Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01858/11.3BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/09/2019
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Celeste Oliveira
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL, EMBARGOS DE TERCEIRO, PROMITENTE-COMPRADOR, CONTRATO-PROMESSA, POSSE
Sumário:
1. Os embargos de terceiro são um dos incidentes da execução fiscal previstos no artigo 166º, nº 1, al. a) do CPPT, constituindo um meio especifico de reacção contra a penhora por parte de quem não é parte na execução, baseando-se na impenhorabilidade subjectiva dos bens.
2. A definição legal de posse do art. 1251º do Código Civil engloba elementos reconhecidos pela doutrina e jurisprudência do corpus (a detenção material da coisa, o exercício de um poder directo e directo e imediato sobre a coisa) e do animus possidendi (intenção de exercer esse poder no seu próprio interesse).
3. O contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador.
4. No entanto, há situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche os requisitos de uma verdadeira posse. Havendo sido paga já a totalidade do preço da coisa, o promitente-comprador pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
5. A posse correspondente ao exercício do direito de propriedade, reunidos os demais requisitos, fundamenta a procedência de embargos de terceiro à penhora realizada em execução fiscal. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:RMBC
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a sentença recorrida
Julgar os embargos procedentes
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de se negar provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO
RMBC e mulher MCCP, melhor identificados nos autos, inconformados, interpuseram recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 23/02/2015, que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos contra a sociedade CSI, LDA. e FAZENDA PÚBLICA, na sequência da penhora de imóvel (apartamento para habitação inscrito sob o artigo 1326-E da freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Chaves) efectuada no âmbito do processo executivo nº 1872200901075296 que corre termos no Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim.
Formularam nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:
1. Os Recorrentes consideram que foram incorretamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto:
a) Ponto n.° 5 da matéria de facto provada, que deverá ser retificado nos termos infra expostos;
b) Alíneas a), b) e c) da matéria de facto considerada na douta sentença como não provada e que, no entender dos Recorrentes, deve ser considerada como matéria provada.
São as seguintes as provas que impõem decisão diversa da recorrida:
2. Considerou-se no ponto n.° 5 da matéria de facto provada que a penhora que os Embargantes pretendem levantar neste processo, registada em 22.12.2009, foi efetuada no âmbito do processo de execução 1872200200501033450, o que não é correto.
3. Com efeito, resulta da certidão de registo predial junta aos autos que a penhora atacada neste processo respeita antes ao processo de execução fiscal n.° 1872200901045296.
4. Na verdade, os aqui Embargantes também deduziram embargos de terceiro à penhora registada em 06.05.2009 no âmbito do processo de execução fiscal 1872200200501033450, embargos esses que deram origem a outro processo que não este, que ainda não está julgado e corre termos pelo Tribunal Administrativo do Porto sob o n.° 1857/11.5BEPRT - Unidade Orgânica 3.
5. Por conseguinte, a sentença recorrida parte logo da “confusão” de que os presentes embargos respeitam a dois processos de execução fiscal distintos e a duas penhoras distintas quando, na realidade, estes embargos só dizem respeito a um processo (1872200901045296) e a uma única penhora (a de 22.12.2009).
6. Seguidamente, não se conformam os Recorrentes que o Tribunal a quo tenha considerado que não se provou que estes realizaram obras de acabamento na fração — E, objeto dos autos.
7. Também não se conformam os Recorrentes que o Tribunal a quo tenha considerado que não se provou que estes começaram a ocupar a fração na data referida no contrato promessa.
8. Não vamos aqui fazer finca-pé na data concreta em que os Embargantes foram ocupar a dita fração, o que ficará reservado para o julgamento do proc. 1857/11.
9. Aqui basta-nos que o Tribunal considere provado que os Embargantes foram ocupar a fração em data não concretamente apurada, mas anterior a 22.12.2009.
10. Ora os Embargantes habitaram o apartamento em causa durante meses com luz e água de obras e garrafas de gás.
11. Mas, já em novembro de 2009 existem consumos de eletricidade faturados pela EDP à Embargante relativos à fração objeto dos autos (ponto n.° 8 da matéria de facto provada)!
12. Já em novembro de 2009, a Embargante havia celebrado o contrato de fornecimento de gás respeitante à fração objeto dos autos!
13. Há condomínios de vários meses de 2009 pagos pelos Embargantes!
14. A prova documental constituída pelo contrato promessa junto aos autos refere que em 23.04.2009 os Embargantes foram autorizados a entrar na posse do imóvel, dando-lhe o destino que bem entendessem, sendo que já nesta altura os Embargantes lá residiam.
15. Por fim, não considerou o Tribunal a quo que o preço a que alude o contrato promessa tenha sido pago.
16. A fundamentação do Tribunal relativamente à decisão sobre este concreto ponto da matéria de facto é em si mesma contraditória.
17. Com efeito, refere-se na página 6 da douta sentença que “não foi junto qualquer documento comprovativo da entrega em dinheiro, cheque, declaração...”.
18. Ora, o próprio contrato promessa celebrado por promitentes vendedores e compradores constituí recibo dc quitação integral do preço convencionado.
19. Com efeito, dele consta que o preço estipulado de € 75 000 já se encontra integralmente pago (cláusula 3).
20. Exigir-se uma outra declaração, para além do próprio contrato promessa, em que o promitente vendedor volte a declarar que o preço já se acha pago não faz, no nosso modesto entendimento, qualquer sentido.
21. As testemunhas inquiridas, todas elas, depuseram, de forma desinteressada, idónea e credível, no sentido alegado pelos Embargantes, conforme extratos dos registos áudio que se transcreveram e cujo conteúdo se dá aqui por integrado e reproduzido.
