Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00690/19.0BEALM |
Secção: | 1ª Secção - Contencioso Administrativo |
Data do Acordão: | 06/02/2021 |
Tribunal: | TAF de Viseu |
Relator: | Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão |
Descritores: | ACÇÃO DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL; ARTIGO 70º, Nº 2, ALÍNEA G), DO CCP: PRÁTICAS ANTICONCORRENCIAIS |
Sumário: | I-Dúvidas não restam que em procedimentos de contratação pública anteriores ao procedimento dos Autos, procedimentos esses que incidiram, tal como o do autos, sobre a prestação de serviços na rede ferroviária nacional e em que figurava como entidade adjudicante a REFER e, depois, a ora Recorrida IP, foram cometidas por parte da Recorrida particular Futrifer graves infrações à Lei da Concorrência; I.1-por isso mesmo, choca à consciência ético-jurídica que uma empresa que foi condenada com uma coima num processo de contra-ordenação pela prática de graves infrações à Lei da Concorrência, com prejuízo para o funcionamento transparente do mercado e com prejuízo para uma entidade adjudicante, menos de um mês depois de ser condenada pela Autoridade da Concorrência ao pagamento de uma coima pela prática de tais infrações, venha a ser “premiada” pela mesma entidade adjudicante a quem quis prejudicar, com uma adjudicação de prestação de serviços que incidia igualmente sobre a rede ferroviária nacional; I.2-a interpretação da Ordem Jurídica, neste caso, a interpretação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, face ao Direito da União Europeia, não pode permitir um tal “prémio”, sob pena de se permitir a subversão dos objetivos da União previstos no nº 3, do artigo 3º do “Tratado da União Europeia” (TUE), a saber, o mercado interno, o qual assenta numa economia social de mercado altamente competitiva e na adopção de uma política económica conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência - artigos 119º, nºs 1 e 2 e 120º do “Tratado de Funcionamento da União Europeia” (TFUE); I.3-A adjudicação em causa atenta ostensivamente contra os mais elementares princípios da contratação pública; I.4 - A ilegalidade não pode ter assento na contratação pública.* * Sumário elaborado pela relatora |
Recorrente: | T., Lda |
Recorrido 1: | Infra-estruturas de Portugal, S.A, |
Votação: | Unanimidade |
Meio Processual: | Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional |
Decisão: | Conceder provimento ao recurso. |
Aditamento: |
Parecer Ministério Publico: | Não emitiu parecer. |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: RELATÓRIO T., Lda., com sede na Zona Industrial, (…), instaurou acção de contencioso pré-contratual contra a Infra-estruturas de Portugal, S.A., com sede na Praça (…), pedindo a condenação desta à prática de acto devido no âmbito do procedimento concursal nº 497/2019, consubstanciado na adjudicação do contrato de aquisição de equipamentos a si. Procedeu à indicação das seguintes Contra-interessadas: F., S.A., com sede na (…); e M., S.A., com sede na Rua (…). Por sentença proferida pelo TAF de Viseu foi julgada improcedente a acção. Desta vem interposto recurso. Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões: 1ª O presente recurso jurisdicional é interposto da sentença do TAF de Viseu de 21/2/20 no segmento em que julgou improcedente a ação de contencioso pré-contratual intentada pela ora Recorrente contra o Recorrido IP SA por ter decidido não ter ocorrido a violação do art. 70º, nº 2, alínea g) do CCP por parte do acto de adjudicação proferido pelo Recorrido IP em 25/7/19; 2ª Assim, para a sentença recorrida, a exclusão de uma proposta com fundamento no art. 70º, nº 2, alínea g) do CCP – prática de actos contra as regras da concorrência, só pode ocorrer se tais actos tiverem sido praticados no procedimento adjudicatário, não fora dele; 3ª Porém, a sentença recorrida, no segmento sob censura, para além de ter revelado dúvidas por parte do julgador na interpretação do citado preceito, acabou por fazer uma interpretação do mesmo ignorando o Direito da União Europeia, pelo que, ao fazê-lo, acabou por violar este mesmo Direito; 4ª Deste modo, a questão a decidir no presente recurso jurisdicional é saber se, para efeitos de interpretação do art. 70º, nº 2, alínea g) do CCP face ao disposto no Direito da União Europeia, mais concretamente, face ao art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/UE, a exclusão de uma proposta por violação das regras da concorrência por parte de um concorrente tem de ocorrer no próprio procedimento ou em momento anterior à sua abertura; 5ª Para tanto, em 1º lugar, é preciso registar que desde 2004 que os contratos públicos se regem pelo Direito originário da UE, representado actualmente pelo TFUE e pelos princípios gerais nele vertidos como a defesa das liberdades de circulação e da concorrência e pelo Direito da UE derivado, traduzido no conjunto de Diretivas sobre contratação pública; 6ª Em 2º lugar, tendo o DL que aprovou o CCP – DL nº 111-B/2017, de 31 de agosto, procedido à transposição da Diretiva 2014/24/EU através do seu art. 1º, nº 2, a interpretação do art. 70º, nº 2, alínea g), do CCP, terá de ser uma interpretação conforme ao Direito da União Europeia, incluindo a referida Diretiva; 7ª Em 3º lugar, porque apesar de o art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5 da Diretiva 2014/24/EU conter causas de exclusão dos concorrentes que são facultativas para os Estados-membros, a realidade é que o art. 70º, nº2, alínea g) do CCP, conforme o reconhece a doutrina, transformou aquilo que é uma causa de exclusão do concorrente no art. 57º, nº4 da Diretiva numa causa de exclusão da proposta; 8ª Por conseguinte, o que está em apreciação nos Autos não é uma situação de incumprimento da Diretiva 2014/24/UE por parte do art. 70º, nº2, alínea g), do CCP, mas, algo diferente, ou seja, sendo ele mesmo uma causa de exclusão do concorrente na Diretiva, tal implica que se terá de proceder à sua interpretação com o Direito da UE, quer o Direito originário quer o Direito derivado, como é agora o caso da Diretiva 2014/24/UE; 9ª Assim sendo, há que seguir o que já foi decido pelo nosso STA no seu Acórdão de 30/10/14, Procº nº 092/14, de que em consonância com o princípio da interpretação conforme ou compatível com o Direito da União, o intérprete e aplicador do direito nacional devem atribuir às disposições nacionais um sentido conforme ou compatível com as disposições europeias, sendo que todo o direito nacional aplicável deve ser interpretado em conformidade com o Direito da União; 10ª Impõe-se por isso, segundo o citado Acórdão, que os órgãos jurisdicionais façam tudo o que for da sua competência, tomando em consideração o direito interno, considerado no seu todo e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos para garantir a plena efetividade dos normativos da UE que estejam em causa e chegar a uma solução conforme com a finalidade pelos mesmos prosseguida; 11ª Para tanto, importa desde logo ter presente que os objetivos da UE previstos no nº 3, do art. 3º do TUE são o mercado interno, o qual assenta numa economia social de mercado altamente competitiva e na adopção de uma política económica conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta e de livre concorrência – arts. 119º, nºs 1 e 2 e 120º do TFUE; 12ª Ora, tendo em conta o considerando 101 da Diretiva 2014/24/UE e o teor do seu art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, parágrafo 2º, constata-se, sem dificuldade, através da sua interpretação literal, que as entidades adjudicantes podem excluir do procedimento concorrentes que tenham cometido actos contra a concorrência antes do procedimento; 13ª Assim é que, o próprio TJUE, pelo seu Acórdão de 18 de Dezembro de 2014, Procº nº 470/13 e em que estava em apreciação uma situação de exclusão fundada num comportamento anti-concorrencial do passado, adoptada fora do procedimento adjudicatório e sancionado pelo “Instituto Húngaro de defesa da concorrência”, considerou que a exclusão fundada numa falta grave em matéria profissional abrangia uma situação desta natureza; 14ª E mais referiu o TJUE no Acórdão ora citado que o art. 57º, nº4, alínea d) da Diretiva 2014/24/EU, prevê de forma clara tal causa de exclusão, sendo que tal observação foi feita a propósito de um caso em que a infração às regras da concorrência foi estranha ao procedimento pré-contratual onde o operador faltoso foi excluído; 15ª Acontece que a sentença recorrida deu como provado que a Recorrida F. foi condenada pela Autoridade da Concorrência ao pagamento de uma coima de 300.000 € pela prática de ilícitos anti-concorrenciais previstos na Lei nº 19/2012, de 8 de maio, ilícitos esses que, a dita Autoridade, não hesitou em qualificar como de muito graves; 16ª E tal condenação ocorreu em 26/6/19, ou seja, antes de ter sido elaborado o relatório final do júri em 17/7/19, ao que se seguiria o acto de adjudicação de 25/7/19; 17ª Ora, a alínea g) do nº 2, do art. 70º do CCP deve ser recrutada no caso de a conduta identificada pelo Júri se subsumir aos artigos 9º e 12º da Lei nº 19/2012, o que foi o caso; 18ª Assim sendo, com base na condenação da Recorrida particular F. por parte da Autoridade da Concorrência pela prática de ilícitos anti-concorrenciais e tendo em consideração quer o Direito originário da União quer o seu Direito derivado, como é o disposto no art. 57º, nº 4, alínea d) e nº 5 da Diretiva 2014/24/EU, a sentença recorrida não podia ter interpretado o art. 70º, nº 2, alínea d) do CCP no sentido de a causa de exclusão aí prevista só ser aplicada aos ilícitos anti-concorrenciais ocorridos no procedimento; 19ª E não colhe o facto de a sentença recorrida, porque teve dúvidas na interpretação do preceito, ter chamado em sua defesa um Acórdão do STA e a opinião de P., pois tal Acórdão não é aqui aplicável e P. não deu uma resposta objetiva à questão em foco; 20ª Com efeito, P., relativamente ao art. 57º, nº 4, alínea d) da Diretiva, emitiu uma opinião sem convicção e, sobretudo, sem fundamentação, pois ficou-se sem saber porque é que o ilustre administrativista optou por considerar que o preceito da Diretiva só se aplica a actos anti-concorrenciais verificados no procedimento; 21ª Deste modo, face ao disposto no art. 3º, nº 3, do TUE, nos artigos 101º, 119º nº 1 e 2 e 120º do TFUE, no considerando 101 da Diretiva 2014/24/UE e no seu art. 57º, nº4, alínea d) e nº5, ao que acresce a jurisprudência já conhecida do TJUE sobre este último preceito, tem de se considerar que a sentença recorrida procedeu a uma interpretação desconforme do art. 70º, nº2, alínea d), do CCP, face ao Direito da União Europeia; 22ª É que, face ao invocado Direito originário e derivado da UE e considerando que, de acordo com o TJUE, a concorrência é o valor mais destacado do Direito da Contratação Pública, da chamada interpretação conforme do art. 70º, nº2, alínea g), do CCP ao Direito da União resulta que a proposta da então concorrente F. tinha de ser excluída pelo júri do concurso em virtude de, três semanas antes da elaboração do relatório final, ter a ora Recorrida particular sido condenada ao pagamento de uma coima pela Autoridade da Concorrência pela prática de infrações muito graves à Lei nº 19/2012; 23ª Seria pois, completamente contrário ao Direito da União Europeia e ao valor mais elevado da contratação pública que é a concorrência, chocando abertamente com a consciência ético-jurídica, que, uma empresa condenada ao pagamento de uma coima de 300,000 € pela prática de graves infrações à Lei da Concorrência, viesse, um mês depois de conhecida a decisão condenatória, vir a ser ”premiada” com uma adjudicação no valor de 2.696,150,00 € por parte da entidade adjudicante a quem tinha querido anteriormente prejudicar em procedimentos de contratação pública que também incidiam sobre a rede ferroviária nacional; 24ª Quem é responsável pela prática de actos ilícitos anti-concorrenciais muito graves e, como tal, sancionada com coima por parte da competente autoridade da concorrência, não merece a confiança da entidade que procura no mercado um ente idóneo para com ela contratar tendo em vista a prossecução do interesse público, pelo que tem de ser afastado do procedimento em causa; 25ª Assim, em face das conclusões anteriores, a sentença ora recorrida, por uma errada interpretação do art. 70º, nº2, alínea d), do CCP, uma interpretação em desconformidade com o Direito da União Europeia, é ilegal por violação dos artigos 3º, nº3, do TUE, 101º, 119º, nºs 1 e 2 e 120º do TFUE e 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/EU, não podendo assim ser mantida na Ordem Jurídica por este Tribunal; 26ª Por conseguinte, porque os Tribunais nacionais zelam pela aplicação do Direito da União Europeia na ordem interna dos Estados-membros e porque a