Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01430/10.5BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/09/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Margarida Reis
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL; IVA;
TRANSAÇÃO INTRACOMUNITÁRIA; RITI;
ISENÇÃO; INSCRIÇÃO NO VIES;
Sumário:
I. Atendendo a que apenas por força da alteração introduzida no n.º 1 art. 138.º da DIVA pelo art. 1.º da Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho de 4 de dezembro de 2018 é que o registo do número de identificação IVA do adquirente dos bens no VIES atribuído por um Estado-Membro diferente do Estado de partida do transporte dos bens passou a constituir condição substantiva para a aplicação da isenção de IVA nas transações intracomunitárias, para negar tal isenção antes da introdução de tal alteração não bastava à Administração fiscal a mera referência à falta de registo no sistema VIES do número de identificação fiscal do adquirente dos bens.

II. Atenta a circunstância de a impugnação judicial dos atos de liquidação de tributos ser uma ação de mera anulação, um ato não fundamentado ou insuficientemente fundamentado, não pode ser alvo de uma tentativa de fundamentação a posteriori, na fase contenciosa, pois o tribunal encontra-se limitado à sua apreciação como ele foi emitido pela Administração fiscal.

III. A dispensa do remanescente da taxa de justiça devida justifica-se quando a conduta processual das partes não é merecedora de qualquer censura ou reparo, e o concreto valor das custas a suportar, calculado sobre a base tributável de montante superior a um milhão de euros a que corresponde o valor da causa, se revelaria de outro modo desproporcionado relativamente ao concreto serviço público prestado.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório
A Fazenda Pública, inconformada com a sentença proferida em 2018-02-15 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a impugnação judicial interposta por [SCom01...] Unipessoal, Lda.” tendo por objeto liquidações adicionas de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), e correspondentes juros compensatórios, relativos ao período compreendido entre dezembro de 2007 e junho de 2009, no montante total de EUR 290.005,72, vem dela interpor o presente recurso.
A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
CONCLUSÕES
A. Em resultado de acção inspectiva à actividade desenvolvida pela impugnante, foram efectuadas correcções em sede de IVA, com referência ao ano de 2007, 2008 e 2009, que estiveram na base das liquidações e respectivos juros compensatórios, cuja legalidade foi posta em crise na presente impugnação.
B. No referido procedimento externo e decorrente da análise efectuada às suas operações activas (vendas), verificaram os SIT que entre Dezembro de 2007 e Junho de 2009, efectuou transmissões intracomunitárias com destino ao operador espanhol [SCom02...], com o nº de identificação B.....01, no valor global de 1.377.736.90€.
C. Consultado o Sistema Informático do VIES (sistema de registo das pessoas singulares ou colectivas registadas para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado noutro Estado membro, que usam o respectivo número de identificação para efectuar aquisições e se encontre abrangidos por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens) constatou-se que aquele operador espanhol não estava registado no respectivo cadastro, conforme print informático que se anexou ao RIT (anexo I).
D. Foi solicitado durante o procedimento inspectivo ainda que fossem apresentados documentos comprovativos que permitissem validar aquelas operações, quer ao nível da natureza do cliente, quer ao nível da efectiva saída dos bens do território nacional. Contudo os únicos documentos apresentados de que se juntou fotocópia em anexo II ao RIT, não permitiram concluir da condição do adquirente espanhol, como adquirente registado, para efeitos de aquisições intracomunitárias.
E. Não cumprindo os requisitos fundamentais para o reconhecimento da isenção nas transmissões intracomunitárias, conforme artº 14º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias (RITI).
F. Consideraram os SIT que não podiam aquelas operações ser reconhecidas como “transmissões intracomunitárias de bens” e por isso isentas de IVA.
G. Assim e pelo facto destas operações terem sido consideradas indevidamente isentas procederam à liquidação de imposto (IVA) nos termos dos artigos 7º e 8º do Código do IVA, sobre aquelas transacções, nos valores e períodos melhor descritos no RIT.
H. Considerou o douto Tribunal a quo que o objecto dos autos passava pela aferição da legalidade das liquidações adicionais impugnadas, sendo que a questão a decidir passava por concluir se as operações comerciais realizadas entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]” deveriam ou não ser qualificadas como transacções intracomunitárias para efeitos do artigo 14º do RITI.
I. A douta sentença proferida anulou os actos tributários impugnados, ressalvado o devido respeito, com o desta forma decidido não se conforma a Fazenda Pública, porquanto entende que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova e de direito.
J. Em primeiro lugar, entende este RFP que errou o douto Tribunal a quo ao considerar que não estava e causa a prova da saída dos bens do território nacional.
K. Conforme consta do RIT, durante o procedimento inspectivo foi pedido que fossem apresentados documentos comprovativos que permitissem validar aquelas operações, quer ao nível da natureza do cliente, quer ao nível da efectiva saída dos bens do território nacional.
L. Entende pois este RFP que não foi efectuada nos autos a devida prova dos pressupostos para o reconhecimento da isenção nas transmissões intracomunitárias, conforme artº 14º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias (RITI), nomeadamente da transmissão dos bens em questão e da sua saída do território nacional.
M. Da prova da transmissão dos bens e da sua saída do território nacional, importava uma melhor análise dos documentos de transporte (CMR) e dos meios de pagamento utilizados que concluíssem o contrato de compra e venda, a transmissão da propriedade.
N. Da análise dos CMR´s constantes nos autos verifica-se que estes não se encontram validamente preenchidos, o campo 24 “Recepção da Mercadoria” não se encontra preenchido, além disso a impugnante não apresentou qualquer prova dos pagamentos dos bens em questão.
O. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que não poderia terem-se dado como provados os factos assentes em F), I) e J).
