Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00760/12.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/03/2023
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:SUPRESSÃO DE PASSAGENS DE NÍVEL; REDE RODOVIÁRIA LOCAL; CIRCULABILIDADE DA VIA;
REGRAS DE ORDEM TÉCNICA OU DE PRUDÊNCIA COMUM; DEVERES OBJECTIVOS DE CUIDADO;
DANO ANORMAL; RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR ACTO LÍCITO; RECONSTITUIÇÃO NATURAL.
Sumário:
1 - Dispõem os artigos 2.º, n.º 1 e 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de dezembro, que aprova o Regulamento de passagens de nível, que a [SCom02...], EPE [hoje IP, S.A.] e as autarquias locais que tenham a seu cargo vias rodoviárias que incluam passagens de nível, devem elaborar programas plurianuais com vista à sua supressão, por via da construção de passagens desniveladas e/ou caminhos de ligação, sendo que estas construções passam a integrar a rede rodoviária nacional, regional ou local, cabendo às entidades que depois as recebam [aquelas construções], a responsabilidade pela sua beneficiação, manutenção e sinalização.

2 - Após a intervenção realizada na intersecção do Caminho ... com a Rua ... [no concelho ...], com a formação de uma curva com um ângulo de 50 graus, a via deixou ser apta a garantir a sua circulabilidade em termos similares aos que até aí se fazia, passando a circulação rodoviária nesse enclave a constituir um factor de risco e insegurança para pessoas e bens, em termos que não aconteciam no passado, antes do fecho da passagem de nível, tendo a Autora sofrido um dano anormal, pois que só ela [ou só ela e um conjunto mais ou menos restrito de pessoas] passou a sofre as consequências negativas da actuação administrativa, dano esse que é superior àquele que é resultante da normal vivência em sociedade, por ter sido afectado o “gozo médio da coisa”.

3 - A gestão e conservação da rede viária municipal constitui uma atribuição dos Municípios [Cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro], que de resto já assim estava concretizado no artigo 2.º do Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961.

4 - Tendo o Réu Município ... concorrido para a execução da acessibilidade e da curva de que tratam os autos, e mais ainda, tendo recebido esses acessos rodoviários no seu domínio público municipal, aceitou o Réu, e permitiu a continuação, de condições para se manter a produção do dano anormal na esfera jurídica da Autora, recaindo por isso sobre si o dever de indenizar a Autora pelos danos/prejuízos relativamente aos quais seja demonstrado tenham origem nesse facto, ainda que executado na decorrência de uma actuação lícita.

5 - Estão verificados os pressupostos determinantes da efectivação de responsabilidade civil extracontratual por actos lícitos [acto lícito praticado para a satisfação de interesse público; existência de um dano; e existência de nexo causal entre a actuação lícita e esse dano], quando o resultado constructivo alcançado, sendo decorrente de uma actuação lícita por parte dos Réus, não deixa dúvidas de que as regras de ordem técnica ou de prudência comum [que apelam a deveres objectivos de cuidado], permite concluir que as mesmas não foram observadas, com grave prejuízo da segurança de pessoas e bens de quem aí tenha de conduzir veículo automóvel [Cfr., neste sentido o artigo 9.º, n.º 1 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro].
6 - Sendo o dano susceptível de ser reparado, o mesmo não tem todavia de passar pela concessão de uma indemnização à Autora, pois que a reconstituição natural é, no caso dos autos, a adequada à situação, e aliás a preferível – Cfr. artigo 566.º do Código Civil e artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder parcial provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


«AA», Autora na acção que intentou contra o Município ... e contra a [SCom01...], S.A. [todos devidamente identificados nos autos], inconformada com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo pela qual, a final e em suma, foi julgada improcedente a acção e absolvidos os Réus dos pedidos contra si formulados [atinente à (i) declaração do direito da Autora a possuir condições similares de acesso à sua habitação às que anteriormente existiam; à (ii) condenação dos Réus a encontrar uma solução para o problema no prazo de 90 dias e cumulativamente, a condenação do presidente da CM de ... e do Conselho de Administração da [SCom01...], IP ou do respectivo presidente no pagamento de sanção pecuniária compulsória de 40 € por dia de atraso; à (iii) condenação solidária dos Réus ao pagamento de uma indemnização por responsabilidade civil extra-contratual no montante de 24.500 €; e (iv) subsidiariamente em relação a ii), à condenação solidária dos Réus ao pagamento de uma indemnização por privação do uso e desvalorização do imóvel, no montante de 186.623,41 €], veio interpor recurso de Apelação.

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
Conclusões
a) É recorrida a sentença que julgou totalmente improcedente a presente acção;
b) A sentença é nula por excesso de pronúncia, na medida em que o tribunal conheceu de factos essenciais que lhe estava vedado, sem mais, conhecer; e sempre por não ter facultado às partes a possibilidade de (i) se pronunciarem sobre a intenção de os incluir na matéria facto e (ii) requererem a produção de prova relativamente a eles;
c) Os factos provados II e JJ foram essenciais para a decisão da causa pois como se refere na fundamentação da sentença, os mesmos foram atendidos para, conjuntamente com outros, se considerar (i) a conduta das rés licita e (ii) que os pressupostos de indemnização pelo sacrífico não se mostravam verificados, nos termos do artigo 16º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro;
d) Os factos provados II e JJ não foram alegados pelas partes nos articulados, não eram o objecto do litígio nem dos temas de prova, tendo resultado meramente da audição das testemunhas em audiência de julgamento;
e) Sendo factos essenciais, impõe o artigo 5º, nº1 do CPC que os mesmos devem ser alegados pelas partes, o que não aconteceu;
f) Mesmo que se considerasse serem factos complementares ou concretizadores, nos termos do artigo 5º, nº2, al. b) do CPC, deveria o tribunal ter facultado às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciar e requerer a produção de prova que entendessem;
g) Sobre esses factos deveria ter recaído a produção de prova pericial, aliás, na linha dos restantes factos julgados e relativos às condições de acesso à habitação da autora, até por se dever considerar insuficiente para a sua prova a mera alegação de testemunha;
h) Ao ter dado como provado os factos II e JJ, sem resultarem de alegação das partes, o tribunal violou o artigo 5º, nº1 do CPC;
i) Por sua vez, se considerados esses factos complementares ou concretizadores, o tribunal violou o artigo 5º, nº2, al. b) do CPC;
j) Há excesso de pronúncia do tribunal; porém, caso se considere não ser uma questão de excesso de pronúncia, há nulidade por violação do artigo 195º, nº1 do CPC;
k) A autora impugna a matéria de facto, com pedido de reapreciação da prova gravada:


dos factos incorrectamente dados como provados
i) o facto K, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- A prova produzida e referente a este facto – relatório de avaliação imobiliária junto com a pi e depoimentos das testemunhas «BB» e «CC» – não foi considerada pelo tribunal;
Atendendo a esses meios de prova, impõe-se a alteração do facto para a seguinte formulação:
K. O prédio da A. é composto por um terreno com 0,663 há, dotado de algumas benfeitorias e possibilidade de cultivo tradicional em terreno de razoável qualidade, e por duas casas de habitação de boa qualidade, com revestimento dos pavimentos com materiais cerâmicos de boa qualidade e em muito bom estado de conservação, pavimentos revestidos a madeiras nobres, tectos integralmente forrados a madeira, caixilharias/carpintarias em madeira de boa qualidade e em muito bom estado de conservação: uma delas composta por dois quartos, uma cozinha mobilada, uma casa de banho e um lagar, no piso térreo; a outra por um quarto, uma casa de banho, uma cozinha mobilada e uma sala.
- a alteração do facto justifica-se pela circunstância da autora ter formulado pedido de condenação das rés ao pagamento de indemnização por privação de uso e desvalorização do imóvel, e as características deste influírem na possibilidade de utilização do prédio e sua rentabilização.
ii) o facto BB, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- A prova produzida referente a este facto – prova pericial, depoimento da testemunhas «DD», «CC» – foi indevidamente valorada e/ou desconsiderada pelo tribunal.
A sua correcta análise impõe a alteração do facto para a seguinte formulação:
BB. Actualmente, o acesso norte ao Caminho ... só é transitável por carros pequenos, encontrando-se manifestamente mais condicionado porque na zona da curva (fechada) em causa nestes autos existe forte inclinação entre arruamentos e o ângulo da curvatura é agudo, não sendo possível transitar normalmente, obrigando à realização de manobras iterativas.
- a alteração do facto justifica-se pela circunstância de se encontrar em discussão nos autos a questão do deficiente acesso à habitação da autora originado por esta mesma curva, sendo necessário saber se as restrições no direito de acesso e utilização do imóvel, em virtude desse condicionamento, devem ser ou não tutelados pelo direito, atendendo até a critérios de normalidade e segurança na circulação rodoviária.
iii) o facto CC, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- a prova produzida referente a este facto – prova pericial, depoimento prestado pelo sr. perito em audiência de julgamento, depoimento das testemunhas «CC» e «DD» – foi indevidamente valorada e/ou desconsiderada pelo tribunal.
A sua correcta análise impõe a alteração do facto para a seguinte formulação:
CC. Na curva intervencionada, os veículos perdem tracção e derrapam na saída, seja com tempo seco, seja quando o piso está molhado ou com geada.
- a alteração do facto justifica-se pela circunstância de, para analisar o mérito da acção, ser necessário perceber as características da curva que permite o acesso ao Caminho ... e se essa curva impede uma fruição e utilização normal do imóvel [o “gozo standard”].
iv) o facto DD, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- a prova produzida referente a este facto – prova pericial – foi indevidamente analisada e valorada pelo tribunal.
A sua correcta análise impõe a alteração do facto para a seguinte formulação:
DD. Os arruamentos existentes nas imediações têm características idênticas aos arruamentos por onde se faz actualmente o acesso ao prédio da Autora, mas não se existem zonas que concomitantemente tenham ângulos e inclinações idênticas à curva discutida nestes autos, que representa um verdadeiro “nó” para ali transitar ou aceder de automóvel.
- a alteração do facto justifica-se pela circunstância de, constituindo uma das questões nucleares a analisar pelo tribunal a questão da perigosidade e condições de realização da curva, mostrar-se inequívoco que a resposta do sr. perito contende com essas mesmas condições de acesso, pelo que, é relevante a afirmação da existência de um “nó”, por representar uma avaliação técnica, ajuizada e qualificadora do estado grave do local onde se situa a curva.
v) o facto GG, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- a prova produzida referente a este facto – «EE», «FF» e «DD» – foi indevidamente analisada e valorada pelo tribunal.
A sua correcta análise impõe a alteração do facto para a seguinte formulação:
GG. O Caminho ... tem actualmente um pavimento irregular, cresce mato sobre ele e há ainda um muro que desmorona com alguma frequência.
vi) o facto HH, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- a prova produzida referente a este facto – «BB», «FF» e «DD» – foi indevidamente analisada e valorada pelo tribunal.
A sua correcta análise impõe a alteração do facto para a seguinte formulação:
HH. Quando chove, o Caminho ... fica intransitável, tendo a A. e o seu companheiro, pelo menos em uma ocasião em 2018, ficado com o seu veículo aí retido.
- a alteração dos factos GG e HH justifica-se pela circunstância do tribunal ter considerado que estes factos ocorreram ou são reportados a momento anterior à supressão da passagem de nível [o que como demonstrado, não é verdade], e daí ter considerado irrelevante a supressão da passagem de nível e a intervenção realizada na curva.
vii) o facto II, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- a prova produzida referente a este facto – testemunhos de «EE» e «FF» – foi indevidamente analisada e valorada pelo tribunal.
- foi, ademais, indevidamente desconsiderado o depoimento da «BB».
- a correcta análise do depoimento destas testemunhas impõe a eliminação do facto II da matéria dada como provada.
- caso assim não se entenda, e o tribunal considere que o facto está correctamente dado como provado, porque é possível aceder à habitação da autora pelo lado sul do Caminho ..., deve ser aditado um outro facto provado que afirme:
II. O lado sul do Caminho ... tem inclinação, é composto por terra, pedras, vegetação, não sendo facilmente transitável a pé.”
- a análise correcta deste facto impõe-se porque o tribunal considerou que não se verificou uma compressão intolerável do direito da autora de aceder à habitação e de retirar os cómodos da mesma, na medida em que existia acessível este caminho pedonal, o que como visto, não corresponde à realidade.
vii) o facto LL, na sua redacção, mostra-se incorrectamente dado como provado:
- a prova produzida e referente a este facto – depoimentos das testemunhas «EE» e «FF» – foi indevidamente valorada e/ou desconsiderada pelo tribunal.
- a sua correcta análise impõe a alteração do facto para a seguinte formulação:
LL. Antes da supressão da passagem de nível e da construção da curva discutida nos autos, era possível realizar obras no prédio da Autora.
a alteração do facto justifica-se pela circunstância da autora ter peticionado pagamento de indemnização pela privação de uso e desvalorização do imóvel, sendo que influi nessa realidade a possibilidade ou não de realizar obras no prédio.
dos factos erradamente dados como não provados
l) A autora impugna os factos 2, 3, 6 e 8 dos não provados:
i) o facto 2 não deveria ter sido dado como não provado, por inexistência de prova nesse sentido [indevida análise e valoração do depoimento das testemunhas «EE» e «FF»]:
- estas testemunhas, bem como as testemunhas «BB» e «CC», afirmaram perante o tribunal que a autora era uma pessoa mais alegre antes da supressão da passagem de nível e das alterações efectuadas pelas rés nas condições de acesso à sua habitação e que depois dessa ocorrência, passou a andar mais triste, desanimada, desgostosa e ansiosa.
- deste modo, deve ser eliminado o facto não provado 2 e passar a constar dos factos provados que:
A supressão da passagem de nível e criação da curva discutida nos autos causou à autora tristeza, desgosto, desânimo e ansiedade.
ii) o facto 3 não deveria ter sido dado como não provado, por inexistência de prova nesse sentido [indevida análise e valoração do depoimento da testemunha «DD»]:
- o tribunal errou na apreciação deste facto pois a questão não é saber se há ou não comprador concreto ou se alguma vez foi tentada a alienação.
- das regras de experiência comum retira-se que um prédio com os acessos como os da autora não arranja nem arranjará comprador.

- deste modo, deve ser eliminado o facto 3 da matéria não provada e se adite um facto à matéria de facto provada que afirme:
Com os actuais acessos, o imóvel não encontra nem encontrará comprador.
iii) o facto 6 não deveria ter sido dado como não provado, por inexistência de prova nesse sentido [indevida análise e valoração do depoimento da testemunha «CC» e regras do facto notório e experiência comum]:
- as regras de prova inerentes ao facto notório, de experiencia comum e o depoimento da testemunha «CC» impõe a eliminação do facto 6 da matéria não provada e se adite um facto à matéria de facto provada com o seguinte teor:
O arrendamento de um prédio com aquelas características no mês de Agosto custaria € 500,00 semanais e € 2.500,00 mensais e ainda € 500,00, caso fosse um arrendamento de longa duração.
- Subsidiariamente, e mesmo que assim não se entendesse, o tribunal podia dar como provado que o arrendamento daquele prédio custaria uma quantia monetária, ainda que não quantificável, relegando para execução de sentença a determinação do quantum semanal ou mensal do arrendamento.
De modo que, também por aqui deveria ser eliminado o facto dos não provados e aditado um facto aos provados com o seguinte teor:
“O arrendamento de um prédio com aquelas características no mês de Agosto e de longa duração tem um custo económico semanal e mensal”.
iv) o facto 8 não deveria ter sido dado como não provado, por inexistência de prova nesse sentido [indevida análise e valoração, e desconsideração dos depoimentos de «BB», «EE», «FF»]:
- o tribunal errou na apreciação deste facto pois o mesmo não foi alegado pelas partes nos articulados nem resultou da produção de prova testemunhal;
- o que estas testemunhas afirmaram foi que a autora passou menos vezes a frequentar o seu prédio e no inverno, praticamente, deixou de ir à habitação;
- deste modo, deve ser eliminado o facto 8 da matéria não provada e se adite um facto à matéria de facto provada que afirme:
Depois de Junho de 2012, a A. passou a frequentar menos vezes o seu prédio e no que se refere às idas no Inverno, praticamente deixou de ir à habitação.
- O que pode ser efectuado por aditamento ao facto provado MM.

