Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01240/07.7BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:12/20/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Irene Isabel Gomes das Neves
Descritores:IVA;
ISENÇÃO DE INCIDÊNCIA;
ARTIGO 3º N.º 4 DO CIVA;
Sumário:
I. Em regra, a transmissão de bens, entendida esta como a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, está sujeita a tributação em sede de IVA (nº 1 do artigo 3º CIVA).

II. O nº 4 do artigo 3º do CIVA exclui determinadas operações do conceito de transmissão de bens e consequentemente da aplicação do imposto "...as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 2º”.

III. Para que uma operação se enquadre no âmbito desta norma de delimitação negativa de incidência do imposto, exige-se a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) cessão a título oneroso ou gratuito; (ii) do estabelecimento comercial ou industrial, ou da totalidade de um património ou de parte dele; (iii) que seja suscetível de constituir um ramo de atividade independente; (iv) desde que o adquirente seja um sujeito passivo do imposto, ou o venha a ser pelo facto da aquisição.

IV. Sendo essencial para que se transmita um património como uma unidade económica, a cessão de um conjunto de bens organizados com estabilidade e autonomia suficientes para a realização de uma actividade de natureza comercial ou industrial.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
1.1. A Recorrente ([SCom01...], S.A.), inconformada com a sentença proferida em 05.09.2014, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, pela qual foi julgada improcedente a impugnação judicial deduzida contra o acto de liquidação adicional de IVA, relativa ao mês de janeiro de 2003, e respetivos juros compensatórios, no valor global de € 430.695,40, vem dela interpor o presente recurso.
A Recorrente encerra as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
«(...)
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou improcedente a impugnação deduzida pela recorrente.
II. A impugnação em causa tem por objecto uma liquidação de Iva e juros compensatórios, feita à impugnante e relativa ao ano de 2003, relativamente à qual a impugnante imputou vício de procedimento (falta de audiência e falta de fundamentação) e ilegalidade.
III. No essencial, verifica-se demonstrado que a impugnante, que era concessionária da [SCom02...] há mais de vinte anos, viu ser-lhe retirada a concessão pela referida [SCom02...], motivo pelo qual celebrou com uma outra empresa – a [SCom03...], futura concessionária da mesma marca de automóveis, que veio efetivamente a ser, e sujeito passivo de Iva – um contrato de cessão de exploração, mediante o qual lhe cedeu a exploração dos estabelecimentos comerciais que detinha, pelo prazo de três anos renovável,
IV. Tendo igualmente, pelo mesmo contrato, vendido ainda todos os bens que constituíam o seu stock, pelo valor de € 1.984.478,31.
V. Estes factos não são postos em causa pela administração fiscal em qualquer altura do processo, pelo contrário – são pela mesma confirmados no relatório dado por reproduzido na sentença proferida (fls. 84 a 86), e ainda pelos contratos juntos aos autos (fls. 37 a 43), pela declaração de início de actividade da adquirente (fls. 58) e pelo sistema Vies (fls. 150), e ainda pela carta enviada pela [SCom02...] à recorrente (fls. 34).
VI. A empresa fez aplicar a esta venda de stock o nº 4 do artº 3º do Código do Iva, tendo excluído do campo de incidência de Iva esta operação.
VII. A administração fiscal não aceitou a aplicação daquela norma de delimitação negativa de incidência do imposto em causa, porquanto considerou que a venda em causa não era susceptível de constituir um ramo de actividade independente.
VIII. Foi a mesma a posição do Mmo. Juiz a quo, com a qual a recorrente não pode concordar.
IX. Dá-se, por integralmente reproduzido o parecer emitido pela Professora Doutora Clotilde Celorico Palma, junto aos autos a fls. 258, que, do ponto de vista da recorrente, pela sua qualidade e extensão, muito ajuda no esclarecimento e ponderação das questões em causa nos presentes autos.
X. Entende a recorrente que a compra e venda de viaturas corresponde à actividade normal de um concessionário automóvel, sendo susceptível por si só de constituir um ramo de actividade independente, pelo que, mostrando-se verificados todos os demais pressupostos previstos no nº 4 do artº 3º do Código do Iva, deveria ter-se anulado, por ilegal, a liquidação impugnada,
XI. Sendo certo que, além do mais, não poderá ser dissociado tal contrato de venda de stocks com o contrato de cessão de estabelecimento junto aos autos.
XII. A recorrente podia ter procedido à liquidação dos stocks ao público em geral num prazo curto, o que, a ser assim, se traduziria numa venda abaixo dos preços normais de mercado, com prejuízo do imposto arrecadado sobre o valor acrescentado (IVA) e com prejuízo económico que se repercutiria também na sua esfera financeira, com consequentes prejuízos também em termos de Imposto sobre o rendimento (IRC).
XIII. Contudo, no entender da sentença recorrida, a recorrente, na sequência dos contratos celebrados, não podia aproveitar a isenção prevista no número 4 do artigo 3º do Código do IVA, uma vez que “os estabelecimentos comerciais não foram transmitidos de forma definitiva, mas tão-só objecto de uma cessão de exploração”.
XIV. E continua: “conclui-se, assim, em face da natureza do negócio de transmissão do estabelecimento em causa (transferência pro tempore) não estar o mesmo abrangido pelo disposto no citado artº 3º nº 4 do CIVA”.
XV. Esquece, contudo, salvo o devido respeito, que o negócio de venda dos stocks (o que verdadeiramente está em causa nos presentes autos) é um negócio definitivo, tendo os stocks ficado transmitidos para todos os efeitos, jurídicos e factuais, para a adquirente.
XVI. Com efeito, a cláusula segunda do contrato celebrado prevê: no nº 1, que a primeira outorgante, além de ceder os estabelecimentos, vende ainda à segunda todos os bens que constituem o seu stock... e, no nº 5, que “o direito de propriedade sobre os bens que constituem o stock transfere-se para a segunda outorgante, por efeito do presente contrato, no momento da celebração deste.
XVII. Assim, não subsiste qualquer dúvida quanto à transferência a título definitivo de todos o stock discriminado no contrato, e que se encontra resumido a fls. 4 da sentença – viaturas novas, viaturas usadas e semi-novas e peças.
XVIII. Consequentemente, está em causa apenas saber se a transmissão de todo o stock (viaturas e peças) constitui uma “unidade de negócios autónoma e independente” para efeitos do previsto no nº 4 do arte 3º do CIVA, sendo negativa a conclusão do Tribunal, com a qual a recorrente não concorda ¬atendendo, além do mais, à concreta actividade que exercia, e que a cessionária passou a exercer – de compra e venda de automóveis, actividade que se esgota, precisamente, na venda do stock transmitido.
XIX. E para este efeito, a circunstância, por um lado, de serem transmitidas todas as mercadorias e, por outro lado, a natureza das mesmas (viaturas – novas, usadas e semi-usadas – e peças) são relevantes a qualificação de universalidade no caso concreto.
XX. Com efeito, quando um sujeito passivo de IVA, cujo objecto social é a comercialização e reparação de viaturas automóveis, transmite todo o stock de viaturas e peças para outro sujeito passivo, verdadeiramente, está a transmitir o negócio.
XXI. Para o adquirente, a aquisição de tão elevado número de viaturas e peças (vd. que a transmissão ascende a cerca de dois milhões de euros), aliada à condição de concessionário de marca, só pode ser entendido como aquisição de um “negócio”.
