Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01588/18.5BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/12/2018
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR; REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO INICIAL; INSTRUMENTALIDADE
Sumário:
I-O objectivo da sentença cautelar prende-se com o assegurar a utilidade da sentença da acção principal e não realizar imediatamente a tutela judicial do direito material;
I.1-desta instrumentalidade resulta que a tutela cautelar só faz sentido em função do processo principal, ou seja, para a procedência de um pedido cautelar é, antes de mais, necessário que resulte dos seus objecto e fundamentos uma relação instrumental entre o seu objecto e o objecto do pedido deduzido/a deduzir no processo principal;
I.2-no caso posto a providência cautelar não esgota o sentido da acção principal, visto que apenas permite uma resolução parcial e provisória do problema. Do que se trata aqui é de uma composição provisória da lide, enquanto a causa principal não é decidida, uma vez que é necessário antecipar interinamente alguns efeitos do direito em causa, sob pena de grave prejuízo;
I.3-a instrumentalidade do processo cautelar deve ser entendida em função das circunstâncias concretas e não prejudica a possibilidade de, em situações duradouras, conseguir, a título provisório, aquilo que no processo principal se alcançará a título definitivo. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:CASFIG…, E. M
Recorrido 1:FM
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento cautelar não especificado - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido do provimento do recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
Nestes autos de providência cautelar em que é Requerente CASFIG-Coordenação de Âmbito Social e Financeiro das Habitações do Município de G…, E. M., Unipessoal, Lda. e Requeridos FM e MFRV, neles já melhor identificados, foi proferida, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, decisão que rejeitou o requerimento inicial.
É este o discurso fundamentador do despacho:
Dispõe o artigo 116º, n.º 1 do C.P.T.A. que sobre o requerimento de providência cautelar recai despacho de admissão ou rejeição.
No presente processo, vem formulado o seguinte pedido:
Termos em que o presente processo cautelar deve ser julgado procedente por provado e, em consequência, deferida à Autora autorização para, recorrendo à força pública e colocando à disposição desta todos os meios para o efeito apropriados, entrar coercivamente no arrendado e aí proceder à retirada de lixo, entulhos e animais, removendo aqueles para aterro sanitário ou reciclagem, conforme o que for próprio, e os animais para o canil/gatil municipal, procedendo também à retirada de todos os objectos inúteis, colocando-os, provisoriamente e mediante arrolamento, em depósito público até decisão definitiva da acção principal de que este procedimento depende, sendo o Delegado de Saúde Pública em G... notificado para acompanhar e, se assim for entendido, supervisionar as operações em causa ou para o efeito se fazer representar.
O presente processo e providências cautelares por meio dele referidas configura antecipação de uma acção principal a propor com vista à condenação definitiva dos Réus no cumprimento de todos os deveres respeitantes ao uso da habitação, abstendo-se das práticas descritas nesta petição e procedendo à retirada de lixos, entulhos e animais e limpeza geral e arrumo da habitação, mantendo essa situação de limpeza e asseio.
Dada a urgência imposta pela gravidade da situação e celeridade com que a mesma se aprofunda, susceptível de, em breve prazo, se tornar insustentável e com danos de grande perigo para a saúde pública, requer-se que a providência seja decretada sem audiência dos Réus.”.
A sustentar tal pedido, invoca a Requerente que celebrou contrato de arrendamento, em regime de renda apoiada, com os Requeridos, mas que os mesmos não mantêm o locado nas devidas condições de habitabilidade, mormente por acumularem lixo e objetos inúteis, não procederem à limpeza, não lavarem roupas, pessoais ou da casa, nem utensílios que usam diariamente nas funções domésticas, terem nove gatos e dois cães, que defecam em casa, sem que nada seja limpo.
Mais aduz a Requerente que a situação relatada é iminentemente potenciadora de graves perigos para a saúde pública, para as relações de vizinhança (que ameaçam rotura), e também para a própria integridade do arrendado, o que impõe a tomada de medidas imediatas que não se compadecem com o tempo normal de decurso de uma ação condenatória principal e sua execução judicial ou mesmo com procedimento administrativo de resolução do contrato de arrendamento e despejo.
