Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00240/20.6BEPNF-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/09/2021
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Luís Miguéis Garcia (Por vencimento)
Descritores:FALTA DE CITAÇÃO. REPRESENTAÇÃO DO ESTADO.
Sumário:I) – “Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.” – art.º 25º, n.º 4, do CPTA.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:L. e MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
*

Ministério Público, em acção administrativa intentada no TAF de Penafiel por L., id. nos autos, contra «1) ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, sito na Rua (…) e 2) MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, com sede na Praça (…).», interpõe recurso jurisdicional de despacho que indeferiu o requerido pelo ora recorrente, “quer no que concerne à recusa de aplicação das normas constantes do segmento final do nº 1 do art.º 11º e do nº 4 do art.º 25º do CPTA, na redação introduzida pela Lei nº 118/2018, quer quanto à declaração de nulidade da citação do Réu Estado Português e da anulação do processado posterior”.

O recorrente remata em conclusões:

1 – A presente ação foi intentada contra o Estado Português e o Ministério da Administração Interna tendo, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a citação do Réu Estado Português sido dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, e o Ministério Público não foi citado, tendo apenas sido notificado da pendência da mesma, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 85º, nº 1 do CPTA;
2 – A Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que entrou em vigor no passado dia 16.11.2019, introduziu no CPTA nova norma acima referida, que estabelece que quando seja demandado o Estado já não é citado o Ministério Público, em representação deste, como até agora sempre esteve consagrado, mas sim o Centro de Competências Jurídicas do Estado, designado por JurisAPP, que é um serviço central da administração direta do Estado, integrado na Presidência do Conselho de Ministros;
3 – Sob a sua aparência puramente procedimental e regulamentar — o que bastaria para a considerar deslocada num diploma sobre processo administrativo —, trata-se de uma norma revolucionária, sobretudo quando conjugada com o disposto na parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação igualmente conferida pela mesma Lei nº 118/2019;
4 – Com efeito, onde na anterior redação desta norma se previa ¯(…) sem prejuízo da representação do Estado Pelo Ministério Público passou, com a referida alteração, a prever-se ¯(…) sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público, o que transformou numa exceção o que era uma regra, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, sendo que não se vislumbra qualquer possibilidade de o Ministério Público ser eliminado, ao menos potencialmente, da representação do Estado no domínio do contencioso administrativo sem que daí resulte uma flagrante ofensa da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP;
5 – Pelo que, esse conjunto normativo esvazia o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado-Administração, mostrando-se desconforme ao parâmetro normativo consagrado na primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da CRP;
6 – A norma do artigo 219º, nº 1 da CRP configura um imperativo constitucional, a observar pelo legislador ordinário, que contém a regra da atribuição de competência ao Ministério Público para representar o Estado;
7 – Em 1 de Janeiro de 2020 entrou em vigor o novo Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27 de Agosto — i.e, menos de um mês antes da publicação da Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que contém as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, que continuou a confiar a representação do Estado ao Ministério Público (artigo 4º, nº 1, al. b)) e a prever a existência de ¯um departamento central de contencioso do Estado e interesses coletivos e difusos da Procuradoria-Geral da República‖, o qual passará a intervir também em matéria tributária e não apenas na cível e administrativa (artigo 61º, nº 1 e 2);
8 – A Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro, que procedeu à 12ª alteração no ETAF/2002, — i.e., menos de uma semana antes da edição da Lei nº 118/2019, a que pertencem as normas aqui questionadas —, não introduziu qualquer alteração ao disposto no artigo 51º;
9 – A representação do Estado em juízo foi sempre confiada, a nível constitucional e da lei ordinária, ao Ministério Público (com a única exceção da hipótese residual contemplada na parte final do nº 1 do artigo 24º do vigente CPC), estando essa representação, nas áreas cível, administrativa e até tributária, inequivocamente prevista em diplomas recentíssimos e de uma evidente centralidade na conformação dos nossos sistemas jurídico e judiciário;
10 – A norma do nº 1 do artigo 219º da CRP, que confia ao Ministério Público a representação judiciária do Estado-Administração (central), possui natureza auto-exequível, incondicionada, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária, configurando-se como uma intencional e estrutural opção constitucional, em consonância com a tradição jurídica do país;
11 – Tanto o legislador constituinte originário como o derivado ponderaram os atributos do Ministério Público como magistratura dotada de ¯autonomia (artigo 219º, nº 2 da CRP), com a sua atuação sempre vinculada a ¯critérios de legalidade e objetividade (artigo 3º, nº 2 do EMP) e, em razão desses atributos, confiaram-lhe a tarefa representativa do Estado em juízo, justamente a título de representação e não como advogado, patrono ou mandatário judicial; sendo a representação do Estado nos tribunais por parte do Ministério Público é configurável como um verdadeiro princípio judiciário constitucional, com alcance material;
12 – Porém, em flagrante contradição sistémica e teleológica, a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, na redação conferida pelo artigo 6º da Lei nº 118/2019, vem reduzir a representação do Estado por parte do Ministério Público a uma pura eventualidade;
13 – A nova redação limita-se a acrescentar o substantivo ¯possibilidade, mas desse modo transforma a regra da ¯representação do Estado pelo Ministério Público em exceção, pois o possível tanto é o que pode ser como o que pode não ser vez alguma, não sendo inócuo que o conjunto de alterações legislativas no âmbito da jurisdição administrativa que ocorreram em 2019, de que faz parte aquele preceito, não tenha introduzido, paralelamente, o referido substantivo no artigo 51º do ETAF.
14 – Do confronto da fórmula usada no CPTA (parte final do nº 1 do artigo 11º ¯sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público‖) com a acolhida no CPC (artigo 24º, nº 1: ¯O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio…), resulta segura a conclusão de que, no âmbito do primeiro diploma, a representação do Estado por parte do Ministério Público tem caráter eventual e subsidiário, ao passo que no segundo constitui a regra, só passível de afastamento por lei concreta;