dos factos indevidamente omitidos e não levados à matéria de facto
m) Não foram levados à matéria de facto provada os seguintes factos relevantes para a boa decisão da causa. Porém, deveriam ter sido, nos seguintes termos:
primeiro facto que se pretende que seja dado como provada. Com a seguinte proposta de redacção, a aditar:
Antes da supressão da passagem de nível e da criação da curva realizadas rés, os veículos de transporte de carga, de peso inferior a 3500kg, acediam à habitação da autora, sendo que depois dessa intervenção no local, tais veículos deixaram de poder aceder por impossibilidade de realizar a referida curva.
- os meios de prova que demonstram este facto são o depoimento de «EE», «FF», «CC» e por ser facto notório e decorrer das regras de experiência comum;
- a relevância deste facto prende-se com a circunstância de se discutir as alterações das condições de acesso à habitação da autora realizadas pelas rés e se as mesmas põe em causa o gozo standard do imóvel, sendo a possibilidade de veículos de transporte de carga e mercadoria poderem aceder à habitação um dos critérios a analisar para este efeito.
segundo facto, que se pretende que seja dado como provada. Com a seguinte proposta de redacção, a aditar:
Em geral, os arruamentos existentes nas imediações são aptos à passagem de veículos ligeiros de pequena e média dimensão.
- os meios de prova que demonstram este facto são a resposta ao quesito 8 do relatório pericial e esclarecimentos do sr. perito prestados em audiência de julgamento;
- o facto é relevante porque permite concluir que a supressão da passagem de nível e a criação da curva afectou unicamente, e de modo grave, o direito de acesso à habitação da autora, não tendo, pelo contrário, os restantes habitantes de ... sofrido qualquer restrição ou limitação nos seus acessos rodoviários.
terceiro facto, que se pretende que seja dado como provada. Com a seguinte proposta de redacção, a aditar:
O Caminho ... é público, sendo transitável se assegurada a devida manutenção.
- os meios de prova que demonstram este facto são o depoimento de «EE», «FF», «GG» e «BB».
- o facto é relevante porque na sentença foi atribuída relevância ao estado do Caminho ..., tendo-se referido que o mesmo fica intransitável quando chove, é perigoso circular nele nessas circunstâncias, sendo um obstáculo para chegar à propriedade, tendo essa realidade sido valorada em desfavor da autora.
- ora, tal raciocínio não é correcto porque o caminho é publico, sendo obrigação das entidades públicas [autarquia local] zelar pela sua manutenção, sendo que a omissão no cumprimento dessa obrigação não pode ser valorada contra a autora.
quarto facto, que se pretende que seja dado como provada. Com a seguinte proposta de redacção, a aditar:
Antes da supressão da passagem de nível, a autora realizava no prédio festas, aniversários, tendo passado lá um natal, ano novo e páscoa, o que deixou de suceder depois da alteração das condições de acesso à habitação.
- os meios de prova que demonstram este facto são o depoimento de «EE», «FF» e «BB».
- as testemunhas confirmaram que, antes da supressão da passagem de nível e criação da curva, a autora deslocava-se mais vezes à habitação, tendo realizado festas, aniversários e passado lá um natal, ano novo e páscoa. O que deixou de suceder depois da alteração das condições de acesso à habitação.
- o facto é essencial para demonstrar que face à conduta das rés, o imóvel deixou de ser utilizado com tanta frequência pela autora.
- Esta factualidade suporta o pedido de indemnização formulado pela autora pela privação de uso e pelos danos morais.
quinto facto, que se pretende que seja dado como provada. Com a seguinte proposta de redacção, a aditar:
O acesso rodoviário existente para a habitação desvaloriza o valor patrimonial e comercial dos prédios da autora.
- tal facto resulta de ser notório, das regras de experiência comum e de determinação do valor comercial dos imóveis;
- é inequívoco que a valorização ou desvalorização de um imóvel tem em consideração as condições de acesso à habitação, a possibilidade de rentabilizar o prédio, seja por alienação, arrendamento ou outro tipo de exploração comercial ou agrícola, não sendo necessário para o efeito que existam concretos projectos de exploração, alienação ou outro tipo de rentabilização.
- as limitações no acesso ao prédio, considerando essas consequências, influem negativamente o seu valor comercial.
- o facto é essencial, atento os pedidos formulados pela autora, que peticiona o pagamento de valor indemnizatório considerando a desvalorização comercial do imóvel decorrente das inseguras e perigosas condições de acesso rodoviário criadas pelas rés.
n) Há erro de julgamento na análise e aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas colectivas de direito público;
o) O pedido da autora formulado na petição inicial fundamenta-se na ilicitude da actuação das rés, consubstanciada no facto da curva construída por estas, com as características levadas à matéria de facto dada como provada e também na que que se pretende alterada, não permitir o acesso rodoviário à sua habitação em termos seguros e que permitam uma utilização normal e corrente do prédio;
p) O que se contesta foi o modo que as rés encontraram para, perante a constatação de que a supressão da passagem de nível impedia totalmente o acesso rodoviário à sua habitação, recuperar esse mesmo acesso rodoviário;
q) O acto ilícito radica na criação da curva, alternativa ao caminho para a habitação da autora suprimido pela passagem de nível, que não respeitou a obrigação legal de dotar a habitação de um caminho rodoviário seguro e que não colocasse em perigo pessoas e bens:
- o acesso actual é mais perigoso que o antigo;
- no inverno, bem como no verão, o carro perde tracção na curva e derrapa na saída, sendo que, no inverno a perigosidade nas condições de realização da curva são enormes, pois o carro derrapa e patina, podendo, inclusive, cair em talude com uma altura de 5 a 7 metros;
- veículos que anteriormente acediam à habitação [quer fossem veículos de mudanças ou de transporte de carga ou limpeza], por força das alterações das condições de acesso, deixaram de lá poder aceder;
- só veículos pequenos é que conseguem efectuar a curva em causa, sendo necessário realizar manobras iterativas.
r) No caso, as rés, e por força da celebração do protocolo, assumiram a responsabilidade pela criação dos caminhos de ligação alternativos ao eliminado pela supressão da passagem de nível;
s) Os caminhos a criar devem possuir condições de circulação seguras e transitáveis, sendo esse um dever e não uma competência;
t) As rés incumpriram o seu dever de arranjar uma solução para impedir os constrangimentos rodoviários advenientes da supressão da passagem de nível;
u) Por força da intervenção das rés, e para além das perigosas condições de acesso, impossibilitou-se a utilização normal da habitação no inverno e com tempo húmido e molhado mais se tendo impedido o acesso a veículos de transporte de cargas e mercadorias;
v) Tal realidade impede ou dificulta de modo intolerável a realização de obras com relevo, o transporte de mobiliário, a limpeza generalizada do terreno, a realização de festas, eventos e convívios, e uma utilização regular do imóvel;
w) Esta realidade não se mostra mitigada por qualquer circunstância, nomeadamente, pelas declaradas na sentença a fls. 23;
x) A conduta das rés violou o artigo 2º, nº1 do DL 568/99 de 23 de Dezembro, os artigos 7º do Decreto-Lei 13/71, de 23 de Janeiro e 51º do Estatuto Nacional de Estradas, bem como os princípios estruturantes da circulação rodoviária, os artigos 5º e 9º do DL 380/85, de 26 de Setembro, e o artigo 62º da CRP;
y) Os demais pressupostos do regime da responsabilidade civil extracontratual, mostram-se os mesmos igualmente verificados;
z) Foram violados os artigos 3º, 7º, 9º, 10º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro;
aa) Há erro de julgamento na análise dos pressupostos de indemnização pelo sacrifício, nos termos do artigo 16 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro;
bb) A autora discorda da fundamentação do tribunal quando entende não estar verificado o requisito da anormalidade;
cc) Os danos anormais são aqueles que não são inerentes aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração;
dd) Os factos provados demonstram o especial sacrifício da autora:
- na curva, são sempre necessárias efectuar manobras iterativas tanto para aceder ao Caminho ... como para sair dele;
- na curva, e face à grande inclinação do arruamento, os veículos patinam e derrapam [seja em tempo seco como em tempo molhado], sendo que existe um talude com 5 a 7 metros de altura nessa zona, que se encontra com uma protecção que não é eficaz para a segurança de viaturas e respectivos ocupantes.
- quando o tempo está molhado e/ou com geada, é ainda mais perigoso efectuar a curva.
ee) Com estas condições de acesso, a autora [ou qualquer outra pessoa] não pode deslocar-se ao prédio durante o período de inverno e com tempo de chuva, humidade ou geada;
ff) Sabido que os tempos de chuva, de frio e geada, numa zona do interior norte de Portugal, são regulares e severos, podendo aceitar-se que ocorrerão entre os meses de Outubro e Abril, é inquestionável que se verifica uma limitação grave e intolerável na utilização do prédio por parte da autora;
gg) Representa uma clara violação do direito ao gozo standard, a limitação na acessibilidade ao imóvel durante largos meses do ano e quando as condições de acesso são de chuva, frio ou humidade, o que anteriormente à intervenção no local das rés, não se verificava;
hh) Se o fizer, tem de efectuar a curva realizando sempre manobras iterativas [porque os veículos não a efectuam à primeira], onde o carro derrapa e patina e onde há a possibilidade do mesmo cair ao talude com 5 a 7 metros;
ii) Se o fizer, efectua tal manobras SEMPRE em condições de insegurança e com perigo para as pessoas e bens;
jj) O transporte de carga, mercadoria, bem como a realização de obras de médio e grande porte, estão impossibilitadas porque não se permite o acesso aos respectivos veículos e na medida em que só veículos pequenos podem aceder à habitação, o que não sucedia anteriormente;
kk) A realização de convívios, festas, aniversários, com familiares e amigos, não se podem realizar, face às referidas condições de acesso;
ll) A parte rústica do prédio também não pode ser aproveitada em termos convenientes e rentáveis por impossibilidade de veículos e equipamentos agrícolas lá acederem;
mm) Esta realidade não é mitigada por qualquer outro elemento factual carreado para os autos;
nn) O dano é objectivo, concreto e anormal, considerando as utilidades que medianamente se retiram de um imóvel para habitação e de um terreno rural, este com capacidade agrícola;
oo) A impossibilidade de aceder ao imóvel em condições de segurança e com a habitualidade e frequência necessária, influi negativamente no valor patrimonial do imóvel;
pp) E provoca também danos decorrentes da privação de uso e possibilidade de rentabilizar o prédio;
qq) O requisito do dano anormal encontra-se preenchido, pelo que, os pressupostos constitutivos do direito à indemnização pelo sacrifício estão verificados;
rr) O tribunal viola o disposto no artigo 16º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.
Termos em que, na procedência da arguição de nulidade e do recurso, deve ser revogada a sentença e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente.


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A Ré [SCom01...], IP, veio apresentar Contra alegações, onde a final elencou as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
CONCLUSÕES:
1. A douta sentença “a quo” decidiu, e bem, na página 30, que a “Autora não sofreu dano anormal no presente caso, faltando assim um dos pressupostos cumulativos da responsabilização dos Réus. Sendo os vários pressupostos da responsabilidade civil cumulativos, não se verificando um, quedam prejudicados os demais – art. 608.º/2 do CPC”.
2. Por isso, a douta sentença “a quo” decidiu, e bem, na página 30, que a “actuação das R.s não gerou para estas qualquer dever de indemnizar”.
I - Quanto à Sentença
3. Como refere a douta sentença, na página 29, “o dano que a A. teve não é não ter acesso à sua propriedade, mas ter um acesso automóvel à sua propriedade mais dificultado”.
4. E, continua a douta sentença, na página 29, “este acesso automóvel a que aqui nos referimos é simplesmente a dificuldade de a A. levar um veículo automóvel para dentro dos limites da sua propriedade, uma vez que esta pode estacionar na via pública, a cerca de 30 m desta”.
5. Conforme menciona a douta sentença, na página 29, esta “distância não se afigura um esforço desrazoável ou desproporcional para a vida em sociedade”.
6. Segundo menciona a douta sentença, na página 29, a “A. não ficou, efectivamente, impedida de realizar obras, nem de aceder ao seu prédio – esta apenas se vê com maiores dificuldades em levar o seu carro para dentro dos limites da sua propriedade. Essa dificuldade também já existia antes da supressão da passagem de nível”.
7. Como refere a douta sentença, na página 29, “existe outra causa, alternativa desta que já dificultava o acesso rodoviário ao prédio da Autora, sendo o Caminho ..., aliás, particularmente perigoso nas mesmas situações em que é perigosa a realização da curva intervencionada”.
8. Assim sendo, conforme esclarece, e bem, a douta sentença, na página 29, em “face desta outra causa, a supressão da passagem de nível e a intervenção realizada na curva são praticamente irrelevantes (note-se que não foi alegado que a manutenção do Caminho ... incumbisse a qualquer dos Réus nem qualquer relação entre o estado deste caminho e a supressão da passagem de nível)”.
9. Como menciona, e bem, a douta sentença, nas páginas 29 e 30, é “uma ocorrência normal da vida em sociedade que as alterações levadas a cabo nas vias beneficiem uns e prejudiquem outros, seja a rua comercial que se fecha ao trânsito para segurança dos peões que usufruem do comércio local, seja porque se fechou uma passagem de nível e agora ou se vai por uma curva mais apertada e se faz manobras ou se estaciona na berma da estrada e se sobe a pé uma distância de cerca de 30 m”.
10. A douta decisão “a quo”, nas páginas 27 e 28, invocando o conceito do gozo standard dos bens para concretizar a garantia constitucional da propriedade (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13-01-2004, no Proc. n.º 040581, disponível em www.dgsi.pt), procedeu à análise dos factos para determinar se face às modificações introduzidas fica afetado o gozo médio da coisa.
11. A douta decisão “a quo”, na página 30, conclui, e bem, que a “Autora não sofreu dano anormal no presente caso, faltando assim um dos pressupostos cumulativos da responsabilização dos Réus. Sendo os vários pressupostos da responsabilidade civil cumulativos, não se verificando um, quedam prejudicados os demais – art. 608.º/2 do CPC”.
12. E, consequentemente, como refere a douta sentença, na página 30, a “actuação das R.s não gerou para estas qualquer dever de indemnizar”.

II - Quanto ao recurso apresentado pela Autora
13. Na Petição Inicial, a Autora invocou que na sequência da supressão de uma passagem de nível nas proximidades de uma habitação secundária por ela detida, o acesso por veículo automóvel à sua habitação ficou impedido, o que lhe provocou danos de diversa índole.
14. E, a Autora pediu a declaração do seu direito a possuir condições similares de acesso à sua habitação às que anteriormente existiam.
15. Por conseguinte, os factos II e JJ dão resposta a um problema concreto suscitado pela Autora.
16. Deste modo, ao contrário do que a Autora pretende, não existe excesso de pronúncia, pois o Tribunal não apreciou nem decidiu qualquer questão que não tenha sido alegada pelas partes nem condenou ou absolveu num pedido não formulado.
17. Além disso, quanto aos factos que a Autora considera que foram incorretamente dados como provados, é importante referir que as alterações pretendidas para outra formulação relativas aos factos K, 1313, CC, DD, GG, HH, II, LL não devem ser aceites, pois a Autora não apresenta quaisquer provas que justifiquem essa alteração.
18. E, a Autora impugna os factos 2, 3, 6 e 8 dos factos dados como não provados, mas não apresenta qualquer justificação válida para que esses factos não devessem ter sido dados como não provados.
19. Pelo contrário, a Autora defende que os factos 2 e 3 não deveriam ter sido dados como não provados “por inexistência de prova nesse sentido” dando, assim, razão à decisão do Tribunal de considerar, e bem, estes factos como não provados.
20. E, a Autora pretende que sejam aditados aos factos provados novos factos que são agora por ela formulados, mas que nem sequer foram referidos em Tribunal e, consequentemente, não ficaram provados.
21. Os aditamentos de factos à matéria de facto provada, em substituição dos factos 6 e 8, pretendidos pela Autora, também não correspondem a factos provados em Tribunal.
22. Além disso, a Autora alega que não foram levados à matéria de facto provada os factos que ela considera relevantes para a boa decisão da causa, mas não consegue demonstrar a relevância desses factos, pelo que tal alteração não deverá ser aceite.
23. Com o seu recurso, a Autora pretende reescrever o presente processo, ao propor a redação de factos novos e a alteração fantasiosa de factos provados, o que é absolutamente inadmissível.
24. Não é verdade que exista erro de julgamento na análise e aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e e demais entidades públicas, como a Autora invoca no seu recurso.
25. E não é aceitável a discordância da Autora quanto ao entendimento do juiz “a quo”, quando este refere e fundamenta que a Autora não sofreu dano anormal, pois o gozo médio não foi afetado.
26. Conforme refere o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-01-2004, no Proc. n.º 040581, disponível em www.dgsi.pt, não é prejuízo anormal a mera compressão do direito de acesso de um prédio de habitação, em resultado de modificações da via confinante, mas sem afetação do respetivo gozo “standard”.
27. Na realidade, conforme ficou amplamente provado, a Autora não sofreu dano anormal no presente caso, pelo que faltando um dos pressupostos cumulativos da responsabilidade civil, ficam prejudicados os demais.
28. Deste modo, não existe qualquer dever de indemnizar em consequência da atuação das Rés.
III - Do Direito
29. Conforme refere o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-01-2004, no Proc. n.º 040581, disponível em www.dgsi.pt, que cita José Joaquim Gomes Canotilho, in “O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos”, Coimbra, Almedina, 1974, p. 238, o princípio geral da igualdade de contribuição dos cidadãos para os encargos públicos é o fundamento axiológico essencial da indemnização por atos lícitos, exigindo a lei a especialidade e a anormalidade do dano, como elementos-travão de uma total socialização dos prejuízos.
30. A Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem invocado, por diversas vezes, a teoria do gozo standard (cf. arestos de 1991.05.21 – rec.º n.º 29 227 e de 2000.05.25 – rec.º n.º 41 420), que é enunciada por Gomes Canotilho, in “O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos”, Coimbra, Almedina, 1974, p. 280-281, que refere que o “princípio segundo o qual a propriedade privada em sentido lato, no nosso actual sistema jurídico, orientado por determinadas finalidades sociais, é obrigada a admitir limites e vínculos, encontra um critério limite no conceito de gozo standard dos bens privados, como conceito atributivo de um significado à garantia constitucional da propriedade”.
31. Conforme é referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-01-2004, no Proc. n.º 040581, já anteriormente citado, disponível em www.dgsi.pt e se aplica ao caso concreto, o “Juiz a quo entendeu que o gozo médio não foi afectado. E não se vêem razões para divergir deste entendimento, tendo em conta, desde logo, que o prédio não ficou em encrave absoluto ou relativo (art. 1 550º C. Civil) nem foi posta em causa a sua adequação à função habitacional a que se sempre se destinou”.
32. De facto, com a realização das obras, a Autora não ficou privada de gozar do seu imóvel, nas condições e com as utilidades que medianamente se associam a um prédio de habitação.
33. Assim, conforme é referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-01-2004, no Proc. n.º 040581, já anteriormente citado, disponível em www.dgsi.pt, não há porque subtrair a afetação ao universo dos custos de sociabilidade e, neste quadro, o dano não é indemnizável.
34. Face ao exposto, o presente recurso deve ser julgado totalmente improcedente, devendo a douta sentença recorrida ser totalmente confirmada.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, devendo a douta sentença recorrida ser totalmente confirmada, assim se fazendo inteira e merecida
JUSTIÇA!”

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O Tribunal a quo proferiu despacho por via do qual admitiu o recurso e fixou os seus efeitos, tendo ainda sustentado a não ocorrência da invocada nulidade por omissão.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional.

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Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], e que se reconduzem, a final, em saber se o Tribunal a quo incorreu na nulidade a que se reporta o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC [ou em nulidade processual], assim como em erros de julgamento em matéria de facto, e em erros em sede da interpretação e aplicação do direito.

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III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

No âmbito da factualidade considerada pela Sentença recorrida, dela consta o que por facilidade para aqui se extrai como segue:

“[…]
Com interesse para a decisão da presente lide, julga-se provados os seguintes factos:
A. Em 19-07-2008, os Réus celebraram um protocolo no qual se previa a realização de acções de supressão e reclassificação das passagens de nível, nomeadamente a passagem de nível situada ao PK 68+18 da Linha do Douro – cláusula 1, al. 2 (fls. 89-96);
B. A supressão dessa passagem de nível devia ser efectuada imediatamente, assim que «o desenvolvimento das obras referidas para a sua concretização o permita» (fls. 89-96);
C. O referido protocolo teve como objectivo reforçar as condições de segurança na circulação e solucionar os problemas levantados pela existência de passagens de nível não enquadradas no Decreto-Lei n.º 568/99 de 23-12 (fls. 89-96);
D. De acordo com o protocolo, a [SCom02...] obrigou-se a (fls. 89-96):
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
E. Por sua vez o Município obrigou-se a (fls. 89-96):
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
F. No protocolo previu-se ainda que a [SCom02...] devia entregar ao Município o projecto de execução da supressão da passagem de nível ao PK 68+018 através da construção de restabelecimento viário sob a Ponte das ... até 150 dias após a assinatura do protocolo e previu-se ainda que o Município promoveria o lançamento do concurso respectivo no prazo de 60 dias «após a entrega dos projectos de execução, concluindo-a no prazo de doze meses após o lançamento do concurso» (fls. 89-96);
G. A [SCom02...] acordou em suportar todos os encargos com a construção das obras previstas no ponto A do probatório (fls. 89-96);
H. A passagem de nível a que se refere o ponto A do probatório não tinha visibilidade para quem procedia de sul (depoimentos de «GG» e de «HH»);
I. Os condutores de veículos automóveis que transitassem vindos de sul para a passagem de nível não conseguiam ver a plataforma da passagem de nível mencionada no ponto A do probatório (depoimentos de «GG» e de «HH»);
J. Em 05-11-2008, a A. adquiriu o terreno sito no Lugar ..., Caminho ..., ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...72 e inscrito na matriz urbana sob o art. ...9 e na matriz rústica sob o n.º ...02 através de sucessão testamentária, por óbito da sua tia (fls. 38-40 da providência cautelar apensa e depoimento da testemunha «EE»);
K. O prédio da A. é composto por um terreno com 0,663 ha e por duas casas de habitação: uma delas composta por dois quartos, uma cozinha, uma casa de banho e um lagar, no piso térreo; a outra por um quarto, uma casa de banho, uma cozinha e uma sala (fls. 65 dos autos e depoimento de «EE»)
L. O prédio tem algumas árvores de fruto, carvalhos, pinheiros e um pequeno jardim (depoimento de «EE»);
M. Este prédio confronta com o Caminho ..., o qual se liga à estrada em dois pontos, um a norte e outro a sul da propriedade da A. – doravante entradas/acessos norte e sul (fls. 24, 52 e 283 dos autos e 57 da providência cautelar apensar);
N. Em 09-2009 ocorreu um acidente na passagem de nível referida no ponto A do probatório, do qual resultaram vítimas mortais (depoimento de «II»);
O. O terreno da A. não foi expropriado para a realização da obra referida no ponto F do probatório – construção do restabelecimento viário (fls. 52-56 da providência cautelar apensa);
P. O Caminho ... não é transitável para veículos de peso igual ou superior a 3.500 kgs (relatório pericial e esclarecimentos prestados em audiência);
Q. O Caminho ... permite a circulação de veículos de peso inferior a 3.500 kgs (relatório pericial e esclarecimentos prestados em audiência);
R. Antes da supressão da passagem de nível, a A. ia ao seu prédio todos os meses (depoimento de «EE»);
S. Antes da supressão da passagem de nível, a entrada norte do Caminho ... era acessível pelo norte, através da Rua ..., com uma curva de 140º e sem inclinação significativa (relatório pericial);
T. Antes da supressão da passagem de nível, havia um muro que tornava impossível para alguém vindo de sul entrar pelo acesso norte do Caminho ... (depoimento de «EE»);
U. Aquando da construção do restabelecimento viário foram realizadas obras junto da entrada norte do Caminho ..., que consistiram na remoção de um muro e no adoçamento da curva (depoimento de «HH»);
V. As obras a que se refere o ponto U do probatório estavam incluídas no protocolo a que se refere o ponto A do probatório (depoimentos de «GG» e «HH»);
W. O prédio de «JJ», residente na zona, foi parcialmente expropriado para execução da obra referida no ponto F do probatório (fls. 24 e 63 dos autos em confronto com fls. 283 dos autos e fls. 76-78 da providência cautelar apensa);
X. Em Junho de 2012 foi terminado o restabelecimento rodoviário e encerrada a passagem de nível a que se refere o ponto A do probatório (admissão das partes);
Y. Actualmente, só é possível aceder à entrada norte do Caminho ... através de uma curva com ângulo de 50º (relatório pericial);
Z. A curva referida no ponto U do probatório está pavimentada a cubos de granito (relatório pericial);
AA. A protecção que separa o declive da estrada é composta por uma rede plastificada e sebe viva assente em pilaretes de betão (relatório pericial);
BB. Actualmente, o acesso norte ao Caminho ... só é transitável por carros pequenos e obriga à realização de manobras iterativas (relatório pericial);
CC. Na curva intervencionada, quando o piso estiver molhado ou com geada, os carros perdem tracção no acesso e derrapam na saída (relatório pericial);
DD. Os arruamentos existentes nas imediações têm características idênticas aos arruamentos do acesso norte ao Caminho ..., mas nenhum apresenta o ângulo e declive deste acesso (relatório pericial);
EE. Existe do lado poente da curva intervencionada um talude com altura entre 5 e 7 metros, e cuja protecção existente não é eficaz para a segurança das viaturas e respectivos ocupantes (relatório pericial);
FF. As alterações introduzidas ao acesso norte do Caminho ... na sequência da supressão da passagem de nível aumentaram a perigosidade no acesso ao prédio da Autora (relatório pericial);
GG. O Caminho ... tem um pavimento irregular, cresce mato sobre ele e há ainda um muro que desmorona com alguma frequência (depoimentos de «EE», «FF» e «DD»);
HH. Quando chove, o Caminho ... fica intransitável, tendo a A. e o seu companheiro, pelo menos em uma ocasião, ficado com o seu veículo aí retido (depoimentos de «FF», «KK» e «LL» e «DD»);
II. O prédio da A. é acessível através da entrada sul do Caminho ..., mas somente a pé (depoimentos de «EE» e de «FF»);
JJ. A entrada do prédio da Autora dista cerca de 30 m do acesso sul ao Caminho ... (mapa junto com o relatório pericial);