XXII. Por isso, essa transmissão não pode ser qualificada como venda isolada de bens sujeita às regras gerais do IVA, tanto mais que o alienante acabou, adicionalmente, por facultar instalações aos adquirente por forma a este poder efectivamente desenvolver a actividade de comercialização e reparação de viaturas, actividade esta implícita na aquisição daquele universo de stocks, dada a sua dimensão e natureza.
XXIII. Acresce que o objectivo do previsto no nº 4 do artº 3º do CIVA é o de não sobrecarregar financeiramente o adquirente dum conjunto de bens com os quais vai iniciar ou ampliar um negócio. É manifestamente o caso presente.
XXIV. Tal possibilidade também está contida no artigo 5º da Sexta Directiva da CEE, com a qual o Código do IVA português se conforma, uma vez que “ignorar” a realização da transmissão de bens, como sucede no caso em apreço, não causa problemas à economia do imposto, havendo continuidade no exercício da actividade transferida.
XXV. Sendo certo que o conceito de transmissão para efeitos de Iva é enformado pelo carácter económico das operações, que prevalece sobre o jurídico.
XXVI. Já atrás ficou referido, e repete-se, que a recorrente não poderia retomar a actividade anteriormente exercida, na medida em que perdeu efectivamente a concessão que lhe estava atribuída, a qual se tornou, a partir daquela data, comercialmente inactiva (como se demonstrou pelos documentos juntos aos autos),
XXVII. Tendo ficado impedida de se afirmar no mercado como empresa concessionária da marca [SCom02...], a qual passou a ser exercida, com carácter de habitualidade, pela adquirente das mercadorias, que era e continuou a ser sujeito passivo de Iva, como se demonstrou documentalmente.
XXVIII. Mas, tal como se refere no Parecer junto aos autos, deve ser apurado “casuisticamente se na situação em causa há ou não uma transmissão de um conjunto patrimonial susceptível de constituir “um ramo de actividade independente”, isto é, de funcionar de per si como objecto de um negócio”.
XXIX. E, estando o princípio de neutralidade “subjacente à noção de ramo de actividade, e, portanto, à sua interpretação”, justifica-se “a não tributação nos casos de reestruturações em que se verifique continuidade no investimento anterior.”
XXX. E conforme se refere no Parecer (pág. 50, fls. 307) – no caso dos autos não existiu qualquer alteração substancial na empresa mas uma mera reorganização perante a qual o objectivo de neutralidade do Direito Fiscal deve assumir-se em pleno”.
XXXI. No caso sub judice, existe “um único contrato construído por referência a vários tipos contratuais (...). Assim, à cedência do estabelecimento a que se refere a cláusula segunda e que compreende os bens presentes no anexo 1, “junta-se” uma venda de todos os bens que constituem o stock (os automóveis), além de se transmitir a posição de empregador nos contratos de trabalho. (...) Neste contrato, é fácil perceber que o mesmo visava, desde logo, assegurar a continuidade da exploração do estabelecimento comercial”, finalidade para a qual “poderia, pura e simplesmente, ter-se recorrido ao trespasse, mas as partes entenderam, em termos perfeitamente legítimos”, ceder temporariamente os estabelecimentos, apenas se transmitido definitivamente o stock existente.
XXXII. Não estamos, assim, perante uma mera venda de bens com caráter isolado, mas sim perante um negócio muito mais complexo que visou a continuidade da exploração, com evidentes benefícios para o Estado (decorrentes da não venda apressada de todo o património) e para os trabalhadores, que se mantiveram a trabalhar até à presente data.
XXXIII. Deverá, assim, considerar-se que o negócio em causa, quer em virtude da sua apreciação global acima descrita, quer em face dos concretos bens transmitidos (veículos automóveis e peças, que são suficientes para se configurar uma actividade autónoma de compra e venda de veículos), deverá enquadrar-se no nº 4 do artº 3º do C.I.V.A., pelo que a sentença proferia laborou em erro de mérito, impondo-se a sua revogação.
XXXIV. Por outro lado, e sem prescindir, se, no caso dos autos, a operação tivesse sido tributada em Iva, teria havido lugar à liquidação e dedução do imposto, situação que agora já não pode ser regularizada, atento o tempo decorrido.
XXXV. Pelo que, ao ter-se decidido como se decidiu, pôs-se em causa o princípio fundamental do direito à dedução,
XXXVI. A sentença proferida, ao julgar como julgou, não só não fere de forma vital esse direito à dedução, em virtude do tempo já decorrido e da configuração da operação em causa, como chega a um resultado que implica a violação do princípio da proporcionalidade – de liquidação de um imposto que sempre, em outras circunstâncias, seria dedutível,
XXXVII. Conduzindo à impossibilidade de regularizar a situação tal como ela era configurada pelo legislador fiscal, caso tivesse a parte optado por uma outra via de contabilização, violando o disposto no artº 55º da Lei Geral Tributária e o princípio constitucional da proporcionalidade, bem como o disposto no nº 2 do artº 266º da Lei Fundamental.
XXXVIII. Uma operação que seria totalmente “irrelevante” do ponto de vista do imposto (muito embora não o fosse do ponto de vista da tesouraria do adquirente), por se traduzir numa liquidação seguida de dedução, torna-se agora, em face do tempo decorrido e da sentença proferida, num factor grande impacto financeiro para o cedente, impacto com consequências imprevisíveis na sua actividade.
XXXIX. A decisão proferida conduz, assim, salvo o devido respeito, a uma situação de flagrante injustiça, pondo em causa a neutralidade do Iva e o direito à dedução do imposto de forma definitiva.
XL. A sentença proferida violou, assim, o disposto no nº 4 do artº 3º e no artº 19º do Código do Iva, o princípio fundamental do direito à dedução, o 2º parágrafo do nº 2 do artº 1º da Directiva do Iva, o art.º 55º da Lei Geral Tributária e o nº 2 do artº 266º da Constituição da República Portuguesa, e ainda o princípio constitucional da proporcionalidade e da Justiça, pelo que se impõe a sua revogação, anulando-se a liquidação impugnada.
Termos em que deverá conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida e julgar-se procedente a impugnação deduzida, com a consequente anulação da liquidação em causa, assim se fazendo
JUSTIÇA!»
1.2. A Recorrida (Autoridade Tributária e Aduaneira), notificada da apresentação do presente recurso, não apresentou contra-alegações.
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a fls. 511 do SITAF, no
sentido da incompetência material deste TCAN para conhecer do presente recurso jurisdicional.
1.4. Notificadas as partes para o exercício do contraditório, não se pronunciaram.
1.5. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cf. artigo 657º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
A questão sob recurso e que importa decidir, suscitada e delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, circunscreve-se ao erro de julgamento de direito imputado à sentença recorrida por errónea aplicação da lei, designadamente do disposto no nº4 dos artigos 3ºe 19ºdo CIVA, o princípio fundamental do direito à dedução, 2º parágrafo do nº2 do artigo 1º da Directiva do IVA, o artigo 55º da LGT e o nº2 do artigo 266º da CRP e o princípio constitucional da proporcionalidade e da justiça.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada e não provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
« A) FACTOS PROVADOS:
1 – A Impugnante encontra-se tributada em IRC pelo exercício da actividade de “Comércio de Veículos Automóveis”, com enquadramento em IVA no regime normal com periodicidade trimestral.
2 – A coberto da ordem de serviço nº ...10, de 13.07.2006, a Impugnante foi submetida a uma acção inspectiva, de âmbito parcial de IVA, a qual incidiu sobre o exercício de 2003.