concorrência assume-se como um valor central da ordem jurídica, de interesse público e tutelado pelo Direito Público, a sentença ora recorrida deve ser revogada com a consequente condenação do Recorrido IP SA a praticar o acto devido, a saber, o acto de adjudicação da aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho cresotado à ora Recorrente, Fazendo-se assim JUSTIÇA. A Entidade Demandada ofereceu contra-alegações, concluindo: A) – A Recorrente alega que a Sentença interpretou mal o disposto no art. 70º nº 2 alínea g) do CCP, pois que, em seu entender, e por força do direito comunitário, essa causa de exclusão específica abrange também necessariamente os casos passados de indícios de condutas anticoncorrenciais pelos concorrentes, ainda que de há vários anos, e não presentes ou indiciados na proposta do concorrente; B) – Todavia, e ao contrário do que ela defende, da lei portuguesa não deriva isso: tais factos, exteriores à proposta do procedimento em causa, apenas nesta relevam se tiverem dado azo a uma decisão sancionatória que determine uma “proibição de participação” em concursos públicos futuros durante determinado período de tempo (tal como se dispõe na alínea f) do nº 1 do art. 55º do CCP). C) – Sanção acessória esta, de participação, que não existe e nunca existiu no caso presente. D) – O legislador português nas duas normas referidas do CCP [o art. 55º/1 f) – que prevê uma situação específica de “impedimento” para o concorrente apresentar propostas em concursos, por causa e factos passados; e o art. 70º nº 2 g) – que prevê a exclusão de “propostas” cuja análise revele indícios presentes de prática anti-concorrencial] deu aplicação plena às hipóteses consagradas na directiva europeia (art. 57º da 2014/14/EU). E) – De resto, e como se sabe, a própria causa de exclusão prevista no nº 4 do art. 57º da Directiva, é uma causa não “obrigatória”, mas antes “facultativa”. F) – Não é preciso, pois, e nem sequer é minimente correcto, interpretar a norma da alínea g) do nº 2 do art. 70º do CCP, com um alcance mais vasto do que aquele que resulta do seu sentido expresso e literal, e que se refere aos indícios de prática anti-concorrencial revelados na própria proposta (ie, “resultantes da sua análise”). G) – A norma europeia não obriga a uma leitura diferente dessa norma específica; e para os casos antigos ou passados – que não resultem da análise de proposta actual –, vale a regra e os mecanismos dos impedimentos de concorrer, previstos noutra sede. H) – De facto, quanto ao “desenho” da causa facultativa prevista na alínea d) do nº 4 do art. 57.º da Directiva (2014/24/EU) – e que é invocado pela recorrente, e onde se funda toda a sua alegação –, é bom não esquecer que a própria directiva prevê, para ela, a necessidade de se fazer acompanhar tal previsão quando acolhida desse modo na legislação nacional, de eventuais mecanismos de minorar tais consequências (cf. considerando 102; e nºs 6 e 7 do mesmo art. 57º: “Qualquer operador económico que se encontre numa das situações referidas nos n.os 1 e 4 pode fornecer provas de que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua fiabilidade não obstante a existência de uma importante causa de exclusão. Se essas provas forem consideradas suficientes, o operador económico em causa não é excluído do procedimento de contratação”; e “7. Os Estados-Membros devem (...) determinar o período máximo de exclusão no caso de o operador económico não ter tomado medidas, como as especificadas no n.º 6, para demonstrar a sua fiabilidade. … esse prazo não pode ser superior a … três anos a contar da data do facto pertinente nos casos referidos no n.º 4”). I) – Aliás, quanto ao próprio alcance específico da alínea d) do nº 4 do art. 57º da Directiva, que a Recorrente tanto invoca, Autores têm-se pronunciado no sentido de que “este fundamento se aplica apenas a ilícitos concorrenciais praticados no âmbito do procedimento específico” (cf. P., Direito dos Contratos Públicos, 2ª ed., Almedina, 2018, pág. 659). Também, a posição, neste mesmo sentido de SÁNCHEZ GRAELLS, “Prevention and decorrence of bid rigging”, in G.M. Racca/C. Yukins, Integrity and efficiency in sustainable public contracts”, p.194, apud anterior, op. cit.). J) No fundo, e bem, o legislador português procedeu, como se tem escrito (e sem crítica, a não ser agora a alegação da recorrente), a uma dicotomia quanto a este tema previsto nas directivas, abrangendo todas as hipóteses nela possivelmente contempladas (mesmo facultativas, e não-obrigatórias), e foi claro: a) - se condutas anti-concorrenciais anteriores, cometidas fora do procedimento adjudicatório em causa, são vistas pela Autoridade da Concorrência e podem acarretar, para o concorrente, o impedimento legal de participar em procedimentos como esse: nos termos do art. 55º/1-f), do CCP; b) - já se forem condutas, ou fortes indícios delas, reveladas na análise da própria proposta do concurso em causa, será motivo de decisão de exclusão dessa proposta e de comunicação para os devidos efeitos à autoridade da concorrência (art. 70º/2-g), do CCP). K) – Com o devido respeito, a recorrente desvirtua o sentido das citações que faz de PEDRO SÁNCHEZ, na obra Direito da Contratação Pública, AAFDL, 2020, Vol. II. Na verdade, em lado nenhum da referida obra (e até nos locais de texto a que se reportam as citações feitas) o ilustre Autor afirma ou sufraga a tese de que a causa de exclusão aqui em causa (da alínea g/ do nº 2 do art. 70º do CCP) diga respeito a outras condutas anti-concorrenciais tomadas fora do âmbito do procedimento adjudicatório concursal que está em causa [como diz a lei: …”propostas cuja análise revele” esses fortes indícios…]. L) - Muito pelo contrário, nas páginas citadas da obra mencionada extrai-se claramente que o Autor sempre tem subjacente e se está a referir, quanto a essa hipótese legal de exclusão de propostas no concurso (da alínea g)), a condutas ocorridas no âmbito ou a propósito do procedimento concorrencial em causa. M) - Por outro lado, nos próprios termos da directiva (nº 7 do artigo citado), e tal como nela vêm desenhados os efeitos das causas de exclusão, os Estado-Membros “devem em particular, determinar o período máximo de exclusão no caso de o operador económico não ter tomado medidas… para demonstrar a sua fiabilidade. … esse prazo não pode ser superior a ….a três anos a contar da data do facto pertinente nos casos referidos no n.º 4”. N) Assim, mesmo que, por hipótese em que se não concede, a interpretação da norma portuguesa da alínea g) do nº 2 do art. 70º tivesse de ser feita nos termos muito vastos que a Recorrente preconiza por força de uma invocada “exigência” do direito europeu, mesmo em tal hipótese…, então, por força do disposto expressamente nesse no nº 7, in fine, do mesmo artigo da Directiva, uma tal “exclusão” a decidir apenas pela entidade adjudicante no concurso nunca poderia derivar de factos outros, extra procedimento ocorridos em uma época distanciada de há mais de três anos... O) – Ora, os factos aludidos nos autos, e que a recorrente invoca, reportam-se a um caso de há mais de três e quatro anos. Pelo que também por aí soçobraria a alegação da Recorrente. P) – A interpretação da Recorrente é, pois, completamente forçada e inadequada. Se, como pretende a Recorrente, o júri tivesse um dever de propor a exclusão de propostas, e a entidade adjudicante de as excluir, por indícios de factos anticoncorrenciais mas ocorridos fora do âmbito do procedimento adjudicatório em causa, então… como se delimitariam estes no tempo (e em que procedimentos)? … de até quando para o passado? … A casos de há mais de 3 ou 4 ou 5 anos? …ou de 10 anos? Q) – E, em um tal cenário, que possibilidades de defesa, relativamente às consequências disso ou a remédios (de que fala expressamente a Directiva, como algo de previsão associada necessária) estaria o concorrente dotado? Nada se diz. O que é mais uma comprovação, inequívoca, do quão desajustada é, agora, a interpretação pretendida pela Recorrente. R) – Por outro lado, mesmo que a interpretação (ou “desenho”) da própria disposição comunitária específica em causa (o nº 4 alínea d) do art. 57º da directiva 2014/24/EU) fosse a mais ampla preconizada pela recorrente (e, como se viu, os Autores acima citados assim o não entendem), a verdade é que, seja como for, tal causa de exclusão europeia é meramente “facultativa”, e por isso, se “quem pode o mais, pode o menos”, também a norma interna do Estado-Membro pode perfeitamente prever uma tal possibilidade de exclusão da proposta ditada no concurso pela entidade adjudicante mas “reduzida” (na óptica da Recorrente) a situações em que os indícios anticoncorrenciais se verificam no próprio concurso em causa, revelados da análise da proposta nele apresentada. S) – Para os demais casos, está a previsão do art. 55º/ f) do CCP – e suas consequências. TERMOS EM QUE, e com o suprimento, deve ser julgado improcedente o presente recurso. E assim far-se-á JUSTIÇA! F., S.A., contrainteressada, juntou contra-alegações, concluindo assim: a) O objecto do presente recurso jurisdicional circunscreve-se à parte da Sentença recorrida na qual se deu por improcedente o vício de violação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, de que padeceria a proposta da Contrainteressada F.; b) A Recorrente, para fundar o seu recurso, invoca a necessidade de interpretação conforme da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP com o disposto na alínea d) do n.º 4 e do n.º 5 da Directiva 2014/24/UE, no sentido de que estas normas comunitárias supostamente impõem que se considere abrangida na mencionada norma de exclusão de propostas do CCP qualquer infracção grave à Lei da Concorrência, não se cingindo a mesma aos indícios de falseamento da concorrência constatados no próprio procedimento concreto em análise (cf. conclusões 6.ª a 8.ª, 17.ª, 18.ª, 21.ª a 25.ª, das alegações da Recorrente); c) O que não tem qualquer sustentação na lei comunitária e na lei nacional aplicáveis; d) Como se demonstrou nestas contra-alegações, a Directiva 2014/24/UE – que veio substituir a Directiva 2004/18 /UE, em 2014 –, no respectivo artigo 57.º, n.º s 1, 2 e 4, conservou a dicotomia entre causas de exclusão obrigatória e causas de exclusão facultativa que se encontrava prevista nos n.º s 1 e 2 do artigo 45.º da anterior Directiva; e) Com efeito, a Directiva 2014/24/UE, nos n.º s 1 e 2 do seu artigo 57.º, prescreve que as entidades adjudicantes devem excluir do procedimento qualquer operador que se encontre numa das circunstâncias aí previstas; f) O que também significa que essas causas de exclusão aí previstas devem encontrar-se transpostas nas legislações dos diversos ordenamentos nacionais. E se, por hipótese, um desses ordenamentos não contemple todas as causas de exclusão obrigatória, deve ser feita uma interpretação conforme à Directiva nesse ponto; g) Já no que respeita à segunda categoria de exclusões (de natureza facultativa), e que actuamente constam do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE, a mesma sempre foi interpretada – e continua a sê-lo – no sentido de que os Estados-Membros não estavam obrigados a acolher estes fundamentos de exclusão no seu ordenamento jurídico interno, dispondo antes de uma liberdade para decidir sobre se estes fundamentos de exclusão devem ser colocados à disposição das suas autoridades adjudicantes; h) Do mesmo modo, a jurisprudência do TJUE sempre entendeu que os diversos Estados-Membros tinham a faculdade de transpor estas causas para os respectivos ordenamentos em termos menos rigorosos – nesse sentido, entre outros, ver o Acórdão de 9 de Fevereiro de 2006 (La Cascina) e o Acórdão de 10 de Julho de 2014 (Consorzio Stabile Libor Lavori Pubblici); i) Do exposto decorre que as causas de exclusão (impedimentos) de natureza facultativa previstas nas várias alíneas do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não são de adopção obrigatória nos diversos ordenamentos e que, no caso de um determinado Estado-Membro optar por não incorporar essas causas de exclusão no seu ordenamento, não poderá, em circunstância alguma, ser invocado o efeito directo dessas normas; j) A causa de exclusão facultativa constante da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE não constava da anterior Directiva 2004/18/CE (mais concretamente, do respectivo artigo 45.º, n.º 2), nem foi objecto de transposição para o CCP, aquando da transposição da mencionada Directiva, em Agosto de 2017; k) Na norma sobre impedimentos do Código já constava, sim – desde a redacção inicial de 2008 –, uma causa de impedimento no caso de o operador económico ter sido objeto de aplicação de sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos prevista em legislação especial, nomeadamente no regime contraordenacional em matéria de concorrência (anterior alínea f do artigo 55.