KK. As alterações na passagem de nível só tiveram influência no acesso ao prédio da A., tendo os demais habitantes permanecido com os seus acessos inalterados (mapa junto com relatório pericial, depoimento de «DD»);
LL. É possível realizar obras no prédio da Autora (depoimentos de «EE» e de «FF»);
MM. Depois de Junho de 2012, a A. passou a frequentar menos vezes o seu prédio (depoimentos de «EE»);

Com interesse para a decisão da lide, julga-se não provados os seguintes factos:

1. A Autora nunca mais pernoitou no seu prédio desde Junho de 2012;
2. A Autora tornou-se uma pessoa mais introvertida depois da supressão da passagem de nível;
3. Com os actuais acessos, o imóvel não encontra nem encontrará comprador;
4. O prédio referido no ponto J do probatório tem um valor de 133.246,82 €, dos quais 104.226,32 € correspondem ao valor do artigo urbano e 29.020,50 € correspondem ao valor do artigo rústico;
5. Em Outubro de 2012, a A. tentou fazer a curva intervencionada tendo embatido nas sebes;
6. O arrendamento de um prédio com aquelas características no mês de Agosto custaria 2.500 € e ainda 500 € por semana nos outros meses;
7. Os R.s realizaram obras de acesso à habitação de um vizinho da propriedade da A.
8. A A. não vai ao seu prédio no Inverno;
A convicção do Tribunal formou-se com recurso aos meios de prova indicados junto de cada facto dado como provado (documentos juntos aos autos e não impugnados pelas partes – cf. 362.º e ss. do CC), e ainda com recurso à prova pericial e ao depoimento das testemunhas, tendo formado a sua livre convicção com base na motivação que infra se expõe (cf. art. 396.º do CC e art. 466.º/3 do CPC).
«GG» e «HH» depuseram de forma espontânea e consistente, sendo os seus depoimentos compatíveis com a razão de ciência apresentada. Estes referiram-se às condições de trânsito na passagem de nível antes da sua supressão, tendo apresentado depoimentos coincidentes, mas radicados cada um na sua própria experiência. Estas testemunhas eram engenheiros que tiveram participação nas obras decorrentes da supressão da passagem de nível e que, por isso, puderam também convencer o tribunal acerca das obras concretamente realizadas.
A testemunha «EE» depôs de forma espontânea e coerente, com a razão de ciência adequada ao conteúdo das suas declarações. Esta testemunha residiu no prédio que hoje é da A. antes de ingressar na esfera desta e reside ainda hoje na zona. Actualmente continua a dirigir-se com alguma frequência ao prédio da A., indo com a senhora contratada para limpar o terreno. Conseguiu então testemunhar com clareza acerca da localização, dos acessos e das condições do prédio, sabendo os pormenores que seria expectável a alguém que se dirige lá com frequência.
Esta conhece a A. desde criança, estando igualmente em condições para dizer que a A. antes da supressão da passagem de nível visitava o seu prédio todos os meses. Disse ainda que o é difícil transitar no Caminho ... porque cresce lá o mato e o muro “está sempre a desboroar”, sendo corroborada nesta parte por «FF» e «MM» e ainda por alguns pontos que o próprio perito revelou em sede de audiência (não ter avançado com o seu veículo pelo Caminho ... por ter tido receio).
Quanto à distância entre a estrada e a propriedade da Autora, pelo acesso sul, a testemunha disse que a distância era o equivalente à distância entre a entrada do Tribunal e a sala de audiências. Ora, uma vez que a testemunha não tem conhecimentos técnicos para avaliar a distância, o tribunal recorreu ao mapa junto com o relatório pericial, o qual contém uma escala que permite extrair a distância entre o referido acesso sul e o prédio da A.
«II» depôs de forma espontânea e coerente, tendo falado do acidente que aconteceu naquela passagem de nível. Não se referiu propriamente a uma data certa, mas descreveu o acidente e que este aconteceu mesmo antes das eleições autárquicas. Por causa da proximidade das eleições e do falecimento do cabeça de lista, a testemunha veio a assumir a primeira posição – este contexto, em conjunção com a data das eleições autárquicas, permitiu concluir que o referido acidente ocorreu em Setembro.
A testemunha «DD», apesar de ser amiga da A., também depôs de forma espontânea e coerente, tendo merecido credibilidade do Tribunal, tendo contribuído para a prova dos factos onde foi indicado o seu depoimento. Esta confirmou as declarações de «EE» e relatou ainda uma ocasião em que a A. e o seu companheiro ficaram retidos no meio do Caminho ..., relato que permitiu formar a convicção de que o Caminho ... não era o único obstáculo ou dificuldade que uma pessoa enfrentaria se quisesse levar um veículo até à propriedade da A. Esta foi, aliás, a conclusão de «KK» e «LL», segundo a qual esta teria alguma apreensão em ir ao prédio da A. por causa da curva e por causa do caminho.
Todas as testemunhas concordaram que o Caminho ... estava em mau estado, incluindo a mãe da A.
No que diz respeito aos pontos II e LL do probatório, diga-se que a testemunha «FF», mãe da A., declarou que os responsáveis pela entrega do gás estacionam na estrada e levam as botijas a pé através do acesso sul ao Caminho .... Esta testemunha disse que não era fácil para uma pessoa de alguma idade subir ali o caminho – todavia neste ponto o seu depoimento foi contrariado pelo de «EE», de 56 anos de idade, que declarou subir com facilidade em direcção à propriedade da A. através do acesso sul e, inclusive, que auxiliava a senhora da limpeza do terreno a transportar alfaias agrícolas.
Ora, se esta segunda testemunha, que depôs de forma espontânea e desinteressada, consegue subir com facilidade uma distância que descreveu como sendo “da porta do tribunal até esta sala [de audiências]”, transportando alfaias agrícolas, então não se pode concluir que é impossível aceder ao prédio da A. ou que não se podem realizar lá obras.
Com efeito, se a senhora contratada para limpar o terreno da Autora consegue subir por ali com uma roçadora e, bem assim, a testemunha de alguma idade consegue igualmente auxiliá-la no transporte de alfaias agrícolas, tal como o senhor da entrega do gás leva por ali as botijas, deve concluir-se que é possível realizar obras no prédio da Autora. O empreiteiro só teria de transportar, “à mão”, os materiais e ferramentas por uma distância de 30m.
Não foi possível retirar da prova produzida que, desde Junho de 2012, a A. nunca mais pernoitou no seu prédio. Resultou do depoimento de várias testemunhas (ponto MM do probatório e ainda do depoimento de «CC») que a A. passou a ir menos vezes ao prédio, o que deixa subentendido que já lá esteve em momento posterior ao da supressão da passagem de nível.
Por outro lado, a testemunha «MM» declarou ter estado no prédio da A. mais do que uma vez, e sempre depois da supressão da passagem de nível. Se a A. aí pernoitou ou não, a prova produzida não o permite afirmar nem infirmar, pelo que, competindo o ónus deste facto à A., deve este facto ser julgado não provado – art. 342.º/1 do CC.
Quanto ao estado de espírito da A., o que as várias testemunhas foram indicando foi que a A. estava triste e desapontada com a situação do seu prédio, mas não disseram nada que permitisse afirmar, com segurança que a supressão da passagem de nível tivesse provocado uma alteração significativa e permanente do estado de espírito da A.
A testemunha «EE» disse que a A. que conhece «não é a «AA» que conhecia», mas esta circunstância explica-se facilmente se considerarmos que está só se encontra com a A., previsivelmente, quando esta se dirige ao seu prédio e quando esta é confrontada com as dificuldades de acesso.
A mãe da A., quando questionada acerca do estado de espírito começou por dizer que estava desanimada com a situação e o seu depoimento nesta parte levou a concluir que a tristeza/desânimo não é nenhuma alteração da personalidade ou do estado de espírito em geral, mas um desânimo específico, pela não fruição do prédio. Noutra parte, relativa à ansiedade, o depoimento desta testemunha foi induzido, pelo que não relevou para a formação da convicção do tribunal.
Como decorreu do depoimento da testemunha «DD», a A. não tem intenções de vender o imóvel e não há nada nos autos que indicie que esta tenha tentado efectuado quaisquer diligências no sentido de vender o imóvel. Não há assim nada que permita concluir que não é possível encontrar comprador para o prédio da A.
Relativamente à tentativa de acesso ao prédio realizada pela A. em Outubro de 2012, este facto foi julgado não provado porquanto não foi feita qualquer prova relativamente a este ponto – art. 342.º/1 do CC. Apesar disto, este facto é um facto instrumental do facto relativo à perigosidade da curva sita no acesso norte ao Caminho ... que ficou estabelecido por outra via (relatório pericial).
O ponto 6 do probatório foi julgado não provado uma vez que os documentos juntos pela A. são manifestamente insuficientes para permitir formar a convicção do Tribunal nesse sentido. Com efeito, os relatórios de avaliação imobiliária juntos com a petição não justificam os valores encontrados para servir de base às conclusões retiradas (qual a justificação para atribuir ao terreno o valor de 40.000 € /ha; qual o fundamento da atribuição do custo de construção de 450 €/m2; se foi feito algum estudo comparativo de mercado – se sim, que imóveis serviram de comparação e quais as diferenças entre estes e o presente, etc.), limitando-se a enunciar uma série de elementos alegadamente tidos em consideração e uma conclusão quantitativa.
Mais se diga que os vários projectos que as testemunhas foram mencionando para o prédio (turismo rural, plantação de mirtilos) se revelaram meras conjecturas ou sonhos da parte da A., ou seja, nada de concreto que permita atribuir-lhe uma capacidade produtiva com relevo para uma eventual valorização do imóvel.
Quanto aos valores do arrendamento do imóvel, estes foram julgados não provados uma vez que as testemunhas que depuseram sobre este ponto não tinham razão de ciência para tal. Por exemplo, «KK» e «LL» disse não ter noção do preço concreto, tendo depois avançado que seria por volta dos 800 € mensais. A final, revelou não ter visto quaisquer imóveis para arrendamento em ....
A testemunha «CC» indicou como valores 500­600 € por semana para arrendamento de curta duração e 500-600 € por mês em arrendamento de longa duração, mas a razão de ciência é insuficiente. Esta disse estes valores por ter sido o valor pago pela testemunha numa ocasião em que fez turismo rural na zona de ... e .... Esta admitiu nunca ter procurado outras instalações de turismo rural em ..., o que seria a situação comparável mais próxima do prédio da A.
Relativamente à construção de um acesso à habitação de um vizinho, que se apurou ser «JJ» (v. ponto W do probatório), não ficou provado que tenha sido construído por algum dos Réus, uma vez que a testemunha que depôs sobre a construção do acesso («FF») não tinha razão de ciência para afirmar acerca da identidade de quem construiu esse acesso (esta sabia apenas que tinha sido construído um acesso).
O ponto 8 do probatório foi julgado não provado porque as testemunhas se apresentaram contraditórias neste ponto. «DD» declarou que a A. nunca mais foi ao seu prédio no Inverno. Por outro lado, «EE» disse que a A. foi poucas vezes ou quase nenhumas, o que indicia que a A. terá visitado o seu prédio durante o Inverno. Atribuiu-se mais valor ao depoimento desta segunda testemunha, uma vez que esta vê a casa da A. da sua própria casa e pode verificar quando esta está a ser ocupada, enquanto a testemunha «MM» não reside na zona e o seu conhecimento advém de ser amiga da A. e de ter ido ao prédio em várias ocasiões. É possível que a A. tenha ido ao prédio e simplesmente «MM» não ter tido conhecimento disso, enquanto a testemunha «EE» podia percepcionar directamente essa circunstância.
O tribunal não considerou o depoimento das testemunhas na parte abrangida pelo relatório pericial, uma vez que este foi realizado por pessoa com as qualificações adequadas a fazê-lo e que tem distanciamento em relação às partes no processo.
Também não houve nada no depoimento das testemunhas que levasse a afastar as conclusões do relatório pericial – neste ponto ocorreu apenas uma discordância no que se refere à possibilidade de fazer a curva “à primeira” (id est, sem necessidade de manobras iterativas). Algumas testemunhas referiram ser possível realizar a referida manobra, outras não, pelo que o Tribunal deve atribuir maior confiança ao juízo técnico emitido pelo perito e que não deixa de representar a situação média no que concerne à possibilidade de efectuar a manobra.
Quanto à existência de curvas semelhantes naquela zona, as testemunhas também variaram, mas nenhuma tem conhecimentos técnicos compatível com a emissão desse juízo.”

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Tendo subjacente o disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, aditamos ao probatório, seguindo a temporalidade e a enunciação dele constante, a factualidade que segue:

Qa. Os veículos com peso até 3.500 kg, conseguem fazer o percurso até à casa da Autora pelo Caminho ....

Nos termos dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito na Audiência final, que questionado sobre a matéria vertida neste ítem, referiu que esses veículos “passam à vontade“ no caminho;

Qb. Os veículos com peso até 3.500 kg, designadamente os utilizados pelos Bombeiros, não passam na curva formada pela intersecção da Rua ... com o Caminho ....

Nos termos dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito na Audiência, que questionado sobre a matéria vertida neste ítem, referiu que esses veículos passam à vontade no caminho, mas que antes disso não conseguem porém passar na curva.

Qc. Antes da supressão da passagem de nível das ..., o Caminho ... já era a via de acesso rodoviário à propriedade da Autora, a qual não permitia a circulação de veículos de média e grande dimensão.

Nos termos dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito na Audiência final, que questionado sobre a matéria vertida neste ítem, referiu que antes da supressão da passagem de nível esses veículos podiam entrar nesse caminho, mas que depois mais à frente já não tinha acessibilidade, por o caminho estreitar junto a um casario.

Qd. O Caminho ..., é um caminho vicinal, da jurisdição da Junta de freguesia [União de Freguesias ... e ...], que no seu traçado está fisicamente igual ao que existia antes do fecho da passagem de nível, salvo no seu topo norte, e que é limpo pelo menos 2 vezes por ano.

Nos temos do depoimento prestado pela testemunha «II», Presidente da União de Freguesias ... e ..., que assim depôs e que permitiu formar a nossa convicção em torno da matéria vertida neste ítem; referiu esta testemunha que são mais vezes limpos os terrenos que servem um maior número de população, e que cerca de 60% da limpeza que a Junta faz na freguesia é da responsabilidade dos proprietários, que não a fazem, sendo relativa a vegetação que vem das suas propriedades e que é cortada pela Junta para que as pessoas possam transitar; ainda nos termos das fotografias F e I por nós juntas aos autos, que pelo seu mero confronto, é possível concluir que o topo norte do Caminho ..., quando intersecciona com a Rua ..., foi objecto de intervenção, seja no piso, seja no modelamento da curva.

Ua. A curva efectuada por exercício conjunto dos Réus [SCom02...] e Município ..., no âmbito da intervenção nas vias rodoviárias motivada pela supressão da passagem de nível das ..., formada pela intersecção da Rua ... com o Caminho ..., não obedece aos critérios da engenharia.

Nos termos dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito na Audiência final, que questionado em torno da acessibilidade de ambas as vias [Rua ... e Caminho ...] por veículos, ainda que ligeiros de passageiros, assim referiu, sem que as partes tenham questionado o Senhor Perito sobre a base desta sua afirmação. Julgamos porém, com base nas regras de experiência comum, e também nas nossas experiências de vida, que a sua formulação advém do facto de as duas vias se situarem a duas cotas altimétricas distintas, em que se circulando de uma via em que praticamente se circula na horizontal [o Caminho ...], se tem de fazer uma curva com um ângulo agudo de cerca de 50 graus, para a esquerda, que tem um imediato acentuado sentido descendente, curva essa que, como assim muito salientou o Senhor Perito, não se consegue fazer à primeira tentativa [ou, ele pelo menos, e nessa qualidade, não o conseguiu fazer], antes com muitas manobras e num processo iterativo [indo à frente, rodando e voltando atrás, rodando e seguindo à frente, ...]. Ou de outro modo, em que se circulando numa via ascendente, com forte inclinação [a Rua ...], se tem de fazer uma curva com um ângulo agudo de cerca de 50 graus, para a direita, que tem um imediato sentido ascendente e com adoçamento da curva, para atingir o patamar de um nivelamento quase na horizontal [no Caminho ...], empreendendo o mesmo processo iteractivo de condução automóvel.

Em face da audição dos depoimentos das testemunhas inquiridas na Audiência final, e por forma a alcançarmos o conhecimento necessário em torno da localização da zona geográfica da área a que se reporta, o Tribunal recorreu a uma ferramenta tecnológica de comum acesso a todos os cidadãos, disponibilizada gratuitamente pelo motor de busca ´google´. E por aí ainda conseguimos identificar o estado das vias de circulação [do Caminho ... e da Rua ..., antes e depois da supressão da passagem de nível do caminho de ferro - no seu início, sentido descendente], assim como do modo e termos em que a passagem de nível se encontrava colocada na disponibilidade de acesso de qualquer pessoa que a esse local se dirigisse, e bem assim, em torno do novo acesso rodoviário alternativo construído ao abrigo do protocolo [celebrado entre os Réus, no dia 19 de julho de 2008], que passa por debaixo da Ponte das ..., e que conduz à rua de ..., a qual vai interseccionar com a Rua ..., no seu início, sentido ascendente.

Daí retiramos as fotografias [já acima referidas noutro ponto do probatório que aditamos, e que elencamos de A a I, por forma a ser permitida uma apreensão física sequencial], com a respectiva legenda sumária, assim como o respectivo link de acesso, para que, para além das fotografias [mas não necessariamente] seja possível a sua visualização com recurso a um computador.

Em conformidade com o que refere «NN», em anotação ao artigo 636.º do CPC, in Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Livraria Almedina, ..., 2018, págs. 287 e 288, o enunciado no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto quando os factos que tenham sido julgados provados, a prova produzida ou um outro documento superveniente impuserem decisão diversa, e nesse sentido, que “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.

A jurisprudência tem reiterado o entendimento de que a interpretação das sentenças deve obedece às mesmas regras da interpretação dos negócios jurídicos, sendo que e para esse efeito, para uma correcta interpretação da parte decisória de uma Sentença impõe-se a análise de todos os seus antecedentes lógicos, ou seja, os termos e os pressupostos, de facto e de direito que foram determinantes para ser alcançada aquela concreta uma solução jurídica.

Neste patamar [e tendo ainda subjacente o disposto no artigo 412.º do CPC], em torno da intersecção da Rua ... com o Caminho ..., foi assim possível aceder a fotografias captadas em agosto de 2010, portanto, antes de ter sido suprimida a passagem de nível, e depois de setembro de 2021, depois dessa supressão, que ocorreu no ano de 2012.