3 – Notificada do projecto de correcções do relatório de inspecção, a Impugnante veio exercer o direito de audição nos termos constantes de fls. 95 a 103, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
4 – Em 21.08.2006, foi elaborado o relatório de inspecção, que se dá aqui por integralmente reproduzido e do qual se destaca o seguinte:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[...]
[crf. fls. 81 e ss. dos autos].
5 – Porque o proposto no Relatório de Inspecção foi sancionado pelo Chefe de Divisão, procedeu-se às consequentes correcções em sede de IVA, as quais originaram as liquidações impugnadas, no montante global de €430.695,40.
6 – A Impugnante não concordando com as liquidações, apresentou reclamação graciosa em 24.11.2006.
7 – Em 16.08.2007, com base na presunção de indeferimento da reclamação graciosa, a Impugnante apresentou a presente impugnação judicial.
Mais se provou que:
8 – Através de carta remetida à Impugnante, datada de 20.09.2002, a [SCom02...], SA, denunciou o contrato de concessão que existia entre as mesmas, com efeitos a partir de 30.09.2003 – cfr. fls. 34 a 37 dos autos.
9 – Em 02.01.2003, a Impugnante e [SCom03...], Unipessoal, Lda. celebraram contrato intitulado “Contrato de Cessão de Exploração”, com o seguinte teor:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...).
[cfr. fls. 88 a 92 dos autos].
10 – Em 03.11.2003, as partes subscreveram o seguinte aditamento ao referido contrato:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[cfr. fls. 93/94 dos autos].

B) MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Com interesse e relevância para a decisão a proferir, inexiste.

C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal alicerçou-se nos documentos juntos aos autos e na posição das partes vertida nos respectivos articulados.»

2.2. De direito
2.2.1. Da (in)competência do TCAN
Importa, porém, antes de mais, apreciar a questão da incompetência deste Tribunal para conhecer o presente recurso, suscitada pelo Ministério Público.
Sustenta a Exma. PGA que o TCAN carece de competência para apreciar o recurso no entendimento de que o mesmo tem por fundamento exclusivamente matéria de direito.
A questão que cumpre apreciar e decidir é a da competência em razão da hierarquia deste Tribunal Central Administrativo para conhecer do presente recurso, sendo que esta questão assume carácter prioritário relativamente a todas as outras, conforme decorre do disposto no artigo 13. ° do CPTA aplicável por força do disposto no artigo 2°, alínea c), do CPPT, porquanto a sua eventual procedência prejudicará o conhecimento de qualquer outra questão.
Resulta do disposto no artigo 26°, alínea b) e do artigo 38°, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e do artigo 280°, n° 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) que ao Tribunal Central Administrativo, Secção de Contencioso Tributário, compete conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1ª instância, excepto quando o recurso tiver por exclusivo fundamento matéria de direito, situação em que a competência será da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Para aferir da competência, em razão da hierarquia, do STA torna-se imperioso ponderar o vertido nas conclusões da alegação do recurso e verificar se, as questões controvertidas se resolvem mediante a exclusiva aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto, seja porque o recorrente discorda das ilações de facto que deles se retiraram, ou porque invoca factos que não foram dados como provados e que, em abstrato, poderiam não ser indiferentes para o julgamento da causa.
In casu, perscrutadas as conclusões de recurso supra transcritas e que delimitam o âmbito e o objeto do presente recurso, resulta que o objecto do recurso consiste em determinar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de direito, sendo que o mesmo decorre de apurar casuisticamente se na situação dos autos há ou não uma transmissão de um conjunto patrimonial susceptível de constituir “um ramo de actividade independente”, isto é, de funcionar de per si como um objecto de um negócio, para efeito de verificação do preenchimento dos pressuposto do n.º 4 do artigo 3º do CIVA. Ora, tal percepção e subsunção dos factos ao direito, exige por parte do Tribunal de recurso emanação de juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de facto) os quais só podem ser apreciados pelos tribunais com poderes no domínio da fixação da matéria de facto.
Destarte, afigura-se-nos resultar manifesto que o presente recurso não versa exclusivamente matéria de direito pelo que é de concluir que é competente, em razão da hierarquia, para dele conhecer, a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte.
Não procede, portanto, a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador Geral Adjunto, pelo que se julga este Tribunal Central Administrativo Norte competente em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso, o que se faz de imediato.

2.2.2. Do erro de julgamento de direito
O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela ora Recorrente contra o acto de liquidação adicional de IVA, janeiro de 2003, e respetivos juros compensatórios.
Cabia ao Tribunal a quo apreciar e decidir, a par dos vícios de violação do direito de audição prévia do RIT e da falta de fundamentação do mesmo, se o negócio celebrado entre a Recorrente e a sociedade [SCom03...], Unipessoal, Lda., na parte respeitante à venda de mercadorias (viaturas e peças), está ou não sujeito a IVA, ou seja, aferir da legalidade da liquidação que afastou a aplicação do nº 4 do artigo 3º do CIVA à transmissão da mercadoria correspondente ao stock da Recorrente.
Apreciando, o Tribunal a quo entendeu que não se verificavam os aludidos vícios de violação do direito de audição prévia da Impugnante/recorrente e de falta de fundamentação do relatório de inspecção, e, no que ora nos importa por constituir o objecto do presente recurso, pugnou pela legalidade da liquidação atenta a natureza do negócio de transmissão do estabelecimento em causa (transferência pro tempore) e de que a venda do stock de mercadorias se traduz numa simples transmissão de bens, não estando enquanto tal abrangida pelo disposto no citado artigo 3º, nº 4 do CIVA, norma de delimitação negativa de incidência do imposto.
Na sentença sob recurso deu-se como assente que a Recorrente era concessionária da [SCom02...] para determinada zona geográfica, com a entrada em vigor do Regulamento CE/1400/02, que proibiu certas categorias de acordos verticais e práticas concertadas no sector automóvel, levou a que, por decisão da [SCom02...], a Recorrente deixasse de ser sua “concessionária autorizada” (vide itens 8. e 9. da matéria de facto provada).
Neste contexto, a Recorrente e a [SCom03...] celebraram o contrato de cessão de exploração transcrito e respectivo aditamento, itens 9. e 10. da matéria de facto dada como provada juntos aos autos, do qual cabe destacar o seguinte: (i) o “stock [SCom02...]” que a Recorrente possuía foi vendido à [SCom03...] pela quantia de € 1.984.478, 31 (cláusula 2ª do contrato); (ii) a posição de entidade patronal, relativamente aos trabalhadores da Recorrente (os trabalhadores que antes, nesta sociedade, tinham como tarefa a comercialização e reparação de veículos e peças [SCom02...]) foi assumida pela [SCom03...] (cláusula 11º do contrato); (iii) a Recorrente cedeu à [SCom03...] a “exploração dos estabelecimentos comerciais” (num total de cinco) em que exercia a sua atividade de concessionária [SCom02...], por um período de 3 anos, renovável, mediante contraprestação, variável em função dos resultados obtidos com a sua exploração (cláusula 1ª do contrato).
