Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00372/08.9BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/08/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Tiago Miranda
Descritores:IRS;
CORRECÇÕES TÉCNICAS;
Sumário:
I – O artigo 640º nºs 1 e 2 do CPC faz impender sobre o recorrente em matéria de apreciação da prova o ónus de delimitar positivamente o que em seu entender são factos indevidamente provados ou indevidamente não provados, a decisão que devia ter sido tomada e os meios de prova determinantes, chegando ao ponto de lhe impor, no caso da prova verbal gravada (com é o caso) sob pena de “imediata rejeição (…) do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” [nº 2 alª a)]. Se a alegação não cumpre com tais requisitos o Tribunal ad quem não pode apreciar o recurso em matéria de apreciação da prova.

II – Uma vez julgados provados, independentemente de quem tinha esse ónus, factos que permitem concluir, para lá de qualquer dívida razoável, que o facto tributário (na esfera do contribuinte) não ocorreu, cumpre anular o acto que o tributou.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I - Relatório
A Fazenda Pública interpôs o presente recurso de apelação relativamente à sentença proferida em 23 de Março de 2010, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou procedente a impugnação apresentada por «AA», NIF ...90 residente no lugar ..., ..., contra a liquidação adicional de IRS relativamente ao ano de 2003, no valor de 50 667,90 € €, de que foi objecto, resultante de correcções aos valores declarados, com recurso a correcções técnicas.