22. Nenhuma testemunha depôs em sentido contrário nem há outras provas que infirmem o alegado pelos Embargantes.
23. Acresce que a promitente vendedora CSI foi citada para os presentes autos de embargo e não contestou a matéria dc facto alegada na p.i»
24. Por conseguinte, entendem os Recorrentes que:
a) O ponto 5° da matéria dc facto provada deverá passar a ter a seguinte redação: “ Em 22.12.2009, no âmbito do processo de execução 1872200901045296, único a que se reportam os presentes autos, foi penhorado o prédio referido em 04.”
b) Deverão ser acrescentados os seguintes pontos à matéria de facto provada;
— Os Embargantes realizaram obras de acabamento da fração;
— Os Embargantes foram ocupar a fração em data não concretamente apurada, mas anterior a 22.12.2009, convencidos de lhes assistir o direito de propriedade quanto àquele imóvel;
— O preço de € 75 000 a que alude o contrato promessa descrito em 2. Foi pago;
Isto posto,
25. Não estando em causa a qualidade de terceiro dos Embargantes nem tendo sido posta em causa, pela Embargada, a tempestividade dos Embargos, cumprirá, em nossa opinião, ao Tribunal apreciar se aqueles têm a posse, em termos de propriedade, sobre a fração em questão.
26. Ora, a posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real. Envolve, deste modo, um elemento empírico — exercício de poderes de facto — e um elemento psicológico-jurídico em termos de um direito real. Ao primeiro chama-se corpus, ao segundo animus.
27. Os Embargantes, na sua petição, invocam ambos os elementos. Com efeito, invocam que aquando do pagamento integral do bem, o mesmo foi-lhes entregue, passando a tratá-lo como um bem próprio, mormente tendo efetuado obras, habitando-o, pagando o condomínio (corpus), sempre na convicção de o fazer como coisa sua (animus).
28. A questão que urge ser aprofundada é unicamente quanto ao animus, ou seja, saber-se qual a posse conferida pela tradição da coisa, na sequência de contrato promessa: se é uma posse em nome próprio ou se se trata de mera detenção.
29. Ainda há quem sustente que a posse obtida por via do contrato promessa é mera posse precária e de mera tolerância.
30. Outros consideram que a posse exercida em nome próprio pelo promitente-comprador é uma posse condicional, visto depender da celebração do contrato prometido. Ou seja, uma “posse em nome próprio do direito obrigacional de uso fruição”.
31. Por outro lado, a doutrina e jurisprudência maioritárias defendem uma conceção objetiva de posse, em que se outorga ao promitente comprador um estatuto de verdadeiro possuidor.
32. Com efeito, a jurisprudência recente vai no sentido de que havendo tradição do bem e, entre outros elementos, pagamento da totalidade ou de parte substancial do preço, contratação de água e eletricidade pelos promitentes-compradores, deve ser tido como verificado o requisito do animus possidendi. Veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 18.01.2012, proferido no processo 00642/09.9BEBRG e ainda o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.10.2010, proferido no processo 0453/10, onde situações em tudo semelhantes à sub judice mereceram a procedência dos embargos.
33. A corroborar esta posição, Marco Filipe Carvalho Gonçalves, na sua tese de mestrado “Embargos de Terceiro da Acção Executiva”, Dezembro de 2008, a fis. 152 e 153, escreve: “Com efeito, o promitente-comprador pode deduzir embargos de terceiro quando o corpus da posse por si exercida seja acompanhado do respectivo animus possidendi, isto é, quando o promitente-comprador actua com um animus rem sibi habendi.
Tal situação verifica-se quando o promitente-comprador se comporte como um possuidor em nome próprio, designadamente quando já tenha liquidado uma parte significativa do preço do imóvel, quando tenha sido requisitada em nome do promitente-comprador a ligação da água, energia elétrica, telefone ou televisão por cabo, quando tenha procedido à realização dc obras de remodelação ou de acabamento do imóvel objecto do contrato-promessa ou à instalação de mobiliário, quando participe na administração do condomínio ou quando o promitente comprador, não obstante se encontrar na posse da coisa, não tenha ainda celebrado o contrato definitivo de compra e venda, nomeadamente porque pretende evitar o pagamento do imposto municipal sobre as transmissões onerosas
de imóveis”.
34. Dúvidas não há de que os Embargantes além do corpus têm também o animus, dando-se por preenchidos os pressupostos de que depende a posse. Tendo-se esta por provada, verifica-se que a penhora afecta a mesma, não podendo manter-se no ordenamento jurídico.
35. Por fim, ficámos com a convicção de que o Tribunal a quo não entendeu bem o porquê de, entretanto, posteriormente ao conhecimento da penhora, não ter sido feita a escritura pública que formalizasse o contrato prometido.
36. Ora, tal escritura, não pode ser feita por a promitente vendedora ter dívidas fiscais que oneram através de penhoras o próprio bem a transmitir, o que ressalta dos presentes autos.
37. Com efeito, não é possível efetuar a necessária e prévia liquidação dos impostos (IMT e IS) respeitantes à venda nos casos em que a promitente vendedora tem dívidas fiscais que oneram através de penhora o próprio bem que irá ser transmitido.
38. Só após a procedência dos embargos e com o trânsito em julgado dessa sentença é que a AT autoriza a emissão dos DUCs para pagamento dos impostos ou que certifiquem eventual isenção, permitindo a celebração da escritura de compra e venda.
Acresce que,
39. O Ministério Público junto do Tribunal Administrativo do Porto emitiu parecer favorável à procedência dos Embargos.
40. Não ocorre aqui, no que à apreciação da prova testemunhal respeita, a vantagem derivada do princípio da imediação porquanto a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo que proferiu a sentença de que se recorre não esteve presente no julgamento, tendo formulado a sua convicção através da audição dos registos áudio dos depoimentos das testemunhas.