P. Inerentemente, não se poderia ter considerado como verificado a totalidade dos pressupostos para a mercadoria ser considerada isenta ao abrigo do artº 14º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias (RITI).
Q. Neste sentido veja-se o acórdão do TCA SUL de 07-06-2011, proferido no processo nº 04434/10, o acórdão do TCAN de 28-16-2007 proferido no processo n.º 00130/02 – PORTO e ainda, o mais recente acórdão do TCA SUL de 07-06- 2011, proferido no processo nº 04434/10.
R. Pelo que vem sendo exposto, cremos que o conjunto da prova documental e testemunhal, não constitui prova suficiente da verificação da isenção em apresso incorrendo assim o Tribunal a quo em erro de julgamento de facto e de direito por errónea valoração da prova, mostrando-se violado, além do mais, o art.º 14.º do RITI, pelo que, a douta sentença recorrida não poderá manter-se. Sem conceder,
S. Em virtude do valor da causa ser superior a € 275.000,00, desde já se solicita a V. Ex.ª que – nos termos do n.º 7 do art.º 6.º do Regulamento das Custas Processuais – determine a dispensa do pagamento da taxa de justiça aí prevista (do remanescente),
T. na medida em que se entende, que se encontram preenchidas todas as condições previstas naquele normativo, pois, a causa não foi de complexa decisão, não houve incidentes, nem má conduta processual das partes.
Termina pedindo:
Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com o que se fará inteira JUSTIÇA.
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Digno Magistrado do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso.
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Os vistos foram dispensados com a prévia concordância dos Ex.mos Juízes Desembargadores-Adjuntos, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 657.º do CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT.
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Questões a decidir no recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT.
Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a sentença sob recurso padece dos erros de julgamento de facto e de direito que lhe são imputados pela Recorrente.

II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto
Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:
III – DOS FACTOS:
Factos provados:
Com relevância para a pronúncia a proferir nos presentes autos, dão-se como provados os seguintes factos:
A) Na sequência das ordens de serviço n.ºs ...39, ...40 e ...42 foi realizada acção inspectiva à Impugnante, com âmbito circunscrito a IVA relativo aos exercícios de 2007, 2008 e 2009 – cfr. fls. 44 a 56 do processo administrativo junto aos presentes autos.
B) Do relatório final do processo inspectivo referido em A) consta o seguinte: “…III – Descrição dos Factos e Fundamentos das Correcções Meramente Aritméticas à Matéria Colectável… 1- Descrição dos Factos… No âmbito do referido procedimento externo e decorrente da análise efectuada às suas operações activas (vendas), verificou-se que entre Dezembro de 2007 e Junho de 2009, efectuou transmissões intracomunitárias com destino ao operador espanhol [SCom02...], com o n.º de identificação B.....01, no valor global de 1.377.736,90€… Consultado o Sistema Informático do VIES (sistema de registo das pessoas singulares ou colectivas registadas para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado noutro Estado membro, que usam o respectivo número de identificação para efectuar aquisições e se encontre abrangidos por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens) constatou-se que aquele operador espanhol não estava registado no respectivo cadastro, conforme print informático que se anexa (anexo I)… os únicos documentos apresentados de que se junta fotocópia em anexo II, não permitem concluir da condição do adquirente espanhol, como adquirente registado, para efeitos de aquisições intracomunitárias…Não cumprindo com um dos requisitos fundamentais para o reconhecimento da isenção nas transmissões intracomunitárias, conforme artº 14º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias…Assim e pelo facto destas operações terem sido consideradas indevidamente isentas mostra-se necessário a liquidação de imposto (IVA) nos termos dos artigos 7º e 8º do Código do IVA, sobre aquelas transacções, nos valores e períodos que abaixo se descreve” – cfr. fls. 44 a 56 do processo administrativo junto aos presentes autos;
C) Na sequência das conclusões do relatório do procedimento inspectivo referidas em B) foram emitidas pelo Serviço de Finanças ... as liquidações adicionais identificadas com os n.ºs ...29, ...30, ...32, ...34, ...36, ...38, ...40, ...42, ...44, ...46, ...48, ...50, ...52, ...54, ...56, ...58, ...60, ...62, representativas de um montante global de imposto IVA exigido de 278.351,32€ - cfr. docs. 1, 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18, 20, 22, 24, 26, 28, 30, 32 e 34 juntos com a petição inicial, fls. 31,32, 34, 36, 38, 40, 42, 44, 46, 48, 50, 52, 54, 56, 58, 60, 62 e 64 dos autos;
D) Foram emitidas pelo Serviço de Finanças ... liquidações de juros compensatórios por correspondência às liquidações adicionais referidas em C), identificadas sob os n.ºs ...31, ...33, ...35, ...37, ...39, ...41, ...43, ...45, ...47, ...49, ...51, ...53, ...55, ...57, ...59, ...61 e ...63 representativas de um montante global de juros exigidos no valor de 11.654,90€ – cfr. docs. 3, 5, 7, 9, 11, 13, 15, 17, 19, 21, 23, 25, 27, 29, 31, 33 e 35 juntos com a petição inicial, fls. 33, 35, 37, 39, 41, 43, 45, 47, 49, 51, 53, 55, 57, 59, 61, 63 e 65 dos autos;