Mais, se deu como assente, que na sequência de ação inspetiva realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária, aqueles Serviços concluíram que a Recorrente no que respeita à venda da mercadoria (transmissão de bens) aplicou-lhe indevidamente a delimitação negativa da norma de incidência do IVA, assentando a posição da AT, de que a simples mercadoria de um estabelecimento, dado não ser susceptível por si só de constituir um ramo de actividade independente, nunca poderia estar abrangida pelo normativo do n.º 4 do artigo 3º do CIVA, motivo pelo qual foi feita proposta de tributação em sede de IVA à taxa prevista de no artigo 18º do CIVA, que deu origem à liquidação impugnada.
O Tribunal a quo, conhecendo, conclui que “(...) os elementos que constituem os estabelecimentos comerciais, incluindo a posição que dos contratos de trabalho decorria para a entidade patronal, foram transmitidos, a título temporário, para a sociedade [SCom03...]. / (...), assim, em face da natureza do negócio de transmissão do estabelecimento em causa (transferência pro tempore), não estar o mesmo abrangido pelo disposto no citado artigo 3º, nº 4 do CIVA. / Por outro lado, a venda do stock de mercadorias traduz-se numa simples transmissão de bens, insusceptível de ser qualificada como uma “unidade de negócio autónoma e independente” (...).”.
Epilogando, não assistir razão à Recorrente/impugnante, uma vez que “(...) os elementos que constituem os estabelecimentos comerciais, incluindo a posição que dos contratos de trabalho decorria para a entidade patronal, foram transmitidos, a título temporário, para a sociedade [SCom03...].” e, por outro lado “(...)a venda do stock de mercadorias traduz-se numa simples transmissão de bens, insusceptível de ser qualificada como uma “unidade de negócio autónoma e independente” não estando a mesma abrangida pelo disposto no citado artigo 3º, nº 4 do CIVA.
Do exposto discorre, que a questão que cumpre a este Tribunal ad quem decidir consiste em saber se a venda das mercadorias (stocks) pela Recorrente à [SCom03...] pela quantia de EUR 1.984.478, 31 está abrangida pela regra de não sujeição constante do nº 4 do art.º 3º do CIVA, ao contrário do preconizado pela AT e do decidido na sentença sob recurso.
Sendo de relevar, da tese da Recorrente que “(...) essa transmissão não pode ser qualificada como venda isolada de bens sujeita às regras gerais do IVA, tanto mais que o alienante acabou, adicionalmente, por facultar instalações aos adquirente por forma a este poder efectivamente desenvolver a actividade de comercialização e reparação de viaturas, actividade esta implícita na aquisição daquele universo de stocks, dada a sua dimensão e natureza”, que não estamos perante “(...) uma mera venda de bens com caráter isolado, mas sim perante um negócio muito mais complexo que visou a continuidade da exploração, com evidentes benefícios para o Estado”, e por fim de que, a não se entender assim, ocorre violação do princípio fundamental do direito à dedução e do princípio da neutralidade subjacente ao IVA (vide conclusões e alegações de recurso).
Vejamos.
Para facilitar a perceção dos factos e dirimir a questão enunciada, cumpre tecer algumas considerações sobre o normativo legal aplicável e seu enquadramento.
Dispõe o artigo 3º do CIVA, na parte que ora releva, o seguinte:
“1 – Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.
(...)
4 – Não são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidadede um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º.
(...)”
A exclusão do conceito de “transmissão de bens” para efeitos de IVA constante do n.º 4 do artigo 3.º do CIVA corresponde à utilização por parte do legislador nacional da faculdade que lhe foi conferida pelo n.º 8 do artigo 5.º da Sexta Directiva do Conselho de 17 de Maio de 1977 (Directiva 77/388/CEE), nos termos da qual «Os Estados-membros podem considerar que a transferência a título oneroso ou a título gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade de uma universalidade de bens ou de parte dela não implica uma entrega de bens e que o beneficiário é equiparado a sucessor do transmitente. (...)»
Como nota Rui Laires, “…a norma menciona as cessões da totalidade de um património ou de uma parte dele, abrangendo assim universalidades de facto insusceptíveis de serem consideradas um estabelecimento comercial, ou inclusivamente desagregações destas, na condição de os elementos transmitidos, em definitivo e de forma unitária, serem objectivamente susceptíveis de constituir um ramo de actividade independente” (in O Tratamento em IVA das Subvencões na Legislação e na Jurisprudência Comunitária, Ciência e Técnica Fiscal, 2007).
Além disso, a norma pode cobrir também as situações em que ocorra uma transmissão mortis causa de um estabelecimento, as quais não são, em princípio, susceptíveis de se integrar no conceito de trespasse.
Do cotejo da regra nacional com as regras constantes da Directiva IVA, constata-se que o legislador nacional, ao ter optado por fazer uso da faculdade que lhe é concedida, preferiu falar no conceito de “totalidade de um património ou parte dele que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente” em vez de “universalidade de bens ou de parte dela”.
Como nota a doutrina, trata-se de uma medida de simplificação administrativa que visa evitar sobrecarregar a tesouraria das empresas, aplicável, designadamente, nos casos de trespasse de estabelecimento, fusão, incorporação ou cisão de sociedades, e justificável, uma vez que há uma continuidade da actividade económica.
No mesmo sentido, na Nota Explicativa do Anteprojecto do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, se elucida que “…a disposição contida no n. º4 deste artigo traduz-se numa medida de economia administrativa e evita um pré-financiamento ao sucessor ou cessionário que vai continuar a actividade do sujeito passivo (…)
Note-se que se fala da transmissão da totalidade de um património ou de uma parte dele que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente (indício desse facto será, porventura, a existência de uma contabilidade separada). A caracterização tem interesse porque, se assim não for, estar-se-á em face de simples transmissões do activo da empresa, como tal tributáveis. É necessário que se transmita um conjunto que forme uma “universalidade de facto”, ainda que tal não seja a qualificação do ponto de vista jurídico”.
Assim, no contexto da lei nacional, e em obediência ao Direito da União Europeia, para que uma operação se insira no âmbito desta norma de delimitação negativa de incidência do imposto, exige a lei a observância cumulativa dos seguintes quatro requisitos:
- Cessão a título oneroso ou gratuito;
- Do estabelecimento comercial ou industrial, ou da totalidade de um património ou de parte dele;
- Que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente;
- Desde que o adquirente seja um sujeito passivo do imposto, ou o venha a ser pelo facto da aquisição.
O que está aqui em causa é um conjunto patrimonial objectivamente apto ao exercício de uma actividade económica e independente, composto por um conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos, nomeadamente, direitos de propriedade intelectual e industrial, contratos de trabalho e outros, utensílios, máquinas, mercadorias, e passivo, susceptíveis de constituírem uma universalidade de bens ou unidade funcional. Isto é, o conceito de estabelecimento comercial a ter aqui em consideração é o conceito jurídico.
Importa, pois, o aferir casuisticamente perante cada caso concreto se estamos ou não perante um conjunto patrimonial no sentido da norma.
No contexto da delimitação negativa de incidência constante entre nós do n. º4 do artigo 3.º do CIVA, e no que respeita aos bens transmitidos e à utilização desses bens feita pelo beneficiário depois da transmissão, atente-se, que a Directiva IVA não contém nenhuma definição do conceito de “transferência a título oneroso ou a título gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade de uma universalidade de bens ou de parte dela”. Tão pouco o legislador nacional concebeu qualquer definição especificamente a este respeito nas regras do IVA.