15 – A nova redação do artigo 11º, nº 1, in fine, do CPTA torna meramente eventual e subsidiária a intervenção do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo, pelo que, mesmo numa apreciação isolada, dificilmente a norma se compatibilizaria com o princípio judiciário constitucional da representação do Estado nos tribunais através do Ministério Público, imposta pelo primeiro segmento do nº 1 do artigo 219º da CRP;
16 – A desarmonia dessa norma com a Lex Fundamentalis torna-se ainda mais clara quando se proceda à sua interpretação conjugadamente com a do nº 4 do artigo 25º, também aditado pela referida Lei nº 118/20, que estabelece que quando seja demandado o Estado a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado;
17 – No que se reporta ao Estado, a norma destrói a mais elementar lógica de constituição da instância processual administrativa, visto que, por um lado, o réu Estado-Administração é ¯unicamente citado numa entidade que não possui poderes legais para a sua representação em juízo e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes, por força de disposição constitucional (e também legal);
18 – Por outro lado, nos termos do artigo 223º, nº 1 do CPC, subsidiariamente aplicável ao contencioso administrativo, a citação das pessoas coletivas — como é o caso indiscutível do Estado-Administração — realiza-se ¯na pessoa dos seus legais representantes;
19 – O único representante do Estado em juízo, pelo menos enquanto o Estado não manifestar a vontade de pretender ser patrocinado de outro modo (pressuposta, por necessidade de raciocínio, a validade dessa declaração), o seu ¯representante natural é o Ministério Público, em quem deve ser realizada a citação;
20 – O mecanismo implementado pelo nº 4 do artigo 25º, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 11º do CPTA, ambos na redação da Lei nº 118/2019, conduz em linha reta, de forma necessária, a uma presença subsidiária e minimalista do Ministério Público como representante do Estado no processo administrativo;
21 – Acresce que a norma do nº 4 do art.º 25º CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, vem atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a competência para coordenar ¯os termos da (…) intervenção em juízo do ¯serviços a quem aquele entenda ¯transmitir a citação que, no caso dos autos (tal como noutros), não a transmitiu ao Ministério Público, estando sob sua decisão escolher quem vai representar o Estado;
22 – Só um construtivismo artificial e pré-ordenado pode sustentar a legitimidade constitucional da opção do legislador ordinário, creditando-a na faculdade de a Assembleia da República definir a competência do Ministério Público (cfr. artigo 165º, nº 1, al. p) da CRP), pois é verdade elementar que a lei formal também deve obediência ao princípio da constitucionalidade;
23 – Apesar da sua falta de clareza e desarmonia com a arquitetura do sistema processual, resulta do preceito que o dito Centro pode, se e quando lhe aprouver, confiar a representação judiciária do Estado ao Ministério Público — tratado como mero ¯serviço administrativo — e coordenar ¯os termos da respetiva intervenção em juízo;
24 – Ou seja, o dito Centro passará a decidir, caso a caso, se o Ministério Público representa ou não o Estado, sem que haja qualquer indicação dos critérios que conformam tal decisão, sendo que o teor da norma constitucional constante do artigo 219º, nº 1 da CRP não permite a supressão do Ministério Público como representante do Estado (tal como sucedeu no caso concreto dos autos);
25 – Ao atribuir ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, um serviço central da administração direta do Estado, a competência para proferir decisões que delimitam a intervenção do Ministério Público enquanto representante do Estado, a norma jurídica resultante das disposições conjugadas dos artigos 11º, nº 1 e 25°, n° 4 do CPTA configura, dessa forma, uma inconstitucionalidade material, também por violação ao artigo 165°, n° 1, al. p) da CRP;
26 – A norma em causa prevê que, em vez do Estado, seja citado o referido Centro que transmitirá aos serviços competentes, e, se assim o entender (e quando entender), a transmitirá ao Ministério Público. No entanto, o Ministério Público não é um serviço do Estado-Administração, mas sim um órgão constitucional da administração da justiça, pelo que o conhecimento da ação – a citação - quando seja demandado o Estado representado pelo Ministério Público não pode deixar de ter lugar no âmbito do contexto jurisdicional;
27 – No que concerne aos ¯termos da respetiva intervenção em juízo‖ a norma ínsita na parte final do novo nº 4 do artigo 25º do CPTA confere à JurisApp competência para coordenar os próprios ¯termos da intervenção do Ministério Público quanto a aspetos relativos à técnica do processo;
28 – Desse modo, sai gravemente ofendido o princípio da autonomia (externa) do Ministério Público, consignado no nº 2 do artigo 219º da CRP, degradando-se esta magistratura à condição de mera serventuária subordinada da vontade da Administração;
29 – A decisão agora em crise limitou-se a remeter para a decisão proferida no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 03.07.2020, no proc. nº 00902/19.2BEPNF-S1, cuja fundamentação transcreveu, como se se tratasse de um decisão definitiva;
30 – Sucede que tal decisão ainda não transitou em julgado, pois foi interposto recurso para o STA pelo que, com o devido respeito (que é muito), não deveria ter sido utilizada, sem qualquer outra justificação;
31 – Ademais, a decisão do Venerando Tribunal Central Administrativo Norte foi proferida num outro processo e, mesmo que fosse definitiva, não era obrigatória para os demais Tribunais, dado que em Portugal não vigora o princípio do precedente judicial, tal como ele é configurado nos sistemas de common law;
32 – Em face do exposto, é forçoso concluir que as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, são materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 219º da CRP, nº 1, primeira proposição (¯Ao Ministério Público compete representar o Estado) e nº 2 (¯O Ministério Público goza de (…) autonomia…), violando igualmente o conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1 da CRP, pelo que são materialmente inconstitucionais, nos termos do artigo 277°, n° 1, da CRP;
33 – E, em consequência, verifica-se a nulidade emergente da falta de citação do Estado, por omissão completa do ato (artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA), uma vez que o Ministério Público não foi citado.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine:
a) A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei nº 118/2019, de 17.09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do nº 2 desta mesma disposição, bem como do conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1 da CRP;
b) E, em consequência, que:
- Seja declarada a nulidade da falta de citação do réu Estado (artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 1º do CPTA), com a consequente anulação de todo o processado posterior à Petição Inicial, e
- Seja determinada a citação do Estado no Ministério Público.
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Sem contra-alegações.
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Vêm os autos a conferência, cumprindo decidir, lavrando acórdão de acordo com a orientação que prevaleceu.
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As incidências processuais:

1º) - A acção foi proposta contra:

«1) ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, sito na Rua (…) e
2) MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, com sede na Praça (…).».
2º) - Por ofício datado de 12-03-2020 foi feita citação por carta registada com a/r endereçada ao “Centro de Competências Jurídicas do Estado”.
3º) - Na mesma data foi notificado o Exmº Magistrado do Mº Pº “relativamente ao processo supra identificado da respetiva petição inicial e da documentação anexa, nos termos do n.º 1 do art.º 85.º do CPTA”.
4º) - O qual veio ao processo requerer:
A — A recusa de aplicação, neste processo, das normas constantes do segmento final do n.º 1 do art. 11.º e do n.º 4 do art. 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação da Lei n.º 118/2019, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do n.º 1 do art. 219.º da Constituição e do n.º 2 desta mesma disposição;
B — A declaração de nulidade da falta de citação do réu Estado Português (artigos 188.º/1/a) e 187.º/a) CPC, subsidiariamente aplicáveis), anular-se o processado posterior à petição e decretar-se a citação do Estado no Ministério Público.
5º) - Por despacho datado de 14-10-2020 (infra reproduzido), a Mmª Juiz decidiu indeferir o requerido.
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A apelação
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«(...)
Acerca das questões aqui suscitadas, o Tribunal Central Administrativo Norte já se pronunciou, acolhendo-se na íntegra a posição alcançada e o discurso fundamentador que aqui se transcreve:
“A questão essencial que vem colocada em recurso é a de saber se as normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do CPTA, na redação dada pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, deviam ter sido desaplicadas, por materialmente inconstitucionais, em termos que ao invés da citação ter sido dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO devia ter sido dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO por ser este quem deve representar na ação o demandado ESTADO PORTUGUÊS, e se, assim, o Tribunal a quo devia ter deferido a arguição de nulidade da falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS.
3.2 A questão surge na decorrência das alterações introduzidas ao CPTA pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro que a nova versão dada aos artigos 11º e 25º do CPTA operou no que toca à representação do ESTADO nos processos nos Tribunais Administrativos.
Sendo que, naturalmente, a aferição da eventual inconstitucionalidade daquelas normas por violação do artigo 219º nºs 1 e 2 da CRP, que foi suscitada na arguição da nulidade por falta de citação do réu ESTADO PORTUGUÊS, relevará apenas na medida em que se for de concluir pela invocada inconstitucionalidade das indicadas normas, a sua aplicação deve ser recusada (cfr. artigo 204º da CRP).
3.3 Atentemos, então, nas normas em causa.
3.4 Dispõe o seguinte o artigo 219º da CRP:
“Artigo 219º
Funções e Estatuto
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3. (…)
4. (…)
5. (…). ”
O artigo 11º do CPTA na sua versão original (a da Lei nº 15/2002, de 22 de fevereiro), dispunha o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos processos da competência dos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de advogado.
2 - Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 - Para o efeito do disposto no número anterior, e sem prejuízo do disposto nos dois números seguintes, o poder de designar o representante em juízo da pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, do ministério compete ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa colectiva ou do ministério.
4 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de uma entidade administrativa independente, ou outra que não se encontre integrada numa estrutura hierárquica, a designação do representante em juízo pode ser feita por essa entidade.
5 - Nos processos em que esteja em causa a actuação ou omissão de um órgão subordinado a poderes hierárquicos, a designação do representante em juízo pode ser feita por esse órgão, mas a existência do processo é imediatamente comunicada ao ministro ou ao órgão superior da pessoa colectiva..”
Com a revisão operada ao CPTA pelo DL. nº 214-G/2015, de 2 de outubro os nºs 1 e 2 daquele artigo 11º foram alterados e aditado ainda um novo nº 6, os quais passaram a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público.
2 - No caso de o patrocínio recair em licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, a referida atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte.
3 – (…).
4 - (…).
5 - (…).
6 - Os agentes de execução desempenham as suas funções nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos.”
A Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, que veio mais recentemente, modificar os regimes processuais no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, procedendo a diversas alterações legislativas, alterou a redação do nº 1 do artigo 11º do CPTA, a qual passou a dispor o seguinte:
“Artigo 11º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
(…)”
Simultaneamente também o artigo 25º do CPTA foi modificado.
Na versão original do CPTA (que veio a resultar da Lei nº 4-A/2003, de 19 de fevereiro) dispunha o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
Sem prejuízo do que, neste Código, especificamente se estabelece a propósito da citação dos contra-interessados quando estes sejam em número superior a 20, é aplicável o disposto na lei processual civil em matéria de citações e notificações.”
E com a revisão operada pelo DL. nº 214-G/2015 passou a dispor o seguinte:
“Artigo 25º
Citações e notificações
1 - Salvo disposição em contrário, as citações editais são realizadas mediante a publicação de anúncio em página informática de acesso público, nos termos a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - Em todas as formas de processo, todos os articulados e requerimentos autónomos e demais documentos apresentados após a notificação ao autor da contestação do demandado são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte nos termos da lei processual civil.