E) As transmissões de bens efectuadas entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]”, com o NIF B ...01, foram tituladas pelas facturas n.ºs 2082/2007, 2106/2007, 37/2008, 49/2008, 50/2008, 67/2008, 98/2008, 117/2008, 170/2008, 224/2008, 269/2008, 438/2008, 456/2008, 481/2008, 516/2008, 564/2008, 612/2008, 616/2008, 624/2008, 632/2008, 639/2008, 642/2008, 671/2008, 700/2008, 761/2008, 769/2008, 777/2008, 802/2008, 811/2008, 830/2008, 870/2008, 886/2008, 905/2008, 918/2008, 959/2008, 991/2008, 1019/2008, 1048/2008, 1062/2008, 1082/2008, 1084/2008, 1104/2008, 1120/2008, 1142/2008, 27/2009, 58/2009, 73/2009, 124/2009, 150/2009, 273/2009, 335/2009, 434/2009, 435/2009, 458/2009, 505/2009, 524/2009, 543/2009, 550/2009, 680/2009, 701/2009 – cfr. docs. n.ºs 36, 165, 163, 161, 159, 158, 156, 154, 152, 150, 148, 146, 144, 143, 142, 139, 137, 135, 132, 130, 129, 126, 124, 122, 119, 115, 113, 110, 107, 105, 103, 101, 100, 98, 96, 94, 92, 89, 87, 85, 82, 80, 77, 75, 73, 70, 68, 66, 64 (por lapso, identificado nos autos físicos como doc. 66), 62, 59, 57, 55, 53, 52, 49, 47, 45, 43, 41, 39 e 37 juntos com a petição inicial;
F) As mercadorias tituladas pelos documentos referidos em E) foram expedidas para a morada “..., n.º 11, ..., ..., ... Espanha” e entregues à sociedade “[SCom02...]” – cfr. docs. n.º 38, 40, 42, 44, 46, 48, 50, 51, 54, 56, 58, 60, 61, 63, 65, 67, 69, 71, 72, 74, 76, 78, 79, 81, 83, 84, 86, 88, 90, 91, 93, 95, 97, 99, 102, 104, 106, 108, 109, 111, 112, 114, 116, 117, 118, 120, 121, 123, 125, 127, 128, 131, 133, 134, 136, 138, 140, 141, 145, 147, 149, 151, 153, 155, 157, 160, 162, 163, 164 e 166 juntos com a petição inicial;
G) Em 12/08/2008 o número de identificação para efeitos de IVA da sociedade “[SCom02...]” constava do Sistema de Informações de Trocas Intracomunitárias como válido – cfr. doc. ...78 junto com a petição inicial;
H) Em 18/11/2009 o número de identificação para efeitos de IVA da sociedade “[SCom02...]” constava como não registado no Sistema de Informações de Trocas Intracomunitárias – cfr. doc. 179 junto com a petição inicial;
I) A sociedade “[SCom02...]” devolveu à Impugnante mercadorias que esta lhe forneceu;
J) As mercadorias referidas em I) são as reflectidas nas notas de crédito n.ºs 31/2009, 46/2009, 47/2009, 48/2009, 49/2009, 50/2009, 57/2009, 58/2009, 59/2009, 60/2009, 61/2009, 62/2009 e 79/2009 – cfr. docs. n.ºs 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191 e 192 juntos com a petição inicial.
*
Factos não provados:
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos inexistem factos que importe dar como não provados.
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Motivação:
A decisão da matéria de facto provada, consonante ao que acima ficou exposto, efetuou-se com base nos documentos e informações constantes do processo, referidos em cada uma das alíneas do elenco dos factos provados, os quais não foram impugnados e que, dada a sua natureza e qualidade, mereceram a credibilidade do tribunal, em conjugação com o princípio da livre apreciação da prova.
Como já referido foi produzida prova testemunhal em audiência contraditória de inquirição de testemunhas. Ouvida a referida prova produzida e na parte em que a mesma é relevante para a decisão a proferir nos presentes autos, atenta a concreta configuração do litígio em apreciação nos presentes autos, conclui o Tribunal que os depoimentos das três testemunhas merecem credibilidade quanto ao conteúdo das suas declarações, atentas as razões de ciência invocadas para o conhecimento dos factos relatados, maxime a circunstância de todas as três testemunhas terem desempenhado as funções directamente para (no caso da testemunha «AA») e na (no caso das testemunhas «BB» e «CC») Impugnante no período de tempo em análise nos presentes autos. Para além de que, todas as testemunhas, prestaram um depoimento objectivo, assertivo e circunstanciado. Os seus depoimentos foram relevantes para a fixação da matéria elencada de E) a J).
A testemunha «AA», que desempenhava funções no gabinete de contabilidade que fazia a escrituração da Impugnante à data dos factos conformadores do litígio que aqui se trata e que acompanhou o desenvolvimento do trabalho dos inspectores tributários no procedimento inspectivo cujas conclusões fundamentaram a emissão das liquidações impugnadas nos presentes autos apresentou postura e discurso coerentes, produzindo declarações técnicas relacionadas com o reporte e reflexo documental relevante para efeitos contabilísticos que, mesmo confrontadas com os documentos constantes dos autos relativos ao reporte contabilístico da relação comercial estabelecida entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]”, se mostraram credíveis e aptas a fazer surgir a convicção no Tribunal de que a relação comercial em questão nos presentes autos efectivamente existiu nos termos alegados pela Impugnante, nomeadamente que o material (peles) era expedido pela Impugnante para a sociedade “[SCom02...]” que estava sediada em Espanha, assim como quanto ao reflexo contabilístico suportado documentalmente relativamente às mercadorias que foram alvo de devolução pela sociedade “[SCom02...]” à Impugnante. Merecem também a credibilidade do presente Tribunal as declarações prestadas pela testemunha «AA» quanto ao acompanhamento que prestou aos inspectores tributários responsáveis pelo procedimento inspectivo de que foi alvo a Impugnante e o acesso a documentação solicitada que facultou e se empreendeu em obter, nomeadamente quanto à inscrição e registo da sociedade “[SCom02...]” junto das autoridades tributárias espanholas relevantes para efeitos de IVA.de peritos na avaliação do objecto de incidência da liquidação impugnada nos presentes autos.