Com efeito, o legislador comunitário e o legislador nacional não forneceram qualquer esclarecimento ou concretização quanto à qualidade ou quantidade dos elementos que devem estar presentes de forma a que possa beneficiar da aplicação da delimitação negativa de incidência e facilmente se compreende porquê. De facto, como veremos que acertadamente o TJUE salienta, interessa apurar casuisticamente se na situação em causa há ou não uma transmissão de um conjunto patrimonial susceptível de constituir “um ramo de actividade independente”, isto é, de funcionar de per si como objecto de um negócio.
Da posição da Administração
Tendo o regime aplicável sido objeto de fichas doutrinárias e informações vinculativas por parte do DSCA do IVA [sendo que in casu os serviços inspectivo aludem precisamente a uma dessas informações, a n.º 1044 de 1994/01/10, infelizmente à qual não tivemos acesso], opta-se por trasladarmos o entendimento vertido em informação vinculativa – in Processo n.º 6691, sancionado por despacho de 2014.05.16, do SDG do IVA, por delegação do Diretor Geral da Autoridade Tributaria e Aduaneira - AT, (disponível em http://www.portaldasfinancas.gov.pt) emanado sobre a interpretação da exclusão de tributação em sede de IVA que decorre do artigo 3º do Código do IVA, o qual apesar do desfasamento temporal com os factos que nos ocupam, se mostra pertinente atenta a manutenção da redacção do n.º4 e 5 do artigo 3º do CIVA.
Refere-se naquela informação:
“15. O artigo 19.º primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro, usualmente designada por Diretiva IVA, concede a possibilidade aos Estados membros de estabelecerem que a transmissão de uma universalidade de bens ou parte dela não é considerada uma transmissão de bens.
16. Daqui resulta que, quando um Estado membro tenha feito uso desta faculdade, aquela transmissão não é considerada uma transmissão para efeitos da Diretiva e, consequentemente, não é sujeita a imposto.
17. Ao abrigo do segundo parágrafo da mesma disposição, e a fim de evitar distorções de concorrência, os Estados membros podem excluir da aplicação desta regra de não sujeição as transmissões de uma universalidade de bens a um adquirente que não seja considerado sujeito passivo nos termos da Diretiva ou que apenas atua como tal em relação a uma parte das suas atividades.
18. Por sua vez, o artigo 29.º da Diretiva IVA manda aplicar o disposto no seu artigo 19.º nas mesmas condições, às prestações de serviços.
19. O conceito de “transferência de uma universalidade de bens ou parte dela” já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no Acórdão proferido, em 27 de novembro de 2003, no Processo C-497/01 (caso Zita Modes Sarl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange “a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma atividade económica autónoma, mas que não abrange a simples cessão de bens como a venda de stock de produtos.”
20. Como resulta das conclusões do Advogado-Geral do citado acórdão, o conceito da “«parte de uma universalidade de bens» não se refere a um ou mais elementos singulares que compõem o estabelecimento como um todo, mas sim a uma combinação deles que seja suficiente para permitir o exercício de uma atividade económica, mesmo que esta atividade seja apenas um ramo de actividade mais ampla de que esta tenha sido destacada.
21. Este dispositivo de simplificação visa permitir aos Estados membros facilitar as transmissões de empresas ou de partes de empresas, evitando sobrecarregar a tesouraria do adquirente através de um encargo fiscal excessivo que, de qualquer forma, ele viria a recuperar através da dedução do IVA pago a montante.
22. Conforme referiu, ainda, o Advogado-geral nas suas conclusões, este tratamento especial justifica-se especialmente “porque o montante do IVA a ser adiantado por efeito da transmissão pode ser particularmente importante relativamente aos recursos do estabelecimento em questão.”
23. O Código do IVA acolheu a faculdade conferida, à data, pelo artigo 8.º n.º 5 da Sexta Diretiva, prevendo no artigo 3.º n.º 4 do Código do IVA (doravante também designado CIVA) que “(n)ão são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja suscetível de constituir um ramo de atividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) ao n.º 1 do artigo 2.º”.
24. O artigo 3.º n.º 5 do mesmo Código esclarece que “(p}ara efeitos do numero anterior (n.º 4 do artigo 3º), a administração fiscal adopta as medidos regulamentares adequadas, nomeadamente a limitação do direito à dedução, quando o adquirente não seja um sujeito passivo que pratique exclusivamente operações tributadas.”
(...)
27. As disposições do n.º 4 do artigo 3.º e n.º 5 do artigo 4.º supra identificadas consagram, deste modo, um regime excecional dentro da mecânica do imposto sobre o valor acrescentado, consubstanciando medidas de simplificação, cujo objetivo é não criar obstáculos a transmissão de realidades empresariais no seu todo ou, pelo menos, dos seus elementos destacáveis como unidades independentes (p. ex.: trespasse de estabelecimento comercial, transformação de uma exploração individual em sociedade ou a operação inversa, fusão, cisão ou transformação de sociedades).
28. A existência desta norma tem como fundamento, quer a continuidade do exercício da actividade transferida, quer a irrelevância que a tributação dessa transmissão teria ao nível da economia do imposto, isto é, sendo o adquirente um "sucessor" do transmitente o imposto que viesse a ser liquidado conferiria ao primeiro, nos termos do artigo 19.º e seguintes do CIVA, direito à dedução, sendo o resultado equivalente ao que se consegue com esta norma de exclusão de tributação.
29. No entanto, apenas esta em condições de beneficiar da não sujeição a imposto a transmissão de um todo, ou parte de um todo, que constitua de per si uma atividade de negócio autónoma e independente, que reúna os elementos indispensáveis ao desenvolvimento dessa atividade por parte do adquirente, sendo assim possível numa ótica de continuidade, manter e desenvolver a atividade subjacente a unidade alienada.
30. Neste contexto e tendo presente a letra da lei, considera-se que uma operação é enquadrável no âmbito da citada norma de delimitação negativa da incidência do imposto, se se verificarem, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
(i) Existência de uma cessão a título definitivo;
(ii) O objeto da transmissão consistir num conjunto de ativos suscetíveis de permitir o prosseguimento de uma atividade económica independente;
(iii) O adquirente ser ou vir a ser sujeito passivo de imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que tenha a intenção de explorar o estabelecimento ou parte de património e não simplesmente liquidar a atividade ou vender os stocks, conforme resulta da parte final do ponto 1) da Parte Decisória do citado acórdão Zita Modes.” (fim de transcrição)
Da posição Jurisprudencial
Sobre a matéria, em sede jurisprudencial, alcançamos o Acórdão do STA de 05.05.2010, proferidos no âmbito do processo n.º 036/10, cujo sumário destacamos:
«1 - A exclusão do conceito de “transmissão de bens” para efeitos de IVA das “cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente”, constante do n.º 4 do artigo 3.º do CIVA, corresponde à utilização por parte do legislador nacional da faculdade que lhe foi conferida pelo n.º 8 do artigo 5.º da Sexta Directiva do Conselho de 17 de Maio de 1977 (Directiva 77/388/CEE), nos termos da qual «Os Estados-membros podem considerar que a transferência a título oneroso ou a título gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade de uma universalidade de bens ou de parte dela não implica uma entrega de bens e que o beneficiário é equiparado a sucessor do transmitente. (…)».
2 - A norma comunitária pretendeu conferir aos Estados-Membros a possibilidade de estabelecerem “uma simplificação de procedimentos” e bem assim a de lhes permitir “evitar sobrecarregar as tesourarias das empresas”, estando este segundo objectivo relacionado “com a intenção de não agravar o esforço financeiro das empresas que pretendem iniciar uma actividade comercial ou industrial, ou expandir ou renovar a que vêm já exercendo, obrigando-as nesses momento ao dispêndio de um montante avultado de IVA, o qual, em princípio, iria posteriormente ser objecto de dedução a seu favor”.