3 - A notificação determinada no número anterior pode realizar-se por meios eletrónicos, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.”
E com a Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, assumiu a atual versão, com a modificação da redação dos nºs 3 e 4, os quais passaram a dispor o seguinte:
“1 – (…)
2 – (…)
3 - A notificação determinada no número anterior realiza-se por via eletrónica, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.”
3.5 Na atual versão dos dispositivos do artigos 11º e 25º do CPTA resulta que a presentação do ESTADO nas ações em que este seja parte demandada (por a ele lhe pertencer a legitimidade passiva nos termos do artigo 10º do CPTA) fica agora apenas garantida a possibilidade da sua representação em juízo ser assegurada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, e não já, como acontecia anteriormente, que essa representação a si lhe pertença. Simultaneamente, a citação do ESTADO deixou de se operar «na pessoa do magistrado do Ministério Público» na usual fórmula utilizada, e passou a ser dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, que se integra na Presidência do Conselho de Ministros e está sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em quem aquele o delegar (cuja orgânica foi aprovada pelo DL. nº 149/2017, de 6 de dezembro, e posteriormente alterada pelo DL. nº 91/2019, de 5 de julho).
3.6 A questão está em saber se estes dispositivos, na sua atual redação, atentam a Constituição nos termos invocados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
3.7 Mas estão aqui em causa duas vertentes da representação da pessoa coletiva ESTADO no âmbito do contencioso administrativo: uma a vertente orgânica (funcional), outra na vertente de patrocínio judicial.
3.8 Ora, se o que importa aferir é se ocorreu a invocada falta de citação do ESTADO, por a citação ter sido dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado nos termos atualmente previstos no artigo 25º nº 4 do CPTA (e não ao MINISTÉRIO PÚBLICO, como acontecia na solução legal anterior), não relevam aqui, e para a utilidade do presente recurso, os argumentos tecidos em torno da questão da invocada subalternização do MINISTÉRIO PÚBLICO à vontade da Administração, nem da invocada afronta à autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, decorrente do artigo 219º nº 2 da CRP e legalmente definida no respetivo Estatuto (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), os quais se prendem já com o papel do MINISTÉRIO PÚBLICO enquanto “advogado” do ESTADO.
Essa questão (atinente já ao patrocínio judiciário e representação em juízo) colocar-se-á a jusante da que agora nos interessa.
3.9 A que agora releva e importa é saber se a opção do legislador infra-constitucional, de fazer operar a citação da pessoa coletiva ESTADO, quando este seja demandado no âmbito dos processos nos tribunais administrativos, através do Centro de Competências Jurídicas do Estado, fere ou não o artigo 219º nº 1 da CRP.
Sabendo-se que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (cfr. artigo 219º nº 1 do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA).
3.9 E a resposta tem que ser negativa.
3.10 É sabido que a questão do carater necessário ou não da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO no âmbito das ações sobre contratos ou relativas à responsabilidade civil não é de hoje.
Aliás, a opção legislativa acolhida pelo CPTA (na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004) havia sido já amplamente debatida no debate universitário que antecedeu aquela reforma do contencioso administrativo, e continuou a sê-lo posteriormente.
A tal respeito, vide, designadamente, Vieira de Andrade, defendendo fim do patrocínio do Estado pelo Ministério Público, em especial nas acções de responsabilidade, in, “Reforma do Contencioso Administrativo – O debate universitário (trabalhos preparatórios), Vol. I, Coimbra Editora, 2003, pág. 70, e in, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 5ª Edição, Almedina, 2004, pág. 267. No mesmo sentido, associando-se à critica de continuar a atribuir-se ao MINISTÉRIO PÚBLICO a representação do ESTADO, Pedro Gonçalves, in, “A acção administrativa comum” – “A Reforma da Justiça Administrativa”, STVDIA IVRIDICA nº 86, Boletim da Faculdade De Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Dezembro 2005, pág. 167 (n. 90). Veja-se, ainda, Maria Isabel F. Costa, in, "O Ministério Público no contencioso administrativo - Memória e "Razão de Ser"", Revista do Ministério Público, Ano 28, AbrJun 2007, pág. 28, destacando ser função nuclear do MINISTÉRIO PÚBLICO a defesa da legalidade democrática, com expressão na acção penal e na ação pública do contencioso administrativo.
3.11 O certo é que se manteve, na reforma do contencioso administrativo operada em 2002-2004 a regra da representação do ESTADO nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade civil. Opção legislativa que foi agora alterada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro.
3.12 Mas a questão objeto do recurso não é a de saber se o ESTADO, demandado que foi como réu na ação, se encontra ou não regularmente representado em juízo (enquanto pressuposto processual).
A questão é a de saber se ocorreu nulidade (falta) de citação (enquanto nulidade processual), se ao abrigo do artigo 25º nº 4 do CPTA, na sua versão atual, a citação foi dirigida ao CENTRO DE COMPETÊNCIAS JURÍDICAS DO ESTADO, por dever ser recusada a aplicação dessa norma com fundamento em inconstitucionalidade. E se, assim, deve ser anulado todo o processado, e determinada a citação do ESTADO através do MINISTÉRIO PÚBLICO.
Atenha-se que nos termos do artigo 188º nº 1 alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA, há falta de citação “…quando tenha havido erro de identidade do citado”.