O que se extrai dessas fotografias, e de forma linear, é que o Caminho ... tinha um sentido de tráfego que julgamos ser autónomo em relação à Rua ... [Cfr. fotografias D, E e F e suas legendas], pois que na parte em que findava esse Caminho [quando no sentido da passagem de nível], logo à esquerda tínhamos um murete, sendo impossível a imediata circulação rodoviária para a Rua ..., por esse Caminho estar posicionado a uma cota altimétrica superior em pelo menos 50 cm [tendo por referência o muro aí existente do lado esquerdo da via, que delimita a propriedade aí situada no início da Rua ...] acima da Rua ..., e cuja diferença entre pisos se vai anulando à medida que o Caminho ... segue no sentido da passagem de nível [Cfr. fotografias E e F, e suas legendas].

Ou seja, e por reporte às fotografias captadas em 2010 [Cfr. fotografias C, D, E e F, e suas legendas], quem circulasse na Rua ..., com o piso em paralelepípedo, no sentido ascendente [e antes da passagem de nível] não conseguia tornar logo à direita para ingressar no Caminho ..., e pelo outro lado, quem circulasse já no fim do topo norte do Caminho ..., com o piso parcialmente em asfalto [e antes da passagem de nível] não conseguia tornar logo à esquerda para ingressar na Rua ....

Portanto, anos antes do fecho da passagem de nível [ou pelo menos desde agosto de 2010] que o acesso à propriedade da Autora só se podia fazer descendo a Rua ..., atravessando a passagem de nível e voltando logo após à esquerda, ou então, para quem circulasse no sentido oposto, subindo a Rua ..., transpondo a passagem de nível e nesse local fazer a inversão do sentido de marcha para tornar a transpor a passagem de nível e logo após voltar à esquerda seguindo o caminho de nível do Caminho ... [Cfr. fotografias F, C, D e E, e suas legendas].

Depois de ser suprida a passagem de nível, o acesso à propriedade da Autora deixou de poder ser efectuado transpondo a passagem de nível em qualquer um dos seus dois sentidos viários, tendo passado a ser efectuado pela Rua ..., em que já no limite da sua parte superior se passou a fazer a circulação apenas para a direita, para o Caminho ....

Em torno da situação física que existia na intersecção da rua das ... com o caminho ..., ... [antes do fecho rodoviário da passagem de nível] e depois de 2012 [depois do fecho rodoviário da passagem de nível] foi da atenção deste Tribunal a concreta forma em que as duas vias se uniam e passaram depois a unir.

Neste sentido, como assim depôs em Audiência final a testemunha «GG», Engenheiro Civil em exercício de funções na Ré IP, S.A., referiu o mesmo que junto à passagem de nível foi efectuado o levantamento da estrada e colocados uns muretes, e que não se recorda de ter sido feito o adoçamento da curva, antes apenas se recordava de existirem aí umas casas velhas e que um dos muretes do vizinho foi reparado pelo empreiteiro, mas que não se recorda se foi feito pela [SCom02...]. Mas frisou que no início da supressão da passagem de nível nunca se colocou a questão do muro, que só foi notada porque alguém alertou nesse sentido.

Por sua vez, a testemunha «GG», Engenheiro da CM de ..., referiu que quem circulasse de veículo no sentido ascendente da Rua ..., não conseguia ver o pavimento, e que durante os trabalhos de execução da obra, a [SCom02...] fez trabalhos de concordância do muro existente, e que a curva foi adoçada, mas o piso está igual, e que do que conhece do local, para fazer a supressão da passagem de nível, em termos práticos o que foi feito era o aconselhado e exequível, referindo ainda que a Câmara Municipal é que fiscalizou a obra que a [SCom02...] projectou, e o empreiteiro fez as obras, e que se durante a fase de execução da obra algo não estivesse de acordo com o projecto da [SCom02...], a CM alertaria, e referiu ainda que na mesma rua [de ...] a cerca de 200/300 metros do local, tiveram de rectificar a curva inclinada porque havia veículos que tinham dificuldade.

Por sua vez, a testemunha «HH», Engenheiro da CM de ..., referiu que lhe competiu fazer o lançamento do procedimento concursal e fiscalizar a obra e que a execução do projecto não teve desvio, tendo sido cumprido pelo empreiteiro, e que com a supressão da passagem de nível, o que estava no projecto foi o que foi executado e que é o que está executado no local, e que o que se fez na altura da obra foi um ajuste à curva, para que ela fosse mais suave, e entre o caminho e o acesso, foi feito o adoçamento da curva, por haver um desvio de cotas.

Em face da leitura que é possível efectuar das fotografias enunciadas supra [Cfr. fotografias A a I, e suas legendas], antes do fecho da passagem de nível, e no sentido ascendente da Rua ..., tendo à direita o Caminho ..., o que é patente é que depois de findar o muro que delimita a propriedade aí existente, à direita, este caminho se prolonga [numa medição, que efectuamos, expedita e aproximada] por cerca de 4 metros, a uma cota de pavimento mais alta do que a detida pela Rua ... [Cfr. fotografia F e suas legenda]. O que é ainda patente, é que entre o limite do muro que delimita essa propriedade [que forma um triângulo], desde a sua extremidade [onde está ao lado um portão em ferro] até à pequena construção aí existente [com porta de entrada e um ferro em cima, que tem um fio ligado], dista também cerca de 4 metros [numa medição, que efectuamos, expedita e aproximada] - Cfr. fotografia F e sua legenda.

Depois do fecho da passagem de nível, o que é patente é que para quem vem do Caminho ..., o muro que delimita a propriedade aí existente, à esquerda, finda com um muro, de cerca de 50 cm de comprimento e 1 metro de altura, logo após a pequena construção aí existente [com porta de entrada e um ferro em cima, que tem um fio ligado], e logo aí, à esquerda, esse caminho liga imediatamente com a Rua ..., sendo evidente o desnível de cotas do pavimento entre ambas as vias que se interseccionam [Cfr. fotografias F, G e I e suas legendas].

Ou seja, após a supressão da passagem de nível das ..., para que fosse possível circular entre as duas vias [Caminho ... e Rua ...] tornou-se necessário [era aliás era evidente], adaptar o traçado dessas duas vias, em termos de as tornar compatíveis, sendo que o Caminho ..., na parte em que veio a confinar com a Rua ..., e tendo presente o muro de delimitação da propriedade existente à esquerda, assim como a diferença de cotas do pavimento [que se nota do lado esquerdo] foi colmatado [adoçado] 50 cm após passar a construção aí existente à esquerda, numa distância de cerca de 8 metros [4+4] - Cfr. fotografias F, G e I e suas legendas.

Assim se alcançou a solução final de engenharia que aí existe na actualidade, ou melhor desde 2012 [Cfr. fotografias G e I e suas legendas].

Ora, se bem que a curva em causa, de acesso ao Caminho ... provindo da Rua ..., e vice-versa, não obsta à circulação de automóveis ligeiros, fazendo o trajecto numa única manobra, ou em várias manobras, já quanto a veículos de bombeiros e ambulâncias, não passam os mesmos na curva, como assim prestou esclarecimentos em Audiência final o Senhor Perito.

Esclareceu o Senhor Perito e de forma peremptória, que se hoje se fizesse aquela curva não podia ser daquela maneira, pelo facto de quando se faz uma estrada há determinadas coisas que não se pode fazer, o que julgamos contender, a final, com a técnica ou a ciência da execução de vias rodoviários e seus acessos.

Como assim julgamos, com a supressão da passagem de nível, foi eliminado totalmente o perigo que advinha para as pessoas que por aí transitassem, ou seja, para a macro-comunidade que tivesse de aí passar. Porém para a nano-comunidade que tem de subir a Rua ... e virar à direita para o Caminho ..., abriu-se uma outra fonte de perigo, decorrente do facto de o espaço para fazer a manobra ser exíguo, de as viaturas derraparem [ou poderem derrapar], seja com o piso molhado, com geada, ou com piso seco, e de com grande potencialidade se poder perder o controlo do veículo e de o seu condutor não conseguir evitar, por maior ou menor perícia por si detida, evitar que o veículo possa aproximar-se do talude virado para a Ponte das ..., que tem um desnível, uma diferença de cota altimétrica de cerca de 5 a 7 metros.

Xa. O Município ... recebeu da [SCom02...] os acessos e restabelecimentos rodoviários construídos por efeitos da supressão da passagem de nível das ....

Cfr. fls. 89-96 dos autos, atinentes ao Protocolo outorgado em 19 de julho de 2008; ainda em face dos depoimentos das testemunhas «GG» e «GG», de onde se extrai que os acessos e restabelecimentos rodoviários, onde se acha incluída a curva em apreço nos autos, foram recepcionados pelo Município ..., por terem sido achados em conformidade, quer com o projecto de execução, quer com as regras e procedimentos técnicos da engenharia e de tanto determinantes.

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IIIii - DE DIREITO

Está em causa a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que com referência ao formulado pela Autora contra a [SCom01...], S.A. [anteriormente denominada de [SCom02...], S.A.] e contra o Município ... [todos devidamente identificados nos autos], veio a julgar a acção improcedente e assim, pela absolvição dos Réus dos pedidos contra si formulados.

Constituindo os recursos jurisdicionais constituem os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, razão pela qual é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso, os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Nas conclusões das suas Alegações de recurso, a Recorrente assacada à Sentença recorrida, os seguintes vícios:

a) nulidade da Sentença por excesso de pronúncia [ou nulidade processual].
b) erros de julgamento em matéria de facto:
(i) de factos incorrectamente dados como provados;
(ii) de factos erradamente dados como não provados;
(iii) de factos indevidamente omitidos e não levados à matéria de facto.
c) erros de julgamento em matéria de interpretação e aplicação do direito regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas colectivas de direito público, por se verificarem os respectivos pressupostos de indemnização pela prática de actos ilícitos, assim como de indemnização pelo sacrifício.

Cumpre então apreciar desde já a invocada nulidade, a que se reporta o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, ou como também refere a Recorrente, alternativamente, a ocorrência de nulidade processual, por violação do disposto no artigo 195.º, n.º 1 também do CPC.

Vejamos então.

No domínio da lei processual e para efeitos do disposto no artigo 615.º, n,º 1, alínea d), parte final, e e) do CPC, há excesso de pronúncia quando o tribunal conhece de (i) pedidos, (ii) causas de pedir ou (iii) exceções, de que não podia tomar conhecimento.

Conforme se extrai do sumário do Acórdão proferido por este TCA Norte em 30 de março de 2006 no Processo n.º 00676/00 – Porto, “I. Ocorre excesso de pronúncia quando o Tribunal conhece de questões de que não pode tomar conhecimento por utilizar um fundamento que excede a causa de pedir vazada na petição, ou por extravasar o elenco legal do conhecimento ex officio ou, ainda, por conhecer de pedido quantitativa ou qualitativamente distinto do formulado pela parte, isto é, conhecer em quantidade superior ou objecto diverso do pedido.

Como refere M. Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, Lisboa, 1997, págs. 220 a 223, “[…] Como corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264.º, n.º 1 e 664.º 2.ª parte), a decisão é nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [art. 668.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte], ou seja, quando a decisão esteja viciada por excesso de pronúncia. Verifica-se este excesso sempre que o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado, bem como quando conhece de matéria alegada ou pedido formulado em condições em que está impedido de o fazer.[…]”

É neste contexto que a nulidade da sentença com fundamento em excesso de pronúncia consubstancia uma decorrência do princípio do dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes, do qual decorre, entre outras consequências, que cabe ao autor instaurar a acção, e enunciando o pedido e a causa de pedir deduzidos na Petição inicial, e bem assim da defesa que venha a ser apresentado pelo réu, circunscrevendo assim o thema decidendum [cfr. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e 374], mas também do princípio do contraditório, na sua vertente positiva, o qual proíbe a prolacção de decisões surpresa, com inerente preterição do direito das partes de contribuírem positivamente para a decisão a ser neles proferida.

Deste modo, haverá nulidade da sentença por excesso de pronúncia, quando o juiz tiver conhecido de questões [pedidos, causas de pedir ou excepções] que as partes não submeteram à sua apreciação, e de que não podia conhecer oficiosamente.

Aqui chegados.

Invocou a Recorrente neste domínio, para tanto e em suma, que ocorre nulidade por excesso de pronúncia, porque o Tribunal a quo conheceu de factos essenciais que lhe estava vedado conhecer, e sempre de todo o modo, por não ter facultado às partes a possibilidade quer de se pronunciarem sobre a intenção de os incluir na matéria facto, quer de previamente e relativamente a eles, de requererem a produção de prova.

E refere que neste âmbito estão em apreço os factos provados sob alíneas II e JJ do probatório, por considerar que foram essenciais para a decisão da causa, por se ter enunciado na fundamentação da Sentença que os mesmos foram atendidos para, conjuntamente com outros, se considerar que a conduta dos Réus é lícita e que os pressupostos de indemnização pelo sacrífico não se mostravam verificados, nos termos do artigo 16.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, quando, como assim sustenta, essa matéria não foi alegada pelas partes nos articulados, e não constava nem do objecto do litígio nem dos temas de prova, e que assim resultou como decorrência da mera da audição das testemunhas em Audiência de julgamento, e que sendo factos essenciais deviam ter sido alegados pelas partes, ou mesmo que complementares, que o Tribunal a quo devia facultado às partes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem e requerer a produção de prova que entendessem, o que não aconteceu, e inclusivamente, como assim sustenta, que sobre esses factos deveria ter recaído a produção de prova pericial, na linha dos restantes factos julgados e relativos às condições de acesso à habitação da Autora, até por se dever considerar insuficiente para a sua prova a mera alegação de testemunha, tendo assim sido violado o artigo 5.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do CPC.

A Recorrida opõe-se à argumentação esgrimida pela Recorrente, concluindo a final pela não ocorrência da invocada nulidade da Sentença, ou da nulidade processual.

Vejamos pois.

A exigência de fundamentação das decisões judiciais tem consagração constitucional, mostrando-se expressamente prevista no artigo 205.º, n.º 1 da CRP, nos termos do qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, sendo que é pela fundamentação da decisão que se permite o controlo da sua legalidade pelos seus destinatários e a sua sindicância pelos tribunais superiores, evitando-se desse modo qualquer livre arbítrio do julgador.

Em obediência a esta exigência constitucional, o legislador ordinário consagrou no artigo 154.º do CPC o “dever de fundamentar a decisão”, estipulando no seu n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. E, por outro lado, cominou com a nulidade a Sentença quando ocorra excesso de pronúncia.

Isto posto, regressemos ao caso dos autos.

Analisada a Sentença recorrida constatamos que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, depois de fixar a factualidade que entendeu por relevante, com referência aos elementos de prova que a suportam, enunciou as razões que conduziam à apreciação do mérito da causa, tendo estribado juridicamente a sua posição no sentido de que a sua pretensão não podia proceder.

Ora, depois de cotejado o vertido nas conclusões a) a j) das Alegações de recurso, julgamos que não assiste razão à Recorrente.

Desde logo, porque ao contrário do que sustenta, o Tribunal a quo não podia ficar tolhido no seu poder inquisitório, quando é certo que pelos termos por que foi fixado o objecto do litígio, o que estava em causa era apreciar e decidir se a actuação dos Réus assentava na prática de acto ilícito, ou também [embora assim não o tendo referido expressamente na Petição inicial], na prática de acto lícito, o que em ambos os casos seria determinante da sua responsabilidade extracontratual, e assim, que estariam os Réus constituídos no dever de indemnizar.

Atentemos desde logo no que foi alegado pela Autora ora Recorrente sob os pontos 14 e 24 da Petição inicial.

Questão que foi apreciada pelo Tribunal a quo.

Se o para o efeito o Tribunal a quo veio a fixar outra factualidade, que pelo decorre do probatório pode[rá] até ir para além da factualidade relevante para aquele efeito, essa é questão que não encerra em si qualquer excesso de pronúncia nem nulidade processual, pois que o Tribunal a quo actuou no limiar do que lhe era lícito conhecer.

Efectivamente, ouvidos os depoimentos de todas as testemunhas inquiridas, assim como os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito, o que deles resulta é que à Autora foi amplamente garantido o direito de produzir prova em audiência contraditória. Notamos aliás, que o Senhor mandatário da Autora, re-inquiriu algumas testemunhas mesmo depois de os Senhores mandatários dos Réus terem feito a sua instância, a propósito, designadamente, da questão dos acessos que a casa da Autora tem, seja de carro, seja a pé, como assim depôs a testemunha «EE».

Temos de ter presente, como de resto assim a Recorrente fez menção nas suas Alegações de recurso, que sob o ponto ii) dos Temas de prova estava, precisamente, aferir sobre as condições de acesso ao bem imóvel propriedade da Autora existentes em momento anterior à supressão da passagem de nível sita na Ponte das ...”. Ou seja, e como assim julgamos, no âmbito do plano dos factos instrumentais ou complementares [Cfr. artigo 5.º, n.º 2 do CPC], para efeitos da apreciação dos pedidos indemnizatórios formulados, sempre se tornava adequado apreciar a prova que fosse produzida em torno de saber se a Autora ficou impossibilitada de aceder à sua casa, à sua propriedade, seja a pé seja de carro, e que vias de acesso são essas.

De maneira que, com a fundamentação que deixamos vertida supra, forçoso é, pois, concluir que nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) - 2.ª parte - do CPC, que não ocorre a nulidade da sentença, nem tão pouco que o Tribunal a quo tenha postergado qualquer formalidade que possa influir no exame ou na decisão da causa.

Cumpre agora apreciar dos invocados erros de julgamento em matéria de facto.

Dispõe o artigo 627.º, n.º 1 do CPC que “As decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos”, ou seja, que o recurso é o meio processual por via do qual são impugnadas as decisões judiciais, e nessa medida, o tribunal superior é chamado a reexaminar a decisão proferida e os seus fundamentos.

Como refere «NN», in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2014, Almedina, página 92 “(…) A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão, determina uma importante limitação ao objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal a quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar as decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo se quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. (…)”

Assim, o recurso como meio de impugnação de uma decisão judicial, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e por outro lado, da conjugação do artigo 640.º, n.º 1 e do artigo 662.º, n.º 1, ambos do CPC, resulta afastada a possibilidade de o Tribunal de recurso com competência em matéria de facto efectuar um novo julgamento, pois faz recair sobre o recorrente o ónus de, em primeiro lugar, indicar os concretos pontos de facto que pretende ver modificados, e em segundo lugar, indicar os concretos meios probatórios constantes do processo, do registo ou da gravação que imponham decisão diversa sobre esses pontos de facto.

Dispõe o n.º 1 do artigo 640.º do CPC, que “1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Conforme assim tem sido sistematicamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, o Tribunal de recurso só deve intervir quando for prosseguido o julgamento de que a convicção formada pelo Tribunal recorrido não seja razoável, isto é, quando se apresente como manifesta a desconformidade dos factos [dados por provados e/ou não provados] com os meios de prova patenteados nos autos, dessa forma se dando prevalência aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto – neste sentido, Cfr. o Acórdão do STA, de 19 de outubro de 2005, proferido no Processo n.º 0394/05.

Neste patamar.

Em sede dos invocados erros de julgamento em matéria de facto, a Recorrente sustenta que os mesmos ocorrem por via de três domínios: (i) por factos incorrectamente dados como provados; (ii) por factos erradamente dados como não provados; e (iii) por factos indevidamente omitidos e não levados à matéria de facto.

Cumpre então apreciar os invocados erros em torno dos factos incorrectamente dados como provados.

Sustenta a Recorrente que os factos K, BB, CC, DD, GG, HH, II e LL foram incorrectamente dados como provados pelo Tribunal a quo.

O facto K constante do probatório, tem a seguinte redacção:
K. O prédio da A. é composto por um terreno com 0,663 ha e por duas casas de habitação: uma delas composta por dois quartos, uma cozinha, uma casa de banho e um lagar, no piso térreo; a outra por um quarto, uma casa de banho, uma cozinha e uma sala (fls. 65 dos autos e depoimento de «EE»)“.

A Recorrente entende que o facto K constante do probatório, deve ter outra redacção, que enunciou como segue:
K. O prédio da A. é composto por um terreno com 0,663 ha, dotado de algumas benfeitorias e possibilidade de cultivo tradicional em terreno de razoável qualidade, e por duas casas de habitação de boa qualidade, com revestimento dos pavimentos com materiais cerâmicos de boa qualidade e em muito bom estado de conservação, pavimentos revestidos a madeiras nobres, tectos integralmente forrados a madeira, caixilharias/carpintarias em madeira de boa qualidade e em muito bom estado de conservação: uma delas composta por dois quartos, uma cozinha mobilada, uma casa de banho e um lagar, no piso térreo; a outra por um quarto, uma casa de banho, uma cozinha mobilada e uma sala.