A sentença recorrida violou, entre outras, as seguintes disposições legais:
Artigos 2370 e 166° do CPPT. Artigo 342° do CPC. Artigo 1251° CC.
Por conseguinte, procedendo o presente recurso, anulando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que julgue os embargos procedentes e anulando-se a penhora realizada se fará inteira e sã justiça.
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A recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu o parecer no sentido de se negar provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos dos Exmºs Senhores Desembargadores Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
*
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas alegações - Cfr. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5, todos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigo 2.º, alínea e) e artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) –, e que se centram em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento em torno da matéria de facto e de direito.
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3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:
III – FACTOS PROVADOS:
Com interesse para a decisão a proferir, julgo provada a seguinte factualidade:
1. Contra a sociedade CSI, LDA, NIPC 505xxx29, foi instaurado o processo de execução fiscal nº 1872200901045296 e apensos, instaurado pelo Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim para cobrança coerciva da quantia de € 42.558,88, proveniente de IRC, IMI; Coimas e IMT – Cfr. fls. 86 dos autos cujo teor se tem por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais.
2. Entre a sociedade CSI, LDA NIPC 50xxx29 e os Embargantes foi efectuado um documento que apelidaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda”, onde apuseram a data de 23.04.2009 e respeitante à fracção E do edifício sito no Lote 74, Quinta T…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Chaves sob o nº 1026/20080808 - constante de fls. 11 e 12 dos autos, cujo teor se tem por reproduzido para os devidos efeitos legais.
3. Do documento referido em 02 consta, entre o mais que: “(…)Pelo presente contrato, a primeira outorgante promete vender aos segundos, que por sua vez prometem comprar, a identificada fracção livre de quaisquer ónus ou encargos.
3º O preço estipulado foi de € 75.000,00 (…) o qual já se encontra integralmente pago.
4º A escritura pública que formalize o contrato prometido será outorgada logo que, qualquer dos outorgantes notifique o outro para o efeito, com 8 dias de antecedência.
5º Os segundos outorgantes ficam autorizados a entrar na posse e detenção do imóvel, dando-lhe o destino que bem entenderem.
6º O presente contrato fica sujeito às regras de execução específica….” – Cfr. fls. 11 e 12 dos autos.
4. Em 30.04.2009, no âmbito do processo de execução fiscal 1872200200501033450, instaurado pelo Serviço de Finanças da Povoa de Varzim, foi penhorado o prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Chaves, sob artigo 1326-E, descrito na Conservatória do Registo predial de Chaves sob nº 1026/20080808-E, tendo a penhora sido registada em 06.05.2009 – Cfr. fls. 83 dos autos cujo teor se tem por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais.
5. Em 22.12.2009, no âmbito do processo de execução referido em 01. foi penhorado o prédio referido em 04. - Cfr. fls. 83 e 86 dos autos cujo teor se tem por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais.
6. A penhora referida em 05. foi registada em 22.12.2009 – Cfr. fls. 83, verso, dos autos.
7. Em 19.11.2009 foi celebrado, pela embargante, um contrato de fornecimento de gás respeitante à fracção identificada em 02., 04., e 05. – Cfr. fls. 23 dos autos.
8. A EDP debitou à embargante a quantia de € 4,69, em 20.11.2009, com data limite de pagamento 21.12.2009 e referente à fracção referida em 02., 04., e 05. – Cfr. fls. 26 dos autos.
9. Os embargantes efectuaram o pagamento de despesas de condomínio respeitantes ao prédio referido em 02., 04., e 05. em 28.05.2010, 30.08.2010 e 18.04.2011 – Cfr. fls. 18/19 dos autos cujo teor se tem por reproduzido para os devidos efeitos legais.
10. A Embargante esteve presente na assembleia de condomínio de 19.01.2011 – Cfr. fls. 20/21 dos autos.
11. A EDP debitou à embargante a quantia de € 34,20 referente a electricidade correspondente ao período de 25.12.2010 a 22.02.2011, referente à fracção identificada em 02) 04) e 05) – Cfr. fls. 25 dos autos.
12. A EDP debitou à embargante a quantia de € 12,74, em 11.03.2011, com data limite de pagamento 11.04.2011 e referente a consumo da fracção referida em 02., 04., e 05. – Cfr. fls. 27 dos autos.
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
Não se provou que:
a) Os Embargantes realizaram obras de acabamento da fracção – E;
b) Na data referida no Contrato Promessa descrito em 2., os Embargantes começaram a ocupar a referida fracção;
c) Que o preço de 75.000,00 a que alude o Contrato Promessa descrito em 2. foi pago.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO: A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados, baseou-se essencialmente nos documentos constantes dos autos, consoante se enuncia em cada um dos (respectivos) pontos do probatório.
Ancorou-se ainda o Tribunal na posição assumida pelas partes nos seus articulados.
Relativamente à factualidade dada como não provada:
O Tribunal inquiriu as testemunhas arroladas pelos embargantes, sendo certo que o depoimento da 1ª testemunha (JLAV) foi frágil, pois nada sabia em concreto, uma vez que, não se recordava sequer se esteve presente no “Contrato Promessa”, referindo que sabia que o contrato foi efectuado porque lhe foi comunicado pelo Gerente da empresa, na altura em que lá trabalhava (antes de estar reformado) e estava encarregue das vendas.
Referiu ainda a testemunha que “sabia” que o preço foi de €75.000,00 e que foi pago com trabalhos que o Embargante efectuou para a executada e outras empresas de que era gerente o Sr. MCS.
Porém, não soube a testemunha concretizar como foi efectuado o pagamento dos alegados € 75.000,00 e/ou como foi efectuado o acerto de constas, designadamente quando foram prestados; como foram facturados/contabilizados os serviços/trabalhos realizados e que foram a alegada contrapartida pelo apartamento. Donde, o Tribunal não se ter convencido do pagamento.