3.13 É sabido que o nomini nomine «ESTADO» tem várias aceções. Mas neste âmbito, a que essencial releva é a pessoa coletiva ESTADO, em especial na sua vertente Estado-administração, fazendo-o distinguir-se das outras pessoas coletivas públicas dotadas de personalidade jurídica (e, por conseguinte, também, judiciária).
Sendo que a qualificação do ESTADO como pessoa coletiva decorre da própria Constituição, designadamente dos seus artigos 3º nº3, 5º nº 3, 18º nº 1, 22º, 27º nº 5, 38º nº 2, 41º nº 4, 204º nº 1 alínea b) e nº 2, 269º nºs 1 e 2, 271º nºs 1 e 4 ou 276º nº 4, sendo particularmente significativas, neste conspecto, as disposições onde se atribuem direitos ou deveres ao ESTADO e às outras pessoas coletivas públicas – vide, a este respeito, Diogo Freitas do Amaral, in, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, II edição, Almedina, pág. 213 ss.
3.14 Na versão anterior do CPTA o chamamento do ESTADO à ação sobre contrato ou relativa a responsabilidade civil que contra ele tivesse sido instaurada fazia-se através da citação dirigida ao MINISTÉRIO PÚBLICO, que era quem também, quem atuava na ação em sua representação legal.
Como refere Alexandra Leitão, in, “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, JULGAR, nº 20, 2013, pág. 13 ss. tratava-se aí de uma representação legal e não propriamente, como representação orgânica, como vinha sendo entendido em alguma doutrina “(…) enquanto a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas — é, por assim dizer, lógica e ontológica —, a representação legal decorre de uma opção do legislador. Por outras palavras: seria possível optar-se por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa coletiva deixasse de ser representada por um ou mais dos seus órgãos, pela simples razão que as pessoas coletivas são entidades imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade. Este é o cerne da distinção entre representação orgânica e legal.”
3.15 A circunstância de a expressão «representação», usada nas normas em causa, não é, assim unívoca, sendo aplicada com aceções diferentes. As suas repercussões são, aliás, explicitadas, no âmbito da versão original do CPTA, por Esperança Mealha, in, “Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas”, CEDIPRE ONLINE I 2, novembro 2010, pág. 29, na análise que ali se efetua quanto à medida em que a representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO interferia com os critérios de atribuição de personalidade judiciária vertidos no artigo 10º CPTA.
3.16 Não vemos como a representação orgânica da pessoa coletiva ESTADO nos tribunais administrativos, em defesa dos seus interesses patrimoniais, que são os que estão em causa nas ações sobre contratos e relativas à responsabilidade, esteja constitucionalmente acometida ao MINISTÉRIO PÚBLICO.
Mas será que o artigo 219º nº 1 da CRP ao determinar, sob a epígrafe “Funções e Estatuto” que “ao Ministério Público compete representar o Estado”, lhe reserva a ele a representação legal do ESTADO nessas mesmas ações?
3.17 As justificações para a solução infra-constitucional adoptada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro podem ser muitas. Mas uma delas adverirá, com certeza, da circunstância aos dois meios processuais principais - a «ação administrativa comum» e a «ação administrativa especial», cujos respetivos âmbitos e regras processuais eram distintas (cfr. artigos 35º, 37º, 42º e 46º do CPTA, na versão original) – com a revisão operada pelo DL. nº 214-G/2015, ter resultado o abandono daquele modelo dualista de meios processuais principais não urgentes, através do estabelecimento de uma única forma de processo declarativo não urgente, a «ação administrativa», na qual passaram a poder ser cumulados pedidos que anteriormente pertenciam a cada uma daquelas distintas formas de processo. Daí emergindo múltiplas dificuldades ao nível da determinação da legitimidade passiva, resultando, não raras vezes, em decisões de forma, com absolvição da instância, e sem possibilidade de aproveitamento do ato de citação, nem da respetiva interrupção da prescrição ou da caducidade, a verificar-se.
Podendo, até, raiar em situações de denegação de justiça, com prejuízo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
3.17 Assim se explicará que a citação deva ser dirigida uma única citação ao Centro de Competências Jurídicas do Estado quando numa na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, quando numa ação seja demandado o ESTADO, ou quando na mesma ação sejam demandados diversos ministérios e o ESTADO, sendo que foi aliás esta última hipótese que sucedeu nos autos. E com essa citação, que o ESTADO (e/ou os Ministérios que sejam também demandados) é chamado à ação, e a instância fixada, nos termos do artigo 260º do CPC, ex vi do artigo 1º do CPTA (sem prejuízo das eventuais modificações que possam vir a ocorrer nos termos que processualmente sejam admitidos).
3.18 Não cabe aqui fazer qualquer juízo quanto ao melhor acerto da opção legislativa adoptada na Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, já que num Estado de Direito assente no primado da Lei (cfr. arts. 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2 da CRP) na sua aplicação aos casos concretos têm de ser acatados os juízos de valor legislativamente formulados, quando não ofendam normas de hierarquia superior nem se demonstre violação de limitações legais de carácter geral “…não podendo o intérprete sobrepor à ponderação legislativa os seus próprios juízos sobre o que pensa que deveria ser regime legal, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.” (cfr., por todos, o Acórdão do Pleno do STA de 13/11/2007, Procº nº 01140/06, in, www.dgsi.pt/jsta).
3.19 Ainda que sejam de reportar as dificuldades da sua articulação com outras normas do sistema jurídico infra-constitucional.