Da sua alegação seleccionamos e transcrevemos as CONCLUSÕES:
«A. A douta sentença do Tribunal a quo faz uma errónea interpretação dos factos, decidindo a anulação do acto tributário impugnado, por entender que a Administração Tributária não logrou comprovar o destino do montante ora em crise.
B. O presente recurso é interposto contra a douta sentença porquanto, ao contrário do doutamente decidido, entende a Fazenda Pública que a Administração Tributária no decurso iter procedimental carreou factos suficientes e credíveis que lhe permitiram extrair que o beneficiário do montante de €225.000,000 foi o ora Impugnante,
C. Dando o douto tribunal como provada e não provado factos que assim não poderão ser considerados.
D. O douto Tribunal considerou erradamente que as testemunhas do impugnante mostraram-se credíveis e coerentes,
E. Contrariamente, considera a Fazenda Pública que a prova testemunhal não se mostrou credível e ou isenta de interesse no presente pleito,
F. Até porque se mostrou contrária à prova documental junta aos autos pela Fazenda Pública, em sede de alegações escritas, designadamente o documento I, em que atesta a [SCom01...] que efectivamente procedeu ao encerramento do posto em 31-12-2002.
Por outro lado,
G. O acto tributado ora em crise não permite a comprovação dos factos invocados somente por meio de prova testemunhal, face às restrições ao princípio da livre apreciação da prova.
H. O princípio da livre admissibilidade dos meios de prova anda estritamente ligado ao princípio da livre apreciação da prova e ambos sofrem limitações de relevo, nomeadamente quando a lei exige um documento, autentico ou particular, como forma da declaração negocial,
I. E não se diga que no caso presente poderia ter havido um mero ajuste verbal, porque quanto mais não seja, estava a sociedade obrigada a deter um qualquer documento de quitação respeitante à alegada compensação.
J. Atente-se para o facto de estarmos perante duas sociedades, sujeitos passivos de imposto que obrigatoriamente necessitam de ter a sua contabilidade devidamente fundamentada.
K. Na factualidade dada como provada considerou o douto tribunal que, a falta do acordo por ajuste verbal alegada pelo Impugnante entre a sociedade [SCom02...] e a sociedade [SCom03...] traduziría-se (SIC) num impedimento na celebração do contrato de exploração do posto de abastecimento entre a [SCom02...] e a [SCom04...],
Ora,
L. Mais uma vez incorreu o douto tribunal em incorrecta apreciação dos factos,
Isto porque,
M. Ressalta dos documentos juntos ao probatório, assim como do referenciado pelo Impugnante na douta petição inicial, tal incorrecção.
N. Tendo-se realizado o contrato da sociedade [SCom02...] com a [SCom01...] em 02-01-2003, ou seja posterior à data dos alegados pagamentos - 06-01-2003 a 10-01-2003,
O. Como se compreende que o pagamento de tão elevado montante - €225.000,000 - tenha sido efectuado com a convicção da sua obrigatoriedade para a resolução do contrato de cessão de exploração da [SCom03...] com a [SCom01...],
P. Se anteriormente a esse pagamento tenha sido realizado o contrato de cessão de exploração da sociedade [SCom02...] com a [SCom04...]?
Q. Simplesmente não se compreende.
R. No que concerne à factualidade dada como não provada pelo douto tribunal à quo no que respeita às declarações em sede de procedimento inspectivo por parte dos legais representantes da sociedade [SCom03...], mais uma vez padece de vício o pelo douto tribunal decidido.
S. As afirmações prestadas pelos mesmos encontram-se devidamente comprovadas pelos documentos juntos aos presentes autos, assim como pela falta de comprovação por parte da impugnante da inveracidade de tais informações.
T. Declararam «BB» e «CC» (cfr. fls. 116 a 119 do Processo Administrativo - doravante somente PA junto aos autos) que não existiu qualquer trespasse ou qualquer outro negócio que não o da venda de equipamento e artigos existentes, propriedade da [SCom03...], os quais foram devidamente contabilizados e pagos por cheque - cfr. fls. 122 a 139 do PA;
U. Assim como acrescentaram, que não detinha a [SCom03...], o direito ou possibilidade de proceder a um trespasse na medida em que tal não era permitido por contrato efectivado por escritura pública - cfr. cláusula décima do contrato de cessão de exploração a fls. 158 do PA junto aos autos.
V. Por outro lado, declararam não ter sido por vontade da empresa o abandono do posto, uma vez que foi o mesmo lacrado e fechado pela [SCom04...] em 31-12-2002,
W. Afirmações confirmadas pela [SCom04...] a doc. I junto aos presentes autos pela Fazenda Pública em sede de alegações escritas.
X. Desta forma, as declarações prestadas pelos legais representantes da sociedade [SCom03...] teriam que ter sido devidamente consideradas como factualidade provada e tidas em consideração na decisão ora litigada.
Y. Segundo o Mm° Juiz do Tribunal a quo e face ao disposto no artigo 75° n.° 1 da LGT, as declarações do contribuinte presumem-se verdadeiras, cessando porém tal presunção nas situações a que alude o n ° 2 do artigo 75 da LGT,
Z. Determina o n ° 1 do art. 65° do CIRS, que o apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes, sendo que, se a administração tributária não demonstrar a falta de correspondência entre o teor de tais informações e a realidade, o seu conteúdo terá de ser considerado verdadeiro.
AA. Cessando, no entanto, essa presunção nos termos das alíneas expressas no n.° 2 do artigo 75° da LGT,
BB. Nomeadamente, e ao que nesta parte nos interessa, a alínea a), quando as declarações revelarem omissões que não permitam o conhecimento da matéria tributável real do contribuinte.
Porém,
CC. Tal previsão não obriga à aplicação de métodos indirectos, sendo que, no caso aqui sub judice ter procedido a Administração Tributária à avaliação directa, através de meras correcções aritméticas.
DD. Na senda do pugnado pela Fazenda pública, o ilustre conselheiro Jorge Lopes de Sousa in CPPT anotado e comentado, Vol. I em anotação ao artigo 59° refere: “De qualquer forma, mesmo que não venha a ser feita a utilização de métodos indirectos de avaliação, será ao contribuinte que caberá demonstrar os factos relevantes para a fixação da matéria colectável, nos pontos em que há deficiências nas declarações, contabilidade ou escrita’’
EE. No douto aresto, considerou o douto tribunal a quo que a Administração Tributária entendeu que, não se apurando qual o destino concreto do montante em questão, se deve considerar estar perante adiantamentos por conta dos lucros,
FF. Mais considerando que a Administração Tributária não apurou pela positiva o destino do dinheiro em causa.
Ora,
GG. Pelo conspecto do relatório dos SIT, assim como pela contestação, não se depreende tal conclusão.
HH. Do relatório dos SIT poderá extrair-se com clareza que as causas fundamentadoras da sua actuação advieram dos seguintes factos:
a) Inexistência de qualquer suporte documental válido e justificativo do registo contabilístico efectuado, designadamente contrato de trespasse ou recibo/documento de quitação emitido pelo beneficiário dos cheques - cfr. pag. 2 e 8 do relatório dos SIT a fls. 98 e 102 do PA junto aos autos;
b) Procedimento de inspecção efectuado em sede da sociedade trespassante, de onde consta termo de declarações de «BB» e «CC», representantes legais da sociedade [SCom03...], Lda., demonstrando a falta de revelação contabilística dos movimentos financeiros atinentes ao montante em crise - cfr. pag. 3 do relatório dos SIT, a fls. 99, do PA junto aos autos.
c) Existência de contrato de cessão de exploração, formalizado através de escritura com a sociedade [SCom03...], em 2-12-1993 no Cartório Notarial ..., em que era impedido à sociedade [SCom03...] a transferência ou cedência no todo em parte dos direitos e obrigações emergentes do contrato - cfr. fls. 158 do PA junto aos autos
d) Somente a [SCom04...] detinha legitimidade para querendo permitir à sociedade “[SCom02...], Lda.” acesso às instalações.
e) Os cheques sobre o Banco 1... foram levantados em numerário pelo ora impugnante - cfr. fundamentação aposta na pag. 2 do relatório dos SIT a fls. 98 do PA junto aos autos.
II. Concluindo dessa forma os SIT de acordo com os elementos carreados para o procedimento inspectivo, que o beneficiário dos 3 cheques foi o ora impugnante, por levantamento dos mesmos em 06 de Janeiro de 2003 (cheque n.° ...22 e 08 de Janeiro de 2003 (cheques n.° ...23 e ...24).
Assim,
JJ. A actuação da Administração Tributária não se fundamentou em mera presunção,
KK. Mas sim em factualidade concreta e segura, tendo os SIT coligido no procedimento inspectivo factos comprovativos do beneficiário último de tal montante.
LL. Por tudo o que foi dito, a demonstração dessa factualidade resulta de forma inequívoca, na comprovação do destino de tal montante.
MM. Incumbindo ao Impugnante demonstrar os factos relevantes para a fixação da matéria colectável,
NN. Tal como estatuído no artigo 516° do CPC, “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita" da situação real tributária.
PP. A prova testemunhal e documental carreada nos autos pelo Impugnante não logrou comprovar a existência do efectivo pagamento à sociedade [SCom03...] do montante de €225.000,00.
QQ. A AT coligiu no procedimento inspectivo factos seguros de que o beneficiário do montante de €225.000,00 foi o ora Impugnante.
RR. Não se verificando a ilegalidade sentenciada, a douta sentença padece de erro de julgamento no âmbito da valoração da prova produzida devendo considerar-se válido o acto tributário de liquidação e, como tal, manter-se na ordem jurídica.
Nestes termos,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, com as Legais consequências»

Notificados, os Impugnantes responderam à alegação, concluindo nos seguintes termos:
«(…)
EM FACE DO QUE FICA DITO.
a recorrente negligenciou qualquer tipo de investigação, tendo apenas recolhido os depoimentos dos beneficiários das quantias, deles fazendo o paradigma da verdade, que de novo tentou passar no presente recurso.
Assim, e como se referiu, segundo os doutos ensinamentos do Professor Diogo Leite Campos, a ausência das diligências necessárias que a A.F. deveria ter levado a efeito, gera uma ilegalidade de decisão.
Da mesma forma a AF não se demonstrou ter obtido qualquer elemento de prova que legitimasse a conclusão de antecipação de lucros a favor do impugnante.
Como refere Lima Guerreiro, ob. cit. “existência da regra sobre o ónus da prova (...) não é incompatível com o dever de a administração de acordo com o princípio do inquisitório e a própria legalidade fiscal, ordenar oficiosamente as diligências probatórias indispensáveis ao apuramento da verdade material. Ou seja, as regras do ónus da prova do presente artigo coexistem com o princípio do inquisitório.
AQUI CHEGADOS.
Será forçoso concluir que A.F. não especificou, demonstrou ou provou os pressupostos em que assentaram as correcções efectuadas à matéria colectável, e que legitimam a liquidação do IRS, pelo que o acerto da decisão recorrida resulta também da conclusão final de que “perante o non linquet (SIC) reconhecidamente verificado, ou seja, face à falta de comprovação dos factos relativos ao destino dos montantes em causa não poderia a Administração tributar acrescentámos nós, por violação conjunta dos Princípios da Verdade Material e cumprimento do ónus da Prova (art. 58° e 74° LGT).
A decisão em recurso não merece qualquer censura, (…).