Na verdade, do depoimento desta testemunha colhe-se que aquilo que relatou se baseia naquilo que lhe foi dito/comunicado, sem que tenha tido intervenção directa ou conhecimento directo dos factos de que falou.
Face ao depoimento vago da testemunha, não ficou o Tribunal convencido do pagamento do preço, conforme se avançou, designadamente o modo como aquele foi custeado e que os outorgantes declararam ter sido recebido/pago. E isto porque, além de não se ter convencido em resultado do depoimento da testemunha, a outro passo, além da declaração feita no “Contrato Promessa”, não foi junta ou realizada qualquer outra prova complementar do alegado pagamento, cheque, transferência, etc.
Por outro lado, as duas testemunhas indicadas que se reportaram ao pagamento do preço foram divergentes, enquanto uma referiu que foi pago com trabalho (1ª testemunha), já a 2ª testemunha referiu que o preço do apartamento foi pago, uma parte em dinheiro e outra parte em trabalho.
Além da contrariedade dos dois depoimentos, a este respeito, nenhuma testemunha cuidou de explicar e concretizar como foram feitas essas alegadas contas.
Além disso, apesar da segunda testemunha referir que o preço foi pago em trabalho e dinheiro, deu conta ao Tribunal que tal conhecimento lhe advinha do facto do embargante lhe ter dito. Como tal, além de tal conhecimento indirecto, não soube concretizar qual o montante em dinheiro e o valor dos trabalhos, etc.
Por outro lado, ainda, em prol desta convicção, não foi junto qualquer documento comprovativo da entrega em dinheiro, cheque, declaração, transferência, etc.; qual o foi o valor dos alegados trabalhos por conta do preço, onde foram prestados, quando, quais as obras, valores, tipo de serviços, etc.
Por essa razão, também, e não obstante o declarado no “Contrato Promessa de Compra e Venda”, não se convenceu o Tribunal que o preço foi pago e integralmente pago.
Ainda relativamente à segunda testemunha (VNSO), esta testemunha, apesar de ter avançado ao Tribunal que foi viver para o prédio vizinho do dos embargantes em Outubro de 2009, referiu que os Embargantes já lá estavam a viver.
Contudo, o Tribunal não se convenceu que os Embargantes estivessem a viver no prédio em Julho de 2009, como “parecia” à testemunha, nem em data anterior ou posterior, desde logo porque a prova documental aponta em sentido contrário, designadamente as despesas de condomínio, participação em assembleias de condomínio e despesas com consumo de energia que datam de 2010 e 2011.
A outro passo, não foi credível nesse aspecto o depoimento da segunda testemunha, na medida em que começou por relatar que pressionou a imobiliária para terminar e lhe entregar a fracção e que a mesma fosse concluída pois tratava-se de uma demorada mercê de problemas com a empresa e que, após essa pressão continua, apenas foi morar em Outubro de 2009 e que os embargantes já lá estavam a viver.
Na verdade, o Tribunal não se convenceu que quando a testemunha foi residir para o prédio já lá se encontrassem a viver os Embargantes, desde logo quando espelham os autos que nenhuma pressão foi feita para ser realizada a escritura e a prova documental aponta em sentido contrário, consoante se disse.
Por outra banda, convencido ficou o Tribunal, pelo contrário, de que os Embargantes ocuparam a dita fracção e ali passaram a residir já depois da penhora da fracção, designadamente desde 2010, como o espelham os documentos de condomínio, a acta de assembleia e as despesas de electricidade, não obstante a existência de uma nota de débito de Dezembro de 2012 (limite de pagamento) e ter sido pedida ligação de gás, o que não abala a convicção do Tribunal acabada de expor.
Depois, também não se convenceu o Tribunal de que foram realizadas obras no apartamento por parte dos embargantes pois que, além de inexistir nos autos qualquer documento, factura de serviços e ou de materiais para a obra, nada mais foi trazido ao Tribunal de que a palavra da segunda testemunha que se bastou em referir que as obras foram feitas por eles porque “ O R… disse” que terminou, “que fez acabamentos por conta dele”.
Também foi avançado pela primeira testemunha que o Embargante teve de acabar o apartamento, porém, quando questionado sobre o que faltava “acabar” no apartamento, o mesmo não soube responder, donde se ter tratado, à semelhança do depoimento da segunda testemunha, de um depoimento sem consistência, espontaneidade e sem conhecimento directo por forma a lograr convencer o Tribunal.
Além disso, nenhum trabalhador, por exemplo, foi ouvido para relatar ao Tribunal que fez trabalhos, quais foram esses trabalhos, onde, quando, por ordem de quem, com quem, etc.
Relativamente à terceira testemunha (SFMT), apenas se valorou aquilo que pela mesma foi relatado e tinha eco nos documentos respeitantes a despesas de condomínio.
Foi a análise de toda a prova assim enunciada que, em conjugação com as regras da experiência comum, sedimentou a convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados – Cfr. art. 74º LGT, 76º nº 1 LGT e art. 362º e ss do CC.”
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Alteração e aditamento oficioso da matéria de facto.
Ao abrigo do artigo art.º 662.º, nº 1 do Código do Processo Civil (CPC), e por se mostrar essencial, altera-se o ponto 8 da factualidade assente, que passa a ter o seguinte teor:
8. O Município de Chaves debitou à embargante a quantia de €4,69, em 20.11.2009, com data limite de pagamento 21.12.2009 e referente à fracção referida em 02, 04 e 05 (cfr. fls. 26 dos autos).