O depoimento da testemunha «BB», que trabalhou para impugnante no período temporal em questão nos presentes autos, exercendo funções no armazém da mesma mostrou-se apto, pela coerência discursiva apresentada, conjugada com a descrição do comportamento que adoptava quando exercia funções na impugnante, demonstrando um conhecimento directo das operações materiais a efectuar tanto para a expedição da mercadoria do armazém, como para a recepção da mercadoria devolvida no armazém. O depoimento da presente testemunha mostrou-se apto a criar a convicção no Tribunal de que as mercadorias expedidas para a sociedade “Piccolo 1791” o foram efectivamente, nos termos constantes dos documentos de transporte. E que as mercadorias que vieram devolvidas, vinham também documentalmente suportadas, documentação essa que era conforme, em termos de quantidade e qualidade, à mercadoria efectivamente devolvida.
O depoimento da testemunha «CC», responsável pela gestão da frota de veículos de transporte terrestre da sociedade “[SCom03...], Lda.”, sociedade transportadora essa com estreitos laços comerciais com a Impugnante e contratada para efectuar diversos transportes de mercadoria da Impugnante para a sociedade “[SCom02...]” apresentando um discurso escorreito e seguro, demonstrativo de conhecimento das especiais obrigações e deveres legais associados ao transporte internacional de mercadorias por via terrestre, mostrou-se apto a fazer criar a convicção no presente Tribunal de que as mercadorias expedidas pela Impugnante para a sociedade “[SCom02...]” eram efectivamente entregues em Espanha, na morada constante dos documentos “CMR”, e que houve mercadoria que veio devolvida pela sociedade “[SCom02...]” para a Impugnante cujo transporte foi também efectuado pela sociedade da testemunha.
Nos termos supra referidos, e operando-se o exercício de confronto entre as declarações das testemunhas e a prova documental junta aos autos, está o Tribunal em condições de concluir que a materialidade inerente tanto quanto à expedição de mercadorias, como quanto à devolução de mercadorias em que se consubstanciou a relação comercial estabelecida entre a Impugnante e sociedade “[SCom02...]”, sediada em Espanha, efectivamente existiu. Isto é, houve mercadoria expedida pela Impugnante de Portugal, devidamente documentada, que foi transportada e entregue em Espanha na sociedade “[SCom02...]”.
*
II.2. Fundamentação de Direito
Tal como já aqui se sumariou, a Recorrente imputa à sentença recorrida erro de julgamento de facto e de direito.
Importa, no entanto, esclarecer, que, não obstante enunciar na conclusão I das suas alegações de recurso que a sentença padece de um erro de julgamento de facto, a Recorrente não impugna a decisão de facto que a sustentou, conformando-se com a mesma, desde logo porque, manifestamente, não cumpre com o ónus de especificação que se lhe impunha, atento o disposto no art. 640.º do CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT.
Crê-se, no entanto, e salvo melhor interpretação das suas alegações de recurso, que o que pretendeu foi questionar a subsunção do direito efetuado à matéria de facto provada, o que, e ao contrário do que alega, configura um erro de julgamento de direito na sua categoria de erro de estatuição, interpretação ou aplicação stricto sensu (cf. PINTO, Rui – Manual do Recurso Civil. Volume I. Lisboa, AAFDL editora, 2020, pág. 27), e não um erro de julgamento de facto.
Com efeito, e em síntese, o que a Recorrente pretende é questionar a sentença sob recurso na medida em que na mesma se entendeu – e desde já se adianta, que bem – que a sindicância dos atos de liquidação adicional de IVA se deveria limitar à respetiva fundamentação, expressa no relatório de inspeção tributária, e que, como tal, e uma vez que o seu único fundamento foi o facto de os “…documentos apresentados de que se junta fotocópia em anexo II, não permitem concluir da condição do adquirente espanhol, como adquirente registado, para efeitos de aquisições intracomunitárias…Não cumprindo com um dos requisitos fundamentais para o reconhecimento da isenção nas transmissões intracomunitárias, conforme artº 14º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias” (cf. ponto B, da fundamentação de facto) não haveria que indagar, designadamente, se a Recorrida fez prova da entrega efetiva das mercadorias, uma vez que a mesma não resulta questionada na fundamentação dos atos impugnados.
Efetivamente, a sentença suportou a decisão de julgar procedente a impugnação judicial na seguinte fundamentação, que aqui se passa a transcrever no trecho pertinente:
(…)
Vejamos.
A abordagem a empreender para que possamos emitir a pronúncia exigida pelo litígio que conforma os presentes autos impõe que desde já estabeleçamos duas premissas irredutíveis que perpassarão e conformarão a presente pronúncia. A primeira é que estamos a tratar do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), imposto, que por incidir sobre transacções comerciais e, nessa decorrência, apresentar uma ligação umbilical e uma influência directa sobre o mercado único europeu, se encontra fortemente harmonizado a nível europeu (pelo que se terá de ter em conta a influência do direito – material e jurisdicional – europeu na solução a dar ao presente pleito). A segunda tem que ver com a circunstância de em momento algum a Autoridade Tributária colocar em causa que as transacções comerciais entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]”, com o NIF B ...01 existiram, nem embargar que existiram em modo diferente daquele que é apreensível através dos documentos que titulam a referida relação comercial e que constam dos autos, nem sequer a circunstância de a sociedade “[SCom02...]” estar sediada no Reino de Espanha foi colocada em causa pela Autoridade Tributária. Pelo que a idiossincrasia e vicissitudes da relação comercial estabelecida entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]”, apesar de factualmente demonstrada [alíneas D) a J)], não serão alvo de pronúncia adicional na presente decisão.