Compulsado o requerimento inicial para efeitos de proferir despacho liminar, é imperioso, desde logo, apreciar o cumprimento dos requisitos de admissibilidade do mesmo.
Como ensinam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha Fernandes, Comentário do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição revista, Almedina, 2010, p. 777 e 778 “[…] a haver despacho liminar, justifica-se que seja em processos como os cautelares, que são processos urgentes, na medida em que, uma vez recebido o requerimento, este deve ser apresentado ao juiz sem mais delongas e que, por outro lado, ao juiz, no despacho liminar, não só cumpre evitar o inútil prosseguimento de processos inexoravelmente condenados ao insucesso […].
O despacho liminar só deve ser de indeferimento quando o tribunal considere que é evidente ou manifesto que a pretensão formulada é infundada ou que existem excepções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impendem a emissão de uma pronúncia de mérito sobre a pretensão do requerente.”.
Ora, a tutela cautelar encontra-se prevista nos artigos 112º a 134º do C.P.T.A., estabelecendo o n.º 1 do primeiro dos artigos referidos que “Quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adoção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo.”.
Como resulta do n.º 1 do artigo 112º do C.P.T.A., o processo cautelar caracteriza-se pela sua adequação – de modo a evitar o periculum in mora -, utilidade – a fim de prevenir a inutilidade da sentença a proferir no processo principal, por infrutuosidade ou retardamento -, instrumentalidade – na medida em que depende da existência de uma ação principal, a propor ou já proposta -, pela provisoriedade da decisão – uma vez que esta não se destina a resolver definitivamente o litígio -, e pela sumariedade – porque implica uma summaria cognitio da situação através de um processo simplificado e célere.
Para que se apliquem os critérios de decretamento da providência cautelar previstos no artigo 120º do C.P.T.A. (periculum in mora, fumus boni iuris e ponderação dos interesses públicos e privados em presença), é necessário que a concreta providência requerida preencha cumulativamente os requisitos gerais das providências cautelares, previstos no n.º 1 do artigo 112º do C.P.T.A..
Desde logo, analisado o requerimento inicial surgem dúvidas quanto à legitimidade da Requerente para peticionar, em nome do grave perigo para a saúde pública, o acesso à habitação dos Requeridos. Isto porque, não obstante ser a Requerente uma empresa municipal, detida integralmente pelo Município de G..., o seu objeto é “a promoção e gestão do património imobiliário habitacional, em especial e primordialmente, as habitações sociais do Município de G...” (artigo 3º dos Estatutos da Requerente) e não assegurar a salubridade ou saúde pública de quem quer que seja.
Mas, avançando. O processo cautelar, como se disse já, é instrumental de uma ação principal, visando assegurar o efeito útil da sentença que, a final e em sede principal, venha a ser proferida. Segundo a alegação da Requerente, a ação principal será uma ação de condenação definitiva dos Requeridos no sentido de estes cumprirem todos os deveres respeitantes ao uso da habitação, abstendo-se das práticas descritas na petição e procedendo à retirada de lixos, entulhos e animais e limpeza geral e arrumo da habitação, mantendo essa situação de limpeza e asseio.
Ora, decretando-se a providência cautelar requerida – que passa pela autorização da entrada coercivamente no arrendado e aí proceder à retirada de lixo, entulhos e animais, removendo aqueles para aterro sanitário ou reciclagem, […] procedendo também à retirada de todos os objetos inúteis – fácil é de verificar que ficará sem objeto o processo principal. Na verdade, se, por força da presente ação, a Requerente remover os objetos e lixo que alegadamente se encontram no locado, a ação principal carecerá de qualquer sentido, posto que a realidade que a sustenta (existência de lixo e objetos inúteis) deixa de subsistir.
Ou seja, com a ação cautelar esgota-se o objeto da ação principal, consome-se o mesmo com a prolação de sentença cautelar, perdendo-se, com isso, o caráter instrumental que define a presente demanda.
Atendendo a que as providências cautelares visam minimizar os prejuízos de infrutuosidade e de retardamento das sentenças a proferir nos processos principais, o objetivo da sentença cautelar resume-se a isso: a assegurar a utilidade da sentença da ação principal e não realizar imediatamente a tutela judicial do direito material (Isabel Celeste M. Fonseca, Direito Processual Administrativo – Roteiro Prático, 2ª ed., Almeida & Leitão, Ldª, p. 214 e seguintes). E, nesta situação, tal não ocorre. Com a sentença cautelar, a Requerente obterá a tutela definitiva pretendida.