Sustenta a Recorrente, em suma, que o Tribunal a quo errou na valoração da prova, quer em face do constante do relatório de avaliação imobiliária junto com a Petição inicial, quer dos depoimentos das testemunhas «BB» e «CC», e que é com base nestes meios de prova que este facto K) deve ser alterado como por si proposto.

Vejamos.

O constante do facto K) como constante do probatório é uma realidade que a própria Recorrente não põe em causa. Trata-se a final, da descrição da sua propriedade, considerando a dimensão do terreno onde estão implantadas duas habitações, com a tipologia assinalada.

A perspectiva em que se ancora a Recorrente, de que o facto em causa deve comportar uma maior descrição das construções existentes, por forma a serem evidenciadas as suas especificidades e características ao plano dos acamentos e dos materiais utilizados, não resulta do depoimento das duas identificadas testemunhas.

O que se retira destes dois depoimentos, no essencial, é que as casas têm boas condições de habitabilidade, mas que possuem acessos difíceis.

O relatório de avaliação imobiliária, a que se reporta a Autora sob o ponto 61 e seguintes da Petição inicial, não consubstanciava meio de prova a atender na globalidade do seu teor pelo Tribunal a quo, desde logo porque tratando-se de prova constituenda e estando sujeita ao contraditório, o seu teor foi impugnado especificamente quer pelo Réu Município ... [Cfr. ponto 1.º e 2.º da sua Contestação], quer pela Ré [SCom01...], S.A. [Cfr. pontos 15.º e 38.º da sua Contestação].

De todo o modo, em face do que resultou da prova testemunhal identificada pela Recorrente, e do que é o resultado do ónus processual que sobre si impendia em face do disposto no artigo 640.º do CPC, julgamos por dar nova redacção ao facto K), nos seguintes termos:
K. O prédio da A. é composto por um terreno com 0,663 ha e por duas casas de habitação com boas condições de habitabilidade: uma delas composta por dois quartos, uma cozinha, uma casa de banho e um lagar, no piso térreo; a outra por um quarto, uma casa de banho, uma cozinha e uma sala (fls. 65 dos autos e depoimentos de «EE», «BB» e «CC»)“.

Prosseguindo.

O facto BB constante do probatório, tem a seguinte redacção:
BB. Actualmente, o acesso norte ao Caminho ... só é transitável por carros pequenos e obriga à realização de manobras iterativas (relatório pericial);“.

A Recorrente entende que o facto BB constante do probatório, deve ter outra redacção, que enunciou como segue:
BB. Actualmente, o acesso norte ao Caminho ... só é transitável por carros pequenos, encontrando-se manifestamente mais condicionado porque na zona da curva (fechada) em causa nestes autos existe forte inclinação entre arruamentos e o ângulo da curvatura é agudo, não sendo possível transitar normalmente, obrigando à realização de manobras iterativas.“

Sustenta a Recorrente, em suma, que lido o facto fixado pelo Tribunal a quo, que não se percebe qual o respectivo local e inerentes condições de acesso, e que o Senhor Perito se debruçou sobre essa matéria como assim consta do ponto 6 do seu relatório pericial, e que sobre essa matéria depuseram as testemunhas «DD» e «CC».

Em torno da prova testemunhal produzida por estas testemunhas neste domínio, pese embora as mesmas terem concretizado momentos em que conduziram ou presenciaram a condução de veículo automóvel junto à curva em apreço nos autos [que deles resulta ser manifestamente claro qual é e onde fisicamente se situa], e que relataram as dificuldades sentidas ou presenciadas, o que é certo é que outras testemunhas [«GG», «GG» e «II»] referiram ter feito essa mesma curva à primeira, sem iterações.

De todo o modo, compulsado o relatório pericial, e perante o teor da resposta dada ao quesito 6 por parte Senhor Perito, com os demais esclarecimentos por si prestados em Audiência final, daí resultou entre o mais, que sendo o carro dele um monovolume [como evidenciado nas fotografias juntas com o relatório pericial], que o seu eixo é comum ao dos carros ligeiros, e que para fazer a curva em causa teve de fazer manobras iterativas por 3 ou 4 vezes, tendo feito esse ensaio mais do que uma vez, acolhemos assim a redacção do facto BB proposta pela Recorrente.

Prosseguindo.

O facto CC constante do probatório, tem a seguinte redacção:
CC. Na curva intervencionada, quando o piso estiver molhado ou com geada, os carros perdem tracção no acesso e derrapam na saída (relatório pericial);“

A Recorrente entende que o facto CC constante do probatório, deve ter outra redacção, que enunciou como segue:
CC. Na curva intervencionada, os veículos perdem tracção e derrapam na saída, seja com tempo seco, seja quando o piso está molhado ou com geada ”.

Sustenta a Recorrente, em suma, que em face da prova produzida neste domínio [relatório pericial e esclarecimentos do Senhor Perito, e prova testemunhal produzida pelas testemunhas «CC» e «DD»], que resultou provado que os veículos também derrapam com o piso seco.

E consubstanciando a final a pretendida alteração do facto CC, na consideração de que a perda de tracção acontece em qualquer cenário em que seja considerado o estado da meteorologia, que assim condicione o piso da via, os depoimentos dessas duas testemunhas vem a final a ser corroborada pelo Senhor Perito em sede de esclarecimentos visando o quesito 10 do relatório pericial, que na sua deslocação ao local e quando efectuou as manobras de acesso, também sentiu o seu carro a perder tracção.

Acolhemos assim a redacção do facto CC proposta pela Recorrente.

Prosseguindo.

O facto DD constante do probatório, tem a seguinte redacção:
DD. Os arruamentos existentes nas imediações têm características idênticas aos arruamentos do acesso norte ao Caminho ..., mas nenhum apresenta o ângulo e declive deste acesso (relatório pericial);

A Recorrente entende que o facto DD constante do probatório, deve ter outra redacção, que enunciou como segue:
DD. Os arruamentos existentes nas imediações têm características idênticas aos arruamentos por onde se faz actualmente o acesso ao prédio da Autora, mas não se existem zonas que concomitantemente tenham ângulos e inclinações idênticas à curva discutida nestes autos, que representa um verdadeiro “nó” para ali transitar ou aceder de automóvel.”

Ou seja, o Tribunal a quo fixou o teor daquele facto com base no teor do relatório pericial, e a Recorrente, por sua vez, considera que é com base no ponto 7 desse mesmo relatório que este facto deve ser fixado, nos termos por si enunciados.

Ora, sendo certo que os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito na Audiência final, na parte em que a Recorrente extraiu para as suas Alegações de recurso estão em conformidade com o que o mesmo aí referiu e esclareceu, de todo o modo, como assim julgamos, o facto como fixado pelo Tribunal a quo deixa claramente enunciado ao quanto o mesmo se reporta, que é a identidade de características entre os arruamentos existentes nas imediações face aos arruamentos do acesso norte ao Caminho ..., e o que os diferencia face aos demais, traduzindo o mais vertido no relatório, e os esclarecimentos prestados, a vertente da fundamentação para esse entendimento, que o Tribunal a quo não desconsiderou, antes remeteu para o teor do relatório pericial.

Não acolhemos assim a redacção de alteração do facto DD proposta pela Recorrente.

Prosseguindo.

Como assim sustentado pela Recorrente, de que a apreciação dos factos GG e HH deve ser efectuada em conjunto, assim o prosseguiremos.

O facto GG constante do probatório, tem a seguinte redacção:
GG. O Caminho ... tem um pavimento irregular, cresce mato sobre ele e há ainda um muro que desmorona com alguma frequência (depoimentos de «EE», «FF» e «DD»);”

Por sua vez, o facto HH constante do probatório, tem a seguinte redacção:
HH. Quando chove, o Caminho ... fica intransitável, tendo a A. e o seu companheiro, pelo menos em uma ocasião, ficado com o seu veículo aí retido (depoimentos de «FF», «KK» e «LL» e «DD»);

A Recorrente entende que os factos GG e HH constantes do probatório, devem ter outra redacção, que enunciou como segue:
GG. O Caminho ... tem actualmente um pavimento irregular, cresce mato sobre ele e há ainda um muro que desmorona com alguma frequência.”

HH. Quando chove, o Caminho ... fica intransitável, tendo a A. e o seu companheiro, pelo menos em uma ocasião em 2018, ficado com o seu veículo aí retido.”

A Recorrente sustenta que a definição do momento temporal em que os factos ocorreram influiu no julgamento de direito prosseguido pelo Tribunal a quo.

Ora, estes factos GG e HH reportam-se a factualidade de segunda ordem para efeitos do que são as pretensões condenatórias deduzidas pela Autora ora Recorrente na Petição inicial.

Como assim já levamos ao probatório na decorrência do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, o Caminho ... está praticamente inalterado quer no seu traçado, quer nas condições por si detidas, antes e depois da supressão da passagem de nível das ..., não tendo sido cabalmente provado que todo o Caminho ... era em terra, em paralelepípedo, ou apenas parte dele.

Com efeito, a única alteração que lhe foi introduzida foi na parte em que vem a entroncar com a Rua ..., onde mais concretamente foi feito o adoçamento da curva, que ocorreu no ano de 2012, sendo o mais, irrelevante para a decisão de mérito da pretensão da Autora, ou seja, saber em que ano ocorreu um incidente visando o carro da Autora e se cresce erva nos paralelos, ou se é a Autora e a sua família que corta a erva que cresce no caminho para poder transitar, ou se a erva não é cortada e atinge o tamanho da testemunha que a tanto se referiu, desde logo porque esse caminho tendo a natureza jurídica de vicinal, está sob jurisdição da União de Freguesias ... e ..., que podendo eventualmente ser parte, com a Autora, numa relação jurídica administrativa controvertida amplamente fixada, não é porém parte nos autos.

Ou seja, em face do que sustenta a Recorrente para efeitos da alteração destes dois factos GG e HH, não está em causa a acessibilidade à sua propriedade por efeito da supressão da passagem de nível, mas antes porém, essa acessibilidade mesmo que as condições anteriores ao fecho da passagem de nível se tivessem mantido.
Esses factos reportar-se-ão a uma outra relação jurídica controvertida, tendo por base a acessibilidade à propriedade da Autora, mesmo que a passagem de nível não tivesse sido suprimida, pois que sempre foi por esse Caminho ... que se processou o acesso viário para a propriedade da Autora.

Como assim julgamos, os factos GG e HH assim resultam provados em consequência da valorização dos depoimentos das três testemunhas identificadas pelo Tribunal a quo, que se mostra adequada. Do julgamento que o Tribunal a quo com eles vem a tirar no sentido de considerar a Recorrente que é inadequado para efeitos de ter julgado pela improcedência dos pedidos, por considerar a Recorrente que “… nas palavras do tribunal, se o Caminho ... era impraticável em momento anterior à supressão da passagem de nível, também qualquer dificuldade de acesso criada com a construção da curva não agravava nem afectava o direito da autora que justificasse a tutela do direito.”, tal contende já com eventual erro de julgamento em matéria de direito, e não com a percepção da matéria de facto determinante para conhecer do mérito dos pedidos. De todo o modo, a Recorrente tem justaposto ao seu entendimento que a mesma “...não tem qualquer obrigação de manutenção desse caminho, que é publico e municipal [...]“, sendo que o Caminho ..., sendo de acesso público é certo, é porém vicinal, e não municipal.

Não acolhemos assim a redacção de alteração dos factos GG e HH proposta pela Recorrente.

Prosseguindo.

A Recorrente entende ainda que a prova produzida e as regras da experiência comum, não permitem a prova do facto II constante do probatório.

O facto II do probatório tem a seguinte redação:
II. O prédio da A. é acessível através da entrada sul do Caminho ..., mas somente a pé (depoimentos de «EE» e de «FF»);“

Refere a Recorrente que sobre esta entrada sul do Caminho ..., não foi produzida qualquer prova pericial, mas que esse facto foi apenas suscitado em audiência de julgamento, não tendo sido um facto trazido à discussão nos articulados das partes, e que na análise do facto, o tribunal apenas considerou parte do que foi dito pelas testemunhas, sobretudo pela «EE», tendo ilegalmente omitido ou não valorado o demais referido por estes testemunhas e por outras não consideradas.

E neste conspecto, enunciou as partes dos depoimentos das testemunhas que entendeu relevantes.

Porém, os extractos dos depoimentos não permitem que a pretensão da Recorrente possa proceder, pois que o facto II, como fixado e com indicação da prova em que se funda, está em conformidade com o que nesse domínio se revela essencial face aos depoimentos das testemunhas em causa. Do que se extrai dos depoimentos é que esse caminho existe e que por lá se pode aceder à propriedade da Autora, sendo irrelevante para o efeito a precisão sobre a composição do piso desse acesso.

Como assim já apreciamos supra em torno dos factos GG e HH, em face do que sustenta a Recorrente para efeitos da alteração deste facto II, não está em causa a acessibilidade à sua propriedade por efeito da supressão da passagem de nível, mas antes porém, essa acessibilidade mesmo que as condições anteriores ao fecho da passagem de nível se tivessem mantido, sendo manifesto que o Caminho ..., na sua parte sul [isto é, na direção oposta onde se situava a passagem de nível], sempre possibilitou o acesso pedonal à propriedade da Autora. Mas essa factualidade é complementar aquela que as partes invocaram nos seus articulados, não carecendo de prova pericial para efeitos de saber quais são as condições de acesso pelo lado sul do Caminho ....

Ao contrário do que refere a Recorrente, não se verifica qualquer deficit instrutório na análise e prova deste facto, e bem assim, que decorre dos depoimentos das testemunhas indicadas pelo Tribunal para efeitos da sua fundamentação, que as mesmas assim depuseram em termos que é legítima a fixação desse facto.

A final da Alegação em torno deste facto, referiu a Recorrente, subsidiariamente, que para a eventualidade de este Tribunal de recurso considerar que o facto está correctamente dado como provado, porque é possível aceder à habitação da Autora pelo lado sul do Caminho ..., que deve então ser aditado um outro facto provado, do seguinte teor: “O lado sul do Caminho ... tem inclinação, é composto por terra, pedras, vegetação, não sendo facilmente transitável a pé.” , que não acolhemos pelas razões que atrás já enunciamos, por não se mostrar factualidade relevante tendo em vista a apreciação do fundo da causa.

Prosseguindo.

O facto LL constante do probatório, tem a seguinte redacção:
LL. É possível realizar obras no prédio da Autora (depoimentos de «EE» e de «FF»)

A Recorrente entende que o facto LL constante do probatório, deve ter outra redacção, que enunciou como segue:
LL. Antes da supressão da passagem de nível e da construção da curva discutida nos autos, era possível realizar obras no prédio da Autora.”

E para esse efeito considera a Recorrente que a prova produzida apenas permite que se dê como provado que anteriormente à supressão da passagem de nível e da construção da curva discutida nos autos era possível realizar obras no prédio da autora, e nada mais.

Porém, independentemente do que tenham referido as testemunhas a que neste domínio se reporta a Recorrente, o que é claro para este Tribunal de recurso é que a propriedade da Autora é servida por vias de acesso, rodoviário e pedonal. E tanto é assim que aí foram construídas duas casas, e a Recorrente não alega nem demonstra que a sua propriedade tenha tido, no passado, ou pelo menos em data anterior a 2012, formas de acesso mais amplas, com ruas mais largas.

E portanto, por experiência de vida, julgamos que, existindo vias de acesso, ainda que com condicionamento, é possível realizar obras na propriedade da Autora, e que não há por isso qualquer erro na fixação deste facto por parte do Tribunal a quo.

Apreciando agora os invocados erros em torno dos factos dados como não provados.

Sustenta a Recorrente, neste domínio, que o Tribunal a quo deu erradamente como não provados os factos 2, 3, 6 e 8, como assim consta da Sentença recorrida.

Para aqui extraímos esses factos, como segue:

“2. A Autora tornou-se uma pessoa mais introvertida depois da supressão da passagem de nível;
3. Com os actuais acessos, o imóvel não encontra nem encontrará comprador;
[...]
6. O arrendamento de um prédio com aquelas características no mês de Agosto custaria 2.500 € e ainda 500 € por semana nos outros meses;
[...]
8. A A. não vai ao seu prédio no Inverno;“

Em face do que resulta da apreciação crítica dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas e aqui identificadas pela Recorrente, julgamos no sentido de que foi produzida prova no sentido de assistir razão parcial à Recorrente.

Vejamos por que termos.

Em torno do facto 2, tal não resultou de facto provado, pois que, em face do que assim depôs a testemunha «EE», que no seu depoimento disse por algumas vezes ser “muito, muito amiga da «AA»”, referiu a mesma que a Autora fala muito com ela, e ultimamente mais por telefone, e que a Autora lhe fala sempre no assunto da casa. E o mesmo se diga em torno do depoimento prestado pela testemunha «CC». Uma pessoa introvertida, pela experiência comum, é uma pessoa que vive consigo própria e que pouco comunica com o mundo exterior que a rodeia. Ora não é isso que resulta da prova testemunhal produzida.

Julgamos porém que resultou provado, em torno do estado anímico a que se reportaram as testemunhas inquiridas, que em face das dificuldades sentidas com o acesso à sua propriedade, a Autora passou a manifestar-se uma pessoa mais triste, desanimada e ansiosa, para o que também poderá ter contribuído o facto de ao tempo em que foi realizada a Audiência final, a Autora se encontrar grávida, como assim referiu a testemunha «EE».

Deste modo, revogamos do probatório o facto dado como não provado sob o ponto 2, e aditamos ao probatório, seguindo a temporalidade e a sequenciação nele adoptada, o seguinte facto provado:

NN. A partir da altura em que foi suprimida a passagem de nível, a Autora passou a manifestar-se uma pessoa mais triste, desanimada e ansiosa.

Em torno dos factos 3 e 6, ao contrário do que sustenta a Recorrente, estes factos não resultaram cabalmente provados.

Por um lado, por não ser de todo verosímil que se o imóvel da Autora for por si colocado à venda que não encontrará comprador, ou que se for colocado no mercado de arrendamento, que não encontrará arrendatário, seja numa óptica de arrendamento de longa duração, seja de arrendamento para curtos períodos na altura do verão. Aliás, até poderia acontecer o contrário, no sentido de a Recorrente ser agradavelmente surpreendida com o preço ou a renda que lhe poderiam ser garantidos. Mas como é claro, são tudo meras conjecturas, assentes numa realidade virtual.

Daí que bem apreciou o Tribunal a quo ao dar como não provado o facto 3, pois que não será por causa imputável aos actuais acessos, que a Autora não encontra nem encontrará comprador ou arrendatário para o imóvel. Muito logicamente, para encontrar um comprador ou um arrendatário, sempre a Autora teria de colocar o imóvel no mercado, querendo aliená-lo ou arrendá-lo, e isso não resultou de todo provado, antes pelo contrário, isto é, de que não está/estava nos seus horizontes efectuar essa venda ou arrendamento.

De todo o modo, a alegação subsidiária que a Recorrente fez neste domínio, em torno do facto 6, merece o nosso acolhimento.

Ou seja, em face do que alega a Autora em sede da causa de pedir, estando em causa o pagamento de um preço por um arrendamento do imóvel da Autora, e em face dos pressupostos em que encerra esse seu pedido, isto é, a relação causa/efeito, e por experiência comum, sendo um bem transaccionável sempre estaremos perante a potencialidade de haver um preço, cuja fixação pode ser relegada para execução de sentença, se disso vier a ser o caso.

Deste modo, aditamos ao probatório, seguindo a temporalidade e a sequenciação nele adoptada, o seguinte facto:

OO. As casas da Autora são passíveis de ser colocadas no mercado de arrendamento semanal, mensal, ou de longa duração, e por elas ser recebida uma renda.

Em torno do facto 8, referiu a testemunha «EE», ser “muito, muita amiga da «AA»“, e que estava actualmente mais em contacto telefónico com a Autora, e que sabe sempre quando ela está em casa porque a casa dela e a da Autora estão situadas defronte uma para a outra, embora em diferentes lugares da freguesia [«OO»], e que isso se notava quando as luzes estavam ligadas, tendo referido a mesma, entre o mais, que o acesso à quinta era difícil, e que por isso é que a «AA» deixou de ir lá mais, e que de inverno, poucas ou quase nenhumas vezes vai à casa, e que ultimamente a «AA» vai lá mas não se encontram, mas que falam mais pelo telefone.

Ou seja, não podia o Tribunal a quo deixar de dar como não provado que a Autora não vai ao seu prédio no Inverno, apesar do depoimento das testemunhas «BB» e «FF».

Porém, na decorrência dos depoimentos daquelas três testemunhas, e em consonância com o alegado na Petição inicial, tem de resultar provado, o contexto em que a Autora se desloca ao seu prédio.