Assim, de acordo com os termos supra expostos e com a matéria factual dada como provada (B) dos factos provados) temos que a Autoridade Tributária, na sequência do relatório final do procedimento inspectivo referido em A) dos factos provados, empreende é uma desqualificação das operações de venda de mercadorias da Impugnante à sociedade “[SCom02...]”, realizadas no período compreendido entre Dezembro de 2007 e Junho de 2009, como operações intracomunitárias (para os termos e efeitos do artigo 14º do RITI), consequentemente qualificou-as como operações indevidamente isentas, e desse modo, procedeu à liquidação de IVA nos termos dos artigos 7º e 8º do Código do IVA.
A circunstância referida no parágrafo supra revela que o objecto dos presentes autos passa pela aferição da legalidade das liquidações adicionais impugnadas, sendo que a questão a decidir passará por concluir se as operações comerciais realizadas entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]” deverão ou não ser qualificadas como transacções intracomunitárias para efeitos do artigo 14º do RITI.
Das conclusões do relatório final de inspecção – B) dos factos provados – constata-se que o único fundamento aduzido pela Autoridade Tributária para que não configure no quadro do universo de aplicação da norma do artigo 14º do RITI as transacções efectuadas entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]” é a circunstância de não existir prova que ateste ou demonstre que esta última sociedade se encontra, no Reino de Espanha, registada para efeitos de aquisições intracomunitárias. Sendo que, atento o teor da norma constante da alínea a) do artigo 14º do RITI, tal registo é requisito para a operatividade da isenção de imposto aí estabelecida.
Relembrando o que dissemos já relativamente à harmonização a nível europeu de que o IVA goza – necessidade advinda do próprio Tratado da União Europeia, cfr. artigo 3º, parágrafo 3 e artigo 5º, e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, cfr. seus artigos 2º, parágrafo 2, 4º, parágrafo 2, alínea a) e 110º a 113º, senda a tal harmonização ainda consolidada na Directiva IVA (DIRECTIVA 2006/112/CE DO CONSELHO de 28 de Novembro de 2006).
Ainda no roteiro do direito da união há ainda que convocar para a presente pronúncia o constante do artigo 19º do Tratado da União Europeia, nomeadamente os seus parágrafos 1 e 3, o qual institui o Tribunal de Justiça da União Europeia como o garante do respeito do direito da união, nomeadamente quanto à interpretação e aplicação dos Tratados. Consagração esta que surge na decorrência lógica do princípio da atribuição de competências dos Estados-Membros à União Europeia, com a consequente emergência do princípio do primado do direito da união quanto às matérias cujas competências de regulação, implementação e desenvolvimento são atribuídas pelos Estados-Membros à União. Tal consagração normativa no referido Tratado vem instituir o Tribunal de Justiça da União Europeia como órgão competente para estabelecer a correcta interpretação quer dos Tratados, como dos actos jurídicos (dos órgãos) da União, assim como da compatibilidade dos actos legislativos dos Estados-Membros em matérias reguladas por actos legislativos da União, enquanto expressão da necessidade efectivação das competências atribuídas à União pelos Estados-Membros. Daí que tanto as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia sejam para respeitar pelo Estado português enquanto entidade colectiva agregadora da soberania popular e representante de tal vontade, como pelos Tribunais nacionais, numa exigência também ditada pelo princípio da especialidade e da própria atribuição que o Estado português fez a favor da União (e consequentemente dos seus órgãos nos termos das suas normas de organização) relativamente às competências para a mesma transferidas e modos e meios de concretização. Realidade esta já sublinhada várias vezes pelo Supremo Tribunal Administrativo, do qual, a título de exemplo e sem pretensão de exaustividade, se podem indicar as pronuncias efectuadas nos Acs. STA n.ºs 0587/08, de 03-12-2008, onde se lavra “…A jurisprudência do TJCE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais, nas matérias abrangidas pelo direito comunitário…”, 0415/12, de 29-10-2014, onde se afirma “…A legislação nacional ao transpor para a ordem interna tal Directiva, tem de respeitar o seu texto e o seu espírito, não lhe podendo ser contrária, sob pena da sua violação e não poder ser aplicada, tendo em conta a primazia na ordem constitucional do direito comunitário sobre o direito interno (art. 8.º, n.º 4, da CRP)…”, 0568/13, de 18-12-2013, onde se lavra “…Como é consabido, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais, em matéria de direito comunitário…” e 01172/14, de 03-02-2016, onde se escreveu “…As disposições do Tratado CE, que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático… Nos termos do art. 8.º, n.º 4, da CRP «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático»…Desta norma decorre, por força da Constituição, que as disposições do Tratado referido, que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos do direito da União, desde querespeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático….” – todos os acórdãos referidos encontram-se disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Os parágrafos que supra dedicámos ao direito da união europeia possuem relevância e pertinência, para além do que já dissemos relativamente harmonização que o IVA possui a nível da União, pela circunstância de ter sido proferido Acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia – Acórdão do Tribunal de Justiça (Nona Secção), de 9 de Fevereiro de 2017, processo C‑21/16, disponível para consulta em: http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=187683&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=545424 – tirado tanto sobre circunstâncias de facto totalmente transponíveis para as que enformam os presentes autos, como sobre a aplicação da mesma norma de direito, como ainda se pronuncia sobre a mesma questão fundamental de direito a que o presente Tribunal terá que dar resposta; sendo ainda relevante referir que a Autoridade Tributária e Aduaneira de Portugal é parte no referido processo. Pelo que, atento o princípio do primado do direito da união da europeia e da vinculatividade das decisões do Tribunal de Justiça, nos termos sobre os quais já discorremos, terá o presente Tribunal de seguir a orientação de julgamento gizada pelo tribunal da união.