Deste modo, face ao já expendido, é forçoso concluir que falha no presente processo cautelar o requisito da instrumentalidade, sendo de rejeitar o requerimento inicial ao abrigo do artigo 116º, n.º 2, al. e) do C.P.T.A. por manifesta falta da tutela cautelar.
*
Desta decisão vem interposto recurso.
Alegando, a Requerente concluiu:
1. A Autora requereu providência cautelar pela qual lhe fosse autorizada a entrada na habitação arrendada ao Réu para aí, em condições que apresentou, ou outras que porventura o Tribunal entenda devem ser cumpridas, "proceder à retirada de lixo, entulhos e animais, removendo aqueles para aterro sanitário ou reciclagem, conforme o que for próprio, procedendo também à retirada de todos os objectos inúteis, colocando-os, provisoriamente e mediante arrolamento, em depósito público até decisão definitiva de acção principal";
2. A providência foi justificada porque a situação em que os Réus mantêm o arrendado e a forma como o utilizam, o que - tudo - é detalhadamente descrito na petição inicial conduziu a graves incómodos e riscos quer para a saúde e bem-estar do vizinhos, quer dos próprios Réus, além de prejuízos para a conservação e integridade do arrendado,
3. situação que se agrava dia a dia sendo, por outro lado que os Réus não cessam com a prática de factos do tipo dos que lhes são imputados.
4. A Autora é uma empresa municipal cujo capital social é integralmente titulado pelo Município de G... e compete-lhe a promoção e gestão do património imobiliário habitacional, em especial e primordialmente, as habitações sociais daquele município.
5. No exercício das suas competências, a Autora, em 11.Out.2011, deu de arrendamento ao Réu a habitação municipal em que estão a ocorrer os factos em causa,
6. os quais, apesar de sucessivas instâncias e esforços, se mantêm, como já se referiu, e os Réus não cessam de praticar.
7. A Autora pretende vir a propor uma acção principal, da qual o presente processo e a providência referida serão antecipatórios, almejando a condenação, do Réu, ao cumprimento das suas obrigações contratuais no que toca ao bom uso do arrendado e respeito pelas regras de vizinhança e de ambos os Réus a cessarem em definitivo a prática dos factos que lhe são imputados, sendo também decidido o destino definitivo dos animais e dos objectos que venham a ser retirados no arrendado ao abrigo da providência requerida.
8. Na verdade, é dever do locatário não fazer uma utilização imprudente da coisa locada, podendo inclusive incorrer em despejo no caso de grave "violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança" (artºs 1038°-d) e 1083°-2, a), do Cod. Civil).
9. Por outro lado, compete ao senhorio "garantir as condições de segurança, salubridade, conforto e arranjo estético dos edifícios e das habitações" (al. d) do art.° 24°-A aditado à Lei n° 81/2014 pela Lei n.º 32/16).
10. Foram invocados e sustentados o perigo na continuação da situação em causa e o agravamento e até irreversibilidade dos danos daí resultantes, a aparência do direito invocado, e a proporcionalidade e adequação da medida requerida (art.° 120° do CPTA).
11. A providência foi no entanto rejeitada pelo Tribunal recorrido por "falta do requisito de instrumentalidade", uma vez que, entendeu o Tribunal, que a ser deferida, esgotaria o objecto de acção principal, o que - manifestamente e em especial perante o que se refere nas conclusões 1. e 7. é um juízo infundado, contrariado de modo frontal a disposição legal que ele próprio invoca (art.° 116°, n.º 2, al. c) do CPTA).
Termos em que, por violação das disposições legais citadas, bem como de outras que suprirão, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que mande prosseguir os autos, deferindo-se, a final, a providência requerida, como é de Justiça!
*
Não houve contra-alegações.
*
O MP, notificado ao abrigo do disposto no artº 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
X
Vejamos:
A Requerente é uma empresa municipal cujo capital social é integralmente titulado pelo Município de G... e compete-lhe a promoção e gestão do património imobiliário habitacional, em especial e primordialmente, as habitações sociais daquele município.
