, a cargo de Aquino Rodrigues S.A., começaram a desenvolver-se desde da fábrica de CAIACA para Antanhol, e as do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária, a cargo do empreiteiro “R... Construtores S.A.”, desenvolveram-se no sentido inverso, ou seja, de Casais do Campo, para Antanhol.

28. Em 13 de Janeiro a Estradas de Portugal enviou ao seu empreiteiro “R... Construtores S.A.” a missiva cuja cópia é documento 3 da sua contestação, cujo teor aqui se dá como reproduzido, destacando o seguinte:

“Estão a chegar a esta DE reclamações de utentes, motivadas por situações de águas que atravessam a estrada em zonas ainda não pavimentadas designadamente em Valongo junto à rua de Nª Sª. Da Conceição, que devido às baixas temperaturas que se têm verificado, provocam gelo no pavimento e consequentemente despistes de veículos.

Assim, no sentido de evitar estes perigos, e garantir as necessárias condições de segurança na circulação, solicita-se que com urgência, procedam ao encaminhamento das águas superficiais que, especialmente nesses troços que ainda não têm a última camada, tenham tendência de atravessar o pavimento, reforçando a sinalização se for necessário”.

29. O empreiteiro “R... Construtores” remeteu em 16/1/2003, às 13.16 h, para o Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária e antecessor da Estradas de Portugal, SA, o fax que é documento 2 da contestação desta demandada, cujo teor aqui se dá por reproduzido, destacando o seguinte:

“Na sequência do vosso Fax 134 v ref. EP.04.17 de 13 de Janeiro 2003 cumpre-nos esclarecer e informar a Direcção de Estradas de Coimbra das seguintes situações que consideramos importantes e que não são da nossa responsabilidade

1 - Ao Km 13.600 a obra executada por conta dos SMASC deixou "abandonada" no meio da faixa de rodagem uma caixa de visita que permanentemente despeja água para o pavimento.
(…)”.

30. Em 16/01/2003, pelas 17:14h, os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamentos de Coimbra remeteram para o Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária o fax junto pela Estradas de Portugal sob documento n° 1, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

“Exma Sra. Engenheira

No seguimento da reunião tida no local da obra em epígrafe, no dia 15/0112003, vimos por este meio informar que foi cumprido o definido no nosso ofício nº 10198 de 08/11/2002, estando toda a EN 110-2 liberta para o vosso adjudicatário proceder à execução dos trabalhos de beneficiação viária desde o início de Dezembro de 2002.

No entanto decorrem e decorrerão, ate ao final do prazo da obra (Maio de 2003), nesta zona (de Albergaria até Antanhol) e na zona já intervencionada pelo vosso adjudicatário (do Moinho do Calhau ate Albergaria) pequenos trabalhos de acabamentos de algumas caixas de visita, sumidouros, caixas de ramal e roços de paredes e, só na primeira zona, trabalhos de reposição de valas deterioradas pelas chuvadas e de reposição de sinalização do trânsito.”

31. Em resposta, a EP - Estradas de Portugal remeteu aos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento de Coimbra a missiva datada de 23 de Janeiro de 2003, junta pela Estradas de Portugal sob documento n° 4, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

32. À data do acidente, o Município de Coimbra tinha transferido para a F... Seguros, a responsabilidade Civil Autarquias, nos termos e da apólice 656.995, com o capital máximo e por sinistro por ano de 100.000.000$00.

33. Por outro lado, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Coimbra tinham igualmente transferida - à data do acidente - a responsabilidade civil por obras realizadas no âmbito do seu objecto - abastecimento de águas e saneamento do concelho de Coimbra - para a Oceânica - Companhia de Seguros, actualmente incorporada na Companhia de Seguros A..., pela apólice 50/006854, até ao montante de 25.000.000$00.

34. Resultou ainda da instrução e da discussão da causa que em 27 de Dezembro os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Coimbra fizeram chegar ao então Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária, hoje Estradas de Portugal, S.A., a carta cuja cópia de fls. 1205 a 1208 dos autos aqui se dá por reproduzida, transcrevendo o seguinte segmento:

“Além destas situações localizadas nas plantas tem-se verificado, conforme fotografias em anexo, a abertura por parte do empreiteiro adjudicatário da vossa empreitada, de tampas de caixas de visita de saneamento para permitir o escoamento de águas pluviais, que estão a provocar o depósito de pó de pedra, tout-venant e de entulho nos nossos colectores. Estas situações irão provocar o entupimento desses colectores e o inerente mau funcionamento, se não forem atempadamente tomadas medidas para a limpeza desses colectores, antes da sua entrada em funcionamento.”
*

III - Enquadramento jurídico.