º do CCP) e que se manteve com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017 (cf. actual alínea f do n.º 1 do artigo 55.º do CCP); l) À Contrainteressada F., como ficou provado nos autos, não foi aplicada, no âmbito do processo contraordenacional promovido pela AdC, qualquer sanção acessória de proibição de participação em procedimentos de contratação pública, tendo apenas sido objecto da aplicação de uma coima. m) Por outro lado, mas não menos relevante, a alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP – relativa a uma causa de exclusão de propostas, e não de concorrentes –, consta do Código sem qualquer alteração de redacção, deste a sua versão inicial, em 2008, numa altura em que ainda não existia a norma da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE; n) E note-se bem, o mencionado artigo 70.º do CCP diz respeito à exclusão de propostas, sendo que está em causa, no caso da alínea d) do seu n.º 2, a exclusão de proposta “cuja análise revele”: “a existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras da concorrência”; o) Fica evidente, portanto, que não se trata de um impedimento geral derivado de comportamentos exteriores ao procedimento concreto, mas antes de uma infracção da concorrência revelada na própria proposta apresentada, no contexto do procedimento concreto; p) Aliás, não pode ser outra a interpretação a dar à alínea d) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP, como também se demonstrou nestas alegações; q) É que, quer a Directiva (no n.º 6 do artigo 57.º), quer o CCP (no artigo 55.º-A) prevêem, para todas as situações do n.º 4 do mencionado artigo 57.º sem excepção, a possibilidade de relevação desses impedimentos; r) E, portanto, se por absurdo se considerasse que a norma da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do Código pretenderia contemplar o impedimento da alínea d) do n.º 4 do artigo 57.º da Directiva, isso não jogaria com o regime imperativo de relevação (ou self-cleaning) de impedimentos previsto na Directiva e no CCP; s) Conclui-se, assim, face a tudo o que ficou aqui invocado, que não pode proceder o fundamento do presente recurso jurisdicional, no sentido de que a Sentença a quo fez errada interpretação da alínea g) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP ao não fazer uma interpretação em conformidade com o disposto na alínea d) do n.º 4 e no n.º 5 do artigo 57.º da Directiva 2014/24/UE; t) Por último, a título subsidiário (e por mera cautela de patrocínio), mesmo que vingasse a tese (acima referida) de que a norma do artigo 57.º, n.º 4, da Directiva 2014/24/UE, permitiria que as entidades adjudicantes possam considerar as causas de exclusão facultativas aí previstas, mesmo nos casos em que o legislador não as incorporou no ordenamento nacional – como é o caso da causa prevista na respectiva alínea d) –, nem assim haveria fundamento para revogar a sentença recorrida; u) É que, na verdade, essa seria uma mera faculdade da entidade adjudicante e, nesse caso, haveria que permitir a possibilidade de invocação por parte do operador económico de factos que pudessem levar à relevação do impedimento; v) Ora, acontece que a entidade adjudicante (a Infraestruturas de Portugal) não considerou no caso concreto que existisse qualquer fundamento para considerar que a Contrainteressada F. se encontrava impedida de concorrer. w) O que sempre constituiria fundamento para dar por improcedente o presente recurso jurisdicional. Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado não provado e totalmente improcedente, com todas as consequências legais. Como é de DIREITO E JUSTIÇA! X Em 21/02/2020 foi proferida a seguinte Decisão: De Facto - A) Ao longo dos meses de Janeiro de 2018 até Janeiro de 2020, a Ré levou a cabo acções de inspecção de várias linhas da via férrea, tendo sido identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata (cfr. relatórios de inspecção juntos aos autos a fls. 3269 e seguintes); B) A 21/01/2019, na II Série do Diário da República nº 14, foi publicado o anúncio de procedimento nº 497/2019, identificando a Ré como entidade adjudicante, o objecto do contrato como sendo a Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas, indicando ainda como valor do preço base do procedimento o montante de € 2.979.200,00, o prazo de 9 meses para a execução do contrato, o prazo para a apresentação de propostas até ao 40º dia a contar da data de envio do anúncio e o critério de adjudicação como sendo o do melhor preço (cfr. documento junto com a petição inicial sob o nº 1); C) Pela Ré foi elaborado Programa de Procedimento, do qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) Artigo 8º. Documentos da proposta. A proposta é constituída pelos seguintes documentos: 1. Documento Europeu Único de Contratação (DEUCP). 2. Documentos que, em função do objecto do contrato a celebrar e dos aspectos da sua execução submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, contenham os atributos da proposta, de acordo com os quais o concorrente se dispõe a contratar: a) Proposta de preço elaborada de acordo com o modelo constante do Anexo I ao presente programa; os preços unitários não poderão ter mais que duas casas decimais; b) Declaração de Utilização de Instalações e Equipamentos, elaborada de acordo com o Anexo VI. (…) Artigo 13º. Assinatura das propostas. 1. A assinatura e a encriptação das propostas e respectiva documentação serão realizadas através de um certificado qualificado, o qual deverá ser atempadamente adquirido junto da entidade credenciada nos termos da legislação em vigor (cartão do cidadão, Digital Sign, Multicert). 2. A documentação que constitui a proposta deve ser assinada nos termos previstos na Lei nº 96/2015 de 17 de Agosto, sob pena de exclusão. 3. Nos casos em que o certificado digital não possa relacionar directamente o assinante com a sua função e poder de assinatura, deve ser submetido à plataforma um documento electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante. (…) Artigo 20º Prazo de apresentação dos documentos de habilitação pelo adjudicatário e outros necessários à celebração do contrato. 1. No prazo de 10 dias após a notificação da adjudicação, o adjudicatário deve apresentar os seguintes documentos: a) Declaração emitida conforme modelo constante do anexo II ao Código dos Contratos Públicos; b) Documentos comprovativos de que não se encontra nas situações previstas nas alíneas b), d), e) e i) do artigo 55º do Código dos Contratos Públicos; c) Certidão da Conservatória do Registo Comercial; d) Confirmar, se aplicável, os compromissos assumidos por terceiras entidades; e) Declaração relativa a trabalhadores imigrantes nos termos do Anexo V; f) Prestar caução no montante exigido no artigo 19º do presente programa de concurso, devendo comprovar essa prestação junto da IP, no dia imediatamente subsequente. (…) Anexo I. Modelo de proposta de preço. (…) 2. O preço contratual resulta do somatório do produto das quantidades a adquirir pelo preço unitário indicado na lista de preços unitários: (…) Travessas especiais: 1.900 m3; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VE Rect. 1,85x0,24x0,12 M: 29.000 unidades; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VL Rect. 2,80x0,26x0,13 M: 37.400 unidades; Travessas geminadas: 100 unidades; Cavilhas de Madeira: 40.000 unidades. (…)” (cfr. pasta 3 g) do PA); D) Foi também elaborado o Caderno de Encargos, do qual constava, designadamente, o seguinte: “(…) Cláusula 1ª Objecto. 1. O presente Caderno de Encargos (doravante designado por CE), contém as cláusulas a observar na execução do contrato relativo à «Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas». (…) Cláusula 2ª Prazos. 1. A presente aquisição iniciar-se-á durante o ano de 2019 e tem um prazo de execução de 9 (nove) meses, com início na data da notificação do Tribunal de Contas. 2. O prazo para a entrega das travessas, é o proposto pelo concorrente na sua proposta, não podendo ser superior ao indicado no quadro seguinte:
(cfr. idem); E) A CI F. apresentou a sua proposta pelo valor global de € 2.696.150,00 (cfr. pasta 3 k) do PA); F) A 25/07/2019, o Conselho de Administração da Ré deliberou adjudicar o procedimento concursal ora em análise à CI F., decisão esta que foi comunicada aos concorrentes a 05/08/2019 (cfr. pasta 3 r) do PA); G) A 28/08/2019, entre a Ré e a CI F. foi celebrado o contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira (cfr. documento junto com o incidente sob o nº 3); H) A petição inicial foi apresentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a 02/09/2019 (cfr. fls. 1 e seguintes dos presentes autos); I) A 24/09/2019, a Ré enviou à CI F. um pedido de entrega de 12.000 unidades de travessas e cavilhas, com prazos de entrega entre Fevereiro e Junho de 2020 (cfr. Documento junto com o incidente sob o nº 2); J) A Autora é a única operadora no mercado nacional com capacidade técnica para realizar a secagem artificial (cfr. acordo das partes); K) A aquisição de travessas de madeira de pinho creosotadas, com recurso à secagem artificial, e com o prazo máximo de fornecimento de 3 meses, apresenta um sobrecusto de € 4,00 por unidade (cfr. documentos juntos pela Ré a fls. 3983 e seguintes). De Direito - Começa a Ré por alegar que, uma vez que se limita a Autora a peticionar, em sede de articulado inicial, a sua condenação à prática de acto devido, não procedendo efectivamente à impugnação, de forma directa, do acto de adjudicação que reputa de ilegal, não opera o efeito suspensivo automático legalmente previsto. Considera que, inexistindo na presente acção uma verdadeira e rigorosa “impugnação da adjudicação”, não está implicado o efeito suspensivo automático que o artigo 103º-A do CPTA associa a tais acções. Em sede de contraditório, veio a Autora arguir que não assiste razão à Ré no que respeita à aduzida questão prévia, pugnando pela aplicação do efeito suspensivo automático aos presentes autos. Vejamos. Conforme dispunha o nº 1 do artigo 103º-A do CPTA, na redacção em vigor aquando da propositura da presente acção, “a impugnação de actos de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do acto impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.” Se bem que, efectivamente, faça a lei menção expressa à impugnação de actos de adjudicação, tal não é suficiente para considerar que, caso a acção proposta tenha em vista a condenação da Ré à prática de acto devido, especificamente, a praticar o acto de adjudicação à Autora do procedimento concursal em análise, tal efeito não se produz. Na realidade, e conforme melhor afirmado por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentários ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2017, 4ª Edição, pág. 837), “(…) Embora o presente artigo associe, no nº 1, o efeito suspensivo automático à impugnação de actos de adjudicação, o preceito deve ser interpretado no sentido de poder ser aplicado às situações em que contra um acto de adjudicação seja deduzido um pedido de condenação à prática de acto devido, dirigido, em caso de procedência, a obter que o acto impugnado possa ser substituído por outro que seja favorável ao interesse do impugnante. (…)”. Sublinhe-se que, nos termos das previsões constantes dos artigos 66º e seguintes do CPTA, nas acções de condenação à prática de acto devido não deixa de se verificar a eliminação da ordem jurídica do eventual acto de indeferimento, eliminação essa que resulta directamente da pronúncia condenatória, sem que seja exigível à parte que deduza tal pedido autonomamente. Tal solução é, aliás, a única que se compatibiliza com o estipulado na designada “Directiva Recursos” (Directiva nº 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho), e que o legislador português procurou acolher com a nova redacção dada ao artigo 103º-A do CPTA (vide o preâmbulo do Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro). Isto posto, dúvidas não existem que se produziu o efeito suspensivo previsto no nº 1 do artigo 103º-A do CPTA, repita-se, na redacção em vigor à data da propositura da presente acção, o que desde já se declara. Prosseguindo, * Assente a factualidade relevante, cumpre apreciar o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático deduzido pela Ré. Para tal, importa ter presentes as disposições do novo CPTA que regulam tal matéria. Assim, determinava o artigo 103º - A do CPTA, na redacção em vigor à data da propositura da acção, que: “1 – A impugnação de actos de adjudicação no âmbito de contencioso pré-contratual urgente faz suspender automaticamente os efeitos do acto impugnado ou a execução do contrato, se ele já tiver sido celebrado. 