No dia 11 de outubro de 2011, aquela celebrou com o Requerido um contrato de arrendamento pelo qual cedeu a este o gozo temporário de uma habitação situada no Empreendimento de C…, Rua de A…, 1° Esquerdo, 4800-019, G... (C…), fração AM, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 3004 NIP e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 00351/C…, pelo prazo de 1 ano;
-a renda mensal foi, desde início, submetida ao regime de renda apoiada, conforme o DL 166/93, de 7 de maio, pelo que o contrato se rege actualmente pelo regime do arrendamento apoiado, de acordo com a Lei 81/2014, de 19 de dezembro, revista e republicada pela Lei 32/2016, de 24 de agosto, e encontra-se actualmente fixada em €13,43, acrescida das despesas regulares de condomínio no valor de €9,43 mensais;
-a aludida habitação é composta por uma sala comum, um quarto, um quarto de banho, uma cozinha e lavandaria, sendo servida por um hall de entrada;
-o agregado familiar do Requerido é composto por ele próprio e pela Requerida;
-na óptica da Requerente estes têm vindo a fazer uma utilização imprópria da habitação arrendada, depositando e acumulando nesta quantidades enormes e indiscriminadas de entulho, objectos, restos de comida e lixo doméstico em geral que ora resulta das actividades próprias do seu dia-a-dia e da vida familiar, ora decorre da recolha que fazem na via pública ou noutros locais e transportam para casa;
-não procedem a qualquer limpeza da sua habitação, não deitam fora o lixo nem quaisquer objectos inúteis, perecíveis ou não; não só não se vêm livres destes objectos, como ainda transportam e acrescem aos mesmos, recorrentemente, lixo e entulho;
-acumulam de tudo dentro de casa, de tal modo que, em todas as divisões do arrendado se encontra lixo e entulho, desde o chão até ao teto, impedindo a normal utilização do espaço, nomeadamente, a iluminação e ventilação;
-a acumulação de entulho, lixo e objectos é em tal quantidade e volume que:
a) no hall de entrada, apenas está livre um pequeno corredor que permite que uma só pessoa o atravesse de cada vez, desde a porta da entrada para o quarto e o quarto de banho,
b) no quarto de banho, a banheira e o bidé estão obstruídos, sendo a sanita e o lavatório apenas visíveis, mas não utilizáveis,
c) no quarto, só está disponível o espaço onde se encontra a cama de dormir e de circulação em redor deste móvel,
d) a sala não tem qualquer espaço disponível; está completamente cheia dos mais diversos objectos e lixo até à entrada, a qual se encontra barrada,
e) na cozinha, embora se distingam, o lava loiças, o frigorífico e o fogão não são utilizáveis normalmente, sobrepondo-se ali tachos, panelas e outros utensílios, sujos e com restos de comidas putrefactos,
f) a lavandaria está obstruída e inutilizável;
-acresce a esta situação, a existência de 9 gatos e 2 cães que, para além de serem vítimas de maus tratos, falta de alimentação e cuidados médico-veterinários, defecam no interior da habitação, sem que os dejectos sejam limpos;
-o arrendado encontra-se num estado de insalubridade extrema, os cheiros intensos e nauseabundos, pela sua intensidade, já alastraram para além do locado e propagam-se para as partes comuns do prédio, incomodando fortemente a vizinhança e colocando a saúde de todos em grave risco;
-assim torna-se um problema não só para a Requerente, que enfrenta a progressiva deterioração do locado, mas também para todos os residentes e vizinhos do prédio que convivem diariamente com um foco de mau estar, insalubridade e doenças;
-tal não só põe em causa a saúde de todos, incluindo os próprios Requeridos, como corresponde a um grave e elevado perigo para a saúde pública;
-com base neste alegado cenário, em 26 de junho de 2018, a Requerente solicitou uma providência cautelar de “autorização para, recorrendo à força pública e colocando à disposição desta todos os meios para o efeito apropriados, entrar coercivamente no arrendado e aí proceder à retirada de lixo, entulhos e animais, removendo aqueles para aterro sanitário ou reciclagem, conforme o que for próprio, e os animais para o canil/gatil municipal, procedendo também à retirada de todos os objectos inúteis, colocando-os, provisoriamente e mediante arrolamento, em depósito público até decisão definitiva da acção principal de que este procedimento depende, sendo o Delegado de Saúde Pública em G... notificado para acompanhar e, se assim for entendido, supervisionar as operações em causa ou para o efeito se fazer representar”;
-o Tribunal a quo, em sede liminar, rejeitou o peticionado por concluir que falha no presente processo cautelar o requisito da instrumentalidade.