O Digno Magistrado do Ministério Público neste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da procedência do Recurso, redutível ao seguinte excerto:
«(…)
Inconformada com o decidido na sentença, dela vem recorrer a FP fundamentando-se, em síntese, no seguinte:
1. O tribunal “a quo” fez incorrecto julgamento da matéria de facto constante dos pontos 13 a 25, inclusive, e 27, inclusive, a 39, já que erroneamente credibilizou os depoimentos das testemunhas arroladas pelo impugnante. Na verdade, estes depoimentos contrariam a prova documental junta aos autos no sentido de que tendo ocorrido o encerramento do posto de venda de combustíveis, em data anterior ao desconto dos cheques, cujos valores subjazem ao facto tributário, impossível se tomava concluir que os montantes titulados pelos mesmos foram meio de pagamento de trespasse desse estabelecimento comercial.
2. Por outro lado, se houve algum contrato de trespasse, por ajuste verbal, impunha-se que o mesmo fosse comprovado por prova documental, posto tratar-se de contribuinte sujeito a contabilidade organizada.
3. Acresce que nem os montantes titulados pelos cheques em causa poderiam constituir o preço do trespasse do posto de venda de combustíveis, porque a formalização do contrato de cessão de exploração do dito posto com a [SCom01...], a favor da sociedade emitente dos cheques, correu em data anterior ao levantamento dos montantes desses mesmos cheques.
4. Incorreu também a douta sentença em erro de julgamento da matéria de facto ao recusar dar como provados os factos acobertados pelas declarações dos representantes da sociedade [SCom03...], porque a factualidade subjacente a tais depoimentos foi confirmada documentalmente pela inspecção tributária estendida à dita sociedade, pois que dessa inspecção resultou a inexistência na respectiva contabilidade de qualquer trespasse do posto de venda de combustíveis, mas apenas o proveito da venda de algum equipamento à sociedade representa pelo impugnante, pago por cheque.
5. Por outro lado, quer o documento n.° 1, junto pela FP em sede de alegações escritas, quer o clausulado do contrato de cessão de exploração do estabelecimento a favor da [SCom03...], confirmam a inexistência do pretenso contrato de trespasse a favor da sociedade representada pelo impugnante, afastando, assim, a hipótese de os montantes submetidos à tributação ora impugnada, constituírem o pagamento de um contrato de trespasse.
6. Efectuada a correcção do julgamento da matéria de facto, a correcta subsunção jurídica da situação fáctica apurada ao direito aplicável, impõe concluir pela legalidade do acto tributário, por imposição do art. 75.°, n.° 2 da LGT, 59.° do CPPT e do dispositivo legal da repartição do ónus da prova, consignado no art. 516.° do CPC.
7. Na verdade, as causas fundamentadoras da actuação da AT na elaboração do relatório inspectivo subjacente à liquidação impugnada, as quais foram aceites pelo probatório, apontam claramente no sentido de que o beneficiário dos montantes representados pelos três cheques em questão, no total de 225.000 Euros, foi o impugnante, que não incluiu na respectiva declaração de rendimentos para efeitos de IRS.
8. Nessa conformidade, por força das disposições legais supracitadas, incumbia ao impugnante demonstrar os factos relevantes para a fixação da matéria colectável, e nessa tarefa, para que o montante de 225.000 Euros não estivesse submetido à tributação em IRS, competia-lhe demonstrar que o mesmo constituiu um custo correspondente ao pagamento, à sociedade [SCom03...], do preço do trespasse do posto de venda de combustíveis.
A nosso ver o recurso merece provimento.
Ao longo do procedimento tributário e da presente lide processual, o impugnante sustentou que não há matéria tributável relevante para suportar a legalidade da liquidação ora impugnada, porque os montantes titulados pelos cheques ...22, ...23 e ...24, sacados sobre a contra da sociedade “ [SCom02...], SA, de que é sócio-gerente e administrador, não se integraram no património dele impugnante, antes serviram para pagar à “ [SCom03...] “ o trespasse, a favor daquela, do posto de comercialização de combustíveis, sito na Avenida ..., em ....
Só que a AT., através dos SIT, em sede do registo contabilístico, quer da sociedade “[SCom02...], SA, quer da “[SCom03...]” (pretensa beneficiária dos montantes subjacentes ao acto tributário em crise), apurou precisamente o contrário. Na contabilidade da sociedade “[SCom02...]” constava na conta 43 (imobilizado incorpóreo) a verba de 225.000 euros, por contrapartida da conta 12 - “Depósitos à ordem”, justificando-o com a apresentação de três cheques, no valor de 225.000 Euros, emitidos sobre o Banco 1....
Na contabilidade da pretensa trespassante ([SCom03...]) detectou a inexistência de qualquer suporte documental válido e justificativo dos movimentos financeiros relacionados com a formalização do alegado trespasse e atinentes aos montantes dos cheques em causa, alegadamente entregues em numerário para o referido pagamento.
Carreou, portanto, a AT factos-índice, concretos e seguros, de que a verba de 225.000 Euros, registada na contabilidade da sociedade “[SCom02...]” na conta 43 (Imobilizado incorpóreo ), teve como contrapartida o montante do mesmo valor, registado na sua contabilidade na conta 12 ( depósitos à ordem ), documentado por três cheques, com o valor individual de 75.000 Euros, emitidos sobre o Banco 1..., mas que foram sacados em numerário pelo impugnante, que é um dos accionistas e administrador da titular dos cheques.
Assim, e uma vez que a contabilidade das empresas goza da presunção de veracidade até prova em contrário, os montantes ora em causa pertenciam à sociedade “[SCom02...] “, mas saíram da respectiva contabilidade e esfera jurídica com destino ao património do impugnante, que é accionista e administrador daquela, pois que está documentado que os cheques que titulavam tal verba foram sacados em numerário pelo impugnante.
Nessa conformidade, se a entrega dos referidos montantes tem outra justificação legal, para além daquela que o acto tributário acolheu para a sua fundamentação - entrega por conta ou adiantamento de lucros - ao impugnante competia fazê-la, perante os pressupostos legitimadores da tributação operada pela AT. Mas essa prova o impugnante não fez, apesar de o probatório apontar em sentido oposto, porque o que revela o relatório inspectivo - também parcialmente assente no probatório - é que não havia qualquer justificação para que a pretensa destinatária dos valores dos cheques em questão - a [SCom03...] - contratualizasse, sequer verbalmente, um trespasse do posto de venda de combustíveis a favor da “ [SCom02...] “, porque não era titular de qualquer direito de propriedade sobre o dito estabelecimento, o qual ate já se mostrava selado pela [SCom01...]. Na referida conformidade, os pontos 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 38 do probatório, concludentes no sentido de que os montantes titulados pelos cheques foram entregues em numerário aos sócios da “[SCom03...]”, em pagamento do acordo de cessação da exploração do posto de combustíveis, imprescindível para que a “[SCom02...]” conseguisse da “[SCom01...]” a formalização do contrato de cessão de exploração sobre o mesmo, não se mostram correctamente decididos. Contrariam a realidade fáctica documentada nos autos, que é no sentido da impossibilidade legal de a “[SCom03...]” ceder qualquer direito sobre o posto de venda de combustíveis em questão, além de que se acobertam em depoimentos prestados por quem, mercê das relações de parentesco ou de índole comercial, não tem credibilidade bastante.
Portanto, e em conclusão, tem razão de ser a correcção do julgamento da matéria de facto nos termos supra-referidos.
E efectuada a referida correcção, impõe-se a subsunção jurídica no sentido da legalidade do acto tributário impugnado, porque foram comprovados factos concretos seguros e objectivos no sentido de que os montantes subjacentes ao acto de liquidação não constituíam custos empresariais, ficando, então a cargo do impugnante demonstrar os factos relevantes para a fixação da matéria colectável de forma diferente, o que não fez minimamente.
Irrecusável é, então, considerar válida a liquidação impugnada, por imposição das disposições conjugadas dos art. 75.°, n. 2 da LGT e do art. 59.° do CPPT»