2 – No caso previsto no número anterior, a entidade demandada e os contra-interessados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo, alegando que o diferimento da execução do acto seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, havendo lugar, na decisão, à aplicação do critério previsto no nº 2 do artigo 120º. (…) 4 – O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses susceptíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento.” Com a entrada em vigor da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, esta norma passou a ter a seguinte redacção: “1 – As acções de contencioso pré-contratual que tenham por objecto a impugnação de actos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do acto impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado. 2 - Durante a pendência da acção, a entidade demandada e os contra-interessados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo previsto no número anterior. (…) 4 - O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses susceptíveis de serem lesados, o diferimento da execução do acto seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.” De acordo com o previsto no nº 2 do artigo 13º da referida Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, as alterações introduzidas ao CPTA aplicam-se de imediato aos processos pendentes, pelo que considerará este Tribunal esta nova redacção apenas no respeitante ao juízo de apreciação que cumpre levar a cabo, isto é, na forma de ponderação descrita no nº 4 do artigo 103º-A do CPTA. A tónica passim a residir no apuramento de eventuais consequências lesivas “claramente” desproporcionadas para outros interesses envolvidos, que já em que seja as mesmas “manifestamente” desproporcionadas, conforme advinha da anterior redacção. Conforme ditado pelo normativo transcrito, impõe-se ao Tribunal que proceda a uma ponderação dos interesses que sairiam lesados com o efeito suspensivo automático decorrente da impugnação do acto de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual urgente e dos inerentes danos, por forma a avaliar quais se mostram claramente superiores, decidindo em conformidade. Para tal ponderação de interesses, e se bem que a lei ao mesmo já não faça referência, deve o Tribunal atender ao critério previsto no nº 2 do artigo 120º do CPTA, norma que determina o seguinte: “Nas situações previstas no número anterior, a adopção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.” Impõe, deste modo, o legislador uma cláusula de salvaguarda, ao permitir que, no interesse dos demais envolvidos no âmbito do processo pré-contratual urgente, possa ser levantado o efeito suspensivo automático, quando seja de entender que a manutenção deste efeito provocaria danos desproporcionados em relação àqueles que pretenderia evitar que fossem causados aos interesses da Autora. Consequentemente, importa ao Tribunal formular um juízo de valor relativo, fundado na comparação da situação da Autora, titular de um interesse privado de natureza económica, e que este procura tutelar através dos presentes autos de contencioso pré-contratual, com a situação da Ré, titular do interesse público de salvaguardar o cumprimento das suas atribuições. Assim, Conforme resulta da factualidade dada como provada, o procedimento concursal em causa nos presentes autos destina-se à celebração de um contrato público de “aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas”, tendo em vista levar a cabo acções manutenção e renovação da via férrea. Desde logo ressalta à vista estar em causa, no presente concurso público, a prossecução de interesses públicos, quais sejam, o de assegurar e zelar pela manutenção permanente das condições de infra-estruturação e conservação da via, bem como a conservação da circulação ferroviária. Ora, começou a Ré por arguir que, caso se mantenha o efeito suspensivo automático do procedimento concursal em análise, poderá ficar irremediavelmente em causa a segurança da circulação ferroviária. Alega, para tanto, que o fornecimento de tais travessas e cavilhas se destina a satisfazer necessidades de manutenção/reparação da via férrea reputadas de urgentes, conforme levantamento para o efeito realizado. Sublinha que as ditas travessas são fundamentais para a manutenção da designada “bitola da via”, e estão sujeitas a cargas intensas, que vão provocando a sua progressiva degradação, sendo que não dispões a Ré de peças suficientes para fazer face a todas as necessidades enfrentadas, especificamente no que respeita às travessas designadas de “especiais”, que tê tamanhos distintos e específicos, que não aqueles padronizados. Mais refere que o tempo de entrega de tais travessas varia entre os 150 e 180 dias, motivo pelo qual, aliás, e aquando da sua citação para a presente acção, havia já avançado com uma nota de encomenda dirigida à CI F., para não atrasar ainda mais o início dos trabalhos. Por fim, refere que a não substituição das travessas já assinaladas como necessitando de intervenção, aliado ao facto de continuar a sua progressiva deterioração, potencia, a cada dia, a possibilidade da ocorrência de um acidente ferroviário de consequências imprevisíveis, em que o risco de perigo fatal para a integridade física dos passageiros é uma variável a considerar. Em sede de resposta, veio a Autora alegar que dispõe a Ré, em stock, de mais de 10 mil unidades de travessas prontas a utilizar, mais afirmando que, no nosso país, já é possível realizar a secagem artificial desta madeira, num curto espaço de tempo, assim pugnando pela manutenção do efeito suspensivo. No exercício do contraditório, arguiu a Ré que quem mais beneficia do efeito suspensivo operado pela propositura da presente acção de contencioso pré-contratual é a Autora, uma vez que é o único operador do mercado com capacidade técnica para proceder à secagem artificial, pelo que tem com esta celebrado contratos, por via de ajuste directo, para fazer face às necessidades imediatas de substituição de travessas. Mais reforça que, apesar da celebração de tais contratos por ajuste directa, as acções de manutenção e reparação identificadas como “urgentes” vão-se constante transformando em imediatas, atento a paulatina degradação da madeira, e que a aquisição de travessas de madeira com recurso à secagem artificial apresenta um sobrecusto de quatro euros por unidade, assim pugnando pelo deferimento do incidente. Vejamos. Como resulta da matéria de facto dada como provada, e no âmbito da realização de acções de inspecção e fiscalização, foram detectadas pela Ré dezenas de milhares de travessas de madeira e cavilhas carecidas de intervenção e substituição, acções estas de manutenção classificadas como urgentes. Mais resulta do probatório coligido que o número total de unidades a adquirir por via da celebração do contrato de aquisição cujo procedimento concursal se discute nos presentes autos ascende a um número total de 108.400 (entre travessas regulares, travessas ditas “especiais” e cavilhas). Ora, é facto notório que as travessas de madeira desempenham um papel fulcral na manutenção da “bitola da via férrea”, ou seja, na largura que medeia entre os carris, bem como no efectivo e conveniente assentamento destes. Por outro lado, é também notório que a madeira é um material perecível pelo que, ainda que sujeito a especiais tratamentos de preservação, tem uma duração de vida limitada. Por fim, é também claro e resulta da experiência comum que as travessas de madeira nas quais assentam os carris estão sujeitas a enorme tensão, assim contribuindo para a sua perecibilidade. São aqui evidentes e de monta os interesses que se pretendem ver salvaguardados com o levantamento do efeito suspensivo automático, concretamente, a correcta e conveniente manutenção e conservação da via ferroviária em boas condições de circulação, assim garantindo a segurança do respectivo tráfego, seja de mercadorias seja de passageiros. Invoca a Autora que dispõe a Ré, em stock, de mais de 10 mi, travessas de madeira, que possibilitam a satisfação das necessidades de reparação e substituição tidas como imperiosas e imediatas. Mais alega que já dispõe o nosso país da possibilidade técnica de proceder à secagem artificial de travessas, assim reduzindo consideravelmente o período de tempo necessário para o seu fornecimento, não sendo necessário aguardar pelos 150 dias ou 180 dias previstos no Programa de Procedimento. Todavia, tal argumentação merece dois reparos. Desde logo, e conforme sublinhado pela Ré, o recurso ao fornecimento de travessas de madeira advindas de secagem artificial pressupõe, conforme resulta da matéria de facto dada como provada, um sobrecusto na ordem dos € 4,00 por travessa, o que é, de per si, gerador de prejuízo para o interesse público. Por outro lado, e conforme também sublinhado pela Ré, não tendo sido posto em causa pela Autora em sede de resposta, esta é o único operador económico em Portugal com capacidade técnica para proceder à secagem artificial, pelo que se imporia, sem mais, a contratação exclusiva deste operador, que não de uma outra qualquer empresa. Mas, de maior relevância, sublinhe-se que, ainda que disponha a Ré de cerca de 11 mil unidades de travessas em stock, tal número afigura-se como sendo manifestamente insuficiente para fazer face às necessidades de reparação e substituição apuradas aquando da realização de inspecções. Note-se que, atento tal apuramento, a celebração do contrato cujo procedimento concursal ora se discute tem em vista a aquisição de mais de cem mil unidades, contadas entre travessas especiais, travessas correntes e cavilhas. Ou seja, o alegado número em stock não seria suficiente para prover sequer 10% da totalidade das necessidades apuradas. Para além do mais, sempre se diga que, apesar de ser possível acorrer, por via de ajustes directos, às necessidades classificadas de “imediatas”, aquelas reputadas “apenas” de urgentes transformar-se-ão, paulatinamente, e pelo mero decurso do tempo, em imediatas. Isto é, a premência na reparação de todas as situações detectadas nas acções de inspecção apenas parcelarmente se adia, não desaparecendo com tal subterfúgio. Isto posto, afigura-se a este Tribunal que se está perante riscos para o interesse público demasiado sérios e ponderosos para que possam ser desconsiderados, não sendo suficiente para que se considere acautelada a segurança da via férrea a mera substituição, “pouco a pouco” e por recurso a ajustes directos, das situações já classificadas como de necessidade imediata, relegando para futuro as que já neste momento são classificadas como sendo de urgentes. O interesse público susceptível de ser lesado, que se prende com a segurança da circulação ferroviária, de mercadorias e de passageiros (aqui ganhando enorme relevo poder estar em causa a segurança da vida humana), pode assim sair gravemente prejudicado com a manutenção do efeito suspensivo automático operado com a propositura da presente acção. Recorde-se que o interesse da Autora na respectiva manutenção é estritamente económico, e facilmente mensurável, sendo o mesmo ressarcível no eventual vencimento de causa, o que já não sucede com o interesse público prosseguido pela Ré. Consequentemente, dúvidas não restam que, ponderados os interesses em presença, o diferimento da execução do acto de adjudicação do contrato é gravemente prejudicial para o interesse público. Isto posto, e face ao disposto no artigo 103º-A, nº 4, do CPTA, impõe-se decretar o levantamento do efeito suspensivo automático, o que desde já se declara. * Pelo exposto, em face aos fundamentos de facto e de direito que antecedem, julga-se procedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático da presente impugnação do acto de adjudicação, mais se ordenando a continuação dos trâmites normais do concurso. X Desta Decisão também veio interposto recurso. Alegando, a Autora concluiu: 1ª A decisão ora recorrida, a decisão proferida pela Snrª Juíz do TAF de Viseu em 21/2/20 que decretou o levantamento do efeito suspensivo automático da ação de contencioso pré-contratual intentada pela ora Recorrente contra a ora Recorrida IP SA, padece de insuficiência no que concerne ao julgamento da matéria de facto constante da alínea a), dos factos dados como assentes; 2ª Daí que, nos termos do art. 640º, nº1, alíneas a), b) e c), do CPC, é impugnada a decisão relativa à matéria de facto em virtude de os relatórios de inspeção da linha férrea juntos aos Autos apenas terem identificado envelhecimento de fibras nas travessas em madeira, não tendo assim identificado problemas estruturais ou fraturas nas travessas; 3ª Deste modo, porque só a existência de problemas estruturais ou fraturas das travessas de madeira é que poria em causa a segurança da linha férrea ou a segurança dos passageiros, situação esta que não foi provada com os referidos relatórios, a decisão sobre a matéria de facto terá de ser alterada; 4ª Por