Deste modo, aditamos ao probatório, seguindo a temporalidade e a sequenciação nele adoptada, o seguinte facto:

PP. Depois da supressão da passagem de nível, a Autora passou a ir ao seu prédio menos vezes do que até ía, e no período de inverno raramente lá vai.

Apreciando agora os invocados erros em torno dos factos indevidamente omitidos e não levados à matéria de facto.

Sustenta a Recorrente, neste domínio, que o Tribunal a quo omitiu a factualidade que encerra em cinco factos, que enunciou, que considera terem resultado provados e que por isso deviam ter sido levados à matéria de facto como provada.

Ora, julgamos que o julgamento da matéria de facto prosseguida por este Tribunal de recurso, como enunciado supra, dá satisfação na sua generalidade [ou se encontra já prejudicada na sua apreciação, seja em face do que foi julgado em torno do julgamento dos invocados erros de julgamento já apreciados e decididos supra, seja pelo aditamento oficioso de factos], ao quanto constitui o cerne desta sua pretensão recursiva em torno da matéria de facto por si invocada sob os [por si] identificados factos primeiro, segundo, terceiro e quinto.

Em torno do enunciado a respeito do facto quarto, julgamos que assiste razão à Recorrente, por se tratar de matéria não versada no probatório, e que encontra fundamento nos depoimentos de «EE», «FF» e «BB», pelo que neste domínio, aditamos ao probatório, seguindo a temporalidade e a sequenciação nele adoptada, o seguinte facto:

QQ. Antes da supressão da passagem de nível, a Autora realizava no prédio festas, aniversários, tendo passado lá um natal, ano novo e páscoa, o que deixou de fazer devido à alteração das condições de acesso à habitação a partir da parte norte do Caminho ....

Cumpre agora conhecer dos invocados erros de julgamento em matéria de direito.

Como assim resulta do processado gerado nos autos, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador, tendo a final julgado pela sua regularidade, e nesse patamar, tendo julgado que existia matéria controvertida que exigia a abertura de um período de produção de prova, identificou o objecto do litígio, assim como enunciou os temas da prova.

Em sede do objecto do litígio, decidiu o Tribunal a quo que o mesmo contendia com a apreciação da eventual existência de responsabilidade civil extracontratual dos Réus pela impossibilidade/dificuldade de passagem de veículos pela rodovia de acesso ao bem imóvel propriedade da Autora, assim como com a possibilidade de construção de outro arruamento que permita tal acesso, e bem assim, com a quantificação da obrigação de indemnizar, caso tal responsabilidade se verifique, sendo que, em sede dos temas da prova, decidiu que importava aferir i) das razões de facto que impuseram a supressão da passagem de nível sita na Ponte das ..., PN ao PK 68+018; ii) das condições de acesso ao bem imóvel propriedade da Autora existentes em momento anterior à supressão da passagem de nível sita na Ponte das ...; iii) das condições atuais de acesso ao referido bem imóvel, posteriores à supressão da passagem de nível, especificamente, quanto aos parâmetros de piso, largura, inclinação, grau de eventuais curvas, declive e barreiras de proteção existentes; iv) da possibilidade e grau de dificuldade da passagem no referido local de veículos de média e grande dimensão, em momentos anterior e posterior a supressão da passagem de nível; v) das características de outras vias de acesso viário nos locais circundantes à propriedade da Autora; vi) do apuramento de quem elaborou e concebeu as alterações introduzidas à via de acesso em consequência da supressão da passagem de nível; vii) do apuramento de quem efetivou as obras de alteração da via de acesso em consequência da supressão da passagem de nível; viii) das alternativas existentes à execução da referida via de acesso rodoviária; e, ix) dos danos sofridos pela Autora em consequência das alterações introduzidas à via de acesso.

Em sede do despacho saneador proferido, o Tribunal a quo decidiu ainda pela admissão dos meios de prova requeridos pelas partes, tendo neste domínio determinado a realização de prova pericial [requerida pela Autora, e cujo alargamento do seu âmbito foi requerido pelos Réus Município ... e [SCom01...], S.A.] e fixados os respectivos quesitos a que haveria de responder o Senhor Perito, quanto a cujos termos e pressupostos as partes, regularmente notificadas não deduziram nenhuma oposição.

Em sede do objecto da perícia, foi o mesmo fixado pelo Tribunal a quo nos termos que para aqui se extraem como segue:

“[…]
Objeto da perícia: Das condições de acesso ao bem imóvel propriedade da Autora, especificamente no respeitante aos parâmetros de declive, inclinação, largura, piso da via, grau das curvaturas eventualmente existentes, bem como das características das vias rodoviárias adjacentes e da possibilidade de alternativas de conceção e construção da indicada via de acesso.
Quesitos:
1. Qual o tipo de pavimento da via rodoviária na zona onde se encontra a curva de
acesso ao arruamento que liga ao bem imóvel pertença da Autora?
2. Qual o ângulo da curva ou curvas existentes?
3. Junto à curva, confrontado com o lado esquerdo da via, no sentido ascensional,
existe um declive no terreno?
4. Se sim, de quantos metros?
5. A proteção existente e que separa o declive da estrada é composto de que material?
6. As condições de acesso são aptas à passagem de veículos de pequena, média e grande dimensão?
7. Quais as características dos arruamentos existentes nas imediações, especificamente quanto a declive/grau de inclinação, largura, pavimentação e proteção?
8. As condições de acesso dos arruamentos existentes nas imediações são aptas a passagem de veículos de pequena, média e grande dimensão?
9. Quais as características da via de acesso à propriedade de Autora anteriores à supressão da passagem de nível, especificamente, declive/grau de inclinação, largura, pavimentos e eventuais curvaturas existentes, bem como proteções existentes nas bermas?
10. As alterações introduzidas, posteriores à supressão da passagem de nível acarretam um aumento ou diminuição do grau de perigosidade para pessoas e bens que circulem na via de acesso referida?”

O Senhor Perito nomeado nos autos veio a realizar a perícia ordenada, tendo junto aos autos o respectivo relatório, de cujo teor foram as partes notificadas, quanto ao que apenas a Autora veio emitir pronúncia, por via da qual requereu a comparência do Senhor Perito “… em audiência de julgamento para prestar esclarecimentos ao objecto da perícia.”, o que foi deferido pelo Tribunal a quo.

Foi realizada a Audiência final, sendo que nessa sequência o Tribunal a quo proferiu a Sentença recorrida, com fixação da matéria de facto que julgou provada [e não provada] relevante para efeitos do conhecimento do mérito dos autos, e foi com base nessa factualidade que veio a julgar a ação totalmente improcedente.

Este Tribunal de recurso já apreciou a matéria de facto, a qual se tem assim por estabilizada.

Como assim resulta da Sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou a acção improcedente, e em suma, por duas ordens principais de fundamento: por não terem os Réus praticado qualquer acto ou omissão ilícita, não se verificando assim os pressupostos para a sua responsabilização a titulo de responsabilidade civil extracontratual pela prática de acto ilícito, nem a título de responsabilidade civil extracontratual pela prática de acto lícito, por ter julgado, em suma, que pese embora a Autora tenha sofrido um dano na sua esfera jurídica, pois que as consequências do facto lícito atingiram-lhe especialmente, porque só ela sofreu as consequências negativas da actuação administrativa [tendo Tribunal a quo referido que “… o perito confirmou que nenhuma outra [curva] era tão apertada quanto esta que aqui vimos de analisar], pois que “O único prédio afectado por esta alteração foi efectivamente o da A., porque i) só foi prejudicado o acesso ao Caminho ... e ii) só o prédio da A. dependia deste caminho.”, que não sofreu todavia um dano anormal, um dano “especialmente intenso […] “… superior àquele que resulta da normal vivência em sociedade.[…]”.

E veio a julgar o Tribunal a quo que o dano que a Autora teve não se reconduziu a não ter acesso à sua propriedade, mas a ter um acesso automóvel à sua propriedade mais dificultado.

Por julgarmos com interesse, para aqui extraímos a essencialidade da fundamentação aportada na Sentença recorrida pelo Tribunal a quo, como segue:

Início da transcrição
“[…]
A responsabilidade civil dos Réus depende da verificação cumulativa dos requisitos gerais da responsabilidade civil, isto é, da verificação de um i) facto, ii) ilícito, iii) culposo; de um iv) dano e de v) nexo causal entre o dano e o facto ilícito (conforme decorre dos arts. 7.º a 10.º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas). Coincidem estes requisitos com os do art. 483.º do CC, conforme jurisprudência assente – vide Ac. TCAN de 26­10-2018, proc. 00183/14.5BECBR.
No que diz respeito ao facto, alega a A. que «caberia Às Rés tomarem todas as providências necessárias para facultar à Autora as mesmas condições de acesso à sua habitação que existiam antes da intervenção no local e da supressão da passagem de nível» (ponto 110 da petição), tendo esta entendido que a conduta em causa é uma conduta omissiva (pontos 122, 124, 136 e 138 da petição).
Cremos que a Autora enquadrou indevidamente a questão.
A omissão é uma ausência de actuação insusceptível, ex natura, de criar alterações na realidade.
No caso em apreço, a Autora defende que houve alterações na realidade, ou seja, que tinha um determinado acesso à sua habitação cujas condições se deterioraram como resultado da supressão de uma passagem de nível. Ora, a alteração do acesso não pode nunca advir de uma omissão, mas de uma actuação concreta, que produz modificações no plano dos factos.
A omissão a que se refere aqui a Autora deve ser entendida não no quadro do pressuposto “facto”, mas sim no quadro da indemnização. Com efeito, não se discute que o problema foi causado pelo encerramento da passagem de nível e da estrada que aí passava - o que a Autora pretende é que, em consequência dessa supressão lhe arranjem alternativa que lhe permita aceder à casa. Por outras palavras, temos em primeiro lugar o problema (supressão) e em segundo, noutra fase, a solução ou falta dela.
Tal é suportado pelo disposto no art. 3.º/1 do RRCEE, segundo o qual «quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.»
A questão da alternativa e da manutenção dos direitos afectados com a supressão da passagem é a questão da reconstituição da situação hipotética. É neste âmbito que se deve ler os vários pedidos realizados pela A. – em primeiro lugar, reconstituição da situação hipotética; se tal não for possível, indemnização em dinheiro (art. 3.º/2 do RRCEE).
Assim, o facto aqui em apreço é a supressão da passagem de nível, traduzindo-se esta na actuação positiva realizada pelos Réus de encerramento da passagem de nível com blocos de betão e no “adoçamento” da curva que concretizou no acesso norte ao Caminho ... (o caminho onde se situa a propriedade da A.).
A A., quando alega que a curva é perigosa, escorregadia e apertada, de tal forma que veículos de certa dimensão não conseguem aceder à sua propriedade refere-se às obras de “adoçamento” da curva. Quando diz que antes vinha de norte através da passagem de nível e agora tem de vir de sul, e a curva tem um ângulo apertado, refere-se à impossibilidade de fazer o trajecto que fazia.
Novamente, estas ocorrências/dificuldades surgem não como omissão, mas como consequência do encerramento da passagem de nível que a A. utilizava no trajecto para o seu prédio; são a consequência negativa de actuações levadas a cabo na via que antes perfaziam o trajecto para o prédio da A..
[…]
A lesão sofrida pela A. (leia-se, maior dificuldade de acesso com automóvel à sua propriedade) não se afigura desproporcional em relação aos interesses em causa.
Vejamos.
A lesão da A. resultou da supressão da passagem de nível, onde já ocorreu pelo menos um acidente com vítimas mortais. As passagens de nível sem guarda, como é sabido, já são de si focos de perigosidade, e esta passagem de nível ainda mais perigosa era, atendendo à fraca visibilidade para quem transpunha a passagem vindo de sul e à orografia do local, que implicava que os condutores não conseguiam ver a plataforma da passagem de nível onde os carros tinham necessariamente de passar.
Este é o interesse subjacente à supressão da passagem de nível.
[…]
O direito de propriedade é um direito real, que incide sobre a coisa, móvel ou imóvel (art. 1302.º do CC). Esse direito implica que a A. goze «de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas» (art. 1305.º do CC).
[…]
Este direito pode ser restringido ou limitado de acordo com finalidades de interesse público, como seja colocar fim ao um ponto de insegurança na área – a passagem de nível. Esta finalidade veio aliás prevista na lei – art. 2.º do Decreto-Lei n.º 569/99 de 23-12.
Por outro lado, diga-se ainda que o direito de propriedade não compreende o direito a estacionar dentro do seu prédio, nem ainda o direito de acesso automóvel ao prédio. Este abarca apenas a função de uso, fruição e disposição da coisa, faculdades que são plenamente exercíveis na situação factual aqui descrita.
Não se pode deixar de notar, neste ponto, que se tem vindo a entender que o direito de acesso é um direito subjectivo-público sui generis de natureza administrativa (ou seja, uma faculdade não integrada no direito de propriedade). No Ac. do STA de 13-01-2004, onde estava em causa a destruição de uma rampa de acesso a um prédio e modificação de marcações rodoviárias que prejudicaram o acesso a esse prédio, veio a entender-se que o direito de acesso é um direito de natureza administrativa, com base no Regulamento Geral de Estradas e Caminhos Municipais.
[…]
Concluindo, não se pode dizer que a supressão de uma passagem de nível, com a toda a perigosidade decorrente do contexto probatório dos autos seja uma actividade ilícita e contrária ao interesse público, especialmente quando se trata de uma conduta prescrita pelo legislador.
Trata-se então de um acto lícito por parte da Administração.
Resta a responsabilização da administração por actos lícitos, ou seja, pelo sacrifício. É possível para o tribunal debruçar-se sobre esta questão, uma vez que a prova produzida permite realizar um juízo acerca da verificação dos pressupostos deste regime e ainda tendo em atenção o princípio iura novit curia (art. 5.º/3 do CPC).
[…]
A responsabilidade civil por actos lícitos não tem os mesmos requisitos a nível de culpa e ilicitude da responsabilidade civil por factos ilícitos.
Para lá do óbvio (i) acto lícito, (ii) praticado para a satisfação de um interesse público, o direito à indemnização basta-se com a (iii) existência de um dano e com a (iv) existência de um nexo causal entre esse dano e a actuação lícita – v., a título exemplificativo, o Ac. STA de 02-12-2009, proc. 01088/08.
O dano indemnizável nestes termos não é todo e qualquer dano, toda e qualquer afectação da esfera jurídica da Autora. Este deve ser um prejuízo i) especial e ii) anormal- art. 2.º do RRCEE:
Para os efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos ou encargos que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito.
Como explicou o STA em Ac. de 19-12-2012, proc. 01101/12:
Prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica; prejuízo anormal o que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração.
Para que se tenha verificado este primeiro requisito impõe-se que as consequências do facto lícito tenham atingido especialmente a Autora, de molde que se possa dizer que só esta (ou só esta e um conjunto mais ou menos restrito de pessoas) sofreram as consequências negativas da actuação administrativa.
Tal resultou provado nos autos. Apesar de as testemunhas referirem que existem, na zona, outras curvas de ângulo reduzido, o perito confirmou que nenhuma outra era tão apertada quanto esta que aqui vimos de analisar. Verificou-se ainda que as outras habitações tinham todos outra forma de acesso que não passava pela curva do acesso norte do Caminho ....
O único prédio afectado por esta alteração foi efectivamente o da A., porque i) só foi prejudicado o acesso ao Caminho ... e ii) só o prédio da A. dependia deste caminho.
Quanto à anormalidade, a lei requer que o dano em causa seja superior àquele que resulta da normal vivência em sociedade. É um dano “especialmente intenso”.
[…]
Daqui se percebe que o dano que a A. teve não é não ter acesso à sua propriedade, mas ter um acesso automóvel à sua propriedade mais dificultado.
Este acesso automóvel a que aqui nos referimos é simplesmente a dificuldade de a A. levar um veículo automóvel para dentro dos limites da sua propriedade, uma vez que esta pode estacionar na via pública, a cerca de 30 m desta.
Esta distância não se afigura um esforço desrazoável ou desproporcional para a vida em sociedade. A A. não ficou, efectivamente, impedida de realizar obras, nem de aceder ao seu prédio – esta apenas se vê com maiores dificuldades em levar o seu carro para dentro dos limites da sua propriedade.
Essa dificuldade também já existia antes da supressão da passagem de nível. Com efeito, as testemunhas relataram um evento no qual a A. e o seu companheiro ficaram retidos no meio do Caminho ... (ou seja, no caminho rural que não foi intervencionado e que sempre fez parte do trajecto que a A. normalmente empreendia para ir ao seu prédio).
Este evento demonstra-nos que existe outra causa, alternativa desta que já dificultava o acesso rodoviário ao prédio da Autora, sendo o Caminho ..., aliás, particularmente perigoso nas mesmas situações em que é perigosa a realização da curva intervencionada.
Em face desta outra causa, a supressão da passagem de nível e a intervenção realizada na curva são praticamente irrelevantes (note-se que não foi alegado que a manutenção do Caminho ... incumbisse a qualquer dos Réus nem qualquer relação entre o estado deste caminho e a supressão da passagem de nível).
Por fim, da execução de uma obra sucede muitas vezes que uma pessoa veja os seus acessos melhorados enquanto outra os vê ligeiramente dificultados. Tal não implica a ilicitude da obra levada, nem constitui um qualquer dano anormal.
É uma ocorrência normal da vida em sociedade que as alterações levadas a cabo nas vias beneficiem uns e prejudiquem outros, seja a rua comercial que se fecha ao trânsito para segurança dos peões que usufruem do comércio local, seja porque se fechou uma passagem de nível e agora ou se vai por uma curva mais apertada e se faz manobras ou se estaciona na berma da estrada e se sobe a pé uma distância de cerca de 30 m.
[…]
A Autora não sofreu dano anormal no presente caso, faltando assim um dos pressupostos cumulativos da responsabilização dos Réus. Sendo os vários pressupostos da responsabilidade civil cumulativos, não se verificando um, quedam prejudicados os demais – art. 608.º/2 do CPC.
A actuação das R.s não gerou para estas qualquer dever de indemnizar.
[…]”
Fim da transcrição

Com o assim apreciado e decidido não concorda a Recorrente, que nas conclusões das suas Alegações, em sede dos invocados erros de julgamento em matéria de direito, referiu, em suma, que há erro de julgamento na análise e aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas de direito público.

Sustentou para o efeito, que o pedido formulado na Petição inicial se fundamenta na ilicitude da actuação dos Réus, consubstanciada no facto da curva construída por estes, com as características levadas à matéria de facto dada como provada, não permitir o acesso rodoviário à sua habitação em termos seguros e que permitam uma utilização normal e corrente do prédio, e que o acto ilícito radica na criação da curva, alternativa ao caminho para a habitação da Autora suprimido pela passagem de nível, que não respeitou a obrigação legal de dotar a habitação de um caminho rodoviário seguro e que não colocasse em perigo pessoas e bens, em face das condições de acessibilidade que passaram a ser garantidas após o fecho da passagem de nível.

Referiu ainda que por força da celebração do protocolo, os Réus assumiram a responsabilidade pela criação dos caminhos de ligação alternativos ao eliminado pela supressão da passagem de nível, e que os caminhos a criar devem possuir condições de circulação seguras e transitáveis, dever que incumpriram e que no seu entender impossibilitou a utilização normal da habitação, designadamente no inverno e com tempo húmido e molhado, e que a conduta dos Réus violou o disposto no artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de Dezembro, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 13/71, de 23 de Janeiro e o artigo 51.º do Estatuto Nacional de Estradas, bem como os princípios estruturantes da circulação rodoviária, os artigos 5.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 380/85, de 26 de Setembro, e o artigo 62.º da CRP.

Referiu ainda que se verificam os demais pressupostos do regime da responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito, e que há ainda erro de julgamento na análise dos pressupostos de indemnização pelo sacrifício, nos termos do artigo 16.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro.

Neste patamar.