Dispensados os vistos, nos termos do artigo 657º nº 4 do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II- Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelo objecto das conclusões das alegações.
Assim, cingindo-nos ao teor das conclusões, as questões colocadas ao Tribunal de Recurso são as seguintes:

1ª Questão:
O tribunal “a quo” fez incorrecto julgamento da matéria de facto, já que:
a) credibilizou os depoimentos das testemunhas arroladas pelo impugnante, apesar de estes contrariarem a prova documental junta aos autos no sentido de que tendo ocorrido o encerramento do posto de venda de combustíveis em data anterior ao desconto dos cheques cujos valores subjazem ao facto tributário, impossível era concluir que os montantes titulados pelos mesmos foram meio de pagamento de trespasse desse estabelecimento comercial?
b) não deu como provados os factos acobertados pelas declarações dos representantes da sociedade [SCom03...], porque a factualidade subjacente a tais depoimentos foi confirmada documentalmente pela inspecção tributária estendida à dita sociedade, pois que dessa inspecção resultou a inexistência, na respectiva contabilidade, de qualquer trespasse do posto de venda de combustíveis, mas apenas o proveito da venda de algum equipamento à sociedade representa pelo impugnante, pago por cheque?

2ª Questão
De qualquer modo, mesmo em face do probatório, incorreu, a sentença recorrida, em erro de julgamento de direito, designadamente em violação dos artigos 75.°, n.° 2 da LGT, 59.° do CPPT e do dispositivo legal da repartição do ónus da prova, consignado no art. 516.° do CPC porque, por força das disposições legais supracitadas, era ao Impugnante que incumbia provar que o montante de 225 000 €, levantado mediante os cheques, constituía um custo correspondente ao pagamento, à sociedade [SCom03...], do preço do trespasse do posto de venda de combustíveis?