conseguinte, deve ser alterada a alínea a) dos factos assentes com a seguinte redação: - Ao longo dos meses de Janeiro de 2018 até janeiro de 2020, a Ré levou a cabo ações de inspeção de várias linhas da via férrea tendo sio identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira (relatórios de inspeção juntos aos autos a fls. 3269 e seguintes); 5ª E devendo ainda ser aditada uma nova alínea à matéria de facto com a seguinte redação: - As anomalias identificadas nas ações de inspeção foram envelhecimentos de fibra, não tendo sido detetadas situações de problemas estruturais ou de fraturas de travessas; 6ª Sem prejuízo da impugnação da matéria de facto, a realidade é que antes da decisão ora recorrida, a Snrª Juíz do TAF de Viseu, por decisão tomada em 31/1/20, já se tinha pronunciado sobre o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático dos presentes autos, tendo decidido que os danos para o interesse público que efetivamente poderiam advir do não levantamento do efeito suspensivo seriam antes de natureza económica, que já não respeitantes à segurança da circulação ferroviária e dos respetivos passageiros; 7ª A decisão de 31/1/20 não foi sujeita a nenhum recurso jurisdicional pelo que transitou em julgado; 8ª Deste modo e porque a decisão ora recorrida, contrariamente ao que tinha sido decidido anteriormente em 31/1/20, veio, afinal, entender que o interesse público a ser lesado prende-se com a segurança da circulação ferroviária e dos passageiros, verifica-se assim haver contradição entre a decisão de 31/1/20 e a decisão ora recorrida, o que implica dar cumprimento ao art. 625º do CPC, dando-se prevalência à decisão que transitou em julgado em 1º lugar, a decisão de 31/1/20; 9ª E com tal prevalência o invocado interesse público na segurança da circulação ferroviária não pode ser tomado em conta por V. Exas, até porque, como se assinalou nas conclusões 1ª a 5ª, tal segurança nunca esteve em causa; 10ª No que concerne à interpretação e aplicação do artigo 103ºA do CPTA, a jurisprudência tem sido unânime em considerar que, atento o carácter excepcional do levantamento do efeito suspensivo automático nas ações de contencioso pré-contratual, o prejuízo para o interesse público só releva quando for qualificado como de gravemente prejudicial; 11ª Contudo, a decisão recorrida apenas se limitou a considerar que existe um prejuízo para o interesse público que decorrerá de um sobrecusto na ordem dos 4,00 € por travessa, sem, no entanto, o qualificar como um prejuízo gravemente prejudicial para o interesse público; 12ª Em face do exposto na conclusão anterior, o prejuízo invocado pela decisão recorrida não era suficiente para ter sido decretado o levantamento do efeito suspensivo automático dos autos; 13ª Também não colhe o que foi decidido pela decisão recorrida quando considerou não ser de tomar em consideração o interesse económico da ora Recorrente porque o eventual dano a tal interesse sempre seria ressarcível em momento posterior; 14ª Ora, tal não pode ser aceite dado que o disposto no art. 103º A do CPTA, interpretado em conformidade à Diretiva 2007/66/EC, visa garantir ao concorrente em procedimento de contratação pública não o ressarcimento de danos pela não adjudicação, mas sim que lhe seja permitido proceder à execução do contrato caso a decisão judicial venha a concluir que o mesmo devia ter-lhe sido adjudicado; 15º Por tudo o exposto, a decisão ora recorrida é ilegal por errada interpretação do nº 4 do art. 103º A, do CPTA, não podendo ser mantida na ordem jurídica pelo que deve ser revogada, fazendo-se assim a devida e merecida JUSTIÇA. A Entidade Demandada juntou contra-alegações e concluiu: I. A Recorrente impugna o facto dado por provado sob a alínea A) dos factos assentes alegando que nos referidos Relatórios de Inspecção apenas se teriam identificado anomalias relacionadas com envelhecimento de fibras, não tendo sido detectados problemas estruturais ou fracturas, e que somente estas condições anómalas constituiriam risco para a segurança do transporte ferroviário. II. Apesar de não serem apenas “problemas estruturais ou fracturas” que consubstanciam situações de risco para a segurança da circulação ferroviária, a verdade é que nos cerca de 570 Relatórios de Inspecção Principal a Aparelhos de Via constantes dos autos estão identificadas milhares de travessas “deterioradas sem garantia de aperto” e/ou “desquadradas”, que representam um gravíssimo perigo para a segurança da circulação ferroviária e dos passageiros, e que, por tal razão, estão assinaladas, nos respectivos Relatórios, como carecidas de acção imediata. III. Aquelas milhares de anomalias − “sem garantia de aperto” e/ou “desquadradas” – que afectam criticamente milhares de travessas identificados nos referidos Relatórios, comprometem, de forma grave, o desempenho da infra-estrutura ferroviária em termos de fiabilidade e segurança, podendo daí resultar a ocorrência de acidentes com inerente RISCO DE VIDA para os passageiros, pelo que essas travessas em condição crítica para a segurança da circulação ferroviária carecem de intervenção imediata mediante acções de manutenção de natureza urgente. IV. Sendo assim evidente, manifesto, e como tal deve ser dado por provado, como bem decidiu o Tribunal a quo, que foram “identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata”, pelo que deve manter-se inalterado todo o conteúdo da alínea A) dos factos assentes, e sem quaisquer aditamentos. V. A Decisão ora sob recurso não apresenta qualquer contradição com o Despacho de 31 de Janeiro de 2020. VI. No referido Despacho de 31 de Janeiro de 2020 a Meritíssima Juiz não proferiu qualquer Decisão sobre o concreto e estrito pedido de levantamento do efeito suspensivo automático tendo apenas determinado que a Demandada IP viesse juntar aos autos documentos comprovativos da diferença de custos entre o fornecimento de travessas sujeitas a secagem artificial e sujeitas a secagem natural VII. Em cumprimento do referido Despacho a IP fez essa comprovação da diferença de custos, e sublinhou ainda que não obstante a manutenção do efeito suspensivo automático causar também um dano de natureza económica, mantém-se plenamente actual e válido, e em plano principal, o dano que causa à segurança e fiabilidade da circulação ferroviária, susceptível de colocar gravemente em perigo a integridade física, e até a vida, dos passageiros. VIII. Em função de todos os argumentos e elementos de prova carreados para o processo, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, por Decisão proferida em 21 de Fevereiro de 2020 (ora recorrida), decretou o levantamento do efeito suspensivo automático, sendo esta a primeira e única Decisão (de mérito) que o Tribunal a quo proferiu sobre o Incidente de levantamento do Efeito Suspensivo Automático, pelo que não pode, obviamente, verificar-se a alegada contradição que a Recorrente invoca, e, por conseguinte, não há que fazer quaisquer juízos de “prevalência” de decisões. IX. Considera, ainda, a Recorrente que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto no nº 4 do art. 103-A do CPTA que se consubstancia, segundo alega, no facto de a Douta Decisão recorrida ter decretado o levantamento do efeito suspensivo automático com fundamento num mero interesse público de natureza económica. X. Porém, como suficientemente se demonstrou nestas Contra-alegações, tal não corresponde à verdade porquanto, do juízo de ponderação que o Tribunal a quo levou a cabo de todos os interesses (públicos e privados) susceptíveis de serem lesados, resulta evidente que os riscos para o interesse público decorrentes da manutenção do efeito suspensivo automático, e que não se resumem a meros interesses de cariz económico, são demasiado sérios e ponderosos para que possam ser desconsiderados. XI. O prejuízo para o interesse público resultante da manutenção do efeito suspensivo automático – atendendo, por um lado, à natureza essencial que a disponibilidade, fiabilidade e segurança do transporte ferroviário assume no nosso quotidiano, e por outro, à possibilidade real de ocorrer um acidente ferroviário com consequências imprevisíveis, em que o risco de vida dos passageiros é uma variável a considerar – tem de ser qualificado de sério, intenso e grave, ao passo que o interesse da Recorrente é estritamente económico, facilmente mensurável e de fácil reparação. XII. Assim, ponderados todos os interesses em presença susceptíveis de serem lesados, resulta evidente que o deferimento da execução do acto impugnado é gravemente prejudicial para o interesse público. XIII. Pelo que devem ser julgados inteiramente improcedentes todos os argumentos aduzidos pela Recorrente, pois que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação, e aplicação, do disposto no nº 4, do art. 103º-A, do CPTA, não merecendo, também quanto a este ponto, qualquer censura. TERMOS EM QUE, e com o suprimento, deve ser julgado improcedente o presente recurso. E assim far-se-á JUSTIÇA! A Contrainteressada, nas contra-alegações, concluiu: a) Como se demonstrou nestas contra-alegações, nenhuma razão há para proceder ao aditamento do facto solicitado pela Recorrente nas suas alegações, e que resulta de mera interpretação sua sobre a prova documental junta aos autos pela Entidade Demandada; b) Sendo certo que o que resulta evidente do probatório é que foram identificadas milhares de anomalias em largos milhares de travessas de madeira, que carecem de acções de reparação e manutenção, muitas delas classificadas como tendo natureza urgente e muitas outras classificadas como carecendo de intervenção dita imediata; c) O que justifica a manutenção, nos exactos termos, da alínea A) da matéria assente, sem quaisquer aditamentos; d) Não há qualquer contradição de julgados da decisão recorrida face ao despacho proferido em 31 de Janeiro de 2020; e) Isto porque no despacho proferido em 31 de Janeiro de 2020 não foi tomada qualquer decisão no que respeita ao incidente de levantamento do efeito suspensivo, tendo-se o Tribunal a quo limitado a determinar à Entidade Demandada IP que viesse juntar aos autos comprovativos da diferença de custos entre o fornecimento de travessas sujeitas à secagem artificial e das sujeitas à secagem natural. Nada mais; f) Sendo que a única decisão sobre o levantamento do efeito suspensivo foi a decisão recorrida, tomada com base nos elementos probatórios juntos aos autos pela Entidade Demandada; g) Para pôr em causa a decisão de fundo do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático, limita-se a Recorrente a invocar uma suposta errónea aplicação do disposto no artigo 103.º-A, porque o Tribunal a quo teria baseado o decidido unicamente num mero interesse público com natureza económica. h) O que, como se demonstrou nestas contra-alegações, não corresponde à verdade dado que o Tribunal a quo procedeu a uma rigorosa ponderação entre os interesses públicos a acautelar por via do levantamento do efeito suspensivo automático (e que não se resumiam de todo a puros interesses económicos) e os interesses privados contrapostos, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA; i) Resultando evidente da prova produzida a prevalência do interesse público, que sairia gravemente prejudicado caso se mantivesse o efeito suspensivo do acto de adjudicação impugnado; j) O que significa que nada há para assacar à decisão recorrida, que fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA. Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado não provado e totalmente improcedente, com todas as consequências legais. Como é de DIREITO E JUSTIÇA! O MP, notificado ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer. Cumpre apreciar e decidir. FUNDAMENTOS DE FACTO Na sentença foi fixada a seguinte factualidade: A) A 21/01/2019, na II Série do Diário da República nº 14, foi publicado o anúncio de procedimento nº 497/2019, identificando a Ré como entidade adjudicante, o objecto do contrato como sendo a Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas, indicando ainda como valor do preço base do procedimento o montante de € 2.979.200,00, o prazo de 9 meses para a execução do contrato, o prazo para a apresentação de propostas até ao 40º dia a contar da data de envio do anúncio e o critério de adjudicação como sendo o do melhor preço (cfr. documento junto com a petição inicial sob o nº 1); B) Pela Ré foi elaborado Programa de Procedimento, do qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) Artigo 8º. Documentos da proposta. A proposta é constituída pelos seguintes documentos: 1. Documento Europeu Único de Contratação (DEUCP). 