Designadamente as decorrentes da o Estatuto do MINISTÉRIO PÚBLICO (à data da instauração da ação o aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de outubro, atualmente o aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/01/2020 – cfr. artigo 287º), se referir à intervenção principal do MINISTÉRIO PÚBLICO quando representa o ESTADO, as REGIÕES AUTÓNOMAS ou as AUTARQUIAS LOCAIS, simultaneamente dispondo que “…em caso de representação de região autónoma, de autarquia local ou, nos casos em que a lei especialmente o permita, do Estado, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio” (cfr. artigo 5º nº 1 alíneas a) e b) e nºs do Estatuto antigo e artigo 9º do Estatuto novo) e de prever a existência de departamentos de contencioso do ESTADO enquanto órgão de coordenação e de representação do ESTADO em juízo em matéria cível, administrativa e tributária (cfr. artigo 51º do Estatuto antigo e 61º do Estatuto novo) aos quais compete (cfr. artigo 52º nº 1 do Estatuto antigo e 61º nº 1 do Estatuto novo) a “…representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais, em casos de especial complexidade ou de valor patrimonial particularmente relevante, mediante decisão do Procurador-Geral da República (alínea a)); “…organizar a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais” (alínea b)); “…assegurar a defesa dos interesses coletivos e difusos” (alínea c)); “…preparar examinar e acompanhar formas de composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado” (alínea d)), e ainda “…apoiar os magistrados do Ministério Público na representação do Estado em juízo” (nº 2).
3.19 Sendo certo que por outro lado, e no que toca às ações cíveis, o CPC atual dispõe no seu artigo 24º, a respeito da representação do ESTADO que este é nelas “…representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído” (nº 1), ressalvando que “…se a causa tiver por objeto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que são citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele”.
Não podendo deixar de se estranhar, que quando estejam em causa ações da mesma natureza, mas por não integrarem a área da competência da jurisdição administrativa e fiscal (cfr. artigo 4º do ETAF), estejam submetidas à jurisdição dos tribunais comuns, a representação do ESTADO possa ser feita de de modo tão diametralmente distinto.
3.20 Claro que o inciso da parte final do nº 4 do artigo 25º do CPTA na sua versão atual, no qual, referindo-se ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, se diz que este “assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo” poderá criar dúvidas quanto à forma como será assegurada, em tal caso, a garantia da autonomia do MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do artigo 219º nº 2 da CRP e do respetivo Estatuto, em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local (cfr. artigo 2º do Estatuto antigo e 3º do Estatuto novo).
Mas não é despiciente relembrar que nos termos Estatuto antigo (aprovado pela Lei nº 47/86) não só era contemplada a interligação entre a atuação judicial do MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do ESTADO e os demais serviços do Estado, cuja atuação estivesse implicada, como se previa que ao Ministro da Justiça competia transmitir, ainda que por intermédio do Procurador-Geral da República, instruções de ordem específica nas acções cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado fosse interessado ou autorizar o Ministério Público, ouvido o departamento governamental de tutela, a confessar, transigir ou desistir nas acções cíveis em que o Estado fosse parte (cfr. artigo 80º alíneas a) e b) do Estatuto antigo).
3.21 E recentrando-nos na invocada desconformidade das normas em causa, temos que reafirmar a análise feita pela 1ª instância quanto à convocação do artigo 219º nº 1 da CRP, nos termos da qual “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. Dando por renovados os entendimentos doutrinais ali citados a tal respeito. Os quais evidenciam que a discussão em torno da representação do ESTADO pelo MINISTÉRIO PÚBLICO se encontra atualmente já limitada. Na medida em que é aceite, sem reservas, a conformidade constitucional com o inciso “ao Ministério Público compete representar o Estado” constante da primeira parte do nº 1 do artigo 219º da CRP, quanto às demais opções legais em que a representação do ESTADO, e a defesa dos interesses patrimoniais deste, não são feitas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, mas pelas entidades ou órgãos integrados na administração direta ou indireta do Estado (tenham ou não personalidade jurídica), quando nos termos da lei processual aplicável lhes é reconhecida personalidade e capacidade judiciária.
O que significa que restam apenas em discussão as ações relativas a contratos e a responsabilidade civil extracontratual em que o ESTADO seja demandado nos Tribunais Administrativos. E não se vê em como possam estas considerar-se núcleo essencial das funções do MINISTÉRIO PÚBLICO referidas no nº 1 do artigo 219º da CRP.
3.22 E por último sempre importará ainda dizer que independentemente de estar ou não a matéria em causa, regulada nos dispositivos dos artigos 11º e 24º do CPTA na versão dada pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, no âmbito da reserva relativa da assembleia da república nos termos do artigo 165º nº 1 da CRP, também apontado como violado, o certo é que essa competência legislativa foi observada.
3.23 Aqui chegados, tem pois que concluir-se, dever ser negado provimento ao recurso e manter-se, com a antecedente fundamentação, a decisão do Mmº Juíz a quo que indeferiu a arguição de nulidade de falta da citação.”
(cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 03.07.2020, proc. nº 00902/19.2BEPNF-S1, disponível em www.dgsi.pt)
Sem necessidade de outras considerações, atendendo a que todas as questões aqui suscitadas foram analisadas no douto aresto, indefiro o requerido, quer no que concerne à recusa de aplicação das normas constantes do segmento final do nº 1 do art.º 11º e do nº 4 do art.º 25º do CPTA, na redação introduzida pela Lei nº 118/2018, quer quanto à declaração de nulidade da citação do Réu Estado Português e da anulação do processado posterior.
(…)».