III – Apreciação do Recurso
Para a discussão do recurso releva, antes de mais, a decisão em matéria de facto, que foi a seguinte:
«Matéria de facto provada:
1- A liquidação impugnada surge na sequência de procedimento inspectivo externo realizado ao sujeito passivo "[SCom02...] SA", originado pelo Processo de Inquérito n.º .....2/07.1TAFLG, que deu origem a acção inspectiva interna a coberto da Ordem de Serviço ...13 ao ora impugnante.
2- As correcções em crise respeitam a alteração aos rendimentos declarados pelo impugnante atinentes ao ano de 2003, efectuadas pelos Serviços de Inspecção Tributária (SIT], tendo estes concluído que ao impugnante foi pago o montante de €225.000,00, a título de adiantamentos por conta de lucros, distribuídos por aquela sociedade.
3- No âmbito de procedimento inspectivo realizado ao sujeito passivo "[SCom02...], SA”, verificaram os SIT ter esta procedido à emissão de 3 cheques, no valor de €75.000 cada um, perfazendo o montante total de €225.000,00, cujo levantamento em numerário foi efectuado pelo ora impugnante.
4- O SIT entenderam ser o impugnante o seu beneficiário único, face à falta de comprovação dos factos alegados como justificação do seu destino.
5- Em ambos os procedimentos inspectivos, os SIT chegaram às seguintes conclusões:
a. A sociedade "[SCom02...]", procedeu ao registo na conta 43 - "Imobilizado Incorpóreo", da verba de €225.000,00, do Plano Oficial de Contas, vulgarmente designado por POC, por contrapartida da conta 12 - "Depósitos à ordem", justificando-o com a apresentação de três cheques, no valor de €75.000,00 cada um, emitidos sobre o Banco 1..., cujo levantamento foi efectuado em numerário pelo accionista e administrador, ora impugnante.
b. Perante a questão por parte dos SIT relativamente ao destino de tal importância, o impugnante, enquanto administrador da empresa, alegou que tal montante se destinou ao pagamento à sociedade "[SCom03...], Lda." (doravante designada somente por [SCom03...]], valor respeitante ao preço pela cedência de exploração de um posto de abastecimento de combustível da [SCom01...], sito em ....
c. Referiu ainda o impugnante que tal pagamento se efectuou em numerário por motivo de exigência de liquidação "em notas”, expressa dos representantes da "[SCom03...]", e que o não cumprimento desse requisito, inviabilizaria o negócio, assim como ter sido por imposição negocial que não foi formalizado qualquer contrato de trespasse.
d. Da análise efectuada aos elementos contabilísticos da "[SCom03...]", ao abrigo do Despacho ...72, verificaram os SIT a inexistência de registos relativos à entrada da quantia ora em causa;
e. Ouvidos em termo de declarações os sócios da "[SCom03...]" declararam estes os seguintes factos:
i. Negaram o recebimento do montante de € 225.000,00, declarando não terem realizado qualquer negócio além da venda de equipamento, para a quitação da qual receberam um cheque;
ii. A venda de equipamento encontra-se devidamente contabilizada e depositado o cheque n.º ...28 em conta bancária do Banco 2... n.º ...01;
iii. Mais afirmaram que nunca poderia ser possível a realização do pretenso negócio com a sociedade "[SCom02...]", uma vez que a empresa "[SCom03...]" não detinha qualquer direito de cedência de exploração do posto, em função do contrato formalizado por escritura pública, assim como ter sido a mesma intimada para deixar as instalações livres e na sequência da sua não aceitação, foi o posto lacrado e fechado pela empresa "[SCom04...]" em 31-12-2002;
iv. Por último declararam que apenas tiveram conhecimento da empresa "[SCom02...]" através da "[SCom04...]".
6- Perante a factualidade supra, concluíram os SIT que a única prova existente do destino dos 3 cheques emitidos pela empresa "[SCom02...]", no montante de €225.000,00, foi o levantamento do dinheiro neles consubstanciado por parte do accionista e presidente do Conselho de Administração, único interveniente nos mesmos identificado, e para o qual reverteu em benefício próprio tal quantia.
7- Tendo sido notificado para querendo, exercer o direito de audição atinente ao projecto de relatório dos SIT, o impugnante exerceu tal direito.
8- Considerando os SIT não ter este apresentado qualquer elemento material adicional, no decorrer das diligencias efectuadas no âmbito do Despacho emitido para o sujeito passivo "[SCom02...]" ou no exercício do direito de audição que permitisse concluir que o beneficiário dos cheques em causa foi a sociedade "[SCom03...]", consideraram os SIT ter o ora impugnante auferido rendimento ao abrigo do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5º do Código do IRS (CIRS), rendimento de capitais, a englobar, para efeitos de tributação, em 50% do seu valor.
9- Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial ..., em 8 de Novembro de 2002, foi constituída a sociedade com a firma “[SCom02...], S.A.", com o NIPC ...66, com sede na Avenida ..., ..., ....
10- 0 capital social da predita sociedade, no montante de € 50.000,00 foi realizado mediante a subscrição de 10.000 acções com o valor nominal de € 5,00 cada, na íntegra em dinheiro na data de constituição da sociedade.
11- No próprio acto constitutivo foi designado como Presidente do Conselho de Administração o aqui impugnante.
12- A referida sociedade tem como objecto social a revenda de combustíveis, tendo-lhe sido atribuído o CAE 050500.
13- A sociedade “[SCom02...]", foi constituída com o fito exclusivo, à data, de tomar de exploração o posto de abastecimento de combustível [SCom01...], sito na Avenida ..., ..., ..., ao tempo explorado pela sociedade comercial "[SCom03...], Lda.".
14- Na sequência de contactos estabelecidos entre os sócios da sociedade "[SCom02...]" e a sociedade "[SCom03...]", foi acordado que esta empresa cessaria a exploração do estabelecimento junto da [SCom01...], com o intuito de em simultâneo a sociedade administrada pelo impugnante iniciar a sua exploração, com base no contrato de exploração formalizado com a [SCom01...], que seria outorgado no mesmo momento da resolução do contrato entre a [SCom03...] e a [SCom04...].
15- Tendo em vista a concretização do negócio, os sócios da sociedade “[SCom03...]" exigiram como contrapartida o pagamento de um preço global de € 272.520,28, fraccionado do seguinte modo:
a. transmissão de bens do activo imobilizado, pelo preço de € 47.520,28;
b. aviamento da empresa, pelo preço de € 225.000,00.
16- Dado que a sociedade administrada pelo aqui impugnante, ao tempo de celebração do contrato, concluído por ajuste verbal, não dispunha de capitais próprios para suportar o preço acordado para a operação, uma vez que nem sequer tinha iniciado a sua actividade comercial, contraiu junto do Banco 1..., sucursal de ..., um empréstimo bancário, no valor de € 225.000,00, destinado ao pagamento do preço combinado para a operação referida.
17- Para garantia da satisfação do direito de crédito do Banco sobre a sociedade "[SCom02...]”, dada a ausência de património, de negócio e de actividade, foi prestada garantia por todos os sócios, na modalidade de fiança.
18- Aprovada a concessão do crédito especialmente garantido pelos sócios da sociedade mutuária, foi efectuado o pagamento do preço acordado com os sócios da "[SCom03...]".
19- Para pagamento das duas primeiras prestações, foram emitidos ao portador os cheques que infra se identificam:
a. cheque do Banco 1..., com o n.º ...22, sacado em 6 de Janeiro de 2003, sobre a conta da empresa "[SCom02...]", no valor de € 75.000,00;
b. cheque do Banco 1..., com o n.º ...23, sacado em 6 de Janeiro de 2003, sobre a conta da empresa "[SCom02...]", no valor de €75.000,00.
20- Para pagamento da terceira prestação foi emitido ao portador um cheque do Banco 1..., com o n.º ...24, sacado em 8 de Janeiro de 2003, sobre a conta da empresa "[SCom02...]", no valor de € 75.000,00.
21- Para pagamento da quarta e última prestação foi emitido o cheque do Banco 1..., com o n.º ...28, no valor de € 47.520,28, sacado em 10 de Janeiro de 2003, sobre a conta da empresa "[SCom02...]", mediante crédito em conta da empresa "[SCom03...]", sediada no banco Banco 2..., com o n.2 8- ...01.
22- 0 valor de € 225.000,00 referente às três primeiras tranches de pagamento, foi realizado em numerário por expressa exigência dos legais representantes da sociedade "[SCom03...]", que concomitantemente exigiram que o acordo alcançado não fosse reduzido à forma escrita, nem fosse emitido documento de quitação.
23- A não observância das imposições supra-referidas inviabilizaria a conclusão do acordo estabelecido e impediria que a sociedade "[SCom02...]" celebrasse com a "[SCom04...]" contrato de exploração do já identificado posto de abastecimento.
24- Esta exigência dos sócios da "[SCom03...]" radicava num conflito interno da empresa, entre sócios, que definiram como pressuposto inultrapassável o pagamento em dinheiro de uma compensação para que a referida empresa rescindisse com a "[SCom04...]" o contrato de concessão, libertando esta gasolineira do vínculo jurídico, o que lhe permitiu - como veio a ocorrer
- celebrar contrato de exploração com a sociedade "[SCom02...]”.
25- Não obstante ter sido solicitada a audição do Gerente do Banco 1... em ..., em momento anterior à tomada de decisão de realização de correcções à matéria colectável, a A.F., considerou "(...) não resultar clara a razão de ciência que justifique tal diligência."
26- Contabilisticamente, a operação contratual em apreço, foi registada no seio da sociedade “[SCom02...]”: por lançamento a débito na conta 4341 trespasse de estabelecimento; por lançamento a crédito na conta 1202 - depósitos à ordem junto do Banco 1....
27- Refira-se ainda que no giro comercial a sociedade "[SCom03...]", era ao tempo dos factos representada por:
a. «CC», com domicílio na Rua ..., ...;
b. «BB», com domicílio na Avenida ..., ....
28- Os contribuintes supra identificados, foram inquiridos em sede de procedimento tributário, alegando que a "[SCom03...]" jamais "(...) teve qualquer negócio com a empresa [SCom02...], S.A., não recebeu qualquer valor pelo trespasse ou qualquer outro tipo de negócio, com excepção da venda de equipamentos e artigos existentes (...) os quais foram devidamente facturados e relacionados e devidamente pagos por cheque e não em numerário, cheque esse que foi devidamente contabilizado e depositado na conta bancária da [SCom03...] (...)."
29- A sociedade "[SCom02...], S.A" foi constituída com o único propósito de explorar o posto de abastecimento supra identificado, não existindo, antes da respectiva exploração, qualquer actividade ou fonte de rendimento ou proveitos.
30- 0s proveitos da sociedade "[SCom02...], S.A." iriam ser aqueles que o posto de abastecimento pudesse gerar, em função do seu desempenho e do aviamento, e teriam como inicial destino pagar as despesas de investimento e os empréstimos contraídos para a sua aquisição e instalação.
31- 0s benefícios seriam "distribuídos" por todos os accionistas como forma de remunerar o seu capital e não apenas um accionista ou administrador em especial.
32- 0 impugnante à data tinha património considerável e suficiente para obter financiamento junto da Banca, não necessitando de qualquer sociedade instrumental.
33- 0 impugnante à data não carecia de financiamentos ou rendimentos extraordinários para gerir nem a sua vida pessoal, nem os seus negócios principais.
34- A sociedade "[SCom02...], S.A", à data, não dispunha de qualquer fonte de receitas, não dispondo de qualquer património financeiro, mobiliário ou imobiliário.
35- Detinha apenas existência jurídica com o propósito já identificado, que a não se verificar, determinaria a dissolução, sem activo nem passivo da sociedade "[SCom02...], S.A.".
36- Após a rescisão do contrato entre a "[SCom04...]" e a "[SCom03...]", esta deixou de ter actividade relevante e de obter qualquer proveito.
37- A sociedade "[SCom02...], S.A” tinha a consciência de que deveria ter exigido um documento comprovativo do pagamento. 
38- Não aceitar a referida solução, implicava renunciar à celebração do contrato com a "[SCom01...]" e renunciar á exploração de um posto de abastecimento bem cotado e bem localizado na cidade ....
39- Em 2003/2004 e 2005, o lucro líquido da sociedade “[SCom02...]
..., S.A" foi de € 638,69 no ano de 2005 e prejuízos líquidos de € 2.135,12 em 2004, não tendo procedido à distribuição de qualquer dividendo aos accionistas, já que a sua situação líquida se mostrava inferior à soma do capital social e das reservas, em obediência ao disposto nos arts. 32 e 33º do Código das Sociedades Comerciais.