2. Documentos que, em função do objecto do contrato a celebrar e dos aspectos da sua execução submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, contenham os atributos da proposta, de acordo com os quais o concorrente se dispõe a contratar: a) Proposta de preço elaborada de acordo com o modelo constante do Anexo I ao presente programa; os preços unitários não poderão ter mais que duas casas decimais; b) Declaração de Utilização de Instalações e Equipamentos, elaborada de acordo com o Anexo VI. (…) Artigo 13º. Assinatura das propostas. 1. A assinatura e a encriptação das propostas e respectiva documentação serão realizadas através de um certificado qualificado, o qual deverá ser atempadamente adquirido junto da entidade credenciada nos termos da legislação em vigor (cartão do cidadão, Digital Sign, Multicert). 2. A documentação que constitui a proposta deve ser assinada nos termos previstos na Lei nº 96/2015 de 17 de Agosto, sob pena de exclusão. 3. Nos casos em que o certificado digital não possa relacionar directamente o assinante com a sua função e poder de assinatura, deve ser submetido à plataforma um documento electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante. (…) Artigo 20º Prazo de apresentação dos documentos de habilitação pelo adjudicatário e outros necessários à celebração do contrato. 1. No prazo de 10 dias após a notificação da adjudicação, o adjudicatário deve apresentar os seguintes documentos: a) Declaração emitida conforme modelo constante do anexo II ao Código dos Contratos Públicos; b) Documentos comprovativos de que não se encontra nas situações previstas nas alíneas b), d), e) e i) do artigo 55º do Código dos Contratos Públicos; c) Certidão da Conservatória do Registo Comercial; d) Confirmar, se aplicável, os compromissos assumidos por terceiras entidades; e) Declaração relativa a trabalhadores imigrantes nos termos do Anexo V; f) Prestar caução no montante exigido no artigo 19º do presente programa de concurso, devendo comprovar essa prestação junto da IP, no dia imediatamente subsequente. (…) Anexo I. Modelo de proposta de preço. (…) 2. O preço contratual resulta do somatório do produto das quantidades a adquirir pelo preço unitário indicado na lista de preços unitários: (…) Travessas especiais: 1.900 m3; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VE Rect. 1,85x0,24x0,12 M: 29.000 unidades; Trav. Mad. Pin. Creo. Vulg. VL Rect. 2,80x0,26x0,13 M: 37.400 unidades; Travessas geminadas: 100 unidades; Cavilhas de Madeira: 40.000 unidades. (…)” (cfr. pasta 3 g) do PA); C) Foi também elaborado o Caderno de Encargos, do qual constava, designadamente, o seguinte: “(…) Cláusula 1ª Objecto. 1. O presente Caderno de Encargos (doravante designado por CE), contém as cláusulas a observar na execução do contrato relativo à «Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas». (…) Cláusula 2ª Prazos. 1. A presente aquisição iniciar-se-á durante o ano de 2019 e tem um prazo de execução de 9 (nove) meses, com início na data da notificação do Tribunal de Contas. 2. O prazo para a entrega das travessas, é o proposto pelo concorrente na sua proposta, não podendo ser superior ao indicado no quadro seguinte:
(…) Cláusula 3.ª Preço base. O preço máximo que a IP se dispõe a pagar pela execução de todas as prestações que constituem o objecto da presente aquisição de serviços é de € 2.979.200,00 (…) não incluindo o IVA. (…)” (cfr. idem); D) No âmbito do presente concurso, foram apresentadas 5 propostas, inclusivamente àquelas da Autora e das CI F. e M. (cfr. pasta 3 k) do PA); E) A CI F. apresentou a sua proposta pelo valor global de € 2.696.150,00, juntando os seguintes documentos: documento europeu único de contratação (DEUCP); proposta de preço; declaração de utilização de instalações e de equipamentos; certifica EN ISO14001; e certificado NP EN ISO 9001 (cfr. idem); F) Do referido DEUCP apresentado pela CI F. não constavam, designadamente, os códigos de acesso aos certificados de registo criminal, declaração de inexistência de dívidas à Segurança Social e à AT (cfr. idem); G) Os documentos constantes da proposta apresentada pela CI F. estavam assinados, por via de assinatura electrónica qualificada, por J., sendo que tal assinatura se referia a um certificado digital, emitido pela entidade designada “DigitalSign – Certificadora Digital, S.A.”, com o nº de série 6aa3196268d86cd78fb12d09dd500acf, válido até 08/08/2019, e relativamente ao qual foi emitida declaração, da qual consta nomeadamente o seguinte: “(…) 3) O Certificado Qualificado de Assinatura Electrónica emitido possui, neste caso, o perfil «Representação», para a emissão do qual a DigitalSign, em cumprimento do disposto no artigo 33.º do Regulamento eIDAS, e do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de Agosto, procedeu à verificação: 1. Da identidade do(a) requerente: J.; 2. Da qualidade de legal representante do(a) requerente da entidade F. , SA; 3. Dos poderes do(a) titular do certificado (requerente) para actuar no âmbito do objecto de representação constante do certificado qualificado, concretamente os de assinar electronicamente em plataformas electrónicas de contratação em nome e representação da entidade F. , SA, vinculando-a sozinho(a) em relação a terceiros, salvo limitações devidamente descritas no Certificado Digital Qualificado emitido. Pelo exposto, e nos termos da verificação referida supra, conclui-se que: Pela emissão do presente certificado qualificado de assinatura electrónica, J. poderá assinar em plataformas electrónicas de contratação, na qualidade de legal representante da entidade F. , SA, vinculando-a sozinho(a), em relação a terceiros, sem necessidade de apresentar qualquer documento adicional para efeitos de comprovar os seus poderes de representação e vinculação da sociedade. (…)” (cfr. idem); H) A 22/03/2019, o Júri do procedimento emitiu o Relatório preliminar, tendo admitido as propostas apresentas pela Autora e pela CI F., mais tendo classificado a proposta apresentada por esta última em 1º lugar, atento adoptado o critério do mais baixo preço (cfr. pasta 3 p) do PA); I) A 27/03/2019, a Autora remeteu ao Júri do procedimento a sua pronúncia quanto ao teor do relatório preliminar, e da qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) 9º O Conselho de Administração da F. é composto por 5 (cinco) administradores: (i) J.; (…). 10º A F. obriga-se com (a) a intervenção de dois administradores, ou (b) com a intervenção de um administrador, quando o Conselho de Administração o delibere e lhe confira poderes. 11º Os documentos que constituem a proposta, apresentada pelo Concorrente F., foram assinados apenas por um administrador, J., sem que tenha sido junto cópia da procuração/deliberação do Conselho de Administração a conferir-lhe poderes para individualmente representar a sociedade. 12º Pelo exposto, deverá a Concorrente F. ser excluída do procedimento, por não ter apresentado procuração/deliberação do Conselho de Administração que ateste os seus poderes para representar individualmente a sociedade e obrigar contratualmente a concorrente. (…) 15º Os documentos que instruem a proposta da F. foram electronicamente assinados por uma única pessoa, pelo administrador daquela sociedade, J., sendo que do certificado digital utilizado pelo mesmo, não resulta que detenha poderes para assinar e vincular individualmente a sociedade ao conteúdo da respectiva proposta. (…) 23º Compulsados os documentos juntos com a proposta apresentada pela Concorrente F., constatou a T. que o DEUCP apresentado por esta concorrente tem a «Parte III: Motivos de Exclusão» incorrectamente preenchida, e a Parte IV: «Critérios de Selecção» não foi sequer preenchida (tem os dados em branco); motivo pelo qual não deverá ser aceite pelo Júri do Concurso, e a Concorrente F. deverá ser excluída do Concurso. 24º A F. não satisfaz o exigido na Parte III do DEUCP: «Motivos de exclusão», na medida em que não junta os links, nem códigos de acesso aos certificados de registo criminal, nem às declarações de inexistência de dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira. (…) 31º Pelo exposto, torna-se claro que a proposta da Concorrente F. não cumpre todos os requisitos definidos no Programa do Concurso e no Caderno de Encargos, devendo por isso ser excluída pelo Júri do Concurso. (…)” (cfr. pasta 3 p) do PA); J) A 09/07/2019, o Júri do concuro remeteu uma missiva à CI F., na qual, ao abrigo do previsto no nº 3 do artigo 72º do CCP, solicita a esta a apresentação de documento oficial, legitimado pela assinatura dos seus legais representantes, conferindo poderes a J. para assinar e efectuar a inserção da proposta submetida no âmbito do concurso em causa (cfr. documento junto com a petição inicial sob o nº 8 e pasta 3 n) do PA); K) A 11/07/2019, a CI F. remeteu ao Júri do concurso cópia certificada da acta do seu Conselho de Administração nº 69/2017, de 20/03/2017, da mesma constando deliberação conferindo plenos poderes de representação e vinculação a J., mais remetendo informação prestada pela entidade “DigitalSign”, relativamente ao certificado da assinatura electrónica qualificada (cfr. documento junto com a petição inicial sob o nº 10 e pasta 3 n) do PA); L) A 12/07/2019, a Autora enviou nova missiva ao Júri do concurso, manifestando a sua discordância quanto ao pedido de esclarecimentos dirigido à CI F., uma vez que considerada que tal deficiência não poderia ser suprida por tal via (cfr. pasta 3 p) do PA); M) A 17/07/2019, o Júri do concurso emitiu o Relatório Final, no qual propôs a adjudicação da proposta apresentada pela CI F., e no qual se pode ler, designadamente, o seguinte: “(…) 8.1. Análise à pronúncia do concorrente n.º 2 – T. – Equipamentos em Madeira, Lda.. O concorrente pronunciou-se sobre a admissão da proposta da F. , SA mencionando que: (…). Analisada a pronúncia, o Júri efectuou o pedido de esclarecimento à proposta ref.ª 2488756/CL-BSV (em anexo), a solicitar nos termos do n.º 3 do artigo 72º do CCP que fosse apresentado um documento oficial, legitimado pela assinatura dos legais representantes da F. SA, conferindo poderes a J. para assinar e efectuar a inserção da proposta submetida no âmbito do presente concurso. Em resposta ao pedido de esclarecimento foi apresentado pelo concorrente, cópia certificada da Acta do Conselho de Administração n.º 69/2017 de 20-03-2017 confirmando-se que o Administrador J. tinha plenos poderes para representar e vincular a F. SA no âmbito do presente concurso à data da apresentação da proposta. Foi ainda mencionado pelo concorrente que: (…). Sobre as alegadas omissões e/ou preenchimento incorrecto do DEUCP o júri verificou que: a) os documentos exigidos pelo Programa de Procedimento constam da proposta, e os atributos, termos e condições exigidas de acordo com o Artigo 57.º do Código e Programa de Procedimento foram apresentados; b) a proposta não se revelou impossível de analisar, «(…) em virtude da forma de apresentação de algum dos respectivos atributos» dado que o atributo aqui em causa é o preço, nem tão pouco é relevante a Parte III e IV do DEUCP para a avaliação da proposta. c) O DEUCP consubstancia uma declaração do operador económico, o qual, sob compromisso de honra confirma que não se encontra em nenhuma das situações que possam implicar a exclusão do procedimento ao qual se apresenta. Já os documentos que permitem confirmar que um operador económico não se encontra em dívida para com a Segurança Social e, ou Autoridade Tributária são tão-somente requeridos ao Adjudicatário. d) A parte IV do DEUCP não se aplica à avaliação de propostas e circunscreve-se à aferição de requisitos mínimos inerentes à capacidade técnica e financeira para análises de Candidatura em procedimentos concursais com fase de prévia qualificação. Face ao exposto, o Júri, mediante decisão unânime, entendeu manter o teor da análise e avaliação vertida no Relatório Preliminar, dado que não existe qualquer fundamento para a exclusão da proposta do concorrente n.º 1 – F. , SA.. (…)” (cfr. Pasta 3 q) do PA); N) A 25/07/2019, o Conselho de Administração da Ré deliberou adjudicar o contrato de aquisição de bens ora em discussão à CI F., pelo preço contratual de € 2.696.150,00 (cfr. pasta 3 r) do PA); O) A deliberação identificada em N) foi comunicada aos concorrentes a 05/08/2019 (cfr. idem); P) Na mesma data, a Ré comunicou à CI F. que dispunha de 10 dias para apresentar os documentos de habilitação exigidos no artigo 21º do Programa de Procedimento, bem como para prestar a caução exigida (cfr. idem); Q) A 25/06/2019, J. renunciou à administração da CI F. (cfr. documento junto com a petição inicial sob o nº 14); R) A 09/08/2019, a CI F. procedeu à apresentação dos documentos de habilitação referidos no artigo 21º do Programa de Procedimento (cfr. pasta 3 t) do PA); S) A 28/08/2019, entre a Ré e a CI F. foi celebrado o contrato designado de “Aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas” (cfr. PA); T) A petição inicial foi apresentada no TAF de Amada a 02/09/2019 (cfr. fls. 1 e seguintes dos presentes autos); U) A 12/06/2019, e relativamente ao processo PRC/2016/6, movido contra a CI F., pela Autoridade da Concorrência foi proferida decisão, da qual consta, designadamente, o seguinte: “(…) 3.1.5. Sanções acessórias 230. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º da Lei n.º 19/2012, caso a gravidade da infracção e a culpa do infractor o justifiquem, a Autoridade pode determinar a aplicação de sanção acessória, que consiste na publicação, a expensas do infractor, de decisão de condenação proferida no âmbito do processo, no Diário da República e/ou num jornal de expansão nacional, regional ou local, após o trânsito em julgado. 231. Ainda nos termos da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo, a Autoridade pode privar, as empresas condenadas «do direito de participar em procedimentos de formação de contratos cujo objecto abranja prestações típicas dos contratos de empreitada, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de locação ou aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços ou ainda em procedimentos destinados à atribuição de licenças ou alvarás, desde que a prática que constitui contra-ordenação punível com coima se tenha verificado durante ou por causa do procedimento relevante», durante um período máximo de dois anos, contados da decisão condenatória, após trânsito em julgado. 232. Atentas as circunstâncias do presente caso e a proposta de transacção apresentada, conclui esta Autoridade pela desnecessidade de aplicação das referidas sanções acessórias à visada F.. (…) Decisão. Tudo visto e ponderado, o conselho de administração da Autoridade da Concorrência decide: Primeiro. Declarar que a visada F., ao participar, entre o último trimestre de 2014 e 01.12.2015, em dois acordos entre empresas concorrentes com o objectivo de fixar o nível dos preços e repartir o mercado, no âmbito dos concursos públicos lançados pela REFER/IP para a prestação de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, cometeu duas infracções ao disposto no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012, bem como ao disposto no n.º 1 do artigo 101.º do TFUE. Segundo. Aceitar, ao abrigo do artigo 27.º da Lei n.º 19/2012, a proposta de transacção da F., nos termos em que foi apresentada, fixando a coima a aplicar, para o efeito, em € 300.000 (trezentos mil euros) a pagar em prestações mensais iguais, pelo período de um ano, sem juros, devendo a primeira prestação ser paga no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis após a notificação por escrito da presente decisão. Em conformidade, fixar em 10 (dez) dias úteis o prazo para que confirme por escrito que a presente Decisão, no que respeita à transacção, reflecte o teor da sua proposta, sob pena de a mesma ficar sem efeito, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 27.º da Lei n.º 19/2012. Terceiro. Declarar que a F. DA é autor de dois ilícitos contra-ordenacionais previstos e punidos nos nºs 2 e 6 do artigo 73.º da Lei n.º 19/2012, por ter conhecimento e/ou ter tido participação activa nas práticas ilícitas que são imputadas à F., na qual ocupa ou ocupava cargo de administrador delegado, e por não ter adoptado qualquer diligência ou medida que impedisse a infracção ou a sua execução. Quarto. Aceitar, ao abrigo do artigo 27.º da Lei n.º 19/2012, a proposta de transacção de F. DA, nos termos em que foi apresentada, não sendo possível proceder à aplicação da coima correspondente, atendendo [Confidencial – Dados Pessoais], nos termos do n.º 4 do artigo 69.º da Lei n.º 19/2012. Em conformidade, fixar em 10 (dez) dias úteis o prazo para que confirme por escrito que a presente Decisão, no que respeita à transacção, reflecte o teor da sua proposta, sob pena de a mesma ficar sem efeito, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 27.º da Lei nº 19/2012. (…) Sexto. Determinar que a eficácia da presente Decisão fica dependente da confirmação da mesma pelos visados F., F. DA e F. TA. (…)” (cfr. documento junto a fls. 3907 e seguintes dos presentes autos); V) A decisão adoptada pela Autoridade da Concorrência convolou-se em definitiva a 26/06/2019 (cfr. idem). DE DIREITO Está posta em causa a sentença que ostenta este discurso fundamentador, na parte que ora releva: Pretende a Autora, com a presente acção, que seja a Ré condenada a praticar o acto devido no procedimento nº 497/2019, consubstanciado na adjudicação do contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas à sua proposta, pelo valor de € 2.757.944,00. Invoca, para o efeito, que está o acto de adjudicação ferido de anulabilidade, por incorrer em vícios de violação de lei. Mais invoca que a anulação de tal acto implica que seja a Ré condenada a praticar o acto devido substitutivo, qual seja, a exclusão da proposta apresentada pela CI F., com a consequente colocação da sua proposta em primeiro lugar e adjudicando à Autora o contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira. Isto posto, atendendo ao objecto da lide, definido pela causa de pedir e pelos pedidos formulados, está o Tribunal em presença de um processo de contencioso pré-contratual, de condenação à prática de acto devido. De facto, e da concatenação do disposto nos artigos 66º e 67º do CPTA (aplicáveis ex vi artigo 102º, nº 1, do mesmo diploma legal), submete a Autora à apreciação judicial o bem fundado da sua pretensão material, in casu, a condenação da Ré a adjudicar o contrato de aquisição de cavilhas e travessas de madeira à proposta por si apresentada, que não a mera impugnação do acto administrativo de adjudicação de tal contrato à proposta apresentada pela CI F.. Todavia, revela-se de pertinente para a apreciação de tal pretensão o conhecimento prévio, pelo Tribunal, dos vícios imputados ao acto administrativo, que facilitarão a análise do pedido condenatório. Nestes termos, e por mera facilidade de análise e enquadramento jurídico, procederá o Tribunal, primeiramente, à apreciação de cada um dos fundamentos alegados no respeitante ao acto impugnado. Assim, (….) Da arguida violação da alínea g) do nº 2 do artigo 70º do CCP: Por fim, vem a Autora arguir que, em data anterior à da elaboração do relatório final pelo Júri, foi publicitada pela Autoridade da Concorrência decisão de aplicação à CI F. e a um dos seus administradores de coima, por violação da Lei da Concorrência em concurso público aberto pela próprio Ré, concretamente, por participação num cartel de cinco empresas de manutenção ferroviária. Invoca que, se bem que não seja tal situação prevista como um impedimento no CCP, a mesma sempre dará origem à exclusão da proposta, nos termos previstos na alínea g) do nº 2 do artigo 70º do CCP. Considera que, ao assim não ter decidido a Ré, incorreu em vício de violação de lei, pelo que é o acto de adjudicação anulável. Em sede de contestação, veio a Ré IP alegar que nem o concurso nem a proposta apresentada pela CI F. revelam quaisquer indícios de existirem, no respectivo âmbito, quaisquer condutas ou práticas susceptíveis de falsearem a concorrência. Sublinha que a decisão proferida pela Autoridade da Concorrência a 28/06/2019 se reporta a factos ocorridos nos anos de 2014/2015, sendo que só se verificará preenchido o previsto na alínea g) do nº 2 do artigo 70º do CCP se as situações indiciadoras de falseamento da concorrência se manifestem no próprio procedimento em causa, o que sucede no caso ora em análise. Por outro lado, alega que a Autoridade da Concorrência não procedeu à aplicação de qualquer sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos, pelo que tampouco estava a CI F. impedida de concorrer por operação do previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 55º do CCP. Conclui, assim, não existir qualquer motivo de exclusão. No mesmo sentido se pronuncia a CI F. na sua contestação. Cumpre apreciar e decidir. Um dos princípios basilares que norteia a tramitação procedimental de formação de contratos públicos é precisamente o da concorrência. Procura o direito da contratação pública, precisamente, garantir a prevalência e primazia da igualdade de acesso e tratamento, por forma a possibilitar a maior abertura e abrangência de mercado possíveis. Estabelece, sem margem para dúvidas, o nº 1 do artigo 1º-A do CCP o seguinte: “Na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.” O acolhimento de tal princípio reflecte-se em várias soluções normativas perfeitamente identificáveis ao longo do CCP. Especificamente, e para o que ora nos importa, determina a alínea f) do nº 1 do artigo 55º do CCP que não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que tenham sido objecto de aplicação de sanção acessória de proibição de participação em concursos públicos prevista em legislação especial, nomeadamente nos regimes contra-ordenacionais em matéria laboral, de concorrência e de igualdade e não-discriminação, bem como da sanção prevista no artigo 460º, durante o período fixado na decisão condenatória. Por outro lado, conforme prevê o nº 2 do artigo 70º do CCP, “São excluídas as propostas cuja análise revele: (…) g) A existência de fortes indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras de concorrência.” Ora, decorre do probatório coligido que, efectivamente, a 28/06/2019, ou seja, em momento anterior ao da elaboração do relatório final no procedimento concursal ora em análise, a Autoridade da Concorrência publicitou decisão que procede à aplicação de uma coima à CI F., bem como a um dos seus administradores, por terem estes adoptado condutas violadoras da Lei da Concorrência, especificamente, a participação num cartel formado por cinco empresas de manutenção ferroviária que combinaram apresentar propostas acima do preço-base de um concurso lançado pela Ré, com o objectivo de levar esta última a pagar um valor superior ao que tinha estipulado para o concurso, em prejuízo dos recursos públicos. Foram ainda os visados condenados pelo facto de, num outro concurso, as mesmas cinco empresas terem combinado entre si repartir os lotes a concurso, assim manipulando os resultados e subvertendo a concorrência. Resulta ainda do probatório coligido que tais condutas e factos remontam a 2014 e 2015, tendo a CI F. alcançado uma transacção com a Autoridade da Concorrência. Por fim, foi ainda dado como provado que não foi aplicada a esta empresa qualquer sanção acessória de proibição de participação em procedimentos concursais. Isto posto, desde logo se adiante que não impendia sobre a CI F. qualquer impedimento, nos termos do previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 55º do CCP. Dúvidas poderia colocar-se quanto à existência de uma causa de exclusão da proposta, à luz do transcrito artigo 70º, nº 2, alínea g), do mesmo diploma legal. Todavia, desde logo se impõe uma resposta negativa. Efectivamente, e se bem que tal não decorre expressamente da redacção da indicada norma, tais indícios de eventual falseamento da concorrência deverão verificar-se em sede do próprio procedimento em análise, que não eventuais práticas anti concorrenciais. Neste sentido se tem pronunciado, de forma clara, reiterada e unânime, a jurisprudência dos tribunais superiores portugueses. A título meramente exemplificativo, refira-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28/01/2016, P. 01255/15, disponível em www.dgsi.pt. Também Pedro Costa Gonçalves (Direito dos Contratos Públicos, Vol. 1, 3ª Edição, 2018, Almedina, fls. 719) afirma que tal motivo de exclusão deverá ser entendido como exigindo que os referidos ilícitos concorrenciais sejam praticados no âmbito do procedimento específico, que já não quanto a Práticas anteriores. In casu, limitou-se a Autora a invocar, como práticas falseadoras da concorrência levadas a cabo pela CI F., as descritas na decisão proferida pela Autoridade da Concorrência a 28/06/2019, e reportadas aos anos de 2014 e 2015, relativamente às quais foi já aplicada coima que aquela entidade julgou ser devida. Não obstante, não provou, nem sequer alegou a Autora quaisquer indícios, eventualmente ocorridos ao longo do procedimento concursal ora em análise susceptíveis de falsearem as normas da concorrência, e praticados pela CI F. ou por algum dos seus representantes. Consequentemente, resta concluir que improcede tudo quanto veio aduzido pela Autora no que a esta matéria respeita. * Concluindo o Tribunal pela plena legalidade do acto de adjudicação posto em crise com os presentes autos, e tendo a CI F. apresentado uma proposta por um preço mais baixo que aquele apresentado pela Autora, não assiste a esta o direito à prática de acto devido, consubstanciado na ordenação da sua proposta em 1º lugar e subsequente adjudicação do contrato público de aquisição de cavilhas e travessas de madeira de pinho creosotadas. Face ao que vem dito, impõe-se concluir pela total