3 - Daí que a norma comunitária refira expressamente que, nesses casos, o beneficiário é equiparado a sucessor do transmitente, alocução que, não implicando necessariamente a identidade de ramos de actividade exercidas por este e por aquele (como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de esclarecer no seu Acórdão de 27 de Novembro de 2003, processo n.º C- 497/01), parece ter implícito o entendimento, sob pena de frustração da ratio da norma em causa (e a daquelas que nos ordenamentos dos Estados-Membros concretizaram aquela faculdade), de que a exclusão só se verifica se o adquirente for ou vier a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo de imposto, sendo necessário que o adquirente continue a exercer mesma actividade económica que vinha sendo exercida pelo transmitente, numa relação de sequência contínua e sem interrupções.”».
Da posição do TJUE
Cientes da posição doutrinal da Administração e, de alguns conceitos colhidos pela jurisprudência e doutrina, que nos fixam os pressupostos da aplicação da incidência negativa de IVA prevista no n.º 4 do artigo 3º do CIVA, atentemos a jurisprudência do Tribunal de Justiça da EU, na procura de decisões extensíveis ao caso que nos ocupa.
O TJUE pronunciou-se algumas vezes sobre a delimitação negativa de incidência prevista no artigo 19º, primeiro parágrafo, da Directiva IVA.
Nas suas conclusões apresentadas em 13 de abril de 2000 no Caso Abbey National, o Advogado Geral F. G. Jacobs, veio salientar que, “O conceito de «parte de uma universalidade de bens», contudo, não é claro. Em particular suscita-se a questão de saber como estabelecer uma distinção entre a transferência dessa parte de uma universalidade de bens e a transferência normal de um ou mais dos activos de uma empresa, que é normalmente uma operação tributada. O direito comunitário nada diz sobre esta questão. Não se encontra qualquer esclarecimento em nenhuma das directivas IVA, nem a questão foi até aqui considerada pelo Tribunal de Justiça.”.
Nestes termos, conclui que a solução adoptada no Reino Unido parece ser razoável ao prever que quando os activos representando uma parte de uma empresa susceptível de funcionar separadamente são transferidos de forma que exista continuidade de exploração, a faculdade concedida nos termos do artigo 5.º, n.º 8, da Sexta Directiva, é aplicável e não se considera que exista qualquer entrega de bens. Como disso dá nota, não parece que estes critérios entrem em contradição com a formulação ampla da disposição comunitária e a questão de saber se os mesmos estão preenchidos num caso concreto permanece, por conseguinte, na competência do órgão jurisdicional nacional.
Por sua vez, no seu Acórdão de 27 de Novembro de 2003, Caso Zita Modes , o TJUE veio a concluir que o conceito de transmissão de uma universalidade de bens constitui um conceito de Direito Comunitário cuja interpretação compete ao Tribunal de Justiça, incumbindo ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se os bens transmitidos constituem uma “universalidade de bens ou parte dela” na acepção da Sexta Directiva, ou seja, activos susceptíveis de serem explorados no âmbito de uma actividade económica. Nos arrestos que se sucederam o TJUE veio a reiterar esta orientação.
Neste contexto, a Comissão veio notar que a simples venda, com carácter isolado, de acessórios de moda não constituía uma transmissão de uma universalidade de bens na acepção da Sexta Directiva, mas uma entrega ordinária de elementos do stock de uma empresa. Pelo contrário, a cessão de um conjunto coerente de activos susceptíveis de permitir o prosseguimento de uma actividade económica na acepção da Directiva pode estar abrangida pelo seu artigo 5º, n.º 8.
O TJUE nota que, à luz do contexto do artigo 5.º, n.º 8, da Sexta Directiva e do objectivo desta última, verifica-se que esta disposição visa permitir aos Estados membros facilitar as transmissões de empresas ou de partes de empresas, simplificando-as e evitando sobrecarregar a tesouraria do beneficiário através de um encargo fiscal excessivo que, de qualquer forma, ele teria recuperado posteriormente através da dedução do IVA pago a montante.
Como salientou o Advogado Geral Jacobs neste Caso, decorre já da jurisprudência do Tribunal nos processos Spijkers e Redmond Stichting, proferida noutros contextos, que o critério decisivo para afirmar a existência de uma transferência é saber se a entidade em questão mantém a sua identidade, como indicado em particular pelo facto de que a sua exploração é realmente prosseguida ou retomada, e que é necessário, para isso, olhar a todas as características da operação em causa, entre as quais figuram, designadamente, o tipo de empresa ou de estabelecimento de que se trata, a transferência ou não dos elementos corpóreos, tais como os edifícios e os bens móveis, o valor dos elementos incorpóreos, o emprego do essencial dos efectivos por parte do novo empresário, a transferência ou não da clientela, bem como o grau de similitude das actividades exercidas antes e depois da transferência e da duração, caso exista, de uma eventual suspensão destas actividades –, embora todos estes elementos sejam simplesmente aspectos parciais da avaliação de conjunto. .
Assim, conclui que, para que exista uma transferência deste tipo, os activos transmitidos devem formar um conjunto autónomo que permita o exercício de uma actividade económica e essa actividade deve ser exercida pelo cessionário. A transacção e as circunstâncias que a rodearem deverão ser globalmente apreciadas para determinar se esse é o caso, atendendo, em particular, à natureza dos bens transmitidos e ao grau de continuidade ou semelhança entre as actividades desenvolvidas antes e depois dessa transferência. Num contexto como este, não é necessário que a actividade do cessionário seja a mesma que a do cedente.
Como notou ainda o TJUE, para se aplicar esta regra, o beneficiário da transferência deve, no entanto, ter intenção de explorar o estabelecimento comercial ou a parte da empresa desta forma transmitida e não simplesmente liquidar imediatamente a actividade em causa bem como, eventualmente, vender o stock.
No Acórdão de 10 de novembro de 2011 proferido no Caso Schriever, C-444/10, o TJUE concluiu que, no que respeita ao conceito de «transferência a título oneroso ou a título gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade de uma universalidade de bens ou de parte dela», referido no artigo 5. °, n.º 8, primeira frase, da Sexta Directiva, o Tribunal de Justiça afirma que se trata de um conceito autónomo do Direito da União que deve ter uma interpretação uniforme em toda a União. Na falta de uma definição deste conceito na Sexta Directiva ou de reenvio expresso para o Direito dos Estados membros, o seu sentido e âmbito devem ser procurados levando em conta o contexto da disposição e o objectivo da regulamentação em causa.
Como notou, para haver uma transferência do estabelecimento ou de uma parte autónoma de uma empresa, na acepção do artigo 5°, nº 8, da Sexta Directiva, é necessário que os elementos transmitidos, no seu conjunto, sejam suficientes para permitir a continuação de uma actividade económica autónoma.
Ora, como salientou, a questão de saber se esse conjunto de elementos deve incluir bens móveis e imóveis deve ser apreciada no contexto da natureza da actividade em causa. Assim, se a prossecução de uma actividade económica não carecer de instalações especiais ou fixas, pode existir transferência de uma universalidade de bens, na acepção do artigo 5°, n.º 8, da Sexta Directiva, mesmo sem a transmissão do direito de propriedade de um imóvel.