Matéria de facto não provada:
1- Os supra-referidos três cheques emitidos ao portador, na data de emissão, foram levantados no balcão do Banco 1... em ... pelo impugnante, mas na presença dos legais representantes de ambas as sociedades participantes na operação, bem como na presença do Gerente do Banco 1... em ....
2- O referido gerente tomou conhecimento dos contornos da operação de negociação realizada a montante do contrato de cedência de exploração entre a sociedade "[SCom02...]" e [SCom01...], tal como testemunhou a operação de levantamento dos cheques supra identificados, seguido da entrega do respectivo valor em numerário aos legais representantes da sociedade "[SCom03...]".

Seleccionada a matéria de facto circundam quam das questões acima enunciadas, abordemo-las.
1ª Questão
O tribunal “a quo” fez incorrecto julgamento da matéria de facto, já que:
a) credibilizou os depoimentos das testemunhas arroladas pelo impugnante, apesar de estes contrariarem a prova documental junta aos autos no sentido de que, tendo ocorrido o encerramento do posto de venda de combustíveis em data anterior ao desconto dos cheques cujos valores subjazem ao facto tributário, impossível era concluir que os montantes titulados pelos mesmos foram meio de pagamento de trespasse desse estabelecimento comercial?
b) não deu como provados os factos acobertados pelas declarações dos representantes da sociedade [SCom03...], porque a factualidade subjacente a tais depoimentos foi confirmada documentalmente pela inspecção tributária estendida à dita sociedade, pois que dessa inspecção resultou a inexistência, na respectiva contabilidade, de qualquer trespasse do posto de venda de combustíveis, mas apenas o proveito da venda de algum equipamento à sociedade representa pelo impugnante, pago por cheque?

Esta questão reconduz-se à alegação de erros na apreciação da prova produzida.
Como tem sido entendido por este Tribunal, os princípios da oralidade e imediação e da livre apreciação da prova (artigos 590º a 606º e 607º nº 5 do CPC) implicam que o julgamento do recurso em matéria de facto, quanto à apreciação de provas que não sejam prova legal, não é um julgamento ex novo, em que se possa fazer tábua rasa do julgamento do juiz da 1ª instância que, esse sim viu, ouviu e apreciou com imediação os depoimentos de testemunhas e declarantes, antes deve ficar-se pela detecção do erros de julgamento revelados pelas “regras da experiência comum” ou logicamente demonstráveis.
Em coerência com este entendimento e para obviar à perplexidade de não haver um objecto concreto e definido para a crítica da decisão de facto, o artigo 640º do CPC, aqui aplicável ex vi artigo 281º do CPPT, faz impender sobre o recorrente em matéria de apreciação da prova o ónus de delimitar positivamente os factos indevidamente provados ou indevidamente não provados, decisão que devia ter sido tomada e meios de prova determinantes, chegando ao ponto de lhe impor, no caso da prova verbal gravada, sob pena de “imediata rejeição (…) do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (nº 2 alª a).
Ora, percorridas as conclusões do recurso, embora se tope com uma indigitação, ainda que genérica, dos meios de prova alegadamente mal apreciados, em momento algum se discrimina os factos que terão sido erradamente julgados provados ou não provados e a decisão que quanto aos mesmos deveria ter sido tomada.
Quer dizer, a recorrente não satisfaz o ónus que sobre si impendia, enquanto recorrente em matéria de facto, por força do artigo 640º do CPC.
Como assim, o tribunal do recurso não pode conhecer desta 1ª questão, pelo que o recurso vai, na correspondente parte, rejeitado.

2ª Questão
De qualquer modo, mesmo em face do seu probatório, incorreu a sentença recorrida em erro de julgamento de direito, designadamente em violação dos artigos 75.°, n.° 2 da LGT, 59.° do CPPT e do dispositivo legal da repartição do ónus da prova, consignado no art. 516.° do CPC porque, por força das disposições legais supracitadas, era ao Impugnante que incumbia provar que o montante de 225 000 €, levantado mediante os cheques, constituía um custo correspondente ao pagamento, à sociedade [SCom03...], do preço do trespasse do posto de venda de combustíveis?