É juízo que tem sido seguido em vários arestos deste TCAN.

No mesmo sentido, importando argumentos, sem qualquer essencial nota dissonante aqui em causa, advém a confirmação do despacho recorrido.

Sempre se acrescenta.
A acção foi proposta contra:
«1) ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, sito na Rua (…) e
2) MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, com sede na Praça (…).».

O recorrente aponta para a ocorrência de nulidade, por falta de citação do réu Estado, convocando o disposto nos artigos 188, nº 1, al. a) e 187, al. a) do CPC.

Visto o que por aí está em causa - completa omissão do acto de citação do réu -, será o caso?
Julga-se que não.

A citação é o acto pelo qual o tribunal dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e o chama ao processo para se defender, servindo também para chamar ao processo, pela primeira vez, alguma pessoa interessada na causa (art. 219°, nº 1, do CPC).

É subsidiariamente aplicável ao processo administrativo o disposto na lei processual civil em matéria de entrega ou remessa das peças processuais, dos duplicados dos articulados e das cópias dos documentos apresentados, bem como em matéria de realização das citações e notificações (art.º 23º do CPTA).

Mas o CPTA tem norma própria, e em correlação de especialidade, que aqui importa ter em consideração.

A Lei n.º 118/2019, de 17/09, ditou a actual solução do CPTA.
Dispõe o art.º 25º, n.º 4, do CPTA: “Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.”.

O que foi feito no processo respeita este figurino legal; não sofrendo controvérsia que a citação feita visou dar conhecimento ao réu Estado de que foi proposta contra ele determinada acção e se o chamou ao processo para se defender; habilitando a respectiva lei de processo que a entidade na qual foi feita a podia receber, dotada da representação legal pela mesma lei de processo.

Questionada a falta de citação perante o que comanda a lei ordinária, é evidente que a resposta é negativa.

O que o recorrente sustenta dirige-se à sua desaplicação normativa, por desconformidade com a superior hierarquia constitucional.

Se bem conseguimos arrumar, por um lado, “por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do nº 1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do nº 2 desta mesma disposição”, e por outro, por “uma inconstitucionalidade material, também por violação ao artigo 165°, n° 1, al. p) da CRP”.

Mas não tem razão.

Dispõe o artigo 219º da CRP, no que aqui releva:
“Artigo 219º
Funções e Estatuto
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.

O recorrente vê aqui que por força da lei constitucional lhe incumbe representação do Estado, como o seu Estatuto confirma.

E certamente que sim.
«Mas, o que a Constituição não afirma é que a representação do Estado nos tribunais compete exclusivamente ao Ministério público.
O mesmo se passa a nível infraconstitucional: o Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, afirma no artigo 4º, nº 1, alínea b), que compete ao Ministério Público a representação do Estado.
Em lado algum se vislumbra norma legal que cometa ao Ministério Público a exclusiva representação do Estado nos tribunais.» - Ac. deste TCAN, de 05-03-2021, proc. n.º 271/20.6BEVIS.

Não está vedada ao legislador ordinário, por suposta exclusividade, a solução do art.º 25º, n.º 4, do CPTA.

A inconstitucionalidade material por violação ao artigo 165°, n° 1, al. p) da CRP (reserva relativa de competência da Assembleia da República relativamente à organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados), na consideração conjugada dos artigos 11º, nº 1 (“Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”), e 25°, n° 4 do CPTA também não ocorre.

A solução legislativa é alimentada por lei formal.
E não põe em causa o estatuto, máxime a autonomia, do Ministério Público.

A possibilidade de representação do Estado em juízo pelo Ministério Público não é vedada por o Centro de Competências Jurídicas do Estado ter incumbência de coordenar termos de intervenção em juízo, pois que (i) é possibilidade de representação não excluída, (ii) e sendo efectiva, em sã leitura se tem de entender que essa coordenação só vale com relação aos “serviços competentes” dos “diversos ministérios” demandados; o que, assim se entendendo, dota a lei do sentido constitucionalmente conforme, coincidindo com aquele que o recorrente entende merecer preservação.
*
Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
*
Custas: pela recorrente.
*
Porto, 09 de Abril de 2021.

Luís Migueis Garcia
Frederico Branco
Rogério Martins, vencido conforme se segue.

Voto de vencido:

Voto vencido o acórdão que fez vencimento, pelos fundamentos do meu projecto de acórdão e em coerência com o voto de vencido assumido nos processos 1240/19.4 PNF –S1 e 462/20.0 CBR – S1:

Conforme dispõe o n. º1 do artigo 219.º do Código de Processo Civil:

“A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa”.

No caso de pessoa colectiva, como é o caso do Estado Português, a citação opera-se necessariamente na pessoa singular que a representa.

Saber quem é demandado no processo em quem o representa é, portanto, uma questão que lógica e processualmente precede a questão de quem deve ser citado.

Por isso se coloca em primeiro lugar a questão de saber se o Estado é demandado no processo e nesse caso, segunda questão, quem o deve representar, porque só depois de ser dada a resposta a estas questões se pode determinar se foi citado quem devia ter sido, ou seja, se foi citado quem representa, ou pode representar, o demando no processo, no caso de ser o Estado Português.

Não é quem se cita que representa o demandado é quem representa o demandado que deve ser citado. Esta conclusão é a que se adequa à construção e sequência legal das figuras jurídicas da citação e da representação.

Feito este esclarecimento prévio, fica mais clara a solução a dar ao presente recurso jurisdicional, favorável ao Recorrente, adianta-se.

Determina o n.º 4 do artigo 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos com a redacção dada pela Lei n.º 118/2019, de 17.09:

“Quando seja demandado o Estado, ou na mesma acção sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”.

O que o legislador ordinário fez com esta nova norma, foi optar pela representação unitária do Estado Português pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, ao determinar que a citação é feita “unicamente” a esta entidade.

Não se trata de saber se a Constituição impõe a representação em juízo do Estado Português exclusivamente pelo Ministério Púbico.

Até se pode admitir que não.

O que se trata é de saber se a Constituição permite esta solução legal de excluir o Ministério Púbico da representação do Estado em Juízo, atribuindo esse poder de representação ao Centro de Competências Jurídicas do Estado.

Conferindo-lhe depois o poder – que é uma novidade jurídica – de escolher quem vai patrocinar o Estado e em que “termos”.

Certo é que o n. º1 do artigo 11.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos com a redacção dada pela Lei n.º 118/2019, de 17.09, sob a epígrafe “Patrocínio judiciário e representação em juízo”, dispõe:

“Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público”.