Do sumário do Acórdão (Schriever, C-444/10), transcreve-se que:
1. Para haver uma transferência do estabelecimento ou de uma parte autónoma de uma empresa, na acepção do artigo 5.°, n.° 8, da Sexta Directiva 77/388, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios, é necessário que os elementos transmitidos, no seu conjunto, sejam suficientes para permitir a continuação de uma actividade económica autónoma.

Se a prossecução de uma actividade económica não carecer de instalações especiais ou fixas, pode existir transferência de uma universalidade de bens, na acepção da referida disposição da Sexta Directiva, mesmo sem a transmissão do direito de propriedade de um imóvel. Em contrapartida, não é possível considerar que essa transmissão existe, na acepção da referida disposição, no caso de a actividade económica em causa consistir na exploração de um conjunto incindível de bens móveis e imóveis e o cessionário não tomar posse das instalações comerciais. Concretamente, se as instalações dispuserem de equipamentos fixos necessários ao desenvolvimento da actividade económica, esses bens imóveis devem fazer parte dos elementos transmitidos para que se possa falar da transferência de uma universalidade de bens ou de parte dela, na acepção da Sexta Directiva. Pode existir igualmente uma transferência se as instalações comerciais forem postas à disposição do cessionário mediante um contrato de arrendamento ou se o cessionário dispuser de um imóvel adequado para o qual os bens transmitidos possam ser transferidos e onde possa continuar a ser exercida a actividade económica em causa.
Por outro lado, elementos como a duração do arrendamento e as modalidades de cessação estipuladas devem ser tomados em conta na apreciação global da operação de transferência de bens na acepção da referida disposição, uma vez que tais elementos podem ser relevantes para essa apreciação, no caso de poderem impedir a continuação duradoura da actividade económica. Contudo, o facto de um contrato de arrendamento de duração indeterminada poder ser denunciado mediante um pré-aviso de curto prazo não é, em si mesmo, determinante para concluir que o transmissário tinha a intenção de liquidar imediatamente o estabelecimento ou a parte da empresa transmitida. Por conseguinte, a aplicação do artigo 5.°, n.° 8, da Sexta Directiva não pode ser recusada com base apenas nesse facto.
2. O artigo 5.°, n.° 8, da Sexta Directiva 77/388, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios, deve ser interpretado no sentido de que a transmissão das existências e do equipamento de uma loja de venda a retalho, concomitantemente com o arrendamento do estabelecimento comercial ao transmissário, por duração indeterminada, embora denunciável a curto prazo por qualquer das partes, constitui uma transferência de uma universalidade de bens ou de parte dela, na acepção desta disposição, desde que os bens transmitidos sejam suficientes para que o cessionário possa prosseguir duradouramente uma actividade económica autónoma.
Do ponto 32 do mesmo Acórdão: “32. Resulta das considerações precedentes que se deve fazer uma apreciação global das circunstâncias de facto que caracterizam a operação em causa para determinar se esta está compreendida no conceito de transferência de uma universalidade de bens, na acepção da Sexta Directiva. Neste quadro, deve ser dada uma importância especial à natureza da actividade económica que se pretende continuar a exercer.”
E, do ponto 35. e 36, com relevo para os autos, que “35. Se a cessão das existências e do equipamento do estabelecimento for suficiente para permitir a continuação de uma actividade económica autónoma, a transmissão dos bens imóveis não é determinante para qualificar a operação de transferência de uma universalidade de bens.
36. Além disso, quando se verificar que a continuação da actividade económica em causa exige que o transmissário continue a utilizar as instalações utilizadas pelo transmitente, nada obsta, em princípio, a que essa transmissão seja efectuada mediante a celebração de um contrato de arrendamento.”
Neste contexto, o TJUE conclui uma vez mais, “Resulta das considerações precedentes que se deve fazer uma apreciação global das circunstâncias de facto que caracterizam a operação em causa para determinar se esta está compreendida no conceito de transferência de uma universalidade de bens, na acepção da Sexta Directiva. Neste quadro, deve ser dada uma importância especial à natureza da actividade económica que se pretende continuar a exercer”.
Em suma, importa salientar no âmbito das decisões emanadas do TJUE o seguinte:
1º. O objetivo do artigo 19º, 1º §, da Directiva IVA é facilitar as transmissões de empresas, simplificando-as e evitando sobrecarregar a tesouraria do beneficiário através de um encargo fiscal excessivo que, de qualquer forma, recuperará posteriormente através da dedução do IVA pago a montante (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de novembro de 2003, Zita Modes, C-497/01, EU:C:2003:644, n.o 39, e de 10 de novembro de 2011, Schriever, C-444/10, EU:C:2011:724, n.o 23);
2º. Quanto ao conceito de «transmissão de uma universalidade de bens ou de parte dela», o Tribunal de Justiça declarou que deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa, incluindo elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma atividade económica autónoma, mas de que não abrange a simples cessão de bens, como a venda de um stock de produtos (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de novembro de 2003, Zita Modes, C-497/01, EU:C:2003:644, n.o 40; e de 10 de novembro de 2011, Schriever, C-444/10, EU:C:2011:724, n.o 24);
3º. Para se estar perante uma transmissão do estabelecimento ou de uma parte autónoma de uma empresa, é necessário que os elementos transmitidos, no seu conjunto, sejam suficientes para permitir a continuação de uma atividade económica autónoma e que a questão de saber se esse conjunto de elementos deve incluir bens móveis e imóveis deve ser apreciada no contexto da natureza da atividade em causa (v., neste sentido, Acórdão de 10 novembro de 2011, Schriever, C-444/10, EU:C:2011:724, n.os 25 e 26).
4º. No quadro da apreciação global das circunstâncias de facto que importa efetuar para determinar se a operação em causa está compreendida no conceito de «transmissão de uma universalidade de bens» na aceção da Directiva IVA, deve ser dada uma importância especial à natureza da atividade económica que se pretende continuar a exercer (v., neste sentido, Acórdão de 10 novembro de 2011, Schriever, C-444/10, EU:C:2011:724, n.o 32).
5º. No caso de a prossecução de uma atividade económica não carecer de instalações especiais ou fixas, pode existir transmissão de uma universalidade de bens, na aceção do artigo 19o, 1º §, da Diretiva IVA, mesmo sem a transmissão do direito de propriedade de um imóvel (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2011, Schriever, C-444/10, EU:C:2011:724, n.o 27).
6º. Relativamente às atividades económicas que consistem na exploração de um conjunto incindível de bens móveis e imóveis, o Tribunal de Justiça considerou não existir uma transmissão de uma universalidade de bens, na aceção do artigo 19o, 1º §, da Directiva IVA, quando o cessionário não tomar posse das instalações. Concretamente, se as instalações dispuserem de equipamentos fixos necessários ao desenvolvimento da atividade económica, esses bens imóveis devem fazer parte dos elementos transmitidos para que se possa falar da transmissão de uma universalidade de bens ou de parte dela, na aceção da Diretiva IVA (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2011, Schriever, C-444/10, EU:C:2011:724, n.o 28).

Vejamos, agora, considerando as circunstâncias concretas do caso em análise, atendendo à matéria de facto dada como provada e não impugnada, e supra esgrimida e que importa recuperar.
A questão passa por saber quais os bens que devem ser transmitidos (a título definitivo) de forma a permitir ao cessionário dar continuidade à atividade do cedente (para se poder concluir ter existido um going concern), o qual “deve ser apreciada no contexto da natureza da actividade em causa”.