No aresto referido no parágrafo supra analisou-se a título de decisão prejudicial cujo objecto de um dos pedidos de pronúncia feitos ao Tribunal de Justiça se consubstanciava na seguinte pergunta : “Os artigos 131.° e 138.°, n.° 1, da Diretiva [IVA] devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a Administração Fiscal de um Estado‑Membro recuse conceder uma isenção de IVA numa entrega intracomunitária, a um alienante sedeado nesse Estado‑Membro, por o adquirente, sedeado noutro Estado‑Membro, não se encontrar registado no VIES nem estar aí abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens, embora disponha, no momento da transacção, de um número de identificação válido, para efeitos de IVA, nesse outro Estado‑Membro, número esse que foi utilizado nas facturas das transacções, quando os requisitos materiais de uma entrega intracomunitária estejam cumulativamente verificados, isto é, quando o direito de dispor do bem como proprietário tenha sido transferido para o adquirente e ofornecedor prove que esse bem foi expedido ou transportado para outro Estado‑Membro e que, na sequência dessa expedição ou desse transporte, o mesmo saiu fisicamente do território do Estado‑Membro de entrega para um adquirente sujeito passivo ou pessoa colectiva agindo como tal num Estado‑Membro que não o de partida dos bens?” – do teor da questão colocada ao Tribunal de Justiça evidente se torna a afinidade da situação que motivou o reenvio para o Tribunal de Justiça e a que conforma o objecto dos presentes autos.
Na pronúncia emitida – no parágrafo 23 – começa por referir o Tribunal de Justiça “há que recordar que o artigo 138.°, n.° 1, da Directiva IVA (n.d.r.: artigo 138º, n.º da Directiva IVA: “Os Estados–Membros isentam as entregas de bens expedidos ou transportados, para fora do respectivo território mas na Comunidade, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, efectuadas a outro sujeito passivo ou a uma pessoa colectiva que não seja sujeito passivo agindo como tal num Estado-Membro diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens”) prevê a obrigação de os Estados‑Membros isentarem as entregas de bens que satisfaçam as condições aí enumeradas (acórdão de 9 de Outubro de 2014, Traum, C‑492/13, EU:C:2014:2267, n.° 46)”, continuando no parágrafo 25 “Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a isenção da entrega intracomunitária de um bem só é aplicável quando o direito de dispor do bem como proprietário tenha sido transferido para o adquirente e o alienante prove que esse bem foi expedido ou transportado para outro Estado‑Membro e que, na sequência dessa expedição ou desse transporte, o mesmo bem saiu fisicamente do território do Estado‑Membro de entrega (acórdão de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 31 e jurisprudência referida)”, embora salientando nos parágrafos seguintes da referida decisão a importância que o registo, e sua actualidade, dos operadores económicos possui enquanto mecanismo fomentador da segurança, transparência e agilidade nas trocas comerciais intracomunitárias, o Tribunal de Justiça refere – parágrafo 29 – “No entanto, nem o artigo 138.°, n.° 1, da Directiva IVA nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça referem, entre os requisitos materiais de uma entrega intracomunitária enumerados exaustivamente, a obrigação de o adquirente dispor de um número deidentificação IVA (v., neste sentido, acórdão de 6 de Setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 59) ou, a fortiori, a obrigação de este estar registado para efeitos da realização de operações intracomunitárias e de estar inscrito no sistema VIES”. E continua nesta senda o Tribunal de Justiça, no parágrafo 32, “Por conseguinte, nem a obtenção, pelo adquirente, de um número de identificação IVA válido para a realização de operações intracomunitárias nem o seu registo no sistema VIES constituem requisitos materiais da isenção de IVA de uma entrega intracomunitária. São apenas exigências formais que não podem pôr em causa o direito do alienante à isenção de IVA, na medida em que os requisitos materiais de uma entrega intracomunitária estejam verificados (v., por analogia, acórdãos de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.° 60; de 27 de setembro de 2012, VSTR, C‑587/10, EU:C:2012:592, n.° 51; e de 20 de outubro de 2016, Plöckl, C‑24/15, EU:C:2016:791, n.° 40)” e no parágrafo 34 “Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma medida nacional vai além do que é necessário para assegurar a cobrança exacta do imposto se fizer depender, no essencial, o direito à isenção de IVA do cumprimento de obrigações formais, sem ter em conta as exigências de fundo e, nomeadamente, sem se interrogar sobre se estas foram respeitadas. Com efeito, as operações devem ser tributadas tomando em consideração as suas características objectivas (acórdão de 20 de Outubro de 2016, Plöckl, C‑24/15, EU:C:2016:791, n.° 37 e jurisprudência referida)”.
Concluindo o Tribunal de Justiça “Ora, no que se refere às características objectivas de uma entrega intracomunitária, decorre dos n.ºs 23 a 25 do presente acórdão que se uma entrega de bens cumprir os requisitos previstos no artigo 138.°, n.° 1, da Directiva IVA, essa entrega está isenta de IVA (v., neste sentido, acórdão de 20 de Outubro de2016, Plöckl, C‑24/15, EU:C:2016:791, n.° 38 e jurisprudência referida). Daí decorre que o princípio da neutralidade fiscal exige que a isenção de IVA seja concedida se os requisitos de fundo forem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais (acórdão de 20 de outubro de 2016, Plöckl, C‑24/15, EU:C:2016:791, n.° 39)” – parágrafos 35 e 36. Resumindo em sede de dispositivo, o Tribunal de Justiça, o objecto e sentido da sua pronúncia nos seguintes termos: “O artigo 131.° e o artigo 138.°, n.° 1, da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a Administração Fiscal de um Estado‑Membro recuse isentar de imposto sobre o valor acrescentado uma entrega intracomunitária pelo simples motivo de, no momento dessa entrega, o adquirente, sedeado no território do Estado‑Membro de destino e titular de um número de identificação de imposto sobre o valor acrescentado válido para as operações nesse Estado, não estar inscrito no Sistema de Intercâmbio de Informações sobre o Imposto sobre o Valor Acrescentado nem se encontrar abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias, ainda que não exista nenhum indício sério que sugira a existência de fraude e que esteja demonstrado que os requisitos materiais da isenção estão verificados…” (sublinhado nosso).