Adita-se à factualidade apurada os seguintes pontos:
a) Com data de 28/05/2010 foi emitido em nome de MCCP o recibo de condómino nº 2010000043, no montante de €177,24, correspondente ao aviso de débito nº 2010000020 relativo às quotas dos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto do ano de 2009 (cfr. fls. 18 dos autos).
b) Em 30/08/2010 foi emitido em nome de MCCP o recibo de condómino nº 2010000064, no montante de €177,22 relativo às quotas de Setembro de 2009 a Fevereiro de 2010 (cfr. fls. 18 dos autos).
c) Em 30/08/2010 foi emitido em nome de MCCP o recibo de condómino nº 2010000063, no montante de €35,45, relativo ao “Fundo Comum de Reserva 2009/2010” (cfr. fls. 19 dos autos).
d) Na factura/recibo nº 079091112012123 emitida pelo Município de Chaves em 19/11/2009, no montante de €4,69, relativa a consumo de água, consta a menção “leitura anterior 22-10-2009” e “consumo de água 25”, consta ainda a menção “Nesta data a dívida neste local de consumo é de Euros 5,63, correspondente à factura de 2009-09-21” (cfr. fls. 26 dos autos).
e) No Contrato de Fornecimento de Energia Eléctrica que a EDP enviou à embargante mulher consta como data acordada para a ligação “27/08/2009” (cfr. fls. 24 dos autos).
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4- JULGAMENTO DE DIREITO
Há que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a decisão recorrida padece de erro de julgamento de facto e de direito. Competindo, assim, aquilatar se o Tribunal a quo valorou adequadamente a prova produzida nos autos e, por outro lado, se interpretou erradamente os pressupostos de direito violando, nessa medida, os pressupostos dos embargos.
Avancemos pelo alegado erro de julgamento sobre a matéria de facto.
Está em causa a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 23 de Fevereiro de 2015, que julgou improcedentes os embargos deduzidos pelos ora Recorrentes.
Começam os Recorrentes por defender [conclusões 1, al. a) e 24, al. a) das alegações de recurso - fls. 203/205 do processo físico] que na decisão sobre a matéria de facto o Tribunal a quo errou, porquanto efectuou uma errada selecção e apreciação de todos os elementos de prova, mormente, ao considerar como provado (Ponto 5 da factualidade – fls. 169 do processo) que a penhora foi efectuada no âmbito do processo executivo nº 1872200200501033450 o que, no seu entender, não corresponde à verdade.
Depois, os Recorrentes indicam que foi desconsiderada a prova testemunhal que ofereceram, a qual, segundo defendem, era suficiente para que fossem considerados como provados os factos constantes das conclusões 1, al. b) e 6 a 24, al. b) das alegações de recurso, fls. 203/205 do processo físico, que foram julgados como não provados pelos Tribunal a quo (alíneas a), b) e c) da factualidade – fls. 169/170 do processo).
Vejamos, pois, se lhes assiste razão nestas conclusões oriundas da matéria de facto.
O ponto 5 da matéria de facto dada como assente na sentença recorrida diz que “Em 22.12.2009, no âmbito do processo de execução referido em 01 foi penhorado o prédio referido em 04. - Cfr. fls. 83 e 86 dos autos cujo teor se tem por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais”.
Ora, o processo executivo referido no ponto 1 da factualidade é o PEF nº 1872200901045296 e apensos, precisamente o que vem identificado pelos Recorrentes no intróito da petição inicial de embargos. Destarte, não podemos assentir com os Recorrentes na invocação deste erro de julgamento da matéria de facto, uma vez que é cristalino que o ponto 5 da factualidade identifica correctamente o PEF em que ocorreu a penhora visada nestes embargos, isto sem prejuízo de no ponto 4 da mesma factualidade se aludir ao facto de haver já uma penhora sobre o prédio, efectuada em 30/04/2009, no âmbito do PEF nº 1872200201033450.
Mantém-se, pois, inalterada a factualidade neste ponto do probatório, nada havendo a rectificar.
Prosseguindo.
Os Recorrentes mostram-se ainda inconformados com a factualidade dada como “não provada” na sentença recorrida, nomeadamente nas alíneas a), b) e c), por entenderem que tais factos, sustentados na prova testemunhal produzida, deveriam ter sido dados como provados.
Vejamos se nesta parte lhes assiste razão.
Recordemos, então, quais são factos que os Recorrentes pretendem que transitem para a factualidade assente.
Assim, resulta da decisão recorrida que “Não se provou que:
a) Os embargantes realizaram obras de acabamento da fracção E;
b) na data referida no Contrato Promessa descrito em 2., os Embargantes começaram a ocupar a referida fracção;
c) que o preço de 75.000,00 a que alude o contrato promessa descrito em 2. foi pago”.
Apreciemos cada uma das alíneas a que aludem os Recorrentes.
Assim na alínea a) da factualidade dada como “Não provada” o MMº juiz do tribunal a quo considerou que não ficou provado que “Os embargantes realizaram obras de acabamento da fracção –E”.
Para sustentar tal decisão, a juiz a quo ancorou-se no depoimento das testemunhas analisando de forma pormenorizada o depoimento de cada uma delas e sustentando prolixamente a sua convicção quanto a cada um dos depoimentos. Assim, refere que os depoimentos foram inconsistentes, vagos, se baseavam no que lhes foi dito/comunicado e foram até contraditórios entre si.
O Tribunal a quo refere que nada foi provado pelos Recorrentes, pois inexistem nos autos documento, factura de serviços e ou materiais para a obra e que os depoimentos das testemunhas não foram de molde a fincar a convicção do Tribunal na realização das ditas obras.