Não secundamos esta leitura.
Como é sabido, os critérios de que depende a concessão das providências cautelares estão previstos no artigo 120° do CPTA, na redacção dada pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro, aqui aplicável.
A redacção dada ao n° 1 deste preceito pelo citado DL pôs termo à diferenciação de critérios até então existentes, consoante a natureza conservatória ou antecipatória da providência requerida.
Assim, actualmente, a providência cautelar é adoptada quando “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”
Acresce também, por respeito ao princípio da proporcionalidade ou da “proibição do excesso” consagrado no n° 2, que:
“(…) a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”.
Para além dos pressupostos supra referidos, espelhados no artº 120º do CPTA, é requisito de toda e qualquer providência cautelar que a mesma se mostre necessária para assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal. Desta instrumentalidade, consagrada nos artºs 112º e 113°/1 do mesmo Código, resulta que a tutela cautelar só faz sentido em função do processo principal, isto é, para a procedência de um pedido cautelar é, antes de mais, necessário que resulte dos seus objecto e fundamentos uma relação instrumental entre o seu objecto e o objecto do pedido deduzido/a deduzir no processo principal.
Trata-se não só de uma decorrência lógica da natureza do pedido cautelar, como uma exigência bem clara do artigo 112°/1 do CPTA, segundo o qual a providência pedida tem de ser adequada para assegurar a utilidade da sentença a pedir e a proferir na acção principal.
Ora, a pretensão da Requerente/Recorrente resume-se a um pedido de providência cautelar antecipatória enquadrável na alínea d) do número 2 do artigo 112º, uma vez que aquela solicita uma autorização provisória para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma determinada conduta.
Como bem refere a Apelante “Tal decisão e a execução dos actos que, por via dela, a Autora pretende levar a cabo, não esgotam, porém, a questão uma vez que, em definitivo, o que se pretende é que os Réus sejam condenados a não mais praticar os actos descritos e que lhes são imputados e, em especial, o Réu condenado ao cumprimento das suas obrigações contratuais de arrendatário, além de que seja também decidido o destino definitivo a dar aos animais e aos objectos inúteis que, não sendo lixo ou entulho, sejam retirados do arrendado”.
E prossegue: é neste sentido que a providência cautelar não esgota o sentido da acção principal, visto que apenas permite uma resolução parcial e provisória do problema. Do que se trata aqui é de uma composição provisória da lide, enquanto a causa principal não é decidida, uma vez que é necessário antecipar interinamente alguns efeitos do direito em causa, sob pena de grave prejuízo.
Ora, a instrumentalidade do processo cautelar deve ser entendido em função das circunstâncias concretas e não prejudica a possibilidade de, em situações duradouras, conseguir, a título provisório, aquilo que no processo principal se alcançará a título definitivo. (cfr. o Prof. Vieira de Andrade em A Justiça Administrativa, Almedina, 2017, pág. 344).
Trata-se, assim, de tomar cautelarmente uma determinada providência, a qual não resolverá o problema em definitivo, tendo em conta, nomeadamente, que a providência cautelar não impede os Réus de prosseguirem a sua actividade.
Como se viu, a decisão recorrida fundamenta a rejeição do pedido na manifesta desnecessidade da tutela cautelar.
Sucede que a falta de tutela cautelar prende-se com o pressuposto do interesse processual ou interesse em agir e há de fundar-se num juízo negativo sobre a necessidade de tutela judiciária no plano cautelar. (Mário Aroso e Carlos Cadilha em comentário ao artigo 116°, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Almedina, 2017, pág. 951).
Ora, pelo que se disse, a Requerente deve salvaguardar a saúde e bem-estar quer dos restantes arrendatários, quer da população em geral, o mais rapidamente possível. E o certo é que só o poderá fazer se obtiver uma decisão judicial (cautelar) que lhe permita entrar no locado e proceder à remoção do lixo e entulho, como bem assinala o Senhor PGA.