Mas esta “possibilidade” - que antes era regra – acaba por ser não de representação, como literalmente diz o preceito, mas antes de mero patrocínio, por parte do Ministério Público em defesa dos interesses do Estado, e não como decorrência da lei, mas determinado pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado.

Claramente é uma solução simplificadora, face às dúvidas que se suscitam quanto a saber quem é parte demandada no processo em contencioso administrativo.

Mas claramente também afronta do disposto no n.º1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa:

“Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.

Pode interpretar-se este preceito de modo mais alargado ou restrito. O que não se pode é interpretar em sentido contrário ou totalmente distinto, atribuindo a representação do Estado a um órgão da Administração ao invés de a atribuir a uma magistratura. Não pode adoptar-se uma interpretação que não tenha com a letra da lei o mínimo de correspondência – n.º2 do artigo 9º do Código Civil.

De acordo com a solução consagrada no n.º 4 do artigo 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos com a redacção dada pela Lei n.º 118/2019, de 17.09, quando “seja demandado o Estado … a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado”, ou seja, é este ente que representa o Estado em todas as acções.

Não faz sentido, seja qual for a construção jurídica que se escolha, citar quem não é parte demandada ou não representa legalmente a parte demandada.

Em todo o caso, a entender-se que esta norma não define quem representa o Estado, mas apenas quem é citado, então teremos concluir que nessa solução também se desrespeita o disposto no estatuído no n.º1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, porque não fica definido na lei em que casos o Ministério Público representa o Estado, mas esta representação, e os respectivos termos, é definida, casuisticamente, pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado.

Quando claramente este preceito determina que a representação do Estado pelo Ministério Público é determinada “nos termos da lei”.

Lei da reserva exclusiva da Assembleia da República – alínea q) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.

Assim como, nesta segunda hipótese, de não se tratar de definição de quem representa o Estado, mas apenas de quem é citado, se violaria o disposto no n.º 2 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa:

“O Ministério Público goza de autonomia, nos termos da lei”.

A intervenção do Ministério Público, com autonomia, nos termos definidos por lei – n.ºs 1 e 2 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, é substancialmente distinta da intervenção coordenada nos termos definidos pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado - n.º 4 do artigo 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos com a redacção dada pela Lei n.º 118/2019, de 17.09.

Isto porque nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos com a redacção dada pela Lei n.º 118/2019, de 17.09, aqui em análise, cabe ao Centro de Competências Jurídicas do Estado determinar quando tem lugar a representação do Estado pelo Ministério Público, bem como coordenar “os termos da respetiva intervenção em juízo”.

Tal como violaria, nesta segunda hipótese, o disposto na alínea q) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa, pois caberia então ao Centro de Competências Jurídicas do Estado dizer, caso a caso, quem iria representar o Estado, sem qualquer estrita vinculação legal, ou seja, sem lei. Sem Lei da Assembleia da República a definir, em termos gerais e abstractos, quem representa o Estado em juízo. Mais precisamente com uma “norma em branco”, a preencher pelo referido Centro.

Como claramente se depreende a posição que fez vencimento.

Basicamente refere-se que a Constituição não veda a presentação do Estado por outras entidades que não o Ministério Público, mas não se diz quem, nesta nova solução jurídica, representa o Estado e em que casos.

A chamada à colação das normas do Código de Processo Civil, ainda torna mais evidente a inaceitabilidade, no contencioso administrativo, desta solução inovatória, ao invés de a permitir compreender.

Em concreto o disposto no artigo 24.º do Código de Processo Civil, sob a epigrafe “Representação do Estado”:

“1 - O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído.

2 - Se a causa tiver por objecto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que são citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele”.

Se nos litígios no âmbito de relações jurídico-privadas envolvendo o Estado, ou seja, em que estão em causa bens ou interesses patrimoniais privados do Estado, a representação é feita por regra pelo Ministério Público ou com prevalência da sua orientação, nos litígios jurídico-administrativos, em que estão em causa bens ou interesses de natureza pública, por maioria de razão se justifica a representação e coordenação da defesa do Estado pelo Ministério Público, face ao disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa.

Do que se conclui que tem razão o Ministério Público ao invocar a inconstitucionalidade das normas constantes do segmento final do nº 1 do artigo 11º e do nº 4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redacção da Lei nº 118/2019, de 17.09, são materialmente inconstitucionais, nos termos do artigo 277°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa, por violação do disposto no n.º1, primeira proposição, e n.º 2, segunda proposição, do artigo 219º deste diploma fundamental, bem como o conteúdo material dos princípios e normas constitucionais do artigo 165°, n° 1, alínea p), ainda da nossa Constituição.

O que determina a revogação da decisão recorrida e impõe, nos termos da legislação anterior – n. º1 do artigo 282º da Constituição da República Portuguesa – a citação do Ministério Público - n.º1 do artigo 11º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redaçcão dada Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10.

Tendo sido citado o Centro de Competências Jurídicas do Estado num caso em que se impunha a citação do Ministério Público, ocorre a apontada nulidade da citação, por omissão da citação – artigo 188º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

O Estado Português não foi citado. Foi citada entidade que o não representa nem pode representar.

E, na constatação de se verificar a falta de citação, impõe-se a declaração de nulidade de todo o processado posterior à petição inicial - artigo 187.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
*

Pelo que revogaria o despacho recorrido; declarava a nulidade processual decorrente da falta de citação do Réu Estado Português; declarava nulo todo o processado posterior à petição inicial no principal e determina a citação do Estado na pessoa do Magistrado do Ministério Público, para, querendo, contestar ou requerer o que tivesse por conveniente no processo principal, seguindo-se os ulteriores termos legais.

Porto, 09.04.2021

Rogério Martins