Importa ter presente, no que tange à concreta valoração dos depoimentos de testemunhas, que se o julgador do Tribunal a quo entendeu valorar diferentemente do pretendido pelos Recorrentes os depoimentos das mesmas, a verdade é que não pode a instância de recurso sindicar e censurar, de leve ânimo, a convicção daquele, que se mostra livremente formada. Os depoimentos testemunhais, que os Recorrentes pretendem que sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo Tribunal a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto não provada, são, consabidamente, elementos de prova a apreciar livremente pelo Tribunal (cfr. artigo 396º do Código Civil (CC) e artigo 607º do Código Processo Civil (CPC) - antigo 655º do CPC).
Dir-se-á, portanto, que quando seja impugnada a prova testemunhal, o que, em rigor, importa averiguar é se o Tribunal a quo incorreu, de facto, num erro ostensivo na apreciação da prova, numa apreciação totalmente arbitrária das provas produzidas em audiência de julgamento, descurando ou afrontando directamente as mais elementares regras da experiência, em termos de se poder dizer que existe uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto[ cfr. Acórdão do TCAS proferido em 28/03/2019, processo 123/14.9BELLE, disponível in: www.dgsi.pt. ].
No dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[ cfr. Acd. do STJ de 10/01/2007, processo 06P3518, disponível in: www.dgsi.pt.] o recurso sobre a matéria de facto pressupõe “ (…) uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre «os pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida”.
In casu, analisando a factualidade dada como não provada na alínea a) e que resulta questionada pelos Recorrentes, a convicção do juiz do Tribunal a quo em conjugação com as regras da experiência comum, não se nos afigura irrazoável, infundada ou arbitrária, de molde a justificar ou, quiçá, impor a censura do Tribunal ad quem.
Acresce que o facto de o julgamento da matéria de facto ter sido efectuado por magistrado diverso daquele que assistiu à produção da prova testemunhal não altera a conclusão a que se chega e que acima se reproduz.
Pois, tal como resulta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/12/2012, processo nº 1152/11 e do Acórdão do TCA Sul de 22/10/2015, proferido no processo nº 08401/15, disponíveis in: www.dgsi.pt. “A sentença deve ser proferida pelo Juiz a quem está distribuído o processo no momento em que a mesma tem de ser proferida”.
Assim, porque nenhuma prova foi feita, quer testemunhal, quer documental, acerca da realização das obras na fracção, resta concluir que tal factualidade terá que manter-se como não provada.
Vejamos, agora, as alíneas b) e c) que, recordemos, referem que não foi provado que:
b) na data referida no Contrato Promessa descrito em 2., os Embargantes começaram a ocupar a referida fracção;
c) que o preço de 75.000,00 a que alude o contrato promessa descrito em 2. foi pago
No que concerne à alínea b) o tribunal a quo sustenta-se na prova documental junta aos autos, designadamente as despesas de condomínio, participação em assembleias de condomínio e despesas com consumo de energia que datam de 2010 e 2011, para concluir que “(…) ficou convencido que os Embargantes ocuparam a dita fracção e ali passaram a residir já depois da penhora da fracção, designadamente desde 2010, como o espelham os documentos de condomínio, a acta de assembleia e as despesas de electricidade, não obstante a existência de uma nota de débito de Dezembro de 2012 (limite de pagamento) e ter sido pedida ligação de gás, o que não abala a convicção do Tribunal acabada de expor”.
Sucede que, tal qual resulta do aditamento que foi feito à factualidade, não podemos acompanhar o MMº juiz do Tribunal a quo na apreciação que fez.
Efectivamente, o que resulta dos documentos apresentados é que já em Março de 2009 os Embargantes pagaram despesas de condomínio, aliás fizeram de Março a Dezembro de 2009 e também no ano de 2010 e 2011.
Depois, celebraram contrato de fornecimento de gás em 19/11/2009 e a factura da EDP refere como data acordada para a ligação da electricidade o dia 27/09/2009.
Também as facturas emitidas pelo Município de Chaves, relativas ao consumo de água, mostram a existência de leitura de consumo em 22/10/2009 e pagamento de consumos em falta relativo ao mês de Setembro de 2009 (cfr. factualidade aditada – alíneas a) a e)).
Portanto, fazendo o raciocínio do Juiz do Tribunal a quo, mas ao contrário, com os documentos que constam dos autos impõe-se concluir que desde Março de 2009 que os Embargantes pagam despesas de condomínio e que pelo menos desde Agosto de 2009 têm electricidade ligada e desde Setembro de 2009 registam consumos de gás e água e, como tal, ocupam de facto a fracção penhorada antes da data da penhora que ocorreu em 22/12/2009.
Depois, e no que concerne ao preço de €75,000,00 sustentou-se a Juiz a quo além do mais, na falta de prova documental, sobretudo no que concerne à ausência de meios de pagamento do preço da fracção, nomeadamente, cheque, declaração, transferência, etc..
Mas será que assim é? Podemos já adiantar que não.
Concretizemos.
Fazendo a análise da factualidade dada como assente constatámos que foi dado como provada no ponto 2. da factualidade, a realização do contrato promessa especificando-se as suas cláusulas, mormente a cláusula 3ª relativa ao preço “O preço estipulado foi de €75.000,00 (…) o qual já se encontra integralmente pago” e a cláusula 5ª “Os segundos outorgantes ficam autorizados a entrar na posse e detenção do imóvel, dando-lhe o destino que bem entenderem”.
A fixação da matéria nestes moldes não foi alvo de contestação por parte da Fazenda Pública, pois que dela não interpôs qualquer recurso.
Resulta pois, indelevelmente, do próprio contrato-promessa, cuja validade formal e material não foi infirmada pela Embargada, sobre quem impendia o ónus da prova - Art. 342º, nº 2, do C. Civil, formando prova plena das menções inscritas, que o preço foi pago e os embargantes tomaram posse do imóvel para nele fazerem o que bem entenderem, motivo pelo qual se tem por definitivamente assente.