Na situação em apreço nos autos, e no que julgamos ser relevante para a apreciação da sua pretensão recursiva visando os apontados erros de julgamento em matéria de direito, a Autora alegou na Petição inicial, em suma, a seguinte factualidade concreta:

- que é proprietária de um prédio em ... [Cfr. ponto 1 da Petição inicial];
- que antes de 2012, esse prédio era acessível por via rodoviária, provindo do lado norte da Rua ..., atravessando a passagem de nível das ... e entrando no caminho das ..., sendo que pelo lado sul, existia um murete na berma da curva que impedia a Autora de efectuar o acesso à habitação por esse lado [Cfr. pontos 16, 17 e 18 da Petição inicial];
- que antes de 2012, o acesso ao seu prédio fazia-se invariavelmente pelo lado norte do Caminho ... e sem obstáculos [Cfr. ponto 23 da Petição inicial];
- que tendo por base um protocolo celebrado entre a [SCom02...] e o Município ..., foram acordados os termos para a supressão da passagem de nível das ..., e entre o mais, o restabelecimento viário [Cfr. ponto 4 e seguintes da Petição inicial];
- que em meados de junho de 2012, foi suprimida a passagem de nível, impedindo em absoluto o acesso à habitação pelo lado norte, tendo o murete existente sido destruído e construída uma curva que resulta da intersecção da Rua ..., sentido ascendente, com o Caminho ... [Cfr. ponto 27 da Petição inicial];
- que essa curva construída não permite ou possibilita o acesso da Autora à sua habitação, e que nenhum veículo acede ao arruamento em termos seguros, e o acesso de veículo de média ou maior dimensão é impossível [Cfr. pontos 31, 32 e 33 da Petição inicial];
- que em face da causa e da natureza do piso da via, para aceder ao Caminho ... é necessário fazer várias manobras de avanço e recuo, e num dia de chuva as dificuldades aumentam [Cfr. pontos 34, 35 e 36 da Petição inicial];
- que na zona da curva, uma das bermas confronta com um declive que está protegido com sebes e uma rede [Cfr. ponto 40 da Petição inicial];
- que as condições de acesso ao arruamento pioraram em relação às anteriormente existentes, pondo em risco a segurança de pessoas e bens [Cfr. pontos 43, 44 e 45a Petição inicial];
- que para a sua habitação não há qualquer outra forma de acesso [Cfr. ponto 48 da Petição inicial];
- que tem direito a um acesso com condições similares às que existiam antes da supressão da passagem de nível [Cfr. ponto 52 da Petição inicial];
- que sofreu e sofrerá prejuízos indemnizáveis pois que a conduta ilícita dos Réus acarreta, desde 2012, a impossibilidade de aceder à sua habitação em condições de segurança [Cfr. pontos 58 e 59 da Petição inicial], provocando-lhe danos geradores do dever de indemnizar [Cfr. ponto 60 e seguintes, e 97 e seguintes da Petição inicial];
- que a impossibilidade de acesso à habitação impede as reuniões de família no prédio, bem como a utilização do imóvel [Cfr. pontos 92 e 93 da Petição inicial];
- que a ilegalidade da actuação das Rés decorre do que referiu, por antes da supressão da passagem de nível, o arruamento possuir condições de acesso à sua habitação, e depois dessa supressão, deixou de o fazer em termos equiparáveis e em segurança [Cfr. pontos 105, 106 e 107 da Petição inicial];
- que compete à Câmara Municipal, entre o mais, gerir as redes de circulação rodoviária e realizar investimentos em ruas e arruamentos, por forma a que seja livre o acesso à sua propriedade [Cfr. ponto 111 e seguintes da Petição inicial];
- que a actuação omissiva das Rés é ilegal, por violação de normas legais e constitucionais, sendo por isso nula e de nenhum efeito [Cfr. pontos 122 e 123 da Petição inicial];
- que a conduta omissiva das Rés gera para as mesmas a obrigação de indemnizar, seja em sede de responsabilidade civil extracontratual pela prática de facto ilícito, seja pela prática de acto lícito [Cfr. ponto 124 e seguintes da Petição inicial];
- que se mostram verificados os pressupostos legais para responsabilizar as Rés por facto ilícito, e que dos autos se retira a sua responsabilização pela omissão na adopção de medidas necessárias a dotar a sua habitação de condições similares às existentes antes do fecho da passagem de nível [Cfr. pontos 135 e 136 da Petição inicial];
- que as Rés são responsáveis pelo ressarcimento dos danos por si sofridos [Cfr. ponto 143 da Petição inicial];
- que em sede o pedido formulado a final da Petição inicial, requereu (i) que seja declarado o seu direito a possuir condições similares de acesso à sua habitação, às que possuía anteriormente à supressão da passagem de nível; (ii) que devem as Rés sere condenadas a encontrar uma solução para o problema no prazo de 90 dias; e (iii) que as Rés sejam condenadas no pagamento de indemnizações, nos termos que enunciou.

Por seu turno e por banda de ambos os Réus [a [SCom01...], S.A., e o Município ...], os mesmos contrariaram as causas de pedir e a final os pedidos formulados pela Autora a final da Petição inicial, sustentando para tanto e em suma, que o acesso da Autora à sua habitação não saiu prejudicado, antes melhorou devido ao fecho da passagem de nível, que nesse local era factor de grande insegurança, e além disso que os arruamentos na zona envolvente têm condições semelhantes às que são detidas pela Autora, requerendo, consequentemente, a sua total improcedência, o que assim veio a ser apreciado e decidido pelo Tribunal a quo.

Na óptica da Autora, enquanto demandante, a Petição inicial é o instrumento processual próprio para expor os factos essenciais que integram a causa de pedir e as razões de direito que sustentam a sua busca de tutela jurisdicional, e na óptica dos demandados, por sua vez, é na Contestação que os mesmos devem deduzir toda a sua defesa, podendo fazê-lo por impugnação e/ou excepção, devendo nela “expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor” e “expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação – Cfr. artigos 571.º, n.º 1, e 572.º, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Civil.

Como assim apreciou e decidiu o Tribunal a quo, a actuação dos Réus nos termos e para efeitos da supressão da passagem de nível das ..., não é ilícita no sentido de poder ser enquadrada sob o regime da responsabilidade civil extracontratual pela prática de actos ilícitos, pelo facto de, em si considerada, a supressão da passagem de nível [e efectuada ao abrigo de um concreto regime jurídico], não ter aptidão, em termos da sua execução física, de violar normas legais e constitucionais, e que por isso deva ser, como sustentou a Recorrente, nula e de nenhum efeito [Cfr. pontos 122, 123 e 124 da Petição inicial], e que essa invocada omissão seja determinante da obrigação de indemnizar.

O julgamento tirado pelo Tribunal a quo, em torno da não verificação de qualquer dos pressupostos determinantes do dever de indemnizar por parte dos Réus, em sede de efectivação da responsabilidade civil extracontratual pela prática de acto ilícito decorrente da execução das obras decorrentes da supressão da pesagem de nível, tem assim de ser confirmado por este Tribunal de recurso.

Num outro patamar, a questão que se levanta prende-se com saber se o Tribunal a quo errou no julgamento por si prosseguido em torno dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual pela prática de acto lícito.

Em face do que resulta do probatório, as obras projectadas e executadas pelos Réus, foram levadas a cabo tendo por pressuposto principal, que a passagem de nível tinha de ser encerrada ao tráfego automóvel, e que tinham de ser construídos acessos rodoviários alternativos, o que assim efectivamente foi por eles prosseguido e dado por concluído.

Estamos assim perante uma actuação dos Réus que é lícita, desde logo sustentada em base legal, devendo a questão ser apreciada em termos de saber se dos autos se retira a perspectiva da adopção de medidas necessárias para dotar a habitação da Autora de condições similares às anteriormente existentes antes do fecho da passagem de nível, e assim, se seu direito de propriedade, foi ou não, objecto de uma compressão em termos especialmente intensos.

Como já vimos supra, por assim decorrer da Sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou que na decorrência da actuação lícita dos Réus por efeitos da supressão da passagem de nível, a Autora sofreu um dano, pois que só ela [ou só ela e um conjunto mais ou menos restrito de pessoas] sofreu as consequências negativas da actuação administrativa, em face da dificuldade de acesso ao Caminho ..., do que dependia o acesso à propriedade da Autora aí existente, mas de todo o modo, que esse dano não é um dano superior àquele que é resultante da normal vivência em sociedade, por não ter sido afectado o “gozo médio da coisa” , concluindo na base desse seu julgamento que o dano que a Autora teve, não subjaz a não ter acesso à sua propriedade, mas antes, em ter um acesso à sua propriedade mais dificultado, e que não sofreu nem sofre a Autora um dano anormal, e consequentemente, que não suportou quaisquer danos de natureza não patrimonial.

Ora, em face do que resulta do probatório, na decorrência da interposição deste TCA Norte em face do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, este julgamento do Tribunal a quo enferma de erro, e como tal não pode manter-se.

Vejamos então, por que medida, e sob que pressupostos é que tal assim ocorre.

Conforme assim dispõem os artigos 2.º, n.º 1 e 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de dezembro, que aprova o Regulamento de passagens de nível, a [SCom02...], EPE [hoje IP, S.A.] e as autarquias locais que tenham a seu cargo vias rodoviárias que incluam passagens de nível, devem elaborar programas plurianuais com vista à sua supressão, por via da construção de passagens desniveladas e/ou caminhos de ligação, sendo que estas construções passam a integrar a rede rodoviária nacional, regional ou local, cabendo às entidades que depois as recebam [aquelas construções], a responsabilidade pela sua beneficiação, manutenção e sinalização.

Conforme resultou provado, no dia 19 de julho de 2008 os Réus celebraram um protocolo no qual se previa a realização de acções de supressão e reclassificação de passagens de nível, nomeadamente a passagem de nível situada ao PK 68+18 da Linha do Douro [designada das ...], tendo esse protocolo como objectivo reforçar as condições de segurança na circulação e solucionar os problemas levantados pela existência de passagens de nível não enquadradas no Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de dezembro, e entre o mais, como assim resulta da alínea g) do referido Protocolo [Cfr. alínea E) do probatório], o Município ... obrigou-se a receber as construções efectuadas que passaram desde então a integrar a rede rodoviária municipal, que no caso dos autos não se tratou da construção de uma passagem desnivelada, antes da construção de acessos rodoviários alternativos, e designadamente, entre o mais, pela construção da estrada que passa por debaixo da ponta das ..., e no estabelecimento de concordância rodoviária entre arruamentos [v.g., rua de ..., Rua ... e Caminho ...].

Mais resultou provado que por via assinatura daquele protocolo a [SCom02...] devia entregar ao Município ... o projecto de execução da supressão da passagem de nível ao PK 68+018 através da construção de restabelecimento viário sob a Ponte das ... até 150 dias após a assinatura do protocolo e previu-se ainda que o Município promoveria o lançamento do concurso respectivo no prazo de 60 dias após a entrega dos projectos de execução, concluindo-a no prazo de doze meses após o lançamento do concurso, e bem assim, que a [SCom02...] acordou em suportar todos os encargos com a construção das obras previstas.

Como assim também resultou provado, todas as obras que tecnicamente foram consideradas como necessárias para alcançar esses desiderato foram previstas e realizadas, sendo que em conformidade com o disposto no referido artigo 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de dezembro, e assim também, do disposto no n.º 2 da cláusula 2.ª do referido Protocolo, o Município ... integrou na sua rede rodoviária municipal, e assim, no seu domínio público municipal as construções que resultaram dessa supressão da passagem de nível das ....

Como assim resultou provado – Cfr. alínea Xa do probatório -, as construções foram executadas em conformidade com o projecto de execução aprovado, sendo que a fiscalização da execução da obra esteve a cargo do Município ..., que tendo achado essas construções adequadas ao restabelecimento dos acessos rodoviários pré-existentes, as aceitou, e assim se fechou esse ciclo programático, protocolar [contratual, entre duas entidades de direito público] em torno da execução da supressão da passagem de nível das ....

No que importa para o que ainda remanesce para apreciação nos autos, está meramente em causa, a acessibilidade viária que passou a existir para acesso à casa da Autora, a partir da Rua ..., após a supressão da passagem de nível, em 2012, apenas por via ascendente e no seu topo norte, com a estrada das ... sem saída [pois está bloqueada, na passagem de nível, por blocos em cimento denominados “Jersey“], virando à direita para o Caminho ....

Como assim resultou provado, num passado recente, isto é, até junho de 2012, a Rua ... tinha dois sentidos viários, atravessando a passagem de nível das ..., e após essa data, ou seja, após o fecho da passagem de nível e da construção dos acessos rodoviários alternativos [que o Município ... os achou conformes e os aceitou na sua esfera jurídico patrimonial], a Rua ..., no seu sentido descendente e na parte em que entroncava com o Caminho ..., isto é, depois de ultrapassada a passagem de nível [que passou a estar fechada a circulação automóvel, estando bloqueada], passou a manter os dois sentidos viários, mas com início a partir daí, como assim enunciado nas fotografias juntas por este Tribunal de recurso, sob as alíneas G, H e I.

E a relação controvertida estabelecida entre a Autora e os Réus, vem a derivar, a final, nos termos, no modo e na forma como foi executado o acesso ao lado norte do Caminho ..., para quem provém com veículo automóvel, quer da parte da propriedade da Autora [ou seja, do lado sul do Caminho ...] e pretende dirigir-se para a Rua ... [no seu sentido descendente], tornando à esquerda, quer da parte de quem sobe a Rua ..., e ao cimo da rua, por impossibilidade física de continuar na estrada, por estar barrada, ter de virar necessariamente à direita, para esse mesmo Caminho ... que permite aceder à propriedade da Autora.

A questão de base e que chegou ao Tribunal a quo para apreciar e decidir, tem a ver com essa realização rodoviária e ferroviária, com a criação dos acessos alternativos e muito particularmente, com o acesso com que a Autora passou a ter de contar após a supressão da passagem de nível, e mais concretamente, após a construção dos acessos rodoviários que tiveram em vista permitir a continuidade da circulabilidade das vias como até então lhe era garantida.

Em face do que foi apresentado pela Autora, que veio em busca de tutela jurisdicional efectiva, o Tribunal a quo apreciou a matéria de facto que reputou adequada a conhecer do mérito da sua pretensão, enquadrando-a sobre uma perspectiva jurídica, e nesse âmbito procurou alcançar uma solução jurídica, de entre as várias soluções jurídicas plausíveis e em direito admissíveis.

Como assim dispõe o artigo 5.º, n.º 3 do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Como assim julgamos, errou o Tribunal a quo no julgamento por si prosseguido, ao deixar desatendida a pretensão da Autora, ou seja, por não ter prosseguido numa solução jurídica a partir da interpretação e aplicação do direito por si convocado, julgando para tanto que foi causado um dano anormal na esfera jurídica da Autora.

Vejamos pois.

A dilucidação da questão base da relação controvertida passa pela análise e avaliação de questões de ordem técnica, atinentes à forma como foi feita a conjugação viária entre a Rua ... e o Caminho ..., dadas as especificidades locais, e muito particularmente, por se terem mantido inalteradas quer a Rua ... quer o Caminho ....

Como assim julgamos, por tal assim ter resultado profusa e inequivocamente provado por efeito da prova perícia determinada realizar pelo Tribunal a quo [a pedido da Autora e cujo âmbito foi objecto de pedido de ampliação por parte de ambos os Réus], assim como pelos esclarecimentos que o Senhor Perito veio a prestar na Audiência final, o resultado do que foi a intervenção realizada na intersecção do Caminho ... com a Rua ..., com a formação de uma curva com um ângulo de 50 graus, não é apta a garantir a circulabilidade das vias em termos, já não dizemos iguais, mas de natureza similar, em termos de a circulação rodoviária nesse enclave não ser, por si, factor de risco e insegurança para pessoas e bens, em termos que não aconteciam no passado, antes do fecho da passagem de nível – Cfr. alíneas Qb, Ua, BB, CC, DD, EE e KK do probatório.

E o julgamento que alcançou este Tribunal de recurso, é que é grande o risco e a insegurança que passou a existir para quem circule nessas duas vias, ainda que quem nelas circule nesse patamar se destine prioritária ou exclusivamente para a propriedade da Autora.

É certo que, como já assinalamos supra, os termos e os pressupostos em que a Autora encerrou as diversas causas de pedir não merecem toda a nossa concordância.

Desde logo, porque tendo a Autora adquirido [por doação ou herança] aquela propriedade, constituída por um amplo terreno com 2 casas aí implantadas, unidas por um terraço, pese embora tal assim não ter resultado da instrução dos autos, como assim julgamos, porém, ou as mesmas já são muito antigas e foram restauradas e têm hoje as boas condições de habitabilidade que ostentam, ou são de construção recente [de fim do século passado, início deste século], sempre todavia, independentemente do modo como se tenha processado o licenciamento urbanístico dessas habitações nesse local, o certo é que, na perspectiva pelo menos de quem lá foi viver de início, essas casas tinham de ter algum acesso, e o mais natural, se se reportarem a construções antigas, que fossem servidas por caminho rural [vicinal], por onde circulavam pessoas e carros de tracção animal, e por onde excepcionalmente podia circular algum tipo de veículo automóvel. Por outro lado, se a construção das casas já é mais recente, sempre as mesmas e no interesse de quem as construiu teria de prosseguir, no seu próprio interesse [e construindo na sua propriedade, é certo], por que a sua propriedade fosse servida por estrada ou caminho.

Na situação em apreço nos autos, é incontrovertido que a propriedade da Autora é servida pelo Caminho ..., caminho este que tem uma configuração na sua extensão que se mantém inalterada [salvo no seu topo norte], pelo menos na decorrência do que foi o resultado da intervenção conjunta da [SCom02...] e do Município ..., em ordem e para efeitos consequenciais da supressão da passagem de nível das ..., tendo subjacente o disposto no Decreto-Lei n.º 568/99, de 23 de dezembro, e os termos do protocolo entre ambos outorgado.

Ou seja, o Caminho ..., na sua extensão geográfica, permitia a circulação de pessoas, e quanto a veículos automóveis, aqueles que a sua configuração admitia, o que assim deixou de acontecer desde 2012.

Como assim julgamos, a Autora perturbou a instrução dos autos, quando a eles trouxe factualidade que em nada contendia com aquela que consubstanciava a sua máxima pretensão, e a que de resto vem a derivar na formulação dos dois pedidos iniciais, isto é, de que com a supressão da passagem de nível e a construção da curva de intersecção entre a rua e o caminho, foi criado um problema por parte dos Réus, pois deixou de poder aceder à sua propriedade, por via rodoviária [causando um dano anormal na esfera jurídica da Autora], como o fazia no passado [e por certo, os ante possuidores da propriedade], pelo menos com o mesmo nível de segurança [e que antes de 2012 já não era muito], e que os Réus deviam solucionar esse problema.

Enfatizamos que a curva e a acessibilidade que ela proporciona, assim como o contexto procedimental em que é executada, é que o cerne da questão nuclear em que a sua pretensão se coloca.

A questão que a Autora quis debater em torno das condições de acesso depois de transposta essa curva e já no Caminho ..., é questão que não cabia conhecer nestes autos, tanto mais que a entidade que tem a jurisdição sobre essa via é uma outra autarquia local, que não o Município ....

No âmbito do direito de propriedade da Autora, não está incluída a particularidade de lhe ser garantida, pessoalmente, de deter um Caminho ... com maior largura, empedrado, e até à porta da sua casa, desde logo porque se trata de um caminho vicinal.

Numa perspectiva hedonista, o estado ideal era que cada um de nós pudesse ter um hospital, uma escola, uma universidade, perto de casa. Mas isso é impossível como é lógico e razoável, pois que estamos a tratar da alocação de recursos públicos, e seguramente que no Município ..., que é dos mais pobres do distrito ..., existem muitas outras carências para o que é requerida a atenção dos poderes públicos, designadamente da Câmara Municipal e da Junta de freguesia.

Ou seja, o caminho que serve a propriedade da Autora, sendo o mesmo que a servia sem que qualquer entidade com poderes de autoridade se tenha interposto em termos de o alterar de forma significativa ao ponto de a ter impedido de aceder inelutavelmente à sua propriedade, designadamente reduzindo-lhe a largura, assim tem de manter-se, até que a Autora, ela própria, encontre outra alternativa rodoviária, ou que essa alternativa venha um dia a ser encontrada, designadamente por efeito de alterações do traçado rodoviário motivadas por intervenções urbanísticas que sejam determinantes da criação de novos arruamentos, ou então que os poderes públicos assim o venham a determinar, se a escala de políticas públicas de intervenção assim for determinante.

Em suma e neste contexto, a Autora tem o direito a que o acesso à sua propriedade possa ser efectuado dentro dos parâmetros pré-existentes e/ou dos que eram do seu conhecimento e que não podia desconhecer.

Neste patamar.