Confrontando-se o teor da pronúncia efectuada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia com o caso que conforma os presentes autos constata-se uma afinidade das circunstâncias de facto entre o caso da pronúncia europeia e aquele sobre o qual temos que emitir pronúncia que permite a transposição da decisão tomada nas instâncias da união para o caso dos presentes autos. Atente-se que, nos termos da matéria de facto dada como provada (B), E), F), G), dos factos provados), o único fundamento para a desconsideração das transacções efectuadas entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]” como transacções intracomunitárias foi a circunstância de a referida sociedade espanhola não se encontrar registada no sistema VIES, nem se encontrar registada no Reino de Espanha para efeitos de transacções intracomunitárias. Nunca se colocando em questão a materialidade das operações/transacções comerciais efectuadas entre a Impugnante e a sociedade espanhola, assim como a circunstância de serem dois operadores sediados em dois países distintos da União Europeia, nem que as mercadorias não tenham efectivamente sido transaccionadas [relembrando-se, contudo, que tal materialidade ficou demonstrada - alíneas E) a J)]. Assim sendo, nos termos da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça, fazendo a mesma referência também a outras pronúncias emitidas pelo mesmo Tribunal, temos que a norma constante da alínea do artigo 14º do RITI na medida em que exige requisitos que vão para além dos constantes do artigo 138º da Directiva IVA para que opere a isenção de IVA nas transacções intracomunitárias viola o direito de união – no presente caso, e, nos termos já supra referidos, sendo o direito da união directamente aplicável e com primado sobre o direito nacional – facto que torna a norma nacional inaplicável nos termos em que a mesma viola o direito da união. Pelo que, no caso dos presentes autos, a norma da alínea a) do artigo 14º do RITI será de desaplicar na medida em que a mesma impõe os requisitos de isenção relacionados com a exigência de registo em sistema ou para a realização de operações ou transacções sujeitas a IVA. Dando-se, deste modo cumprimento à jurisprudência do Tribunal de Justiça no que à garantia ao direito à isenção que assiste os operadores económicos nas transacções intracomunitárias uma vez que estejam verificados os requisitos materiais exigidos pelo artigo 138º da Directiva IVA.
Atento o que vimos a dizer, forçoso se torna de concluir que, a partir do momento em que se torna inviável não isentar transacções intracomunitárias com fundamento no não registo em sistema VIES ou em sistema para a realização de operações ou transacções sujeitas a IVA, deixa de subsistir fundamento legal para a emissão das liquidações adicionais, sendo, consequentemente, de classificar as mesmas como ilegais.
Assim sendo, por tudo o exposto, maxime por ser contrário ao direito da união (por desrespeito para com o conteúdo do artigo 138º, n.º 1 da Directiva IVA) e por tal ter sido declarado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, serão anuladas as liquidações adicionais impugnadas nos presentes autos, assim como, em decorrência lógica, serão também anuladas as liquidações de juros compensatórios emitidas por referência ao não pagamento em tempo (por referência à data da realização das operações desqualificadas em sede de procedimento inspectivo) do IVA respeitante às transacções realizadas entre a Impugnante e a sociedade “[SCom02...]” no período compreendido entre Dezembro de 2007 e Junho de 2009.
(…)
Ora, nada há que censurar à sentença sob recurso, que assim fez uma correta interpretação e aplicação do direito aplicável.
De facto, e como é ali referido, e resulta provado com clareza no ponto B da fundamentação de facto, os atos de liquidação adicional de IVA em causa sustentaram-se, única e exclusivamente, na circunstância de os documentos apresentados pela Recorrida não permitirem esclarecer se o adquirente espanhol dos bens estava ou não “registado, para efeitos de aquisições intracomunitárias”.
Sucede que tal fundamentação revela um erro de direito nos pressupostos de direito dos atos impugnados, uma vez que, como é bem referido na sentença recorrida, sobre esta matéria já se pronunciou o Tribunal de Justiça da União Europeia no sentido de que, e em síntese, “(…) nem a obtenção, pelo adquirente, de um número de identificação IVA válido para a realização de operações intracomunitárias nem o seu registo no sistema VIES constituem requisitos materiais da isenção de IVA de uma entrega intracomunitária. São apenas exigências formais que não podem pôr em causa o direito do alienante à isenção de IVA, na medida em que os requisitos materiais de uma entrega intracomunitária estejam verificados (v., por analogia, acórdãos de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona, C‑273/11, EU:C:2012:547, n.º 60; de 27 de setembro de 2012, VSTR, C‑587/10, EU:C:2012:592, n.º 51; e de 20 de outubro de 2016, Plöckl, C‑24/15, EU:C:2016:791, n.º 40)” (cf. § 32 do Acórdão do TJUE proferido em 2017-02-09, no processo C‑21/16, Euro Tyre BV – Sucursal em Portugal contra Autoridade Tributária e Aduaneira, disponível para consulta em https://curia.europa.eu/).