A fundamentação de direito da sentença recorrida, na parte relevante para a questão ora colocada, tem o seguinte teor:
«(…)
A LGT dispõe no artigo 75º:
" 1 - Presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como
os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.
2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:
a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;
b) 0 contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;
c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na presente lei.
d) Os rendimentos declarados em sede de 1RS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89º-A."
Seguidamente dispõe o artigo 81º nº 1 da L.G.T. que:
“A matéria tributável é avaliada ou calculada directamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indirecta nos casos e condições expressamente previstos na lei.".
Por fim, diz o artigo 87º da mesma L.G.T. que:
"A avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de:
a) Regime simplificado de tributação, nos casos e condições previstos na lei;
b) Impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto;
c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar, sem razão justificada, mais de 30% para menos ou, durante três anos seguidos, mais de 15% para menos da que resultaria da aplicação dos indicadores objectivos da actividade de base técnico- científica referidos na presente lei;
d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificada, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89S-A;
e) Os sujeitos passivos apresentarem, sem razão justificada, resultados tributáveis nulos ou prejuízos fiscais durante três anos consecutivos, salvo nos casos de início de actividade, em que a contagem deste prazo se faz do termo do terceiro ano, ou em três anos durante um período de cinco;
f) Existência de uma divergência não justificada de, pelo menos, um terço entre os rendimentos declarados e o acréscimo de património ou o consumo evidenciados pelo sujeito passivo no mesmo período de tributação."
Do quadro legal apresentado resulta que apresentada a declaração de IRS, a mesma presume-se verdadeira, nos termos do artigo 75º 1da LGT, servindo de base à determinação da matéria colectável correspondente, nos termos do artigo 65º do CIRS.
Apenas poderá tal ser alterado, no caso de a Administração Tributária apurar alguma das situações a que alude o artigo 75º/2 da LGT.
Ou seja, e em suma, as declarações do contribuinte presumem-se verdadeiras, servindo de base à liquidação do tributo, cessando, porém, tal presunção nas situações a que alude aquele artigo 75º/2.
Neste caso, cabe ao contribuinte o ónus da prova da demonstração da situação tributária real, ou seja, de provar quantificadamente quais os custos e proveitos que efectivamente teve, ou, então, de demonstrar a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto, o que implicará o recurso à determinação da matéria colectável por métodos indirectos.
No presente caso verifica-se que o impugnante apresentou a sua declaração de IRS para o ano de 2003, na qual não consta qualquer distribuição ou adiantamento de lucros, efectuada pela sociedade "[SCom02...]”.
Tal declaração presume-se verdadeira, nos termos do artigo 752/l da LGT, servindo de base à determinação da matéria colectável correspondente.
Realizada acção inspectiva, a Administração Fiscal entendeu que se verificavam indícios fundados de que aquela declaração não reflectia a matéria tributável real do sujeito passivo.
Por isso procedeu às correcções que, no seu entendimento, ao caso se impunham.
Trata-se, portanto, de saber se tal decisão é ou não, total ou parcialmente, correcta.
Em causa nos autos está o levantamento pelo impugnante de 3 cheques ao portador, emitidos pela sociedade "[SCom02...]", da qual o impugnante era sócio, gerente e presidente do conselho de administração.
Entende a Administração Tributária que, não se apurando qual o destino concreto daqueles montantes, se devem estes considerar adiantamentos por conta dos lucros, tributando-os como tal em se de IRS do impugnante. Que foi, de facto, este o entendimento da Administração Tributária, resulta do ponto 4 dos factos acima dados como provados, que decorre directamente do teor do ponto 5 da contestação. Com efeito, se é certo que a Administração Tributária considerou insuficiente a prova apresentada pelo impugnante quanto ao destino do dinheiro em causa, menos certo não é que a mesma não apurou, pela positiva qual foi esse destino. Limitou-se a tirar de um facto conhecido - o levantamento dos cheques pelo impugnante - um facto desconhecido - a apropriação dos montantes titulados por aqueles. Ou seja, face à falta de prova com que se deparou, presumiu.
Ressalvado o respeito devido a outros entendimentos, entende-se que não lhe assiste, de todo razão.
Desde logo, não lhe assiste razão porquanto, devidamente ponderados todos os elementos de prova disponíveis, é possível determinar, para lá de qualquer dúvida razoável, qual o destino dos montantes em causa. E se dúvidas houvesse, ainda assim, cumpria à Administração Tributária, para fundamentar devidamente a sua pretensão tributadora, esclarecê-la, através da investigação das contas bancárias dos intervenientes no negócio.
No entanto, mesmo que a situação fosse a (erradamente) figurada pela Administração Tributária, ou seja, a de não se apurar qual o destino concreto das quantias em causa, não lhe seria lícito avançar, como avançou, para a sua tributação em sede de IRS.
É que é a Administração Tributária que incumbe demonstrar os pressupostos da tributação de que pretende beneficiar.
Tal só não é assim, no caso de a mesma beneficiar de algum tipo de presunção, o que não é o caso. Designadamente, não se aplica aqui o art.2 6.2/4 do CIRS, porquanto a operação em causa não se encontra inscrita na contabilidade da sociedade como lançamento em qualquer conta-corrente relativa ao impugnante.
Deste modo, perante o non liquet reconhecidamente verificado, ou seja, face à falta de comprovação dos factos relativos ao destino dos montantes em causa, não poderia a Administração Tributária tributar.»

Em face deste discurso tem-se de entender que o Mº Juiz a quo, embora não tenha descrito expressamente o destino que teve o dinheiro, julgou que os factos provados sob os artigos 13º a 16º e 22º a 24, permitiam concluir que o numerário levantado pelo Impugnante mediante os cheques da sociedade [SCom02...] S.A. servira para pagar o negócio entre esta e a sociedade [SCom03...], descrito no artigo 14º da especificação dos factos provados.
Assim sendo, o fundamento primário da decisão recorrida não releva de uma aplicação de quaisquer regras de ónus da prova, mas sim de um juízo segundo o qual era “possível determinar, para lá de qualquer dúvida razoável” o destino que teve o dinheiro levantado, a saber, a sociedade [SCom03...], mediante os seus legais representantes identificados na fundamentação de facto.
Acontece que este facto não foi discriminado como provado ou não provado. Do que se trata aqui é de um juízo, uma ilação, que não está a salvo da critica do recurso em matéria de direito.
Porém, em face da matéria de facto julgada provada, que, como vimos, está a salvo deste recurso, designadamente dos sobreditos artigos, julgamos ser de acompanhar a ilação tirada pelo Mº Juiz a quo.
Não se diga que da contabilidade da [SCom03...], onde não há vestígio da entrada de tais proveitos, resulta o contrário da conclusão do Mº Juiz a quo. Se não há vestígio da entrada de tais proveitos nas contas da [SCom03...], então, ao menos para o Mº Juiz a quo e para este Tribunal de Apelação, não é verdade o que resulta dessa contabilidade, quer dizer, esse proveito foi ocultado, se é que não foi apropriado por algum, alguns ou todos os sócios gerentes da [SCom03...].
Não se diga, ainda, que o sobredito destino do dinheiro era improvável, por não ter ocorrido qualquer trespasse do estabelecimento, quer porque não fora feita a correspondente e necessária forma escrita, quer porque a [SCom03...], exploradora do posto, não gozava do direito a ceder a sua posição contratual, quer porque a [SCom01...] selara o mesmo antes da emissão e do levantamento dos cheques. É que o negócio que se discriminou como provado sob o artigo 14º e de que o dinheiro levantado mediante os sobreditos cheques era a contrapartida da [SCom02...] S.A. não correspondia ao contrato de trespasse de um estabelecimento comercial.
Assim, estava adquirida no processo a prova de factos suficientes para se concluir, para lá de toda a dívida razoável, que o facto tributável (no que concerne ao Impugnante ora Recorrido) não ocorrera, pelo que bem andou o Mº Juiz a quo em anular as li quidações impugnadas com tal fundamento.
Do exposto resulta ser negativa a resposta à presente questão, ficando prejudicada a apreciação da mesma do ponto de vista do alegado erro na aplicação das regras legais sobre a repartição do ónus da prova.

Conclusão
Do julgado quanto às duas questões supra expostas e discutidas resulta a improcedência do recurso.


IV – Custas
As custas são responsabilidade da Recorrente, conforme decorre do artigo 527º do CPC.

V- Dispositivo
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal em julgar improcedente o recurso.
Custas pela Recorrente.

Porto, 8/02/2024

Tiago Afonso Lopes de Miranda
Irene Isabel Gomes das Neves
Carlos Alexandre Morais de Castro Fernandes