Não está aqui em causa fazer o balanceamento entre o nível de [in]segurança que existia quando a passagem de nível permitia o seu atravessamento por veículos automóveis, e o nível de [in]segurança que passou a existir no local em apreço nos autos, na curva construída pelo empreiteiro da obra na decorrência do projecto de execução aprovado, mercê da inclinação, do piso desnivelado, da concreta natureza do tipo de piso, da interposição das condições climatéricas, assim como por confinar um dos lados da Rua ... [na sua parte ascendente, à esquerda], com um declive, um talude, que o Senhor Perito referiu, que por medição expedita por si efectuada, tem entre 5 a 7 metros de altura, e que a única protecção que confere a quem aí circule [que não foi introduzida pelos Réus, portanto, já aí existia e é pertença de um particular] é uma sebe vegetal [um arbusto] e uma rede que está firmada com pilares. Trata-se a final da ponderação de diferentes situações de facto, e é claro, que requerem diferentes formas de tratamento.

A insegurança patentemente evidentemente que decorria da existência da passagem de nível, principalmente para quem atravessava a linha de comboio provindo da Rua ..., sentido ascendente, ou a partir do Caminho ..., tinha um risco potencial elevado, e foi para supressão de riscos dessa natureza que sempre o legislador se preocupou com a gestão das passagens de nível. É o que assim decorre, designadamente do Regulamento de Passagens de Nível, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 156/81, de 9 de Junho, e que o legislador, por via da aprovação do Decreto-Lei n.º 568/99, de 23 de Dezembro veio a realçar, prevendo a obrigatoriedade da elaboração de planos plurianuais de supressão de passagens de nível, sendo que por via da segunda alteração introduzida aquele diploma legal [Cfr. Decreto-Lei n.º 77/2008, de 29 de Abril], deixou realçado no seu preâmbulo que “[…] Em resultado do trabalho desenvolvido, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 568/99, de 23 de Dezembro, até 31 de Dezembro de 2007, foram suprimidas 1270 passagens de nível e reclassificadas 545, tendo-se atingido, no final de 2007, um índice de PN/Km (0,45) inferior à média europeia (0, 50). Foi, também, registada repercussão do investimento levado a cabo pela [SCom02...] ao nível da sinistralidade, tendo-se observado nos últimos sete anos uma redução de cerca de 50 % no número de acidentes em PN, não obstante o constante crescimento do parque automóvel e da mobilidade com o inerente aumento da utilização dos atravessamentos ao caminho-de-ferro.[…]”

Como assim fez constar o legislador no Decreto-Lei n.º 568/99, de 23 de dezembro, [sendo certo que devemos presumir que na fixação do sentido e alcance da lei, o legislador consagra sempre as soluções mais acertadas e sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados - Cfr. artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil], no preâmbulo do diploma legal referiu “[…] As passagens de nível, como uma das componentes mais perturbadoras do sistema de exploração ferroviária, são também pontos de conflito geradores de permanente insegurança.“.

Porém, não pode ser brandido esse nível de insegurança, para se deixar de dar relevo a um outro local, com outro nível de [in]segurança mais que potencial, decorrente do acesso rodoviário que foi criado para supressão daquele outro local inseguro.

Como assim julgamos, esse conflito permanente de insegurança que existia com a passagem de nível das ..., não pode dar-se como fechado, e abrir-se um outro, sendo o que, a final, se passa com a acessibilidade e a criação da curva em apreço nos autos [com as especificidades do seu piso, do desnível do piso entre as duas vias, da existência de um declive num dos lados da Rua ..., e do facto de quer a Rua ... quer o Caminho ... se tratarem de arruamentos que são estreitos no ponto do local onde se encontram].

É completamente destituído de sentido, que o legislador tivesse querido suprimir passagens de nível que eram inseguras quanto ao seu atravessamento, e que na concreta situação de facto que viesse a ser instituída em temos de criação de acessos rodoviários alternativos ao trânsito que se fazia por via desse atravessamento das linhas de caminho de ferro pudesse ser expectável que alguma vida humana, ou bens patrimoniais de cidadãos pudessem alguma vez ser postos em causa, por força da potencialidade de insegurança a que passaram a ficar os sujeitos utentes dessa via rodoviária.

Na situação dos autos, o modo como foi criado o acesso rodoviário alternativo para quem descesse a rua ..., atravessando a linha de caminho de ferro e se dirigisse para o Caminho ... [pese embora o desnível de pelo menos 50 cm entre os dois pisos, que existia antes de 2012, e que um descuido poderia ditar que um veículo pudesse resvalar e já não seguir a direito, ocorrendo assim um acidente], impõe agora que o acesso se tenha de fazer subindo a Rua ... [o que não é nenhum factor de risco, pois é uma rua igual a muitas ruas existentes]. Porém, chegados ao seu topo, impõe-se agora que tenha de se guinar para a direita, o que pode ser feito de uma só vez [como assim referiram fazer algumas testemunhas], ou por várias tentativas, num processo iteractivo [como assim o sustentou em sede de prova pericial o Senhor Perito], com avanços e recuos até encontrar o azimute adequado a prosseguir no acesso ao início [lado norte] do Caminho ..., o que pode levar, tal como assim se poderia passar com o atravessamento da passagem de nível [e a comunicação social deu-nos tanta informação nesse domínio], a que algum condutor seja apanhado desprevenido, se atrapalhe, o veículo fique parado, e não sinta condições para iniciar a marcha, sendo que se o fizer, o resultado poder ser catastrófico, e a responsabilidade não pode ser decorrente da maior ou menor imperícia do condutor, pois para tanto têm de ser levadas em conta a envolvência física do local, designadamente o piso, as condições climatéricas e eventuais pontos de protecção na eventualidade de uma queda de um veículo [v.g., muro de suporte ou de espera].

Como assim decorre da Petição inicial, da causa de pedir e dos pedidos formulados, estamos perante uma típica acção comum [Cfr. artigo 10.º do CPC], que comporta em sede do tipo de acção e quanto aos pedidos deduzidos sob as alíneas i e ii, uma “cumulação” de ação de simples apreciação, que tem por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, com uma acção de condenação, que visa exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito [por aqui, assim também quanto aos pedidos sob as alíneas iii, iv e v], sendo que o CPTA dispõe por sua vez, no seu artigo 37.º, n.º 1, que seguem a forma da ação administrativa, os processos que tenham por objeto litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da competência dos tribunais administrativos, a que se reconduzem os pedidos deduzidos na Petição inicial.

Como assim resultou provado, o Município ... recebeu os acessos rodoviários que foram executados para constituírem alternativa de circulação ao atravessamento da passagem de nível, e sobre eles não efectuou reparo, pois que os achou conformes ao projecto de execução que foi executado pelo empreiteiro contratado para o efeito na sequência de procedimento concursal aberto para esse fim, estando nesse cômputo de acessos a construção da curva para permitir a acessibilidade rodoviária ao/do Caminho ....

Em face ao que dispõe o artigo 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de dezembro, os caminhos de ligação construídos por iniciativa da [SCom02...], enquanto entidade gestora da infra-estrutura ferroviária, nele se incluindo, muito claramente, qualquer alteração efectuada ao traçado, passam a integrar-se na rede rodoviária municipal, passam a caber ao Município ... a responsabilidade pela sua da beneficiação, manutenção e sinalização das mesmas, sem prejuízo, é claro, da competência de que goza a Junta de freguesia sobre o Caminho ..., enquanto caminho vicinal.

Neste conspecto, importa referir que a gestão e conservação da rede viária municipal constitui uma atribuição dos Municípios [Cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro], que de resto já assim estava concretizado no artigo 2.º do Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961.

Pese embora o resultado constructivo alcançado seja o decorrente de uma actuação lícita por parte dos Réus, não restam dúvidas para este Tribunal de recurso que nenhuma regra de ordem técnica ou de prudência comum, que apelam a deveres objectivos de cuidado, aconselhavam a execução da curva nos termos em que, entre o mais, veio a ser executada, com grave prejuízo da segurança de pessoas e bens de quem aí tenha de conduzir veículo automóvel [Cfr., neste sentido o artigo 9.º, n.º 1 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro].

Tendo o Réu Município ... concorrido para a execução da curva de que tratam os autos, e mais ainda, tendo recebido esses acessos rodoviários no seu domínio público municipal, aceitou o Réu, e permitiu a continuação, de condições para se manter a produção do dano anormal na esfera jurídica da Autora, recaindo por isso sobre si o dever de indenizar a Autora pelos danos/prejuízos relativamente aos quais seja demonstrado tenham origem nesse facto, ainda que executado na decorrência de uma actuação lícita.

Tendo o Município ... recebido a obra onde se inclui a construção/adoçamento da curva, e resultando dos autos que essa solução encontrada não obedece aos critérios da engenharia [Cfr. alínea Ua. do probatório], não sendo tecnicamente adequada, designadamente, e em conformidade com o que assim referiu o Senhor Perito em sede de esclarecimentos prestados em Audiência final, de que aquela curva nunca poderia ser realizada daquela maneira, e que a solução viária decorrente dessa intersecção entre as duas vias é muito crítica, constituindo um nó, que o entendemos como “algo que é difícil de desatar”, e que uma ambulância ou um veículo de socorro de bombeiros não consegue fazer a curva, temos assim que tendo sido violadas regras de ordem técnica, assim como o princípio da prudência, é ao Município ... que cabe a reparação do dano, entendida como passando pela realização de uma intervenção no local, que passe por tornar a curva em condições de permitir a acessibilidade nos dois sentidos viários [para quem entra no Caminho ... provindo da Rua ..., e para quem vem do caminho para esta rua].


Ou seja, julga este Tribunal de recurso, e tomando para o efeito a factualidade que resulta do probatório, não ter dúvidas de que foi causado na esfera jurídica da Autora, um dano anormal, que é o efeito óbvio decorrente dos termos em que foi executada a concordância física rodoviária entre a Rua ... e o Caminho ..., em 2012, após a supressão da passagem de nível, obra que foi recebida pela Câmara Municipal ....

Em face do que foi o resultado da prova pericial realizada nos autos, assim como os esclarecimentos que o Senhor Perito prestou em Audiência final, e situando-nos no estrito plano da emissão de um juízo técnico, que foi submetido a ampla audiência contraditória, temos assim que por efeito do disposto no artigo 344.º, n.º 1 do CC, o ónus de prova de que a curva realizada, a que se reportam os autos [que passou a estar a cargo do Réu Município ...], de que cumpria o seu desígnio essencial, e em particular, que o local observa todas as necessárias condições em ordem a que seja acessível pelos cidadãos sem risco/insegurança para pessoas e bens, ónus que não cumpriu, ou de outro modo, que tendo-o cumprido, não logrou todavia alcançar prova que lhe valesse em sentido diverso.

Do que se trata, a final, e já assim em 2012, é que é agora o Réu que tem na sua esfera de actuação a posição de garante, o dever de garantir que foram/são observadas medidas tendentes à acessibilidade ao Caminho ..., por veículos da tipologia que a via já então possibilitava aí circulassem, em especial carros de socorro humanitário, que a final vem a contender com a diminuição credível do sentimento de insegurança e do risco para pessoas e bens.

De modo que, julgando verificados os pressupostos determinantes da efectivação de responsabilidade civil extracontratual por actos lícitos [acto lícito praticado para a satisfação de interesse público; existência de um dano; e existência de nexo causal entre a actuação lícita e esse dano], sendo o dano susceptível de ser reparado, o mesmo não tem todavia de passar pela concessão de uma indemnização à Autora, pois que a reconstituição natural é, no caso dos autos, a adequada à situação, e aliás a preferível – Cfr. artigo 566.º do Código Civil e artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Este Tribunal não prossegue nenhuma apreciação em torno da concreta opção técnica que tenha de ser adoptada pelo Réu, pois que o nosso julgamento tem justaposta a prova pericial produzida nos autos, que por si reveste o que reputamos como de termos mínimos de credibilidade e sustentação para efeitos da formação da nossa convicção.

Não tendo os Juízes integrantes desta formação de julgamento conhecimentos técnicos para mais, mas sendo condutores habituais de veículos automóveis na via pública, atenta a sua concreta situação física, e à falta de uma qualquer outra solução, reputamos como adequado que se faça o alargamento da curva, considerando para o efeito o necessário terreno existente no lado direito e/ou/também no lado esquerdo do topo norte do caminho das Carvalhos, complementando de forma adequada o desnivelamento existente, assim como um piso mais adequado de modo a evitar a ausência de tracção face a condições climatéricas adversas, e bem assim a colocação de guardas de segurança [rails de protecção como nas autoestradas, ou construção em estrutura de material sólido, v.g., betão] no lado esquerdo do topo da Rua ..., pelo menos na estrita dimensão longitudinal de quem enfrenta o declive aí existente, para quem vem de frente, a partir do Caminho ..., ou de quem quer aceder ao caminho das Carvalhos, tendo por detrás do declive.

Se a Autora é a única residente em local que é servido por via rodoviária pelo Caminho ..., a mesma tem de ver reconhecido pelo Tribunal esse direito de aceder à sua propriedade em termos similares às que fazia [dotando o local de características técnicas e operacionais que contendam positivamente com a segurança rodoviária], e assim o fixaremos a final, em sede do dispositivo, devendo o Município ... encontrar uma solução adequada para essa questão de acessibilidade formada, no prazo de 90 dias, e a sua execução no ulterior prazo de 45 dias.

Já quanto aos pedidos indemnizatórios formulados pela Autora ora Recorrente, qualquer que seja a base do seu pedido [a título de danos por privação de uso, e de danos morais], os mesmos não podem proceder, pois que nesse conspecto, a Autora não ficou violada no seu direito de propriedade, nem lhe foram infligidos pelos Réus quaisquer danos que merecessem a tutela do direito, sendo que, em particular e em torno dos invocados danos morais, os mesmos não são por si relevantes em termos de merecerem a tutela do direito – Cfr. artigo 496.º, n.º 1 do CC -, pois que, como assim julgamos, do que se tratou foi de uma particular vivência da Autora que em função do seu estado de espírito, levou a que andasse mais triste, desanimada e ansiosa, por causa de não ter um melhor acesso à sua propriedade.

O acesso à sua propriedade, a partir da construção daquela curva por força da supressão da passagem de nível passou a ficar mais difícil e a ser fonte geradora de insegurança, mas nada mais, sendo que pese embora o local onde a curva está situada, a Autora sempre poderá no futuro prosseguir em tudo quanto queira ou quisesse, seja em torno do aproveitamento agrícola do seu terreno, seja em sede de aproveitamento do arrendamento das suas casas, seja em sede da realização de obras, como de resto, assim julgamos, com maior ou menor dificuldade, o podia fazer até aqui.

A prova que a Autora fez não foi de molde a que houvesse de lhe ser conferida qualquer indemnização [Cfr. ponto iii) do pedido a final da Petição inicial, tendo o pedido iv) ficado prejudicado], pois que, sempre o acesso rodoviário esteve garantido à sua propriedade, não tendo logrado provar que um concreto meio de transporte não pôde alcançar a sua propriedade, ou que um concreto projecto da sua parte não foi, ou não pôde ser realizado.

Não se dá provimento ao pedido enunciado em v) a final da Petição inicial, por não ter vindo alegado fundamento de tanto determinante, e julga ainda este TCA Norte não ser crível, com observância dos termos gerais de direito, que o Município ... não venha a cumprir o julgado por este Tribunal.

A questão que a Autora trouxe a Tribunal e que ora foi apreciada em sede do recurso jurisdicional que deduziu da Sentença proferida, apenas visa pugnar pela declaração do seu direito a ter um acesso com condições similares às que então detinha, em termos que não lhe comporte, seja a si, seja a todo e qualquer cidadão que tenha de aceder a essa parte do território nacional utilizando essa concreta curva da via rodoviária, qualquer risco de insegurança acrescido, e mais ainda, que encontrando-se em sua casa, ou quem quer que aí se encontre, que seja possível um veículo de socorro humanitário aí aceder, tudo nos termos e moldes de que já dispunha [de que já comportava, enquanto caminho vicinal] antes da supressão da passagem de nível em 2012.

De maneira que, em face do que deixamos expendido supra, tem assim, forçosamente, de proceder a pretensão recursiva da Recorrente, ainda que apenas em parte.

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E assim formulamos as seguintes CONCLUSÕES/SUMÁRIO:

Descritores: Supressão de passagens de nível; Rede rodoviária local; Circulabilidade da via; Regras de ordem técnica ou de prudência comum; Deveres objectivos de cuidado; Dano anormal; Responsabilidade civil extracontratual por acto lícito; Reconstituição natural.

1 - Dispõem os artigos 2.º, n.º 1 e 4.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 568/99 de 23 de dezembro, que aprova o Regulamento de passagens de nível, que a [SCom02...], EPE [hoje IP, S.A.] e as autarquias locais que tenham a seu cargo vias rodoviárias que incluam passagens de nível, devem elaborar programas plurianuais com vista à sua supressão, por via da construção de passagens desniveladas e/ou caminhos de ligação, sendo que estas construções passam a integrar a rede rodoviária nacional, regional ou local, cabendo às entidades que depois as recebam [aquelas construções], a responsabilidade pela sua beneficiação, manutenção e sinalização.
2 - Após a intervenção realizada na intersecção do Caminho ... com a Rua ... [no concelho ...], com a formação de uma curva com um ângulo de 50 graus, a via deixou ser apta a garantir a sua circulabilidade em termos similares aos que até aí se fazia, passando a circulação rodoviária nesse enclave a constituir um factor de risco e insegurança para pessoas e bens, em termos que não aconteciam no passado, antes do fecho da passagem de nível, tendo a Autora sofrido um dano anormal, pois que só ela [ou só ela e um conjunto mais ou menos restrito de pessoas] passou a sofre as consequências negativas da actuação administrativa, dano esse que é superior àquele que é resultante da normal vivência em sociedade, por ter sido afectado o “gozo médio da coisa”.
3 - A gestão e conservação da rede viária municipal constitui uma atribuição dos Municípios [Cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 159/99, de 14 de setembro], que de resto já assim estava concretizado no artigo 2.º do Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961.
4 - Tendo o Réu Município ... concorrido para a execução da acessibilidade e da curva de que tratam os autos, e mais ainda, tendo recebido esses acessos rodoviários no seu domínio público municipal, aceitou o Réu, e permitiu a continuação, de condições para se manter a produção do dano anormal na esfera jurídica da Autora, recaindo por isso sobre si o dever de indenizar a Autora pelos danos/prejuízos relativamente aos quais seja demonstrado tenham origem nesse facto, ainda que executado na decorrência de uma actuação lícita.
5 - Estão verificados os pressupostos determinantes da efectivação de responsabilidade civil extracontratual por actos lícitos [acto lícito praticado para a satisfação de interesse público; existência de um dano; e existência de nexo causal entre a actuação lícita e esse dano], quando o resultado constructivo alcançado, sendo decorrente de uma actuação lícita por parte dos Réus, não deixa dúvidas de que as regras de ordem técnica ou de prudência comum [que apelam a deveres objectivos de cuidado], permite concluir que as mesmas não foram observadas, com grave prejuízo da segurança de pessoas e bens de quem aí tenha de conduzir veículo automóvel [Cfr., neste sentido o artigo 9.º, n.º 1 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro].
6 - Sendo o dano susceptível de ser reparado, o mesmo não tem todavia de passar pela concessão de uma indemnização à Autora, pois que a reconstituição natural é, no caso dos autos, a adequada à situação, e aliás a preferível – Cfr. artigo 566.º do Código Civil e artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.


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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência:

A) em CONCEDER PARCIAL PROVIMENTO ao recurso interposto pela Autora «AA» e consequentemente, em revogar a Sentença recorrida.
E em substituição,
B) em absolver a Ré [SCom01...], S.A., de todos os pedidos contra si formulados pela Autora.
C) em julgar procedentes os pedidos enunciados sob as alíneas i) e ii) a final da Petição inicial:
C1) declarando o direito de Autora a possuir condições similares de acesso ao topo norte do Caminho ..., por onde se acede por via rodoviária à sua habitação, às que anteriormente existiam;
C2) condenando o Réu Município ... a encontrar uma solução para o problema no prazo de 90 dias, e a executá-la no ulterior prazo de 45 dias;
D) em julgar improcedentes os demais pedidos formulados a final da Petição inicial.

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Custas a cargo da Autora e do Réu Município ... [que fixamos em 15% e 85%, respectivamente] Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

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Notifique, com remessa de cópia das fotografias antecedentemente juntas aos autos.



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Mais notifique, nas suas próprias pessoas:
a) o Senhor Presidente da Câmara Municipal ..., «PP».
b) os Senhores Vereadores integrantes do órgão executivo [Câmara Municipal ...]:
b1- «QQ».
b2 - «RR».
b3 - «SS».
b4 - «TT».
b5 – «UU».
b6 – «VV».

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Porto, 03 de novembro de 2023.

Paulo Ferreira de Magalhães, relato
Maria Alexandra Ribeiro
Celestina Maria Castanheira