Secundando a supracitada jurisprudência do TJUE, também o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciou inequivocamente sobre esta matéria, no sentido de que “O registo do adquirente dos bens como sujeito passivo de IVA no Estado membro de entrega, constitui uma exigência formal que, de per si, não põe em causa o direito do fornecedor à isenção do IVA, verificados que estejam os requisitos materiais, de fundo, do direito à isenção de IVA de uma entrega intracomunitária na acepção do artigo 138.º, n.º 1, da Diretiva IVA” (cf. Acórdão do STA proferido em 2018-05-03 no proc. 0696/17, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Com efeito, apenas por força da alteração introduzida no n.º 1 art. 138.º da DIVA pelo art. 1.º da Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho de 4 de dezembro de 2018 é que o registo do número de identificação IVA do adquirente dos bens no VIES atribuído por um Estado-Membro diferente do Estado de partida do transporte dos bens passou a constituir condição substantiva para a aplicação da isenção (cf. neste sentido veja-se o Acórdão do STA proferido em 2020-12-16 no proc. 0451/10.2BEBRG, disponível para consulta em www.dgsi.pt), resultando atualmente da alínea b) daquela disposição que “Os Estados-Membros isentam as entregas de bens expedidos ou transportados, para fora do respetivo território mas na Comunidade, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, se estiverem reunidas as seguintes condições: (…) O sujeito passivo ou a pessoa coletiva que não seja sujeito passivo a quem a entrega é efetuada está registado para efeitos do IVA num Estado-Membro diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens e comunicou esse número de identificação IVA ao fornecedor.”
Nem se diga, como a Recorrente, que se deve aqui relevar a circunstância de a Administração alegadamente ter, no âmbito do procedimento de inspeção, “… pedido que fossem apresentados documentos comprovativos que permitissem validar aquelas operações, quer ao nível da natureza do cliente, quer ao nível da efectiva saída dos bens do território nacional” (cf. conclusão K, das alegações de recurso), se da fundamentação expressa dos atos de liquidação nada resulta para além na questão do registo do adquirente para efeitos de aquisições comunitárias (cf. ponto B, da fundamentação de facto).
Por outro lado, como é sabido e vem sendo explicitado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores à saciedade, atenta a circunstância de a impugnação judicial dos atos de liquidação de tributos ser uma ação de mera anulação, um ato não fundamentado ou insuficientemente fundamentado, não pode ser alvo de uma tentativa de fundamentação a posteriori, na fase contenciosa, pois o tribunal encontra-se limitado à sua apreciação como ele foi emitido pela Administração fiscal (cf. neste sentido o Acórdão proferido pelo STA em 2020-10-28, no proc. 02887/13.8BEPRT, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Donde, não resta senão concluir, como na sentença, que os atos de liquidação de IVA impugnados padecem de erro de direito nos pressupostos, por errada interpretação do disposto no art. 14.º do RITI.
Assim sendo, e em face do exposto, há que concluir nada haver a censurar à sentença sob recurso, devendo por isso julgar-se o presente recurso totalmente improcedente.
*
A Recorrente vem ainda requerer que, e atento o valor da causa, seja dispensada do remanescente das custas.
Uma vez que ali nada é apontado relativamente à sentença sob recurso, interpretam-se as suas alegações de recurso neste segmento como respeitando, somente, às custas devidas pelo presente recurso.
Dispõe-se no n.º 7 do artigo 6.º do RCP que nas causas de valor superior a EUR 275.000,00, como é o caso, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento, pelo que as situações a que a lei concretamente se refere são meramente exemplificativas.
No caso a dispensa do remanescente da taxa de justiça devida justifica-se atendendo a que conduta processual das partes na presente instância de recurso não é merecedora de qualquer censura ou reparo, sendo que o concreto valor das custas a suportar calculado sobre a base tributável de EUR x a que corresponde o valor da causa, revelar-se-ia de outro modo desproporcionado relativamente ao concreto serviço público prestado.
Em face do exposto, deverá o remanescente da taxa de justiça ser desconsiderado nas custas do presente recurso, nos termos do disposto no supracitado n.º 7 do artigo 6.º do RCP.
***
Atento o decaimento da Recorrente, é sua a responsabilidade pelas custas, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT.
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Conclusão:
Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:
I. Atendendo a que apenas por força da alteração introduzida no n.º 1 art. 138.º da DIVA pelo art. 1.º da Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho de 4 de dezembro de 2018 é que o registo do número de identificação IVA do adquirente dos bens no VIES atribuído por um Estado-Membro diferente do Estado de partida do transporte dos bens passou a constituir condição substantiva para a aplicação da isenção de IVA nas transações intracomunitárias, para negar tal isenção antes da introdução de tal alteração não bastava à Administração fiscal a mera referência à falta de registo no sistema VIES do número de identificação fiscal do adquirente dos bens.
II. Atenta a circunstância de a impugnação judicial dos atos de liquidação de tributos ser uma ação de mera anulação, um ato não fundamentado ou insuficientemente fundamentado, não pode ser alvo de uma tentativa de fundamentação a posteriori, na fase contenciosa, pois o tribunal encontra-se limitado à sua apreciação como ele foi emitido pela Administração fiscal.
III. A dispensa do remanescente da taxa de justiça devida justifica-se quando a conduta processual das partes não é merecedora de qualquer censura ou reparo, e o concreto valor das custas a suportar, calculado sobre a base tributável de montante superior a um milhão de euros a que corresponde o valor da causa, se revelaria de outro modo desproporcionado relativamente ao concreto serviço público prestado.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao presente recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça na presente instância recursiva.

Porto, 9 de novembro de 2023 - Margarida Reis (relatora) – José Coelho – Carlos de Castro Fernandes (em substituição).