A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, rege-se pelo disposto no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, porque os factos datam de 15/01/2003.

Determina o seu art.º 2º, nº1, que “O Estado e demais pessoas colectivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

São assim pressupostos deste tipo de responsabilidade civil: a) o facto, comportamento activo ou omissivo voluntário; b) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) a culpa, nexo de imputação ético - jurídica do facto ao agente ou juízo de censura pela falta de diligência exigida de um homem médio ou de um funcionário ou agente típico; d) a existência de um dano, ou seja, a lesão de ordem patrimonial ou moral, esta quando relevante; e) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, segundo a teoria da causalidade adequada (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.01.1987, de 12.12.1989 e de 29.01.1991, in Ac. Dout. n.º 311, p. 1384, n.º 363, p. 323 e n.º 359, p. 1231).

Este tipo de responsabilidade corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que tem consagração legal no artigo 483º, nº1, do Código Civil (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 10.10.2000, recurso n.º 40576, de 12.12.2002, recurso n.º 1226/02 e de 06.11.2002, recurso n.º 1311/02).

O conceito de ilicitude consagrado neste preceito é, no entanto, mais amplo que o consagrado na lei civil (vd. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10º ed., vol. II, p. 1125; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.05.1987, in Ac. Dout. 310, p. 1243 e segs.)

No que toca à culpa "Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo" Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, p. 531).

É também jurisprudência firme e reiterada que à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por facto ilícito de gestão pública é aplicável a presunção de culpa prevista no artigo 493.°, n.º1, do Código Civil, decorrente da propriedade de coisas (por todos, ver os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 25.10.2000 (Pleno), recurso n.º 37 510, de 20.03.2002, recurso n° 45 831, e de 03.10.2002, recurso n° 45 621).

Este regime radica nas seguintes razões: 1ª - nas regras da experiência comum, segundo as quais normalmente os danos provocados por coisas procedem de falta de adequada vigilância; 2ª- na necessidade de acautelar o direito de indemnização do lesado contra a extrema dificuldade de provar, neste tipo de casos, os factos negativos que consubstanciam a violação do dever objectivo de cuidado; 3ª na conveniência de estimular o cumprimento dos deveres de vigilância que recaem sobre o detentor da coisa (Antunes Varela, "Das Obrigações Em Geral" volume I, páginas 590-591; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.05.1996, Apêndices ao D.R., de 23.10.1998, p. 3697).

Feitas estas considerações genéricas, vejamos caso concreto.

Da alínea n) dos “factos não provados” consta:

“…quer do documento junto pelas Rés AC e município a fs. 1146, não impugnado, que é um auto de transferência da EN 110-2 para a jurisdição do Município, assinada por representantes de ambas as partes e datado de dia posterior ao do acidente, num troço que o mapa de fs. 1147 permite concluir que integra o local do acidente. Assim, a declaração emitida pela Junta de Freguesia de Antanhol e junta pela Autora a fs. 1148 só pode relevar de erro de facto.”

Numa primeira leitura deste trecho ficou a ideia, implícita no projecto de decisão do relator - que foi dado a conhecer às partes -, de que o acordo de “transferência da EN 110-2 para a jurisdição do Município”“integra o local do acidente”.

Mas, na verdade, a parte inicial desse trecho permite concluir precisamente o contrário; deu-se como não provado:

“Que a estrada em causa, naquele troço ou local, integrava a rede viária do município. Resulta o contrário quer da identificação da via como estrada nacional …”.

Tem, portanto, razão o Município de Coimbra, demandado e ora recorrido, ao defender que falece o pressuposto primeiro do projecto de decisão elaborado pelo relator, o de que a estrada onde ocorreu o acidente era rede viária municipal.

Tratando-se, pelo contrário, de uma estrada integrada na rede viária nacional, a responsabilidade pela manutenção em bom estado de conservação dessa via cabe à empresa Estradas de Portugal, SA. (sucessora do ICCER).