E, por força do artigo 34°/2 da CRP, apenas munida de autorização judicial adequada pode aquela introduzir-se em casa dos aqui Apelados e remover o lixo e entulho acumulado.
Daí a manifesta necessidade e pertinência da presente providência cautelar.
Quanto aos demais pressupostos previstos no artº 120º do CPTA é notório que se mostram evidenciados quer o fumus boni iuris quer o periculum in mora.
Na verdade, quanto ao juízo a formular sobre a necessidade ou não de tutela judiciária no plano cautelar, o artigo 120° do CPTA estabelece os critérios que devem presidir à decisão sobre os processos cautelares e correspondente necessidade dos mesmos.
Assim, a lei faz depender a decisão sobre o pedido de providência cautelar e a sua procedência ou não, de três critérios: a perigosidade (periculum in mora), a aparência do bom direito (fumus boni iuris) e a proporcionalidade da decisão (vide autores e ob. cit. “Comentário ao artigo 120°”).
O primeiro dos critérios é definido como “o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”.
Ora, os factos concretos alegados pela Apelante denotam um legítimo e fundado receio de produção de prejuízos de difícil reparação, uma vez que a reintegração posterior no plano dos factos se perspectiva difícil, seja pelos prejuízos que já se produziram e agravaram, e por aqueles que continuam a produzir-se, ao longo do tempo, ao nível da degradação e deterioração do locado, seja pela incapacidade de reparar, ou pelo menos, reparar integralmente, a situação natural face ao perigo iminente de propagação de mau ambiente, de doenças e insalubridade em geral, que afectarão o prédio e toda a vizinhança.
A nível da aparência do direito (fumus boni iuris), as provas recolhidas e juntas ao processo pela Autora, nomeadamente as fotografias (Doc. 6 da p.i.), são suficientes para sustentar o que está alegado.
Já ao nível do juízo de proporcionalidade entre a decisão de concessão e recusa da providência temos que o interesse de saúde pública supera largamente qualquer interesse privado dos aqui Recorridos.
É doutrina e jurisprudência unânime que verificando-se estes três pressupostos cumulativos não há razões para que a providência cautelar não seja decretada, pelo que o despacho liminar só deve ser de indeferimento quando o tribunal considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada ou que existem excepções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impedem a emissão de uma pronúncia de mérito ou se verifique uma total ausência de pedido ou de causa de pedir. (os mesmos autores em “Comentário ao artigo 116°”).
Em conclusão:
-face ao CPTA de 2015, as providências cautelares serão deferidas, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: i) fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (periculum in mora); ii) que seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente (fumus boni juris); iii) que da ponderação dos interesses públicos e privados em presença resulte que os danos decorrentes da concessão da providência não se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, ou que, sendo superiores, possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências (proporcionalidade e adequação da providência);
-tal como já ocorria no regime anterior, a verificação destes requisitos tem que ser cumulativa;
-para além disso, certo é que as providências cautelares visam minimizar os prejuízos de infrutuosidade e de retardamento das sentenças a proferir nos processos principais;
-o objectivo da sentença cautelar prende-se com o assegurar a utilidade da sentença da acção principal (e não realizar imediatamente a tutela judicial do direito material (Isabel Fonseca em Direito Processual Administrativo - Roteiro Prático, 2ª ed., Almeida & Leitão, Lda., pág. 214 e seguintes);
-e, nesta situação, tal ocorre, contrariamente ao juízo vertido na decisão sob recurso;
-mostrando-se (também) verificada a exigência da instrumentalidade (pese embora o juízo a adoptar nesta sede ser sempre indiciário, de verosimilhança e de probabilidade), não poderá manter-se o despacho recorrido.
Procedem, pois, as conclusões da Recorrente.
***
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso revoga-se o despacho e determina-se a remessa dos autos à 1ª instância a fim de prosseguirem seus termos, caso a tal nada mais obste.
Sem custas.
Notifique e D.N.
Porto, 12/10/2018
Ass. Fernanda Brandão
Ass. Frederico Branco
Ass. João Sousa