In casu, a Recorrente na sequência da denúncia do contrato de concessão que tinha com a [SCom02...], celebrou um contrato com a sociedade [SCom03...], futura concessionária da mesma marca de automóveis, através do qual cedeu a esta a cessão de exploração dos seus estabelecimentos comerciais, pelo período de 3 anos, renováveis nos termos previstos no contrato e, concomitantemente, vendeu-lhe as mercadorias que constituíam o seu stock (viaturas e peças).
Foi esta “transmissão de stocks” que originou a correcção técnica que está na base da liquidação adicional de IVA impugnada, no pressuposto de que esta cessão onerosa enquanto transmissão pura e simples da mercadoria de um estabelecimento, dado não ser susceptível de, por si só, constituir um ramo de actividade independente, não reúne os pressupostos referidos no n.º 4 do artigo 3º do CIVA e que o Tribunal a quo perfilhou.
Não sufragamos tal configuração dos factos.
A luz da Jurisprudência do TJUE referenciada, com enfâse no caso Schriever, cumpre atentar não só à transmissão dos Stocks e cedência dos estabelecimentos por 3 anos, renováveis, mas a todo um conjunto de aquisições por parte da cessionária ([SCom03...]) essenciais ao prosseguimento do negócio, que decorrem do contrato de “cessão de exploração” celebrado e demais factos assentes, a saber: (i) cessão da exploração dos cinco estabelecimentos e de todos os bens que integram os mesmos, por três anos, renováveis automaticamente e sucessivamente por idênticos períodos se não for rescindindo (o que não difere da situação de arrendamento de estabelecimento para aferição temporal da situação retratada no Acórdão do TJUE de 10 de novembro de 2011, proferido no Caso Schriever); (ii) a transferência de todos os encargos inerentes ao pagamento da água, luz, telefone, gás, electricidade, etc..; (iii) cessão da posição que decorre dos contratos de trabalho; (iv) a denuncia do contrato de concessão da [SCom02...], SA com a Recorrente, com efeito a partir de 30.09.2003, que durava a mais de 20 anos; (v) os cinco estabelecimentos cedidos estavam exclusivamente afectos ao comércio e reparação de veículos automóveis e acessórios da marca [SCom02...]; (vi) a [SCom03...] com a denuncia do contrato de concessão com a Recorrente pela [SCom02...], assumiu a concessão daquele marca no território que até então estava atribuído à cedente.
Cremos, melhor dizendo, estamos aptos afirmar que perante o conjunto dos elementos enunciados inerentes e contemporâneos da cessão de “stocks” inferem a continuidade e a prossecução de uma actividade económica autónoma por parte da [SCom03...], não sendo a não transmissão dos bens imóveis [cinco estabelecimentos e todos o equipamentos inerentes à actividade de concessionária da [SCom02...], mobiliário e afins, afectos aos stands de venda e aos armazéns de peças, e aparelhagens, ferramentas e similares afetos às oficinas, etc, pelo prazo de 3 anos, renováveis] e demais equipamentos a título não definitivo determinante para afastar a qualificação da operação como se tratando da transferência de uma universalidade de bens.
Afastando-se assim o elemento pro tempore considerado pela AT e pela sentença recorrida como determinante para afastar aplicação do n.º 4 do artigo 3º do CIVA, pois que a cedência não definitiva dos estabelecimentos e equipamentos não podem ser tidos como impeditivos da prossecução da actividade económica que era levada a cabo pela Recorrente pela mão da [SCom03...]. O que efectivamente terá acontecido, pois em momento algum AT questiona que a concessão da [SCom02...] não haja prosseguido naqueles mesmos estabelecimentos, desta feita pela tutela da [SCom03...].
Temos assim, que perante todos estes elementos estamos aptos a aferir da verificação dos pressupostos de aplicação do n.º 4 do artigo 3º do CIVA, supra enunciados, de que (i) a atividade de revenda de veículos e peças [SCom02...], bem como a sua reparação, deve ser entendida como sendo suscetível de constituir “um ramo de atividade independente”; (ii) atento o negócio inerente ao “contrato de cessão” e aditamento (itens 6º, 7º, 8º e 9º do probatório) tido no seu todo, a [SCom03...] na qualidade de adquirente da mercadoria “stocks” (veículos novos e usados e peças) adquiriu os elementos essenciais ao prosseguimento da actividade que até então era exercida pela Recorrente; (iii) a adquirente [SCom03...], é sujeito passivo do imposto, e enquanto tal sucessora fiscalmente equiparada à Recorrente (difícil prosseguir a actividade sem estabelecimentos aptos e sem carros para vender ou peças para efectuar reparações).
Em suma, in casu, contrariamente ao decidido em 1ª instância, julgamos verificados os pressupostos factuais integrantes da hipótese do n. º4 do artigo 3º, do CIVA, apoiada na interpretação, vinculativa, que da mesma é feita pelo TJUE ao n.º 8 do artigo 5º da Directiva IVA.
Assim na procedência do recurso, cumpre revogar a sentença que não o considerou, e julgar a impugnação procedente na consideração de que estavam reunidos os pressupostos para enquadrar a operação de venda das “mercadorias stocks” no regime de exclusão da tributação previsto no nº 4 do artigo 3º CIVA, o que se determinará a final.
2.2.3. Da dispensa do remanescente
Nos termos do n.º 7 do artigo 6.º do RCP, «[n]as causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Mais tem vindo a considerar a jurisprudência constitucional que «os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (artigo 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adopção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito».
É certo que o juízo de proporcionalidade entre a taxa cobrada e o valor do serviço prestado se apresenta como problemático, pois envolve a ponderação de diversas variáveis, nem todas objectivas. Mas nem por isso o tribunal se pode eximir do mesmo.
Assim, aplicando a referida interpretação normativa ao caso dos autos, ponderada a tramitação dos autos e o comportamento processual da ora Recorrida, mas também o elevado valor da causa (€430.695,40) e a utilidade económica dos interesses a ela associados, a complexidade das questões submetidas a juízo - que se situa na média -, considera-se adequado dispensar totalmente o pagamento do remanescente da taxa de justiça, nesta instância de recurso.

2.3. Conclusões
I. Em regra, a transmissão de bens, entendida esta como a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, está sujeita a tributação em sede de IVA (nº 1 do artigo 3º CIVA).
II. O nº 4 do artigo 3º do CIVA exclui determinadas operações do conceito de transmissão de bens e consequentemente da aplicação do imposto "...as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 2º”.
III. Para que uma operação se enquadre no âmbito desta norma de delimitação negativa de incidência do imposto, exige-se a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) cessão a título oneroso ou gratuito; (ii) do estabelecimento comercial ou industrial, ou da totalidade de um património ou de parte dele; (iii) que seja suscetível de constituir um ramo de atividade independente; (iv) desde que o adquirente seja um sujeito passivo do imposto, ou o venha a ser pelo facto da aquisição.
IV. Sendo essencial para que se transmita um património como uma unidade económica, a cessão de um conjunto de bens organizados com estabilidade e autonomia suficientes para a realização de uma actividade de natureza comercial ou industrial.
3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e, consequentemente julgar procedente a impugnação.
Custas a cargo da Recorrida, que não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou e mais se dispensando do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nesta instância de recurso.

Porto, 20 de dezembro de 2023

Irene Isabel das Neves
Celeste Oliveira
Paula Moura Teixeira