Destarte, não podemos assentir com o MMº juiz a quo quando considera como não provados os factos mencionados nas alíneas b) e c), ocorrendo o invocado erro de julgamento da matéria de facto relativamente às alíneas b) e c) supra referidas.
Assente definitivamente a factualidade, afrontemos, agora, o erro de julgamento na vertente do direito.
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou os embargos improcedentes por considerar que “Não obstante o que fica dito, importa notar que, a posse ou propriedade, ou qualquer outro direito incompatível com a diligência realizada, a existir, terá de ser anterior à penhora.
Vejamos então se é ou não o que sucede na situação trazida, analisando a mesma à luz da doutrina e jurisprudência referida.
Como se colhe do probatório, a penhora efectuada é posterior ao Contrato Promessa, mas, não há notícia nos autos que a traditio tenha ocorrido, também, em data anterior à penhora.
Também não se colhe do probatório que o promitente vendedor se tivesse escusado a cumprir o contrato prometido para se falar em inversão do ónus da posse como se discorre no Acórdão citado.
Podemos avançar desde já que, a “propriedade” dos embargantes não foi afrontada com a penhora, na medida em que os mesmos não eram proprietários mas apenas tinham a expectativa de o vir a ser com a Promessa de Compra e Venda (Ou seja, com a celebração do negócio prometido – Compra e Venda).
Os embargantes eram, e são, apenas, detentores.
Não nos podemos desviar do facto de não possuírem os embargantes uma escritura a titular a propriedade, por isso notamos o facto de que, com a promessa existir apenas uma expectativa de aquisição, uma promessa de realização da compra e venda.
Por outro lado, o contrato promessa não tem eficácia real pois que não foi registado.
Por outro lado ainda, não podemos ignorar o facto de constar da promessa de compra e venda que a realização da escritura (titulo necessário para registo da propriedade prometida) seria marcada quando um dos outorgantes notificasse o outro e, não dão os autos noticia que haja sido interpelada a promitente vendedora para a feitura da escritura de compra e venda prometida ou sequer que esta se haja recusado.
Na verdade, como se explicou, não estamos sequer perante uma posse por banda dos embargantes.
Ademais, colhe-se do probatório que a penhora (2009) é anterior à Traditio (2010), a que alude a motivação da decisão da matéria de facto e bem assim as despesas com condomínio, participação em Assembleia, etc.
Assim sendo, à luz do “princípio da prioridade do registo”, vertido no artigo 6º nº 1 do Código do Registo Predial, a penhora sobrepõe-se à “posse” por ser posterior à penhora, sendo certo que a situação a que aludem estes autos não cabe e não se assemelha, sequer, à situação excepcional a que alude o Acórdão do TCAN referido nas alegações dos embargantes.
Na verdade, não resulta provado que os Embargantes tenham entrado na posse na data da assinatura do “Contrato Promessa” ou na mesma data, não obstante se ter declarado que ficavam autorizados os embargantes a fazê-lo.
O certo é que o Tribunal se convenceu que tal Traditio ocorreu depois da Penhora.
A outro passo, acresce notar que, como sabemos, o contrato-promessa só confere, em regra, um direito de crédito ao promitente-comprador – o direito à celebração do contrato prometido e definitivo – e que, ainda que haja tradição da coisa para o mesmo, este não passa de um “detentor ou possuidor precário” nos termos e para os efeitos do artigo
1290.º CC. É o que sucede na situação que nos cabe analisar.
Na situação que nos ocupa, pese embora o facto de ter sido celebrado contrato promessa de compra e venda e de se admitir estarem os Embargantes a usar a fracção, habitando-a, depois do registo da Penhora, mesmo que a ocupassem e lá vivessem em data anterior, assim possuindo corpus, não possuiriam, ainda assim, o animus na medida em que apenas teriam a perspectiva de vir a adquirir a fracção e ser seus proprietários.
De facto, isso mesmo decorria do contrato promessa, onde estipularam os outorgantes que a escritura do contrato prometido seria celebrada quando algum dos outorgantes interpelasse o outro, o que nunca aconteceu, visto que nem o probatório dá conta dessa interpelação desde a celebração do contrato. E, da PI colhe-se, antes, que “Os embargantes estão já a envidar esforços para ser realizado o contrato definitivo, afigurando -se cada vez mais provável a necessidade de recurso à execução especifica” Cfr. artigo 16º da PI.
Ora, desta alegação extrai-se, com efeito, que a intenção dos embargantes se centra na expectativa de vir a ser o proprietário e não de o ser.”
Vejamos.
Os embargos de terceiro são deduzidos por quem, não sendo parte na causa, seja titular de posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito de acto ou diligência judicialmente ordenada, de apreensão ou entrega de bens.
A essência dos direitos relacionados com as coisas - dos direitos reais de gozo e de alguns direitos reais de garantia e direitos pessoais - consiste na faculdade de sobre elas exercer poderes de retenção, de uso, de fruição e de transformação. Todos estes direitos têm por finalidade a utilização económica das coisas, das vantagens que das coisas se podem obter, sendo pelo exercício daqueles poderes que a utilização se realiza (Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 4ª.edição prefaciada por Fernando Luso Soares, Almedina, 1996, pág.7).
Nos termos da lei civil substantiva o possuidor que veja a sua posse sobre determinada coisa ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a mesma mediante de embargos de terceiro - art. 1285º do C. Civil.
Ora, o art. 1251º do Código Civil define posse como “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real.”.
A posse, face à concepção adoptada na definição legal, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material com a coisa e o “animus”, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.
Tal significa que para que exista posse é necessário alguma coisa mais do que o simples poder de facto exercido sobre a coisa, tem que haver, por parte do detentor, a intenção (“animus”) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, sendo que só esta, a posse efectiva e causal, que se traduz pelos mencionados elementos objectivo e subjectivo, pode fundamentar, regra geral, os embargos de terceiro.