Sucede que no caso a responsabilidade foi imputada pela autora à empresa Estradas de Portugal pelas obras que estavam a ser executadas a cargo do ICCER, a par das obras executadas por conta dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Coimbra (SMASC), actualmente AC, Águas de Coimbra, Empresa Municipal, E.M., inicialmente demandada.

Não foi imputada à empresa Estradas de Portugal pelo dever geral de vigilância que sobre si impendia por se tratar de uma via nacional.

O requerimento de intervenção principal deduzido pela autora, ora recorrente, em relação à empresa Estradas de Portugal na réplica que apresentou, não deixa, nesse ponto, qualquer dúvida.

Aí refere a autora:

“É inexacto o que vem dito nos artigos 26º e 27º da mesma contestação, repetindo-se aqui, sobre tal matéria, o que está alegado nos artigos 29º e seguintes da primeira peça processual. Trata-se, sem dúvida de obras realizadas em local integrante do domínio público municipal de Coimbra.”

Foi nestes precisos termos que a intervenção principal provocada da empresa Estradas de Portugal foi admitida, por despacho transitado em julgado que mandou citar a interveniente.

E nenhum pedido autónomo é formulado contra a empresa Estradas de Portugal, a título subsidiário ou alternativo.

Não se pode, por isso, integrar este pedido na previsão do n.º 2 do artigo 325º do Código de Processo Civil de 1995, ou seja, para a “intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido”.

Em concreto, na dúvida sobre o domínio da estrada, municipal ou nacional, e, portanto, sobre a entidade responsável pela manutenção em geral do bom estado da via, era lícito à autora deduzir pedidos alternativos.

Na verdade dispõe o artigo 468º do Código de Processo Civil de 1995 (aplicável no tempo ao caso), sob a epígrafe “Pedidos alternativos” que (com negrito nosso):

“É permitido fazer pedidos alternativos, com relação a direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa.”

Ora, como se refere na decisão recorrida, quanto à origem do acidente apenas ficou provado que este ocorreu devido à formação de gelo na via.

Mas não ficou provado como se formou esse gelo: se pelas águas que vinham da caixa de visita construída pela (agora) Águas de Coimbra ou pela águas que escorriam dos terrenos adjacentes; ou se das obras levadas a cabo, em simultâneo, pela empresa Estradas de Portugal.

Afastada, por iniciativa da autora, a responsabilidade da empresa Estradas de Portugal pelo dever de vigilância relativamente à via onde ocorreu o acidente e não se provando a ligação causal entre as obras levadas a cabo no local quer pela (agora) empresa Estradas de Portugal quer pela (agora) empresa águas de Coimbra, forçoso é concluir pela improcedência da acção e, logo, do recurso.

Como, decisivamente, se diz na decisão recorrida:

“Certo: a estrada é uma coisa imóvel e resultou da instrução e da discussão da causa que tal coisa integrava o domínio público do então ICERR, mas tal não foi alegado pela Autora como causa de pedir, pelo que não pode ser fundamento da condenação da Ré EP SA.

Como assim, conclui-se que quanto à Ré Estradas de Portugal não foram alegados, nem são provados e atendíveis, factos àquela imputáveis que integrem o processo causal do acidente.

A assim demonstrada falta do pressuposto do nexo de causalidade adequada entre quaisquer factos imputáveis objectivamente a qualquer dos Réus e ou seus antecessores legais, por um lado, e o acidente e consequentes danos, por outro, prejudica a consideração dos demais pressupostos da responsabilidade civil dos mesmos Réus, bem como a identificação e a quantificação dos danos ou da sua indemnização, pelo que a acção tem de improceder.”

A condenação na presente acção da Estradas de Portugal com base no dever de vigilância da via seria ir para além do pedido e da causa de pedir, e, por isso, uma decisão nula – artigo 668º, n.º1, alínea e) do Código de Processo Civil de 1995 (artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

Para a condenação com base nas obras levadas a cabo no local quer pela empresa Águas de Coimbra quer pela empresa Estradas de Portugal, falta um pressuposto essencial, o do nexo de causalidade, entre esse facto (eventualmente ilícito) e o acidente e, logo, entre esse facto e os danos que aqui se pretendem ver ressarcidos.

O que basta, sendo cumulativos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, acima referidos, para determinar a improcedência da acção e, logo, do recurso jurisdicional.


*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


*
Porto, 21.04.2016
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Miguéis Garcia
Ass.: Esperança Mealha