improcedência dos presentes autos, o que desde já se declara. (negrito e sublinhados nossos). X Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso. Assim, vejamos: É objecto de recurso esta sentença, proferida em 21/2/2020, no segmento em que julgou improcedente a ação de contencioso pré-contratual instaurada pela ora Recorrente contra o ora Recorrido IP SA por ter considerado e decidido não ter ocorrido a violação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP, por parte do acto de adjudicação proferido pelo Recorrido IP SA em 25/7/2019. Na óptica da Recorrente o aresto, por ter feito uma interpretação apressada do referido preceito legal, incorreu ele mesmo em ilegalidade por errada interpretação do mesmo face ao disposto no Direito da União Europeia, mais concretamente, face ao plasmado no artigo 57º, nº 4, alínea d) e nº 5 da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de fevereiro de 2014 relativa aos contratos públicos. Cremos que lhe assiste toda a razão. Conforme resulta do probatório (não questionado) - alínea U da fundamentação de facto -, em 12/6/2019 no Processo PRC/2016/6, movido pela Autoridade da Concorrência contra a Recorrida particular F. foi declarado e decidido que: -Primeiro. A visada F., ao participar, entre o último trimestre de 2014 e 1/12/2015, em dois acordos entre empresas concorrentes com o objectivo de fixar o nível dos preços e repartir o mercado, no âmbito dos concursos públicos lançados pela Refer/IP para a prestação de serviços de manutenção de aparelhos de via, na rede ferroviária nacional, via larga, cometeu duas infrações ao disposto no nº 1 do artigo 9º da Lei 19/2012, bem como ao disposto no nº 1 do artigo 101º do TFUE. Segundo. Aceitar, ao abrigo do artigo 27º da Lei 19/2012, a proposta de transação da F., nos termos em que foi apresentada, fixando a coima a aplicar, para o efeito, em €300.00 (trezentos mil euros) a pagar em prestações mensais iguais, pelo período de um ano, sem juros, devendo a primeira prestação ser paga no prazo máximo de 10 dias úteis após a notificação por escrito da presente decisão. Mais ficou provado - alínea V da matéria assente -, que a decisão adoptada pela Autoridade da Concorrência convolou-se em definitiva a 26/6/2019, ou seja, antes do acto de adjudicação de 25/7/2019. Ora, face ao invocado vício de violação de lei - o vício de violação do artigo 70º, nº 2, alínea g), do CCP em que incorria o acto de adjudicação em causa, dado a Recorrente ter entendido que, em face da decisão condenatória proferida pela AC contra a Recorrida particular F. por violação das regras da concorrência, o júri tinha de excluir a sua proposta do procedimento -, o Tribunal a quo, ao interpretar o artº 70º, nº 2, alínea g), do CCP, disse: “E se bem que tal não decorre expressamente da redação da indicada norma, tais indícios de eventual falseamento da concorrência deverão verificar-se em sede do próprio procedimento em análise, que não eventuais práticas anti concorrenciais.” À semelhança da Apelante, não nos revemos, minimamente, nesta leitura. Os princípios inseridos no CCP, nascidos das Diretivas comunitárias e que inspiram o legislador nacional, não são de aplicar apenas aos contratos a que alude o CCP, mas a todos os contratos celebrados com a Administração Publica e/ou a todos os contratos celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o n.º 2 do artigo 1.º do CCP. Decorre do n.º 1 do artigo 1.º-A do CCP o seguinte: “Na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação”. À contratação pública são, assim, especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da prossecução do interesse público, da igualdade e da concorrência. Tanto o direito comunitário como o direito nacional elegeram, como princípio geral enformador da contratação pública, o princípio da concorrência. Segundo Rodrigo Esteves de Oliveira em “Os princípios gerais da contratação pública, Estudos de Contratação Pública”, Tomo I, Coimbra Editora, 2008, pág. 66 e seguinte, “o princípio da concorrência é actualmente a trave-mestra da contratação pública”, sendo na concorrência e no apelo e defesa do mercado, ínsitos nos vários procedimentos concursais, que assenta o valor essencial da contratação. Tal princípio, interpretado em conformidade com a pré-existência do princípio geral de concorrência de direito europeu, tal como consagrado nos artigos 101.º a 109.º do TFUE e nos artigos 9.º e segs. da Lei 19/2012, de 8 de maio, exige que sejam eliminadas as práticas anti concorrenciais na contratação pública, de molde a que a concorrência no mercado da contratação pública não seja limitada, restringida, distorcida ou falseada (cfr. também, no âmbito da legislação nacional, o artigo 132.º n.º 4 do CCP). O principio da concorrência determina, também, que o leque de oferta das entidades adjudicantes deve ser o maior possível, por forma a que os concorrentes optimizem as suas propostas e, assim, as entidades adjudicantes obtenham a melhor relação qualidade-preço possível, tudo por forma a assegurar-se outro dos objectivos da contratação pública, qual seja a de uma melhor eficiência da despesa pública. A promoção da concorrência nos procedimentos concursais é fundamental para promover a competitividade e a produtividade das empresas, para garantir o acesso às melhores condições económicas e para contribuir para uma eficiente afetação de recursos nos mercados - v. p.ex., Recomendação da ACT de setembro de 2015. Em suma, o princípio da concorrência pressupõe que os operadores económicos concorrentes a procedimentos de contratação pública possam utilizar a sua experiência, a sua capacidade empreendedora, a sua valia e atributos empresariais, para avantajar as suas propostas, não podendo ser adoptadas práticas que, injustificadamente, impeçam, limitem, distorçam ou restrinjam tais liberdades. Todas as concretas limitações que o legislador nacional ou o comunitário introduzam a tais liberdades devem por um lado, justificar-se em fundamentos de interesse público e, por outro, serem necessárias, adequadas e proporcionais à finalidade que se visa atingir - cfr. proposta de Recomendação da AdC de setembro de 2015 (ainda que noutro contexto). Também as políticas laborais, sociais e ambientais que os Estados -Membros procurem executar através da contratação pública não se podem sobrepor às exigências concorrenciais que constituem o objectivo primeiro daquele regime. Restrições do princípio da concorrência têm de estar justificadas em qualquer motivo de interesse público. O programa do concurso pode, além do mais, conter quaisquer regras específicas sobre o procedimento de concurso público consideradas convenientes pela entidade adjudicante, desde que não tenham por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência - citado artigo 132º/4. Voltando ao caso concreto, para a sentença recorrida, a exclusão de uma proposta com fundamento no artº 70º, nº 2, alínea g) do CCP - prática de actos contra as regras da concorrência -, só pode ocorrer se tais actos tiverem sido praticados no procedimento adjudicatário, não fora dele. Decorre deste preceito sob a epígrafe “Análise das propostas” que: 1 - As propostas são analisadas em todos os seus atributos, representados pelos fatores e subfatores que densificam o critério de adjudicação, e termos ou condições. (…) g) A existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras de concorrência. (…) Como se viu, a questão colocada no presente recurso jurisdicional é a de saber se, para efeitos de interpretação do artº 70º, nº 2, alínea g) do CCP, face ao disposto no Direito da União Europeia, mais concretamente, face ao artº 57º, nº 4, alínea d) e nº 5, da Diretiva 2014/24/UE, a exclusão de uma proposta por violação das regras da concorrência por parte de um concorrente tem de ocorrer no próprio procedimento ou em momento anterior à sua abertura. Só uma interpretação que não recompense práticas anticoncorrenciais e ilegais cometidas, antes ou durante, o procedimento terá virtualidade para proteger o mercado e acautelar o interesse público. As práticas colusivas, como é sabido, englobam um conjunto de comportamentos levados a cabo por empresas distintas, que coordenam as suas ações no mercado, eliminando o risco e a incerteza inerentes à conduta autónoma de cada uma, substituindo-os por um entendimento de vontades e/ou um conluio de procedimentos. Todavia, sempre que isso não acontece, indiciando-se, em contrapartida, a existência de coordenação ou colusão entre elas, está-se perante a existência de práticas restritivas da concorrência ou com o objetivo de distorcer a concorrência e prejudicar o interesse público, que não podem ficar incólumes. In casu, a F., perante a gravidade das infracções anteriormente cometidas contra a concorrência em procedimentos sobre a rede ferroviária nacional, logo, contra os interesses de ordem pública, prosseguidos pela Refer e depois Infraestruturas de Portugal, SA, no domínio da contratação pública, tinha a sua fiabilidade e honorabilidade perante a entidade adjudicante completamente abalada, pelo que, em face desta situação teria de demonstrar e convencer esta entidade adjudicante, antes de esta decidir pela adjudicação, que, apesar de a condenação da Autoridade da Concorrência, já tinha tomado medidas para que não voltasse a incorrer nas mesmas infrações. Porém, nada fez. E, curiosamente, a Infraestruturas de Portugal também não dilengenciou pela chamada da dita concorrente ao procedimento no sentido de fazer aquela demonstração de adopção de medidas tendentes à reabilitação da sua fiabilidade. Ao invés, de imediato, com ela contrata numa adjudicação de milhares de euros. Como advoga a Apelante, seria completamente contrário ao Direito da União Europeia e ao valor mais elevado da contratação pública que é a concorrência, chocando abertamente com a consciência ético-jurídica, que, uma empresa condenada ao pagamento de uma coima de 300,000 € pela prática de graves infrações à Lei da Concorrência, viesse, um mês depois de conhecida a decisão condenatória, a ser ”premiada” com uma adjudicação no valor de 2.696,150,00€ por parte da entidade adjudicante a quem tinha querido anteriormente prejudicar em procedimentos de contratação pública que também incidiam sobre a rede ferroviária nacional. i) o que a Diretiva 2014/24/EU admite no seu artigo 57º, nº 4, alínea d) é que os Estados membros possam considerar a exclusão do concorrente ou da proposta quando ele não revele idoneidade profissional, designadamente, se tiver indícios suficientemente plausíveis para concluir que o operador económico celebrou acordos com outros operadores económicos com o objetivo de distorcer a concorrência; ii) o referido acórdão do TJUE de 18 de dezembro de 2014, Processo C-470/13 proferido em sede de reenvio (pelo qual se decidiu que «Os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE não se opõem à aplicação de normas nacionais que excluem da participação num procedimento de concurso público um operador económico que cometeu uma infração ao direito da concorrência, declarada por decisão judicial transitada em julgado, pela qual lhe foi aplicada uma coima......») o que apreciou foi a conformidade com o direito europeu de uma norma interna de um Estado membro que estabelecia, grosso modo, o afastamento de concorrente que tivesse sido objeto de condenação nos últimos 5 anos por práticas anticoncorrenciais; mas a nossa norma nacional (o artigo 70º nº 2 alínea g) do CCP) não prevê essa situação, pelo que a situação presente não é análoga, similar ou equivalente à que foi ali apreciada pelo TJUE; iii) o que o nosso direito interno admite é a aplicação de sanção acessória, no âmbito do processo contraordenacional, de privação do direito de participação em procedimentos de formação de contratos cujo objeto abranja prestações típicas dos contratos de empreitada, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de locação ou aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços ou ainda em procedimentos destinados à atribuição de licenças ou alvarás, desde que a prática que constitui contraordenação punível com coima se tenha verificado durante ou por causa do procedimento relevante, durante um período máximo de dois anos, contados da decisão condenatória, após trânsito em julgado (artigo 71.º da Lei n.º 19/2012); mas como resulta do probatório, na situação dos autos não foi aplicada essa sanção acessória, pelo que a concorrente não estava impedida de participar no concurso e de nele ver admitida e apreciada a sua proposta; iv) não se mostra verificada, no caso, a hipótese normativa do artigo 70º nº 2 alínea g) do CCP, nem foi, na verdade, alegado que a proposta da concorrente revelasse a existência de fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras da concorrência, que é o que a norma exige. |