Pois bem, a partir da reforma operada pelo D.L. nº 329-A/95, 12-12, os embargos de terceiro deixaram de ter a natureza de processo especial, passando a ser configurados como modalidade do incidente de oposição, ampliando-se os pressupostos da sua admissibilidade, assim deixando de estar ligados, necessariamente, à defesa da posse do embargante, na medida em que, face a este novo regime, o embargante, através dos embargos, além da posse, pode defender qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.
Os elementos a considerar nesta sede, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes:
1 - A tempestividade da petição de embargos;
2 - A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência;
3 - A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.
Não estando em causa no recurso a qualidade de terceiros dos Recorrentes, nem tendo sido posta em causa, pela Embargada, a tempestividade dos Embargos, apenas resta apreciar se os Recorrentes têm a posse, em termos de propriedade, sobre a fracção em causa, sendo certo que os Recorrentes assim o defendem nas conclusões do recurso (cfr. conclusões 25 a 27 do recurso).
Assim, no processo vertente é o exame do terceiro requisito que está em causa, sendo que, como vimos, os Recorrentes fundamentam a dedução de embargos de terceiro, além do mais, na titularidade do corpus e do animus no que diz respeito à fracção penhorada.
Efectivamente, os Recorrentes sustentam que aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda da fracção pagaram a totalidade do preço do bem e que o mesmo lhes foi entregue, passando a tratá-lo como bem próprio, mormente efectuando obras, habitando-o, pagando o condomínio sempre na convicção de o fazer coisa sua (conclusão 27).
Efectivamente, no contrato promessa de compra e venda claramente é dada quitação do pagamento do preço (€75.000,00) e o vendedor abre mão do imóvel para os promitentes-compradores, ora Recorrentes, darem à fracção “o destino que bem entenderem”.
Não temos dúvidas que no nosso ordenamento jurídico consagrou-se aquilo que se denomina por concepção subjectiva da posse, ou seja, uma concepção que envolve um elemento objectivo e um elemento subjectivo; um corpus e um animus. O primeiro elemento caracteriza-se pelo exercício de poderes de facto sobre uma coisa; o segundo pela existência de uma intenção de, ao exercer tais poderes, estar a agir como titular do direito a que os actos praticados correspondem. São concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse; nestas situações excepcionais, em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos. Se os embargantes pretendem a defesa da sua posse sobre o prédio penhorado, impõe-se-lhes que aleguem e demonstrem essa posse, seja na vertente material, seja na vertente intencional.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no seguimento, sobretudo, da doutrina de Antunes Varela, tem vindo a decidir no sentido de que “são concebíveis (…) situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse”, dando-se como exemplo as situações em que, “havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade” (neste sentido cf. acórdão do STA, proferido em 10 de Fevereiro 2010, recurso nº 1117/09, disponível em versão integral no endereço www.dgsi.pt.) e que, nestas situações excepcionais em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos (neste mesmo sentido, acórdão STA de 10 de Abril 2002, recurso nº 26295 e acórdão STA de 27 Outubro de 2010, processo 0453/10, ambos disponíveis no endereço www.dgsi.pt”).
Assim, concluímos que, excepcionalmente são admissíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse, actuando uti dominus. Em determinados casos, portanto, dependendo de uma análise casuística, podemos ser levados a concluir que o promitente-comprador passou a actuar como se fosse o proprietário da coisa.
In casu, e tal qual resulta da factualidade apurada, com a celebração do contrato promessa o preço foi pago na sua totalidade e o imóvel entregue aos embargantes para lhe “darem o destino que bem entenderem”.
Antes da penhora, que se realizou em 22/12/2009, e na sequência do contrato promessa de compra e venda os Embargantes passaram a possuir o imóvel procedendo ao pagamento de quotas de condomínio, contratando água, luz e gás e procedendo ao pagamento dos respectivos consumos, antes da penhora.
Ora, a posse de um bem há-de inferir-se do exercício real e efectivo, em relação a esse bem, das faculdades ou poderes inscritos no direito de propriedade ou outros direitos reais.
A posse é, assim, para o fim que aqui nos interessa, um poder de facto manifestado através de acto ou de actos concretos em relação a um bem (o bem penhorado), em termos de um direito juridicamente provido de protecção possessória.
A relação possessória há-de conter um elemento que estabeleça uma ligação material da pessoa com a coisa (corpus) e tem de estar impregnada de um elemento incorpóreo (animus) que signifique a intenção de exercer um direito no próprio interesse – cf. Manuel Rodrigues, A Posse, 3.ª edição, n.º 36.
A lei não se contenta com a mera possibilidade física de agir directamente sobre a coisa, exigindo antes a prática efectiva de actos capazes de exprimirem o exercício do direito – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado III, p. 22.
Como supra se referiu, os embargantes adquiriram a posse do imóvel penhorado (tal como é definida pelo artigo 1250° do CC), do anterior proprietário e possuidor (que do imóvel abriu mão), quando celebraram o respectivo contrato-promessa e pagaram a totalidade do preço, passando daí em diante a comportar-se e a ser reconhecidos por todos como proprietários daquele imóvel agindo convictos de lhes assistir o direito de propriedade da fracção que veio a ser penhorada.
Assim, é legítimo concluir que os embargantes, ora Recorrentes, à data da penhora realizada na execução fiscal, tinham uma posse real e efectiva sobre a fracção penhorada – de molde a justificar a procedência dos presentes embargos de terceiro.
***
5- DECISÃO
Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgar-se os embargos procedentes.
Custas a cargo da Recorrida em ambas as instâncias; nesta instância, as custas não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.
Registe e notifique.
Porto, 2019-05-09
Ass. Maria Celeste Oliveira
Ass. Maria Cardoso
Ass. Pedro Vergueiro