Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01606/06.0BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/15/2012
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Fernanda Esteves
Descritores:ADEQUADA ESTRUTURA EMPRESARIAL
ARTIGO 19º, Nº 4 DO CIVA
Sumário:I. O artigo 19º, nº 4 do CIVA impede a dedução do IVA quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada.
II. A exigência de adequada estrutura empresarial prevista no nº 4 do artigo 19º do CIVA reporta-se ao transmitente dos bens e não ao adquirente, sendo, portanto, totalmente irrelevantes os factos assentes relativos à adquirente para os efeitos previstos naquele normativo.
III. Uma adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada não poderá deixar de ser uma organização apta à prossecução da actividade desenvolvida pela empresa, nomeadamente, em termos de instalações, equipamentos, máquinas, recursos humanos e materiais, que lhe permitam desenvolver essa actividade.
IV. Não é suficiente referir que o transmitente dos bens é devedor de tributos ao Estado de montante superior a 700.000,00 euros e tem práticas de duvidosa gestão contabilística/empresarial para suportar a conclusão de que não tem adequada estrutura empresarial susceptível de desenvolver a actividade declarada.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:D..., Lda.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
D... - Comércio Internacional, Lda interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra as liquidações adicionais de IVA referentes a diversos períodos do ano de 2005.
A recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso da sentença do Mmo. Juiz "a quo" que julgou improcedente a impugnação deduzida nos presentes autos e determinou a manutenção das liquidações impugnadas, com fundamento na aplicabilidade do artigo 19.º, nº 4, do CIVA à situação sub judice, por se mostrarem verificados os requisitos previstos nesta disposição legal;
2. Há na sentença sub judice erro na fixação da matéria dada como provada e, bem assim, na determinação da norma aplicada - artigo 19.º, nº 4, do CIVA - e na qualificação jurídica dos factos, quanto à matéria de facto dada como provada nos autos;
3. A prova documental e testemunhal produzida nos autos, nomeadamente pela certidão comercial de fls... dos autos e pelo depoimento do TOC da empresa Dr. Manuel Sousa e pelo economista da mesma Dr. Alípio Santos impunham resposta positiva e não negativa como foi a proferida nos autos, à matéria relativa à sociedade "F…, S.A." , entidade esta transmitente dos bens, nomeadamente, que a mesma iniciou a sua actividade no ano de 1997, tem exercido regularmente a sua actividade, tem instalações adequadas ao normal dimensionamento de recursos humanos e materiais, tem cerca de 120 trabalhadores ao seu serviço e encontra-se devidamente colectada e em normal cumprimento das suas obrigações comerciais e laborais, o que impunha decisão diferente da proferida nos autos;
4. A aplicação do artigo 19.º, nº 4, do CIVA depende da verificação cumulativa dos requisitos: falta de pagamento do imposto liquidado pelo transmitente do bem ou serviço e que ".... o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada.";
5. A resposta positiva à matéria enunciada na conclusão 3.º, supra, nega a verificação do requisito impeditivo da dedução de IVA pela Recorrente, previsto no referido artigo 19.º, nº 4, do CIVA, onde se lê: "...que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada";
6. Há erro na apreciação das provas e, por isso, há erro de julgamento na sentença sub judice;
7. Padece de vício a sentença em crise na interpretação da matéria que faz o teor das alíneas C), D), E), F), G), H), I), J), K), N) e L), dos Factos Provados, para sustentar da aplicabilidade do plasmado no artigo 19.º, nº 4, do CIVA;
8. A matéria constante das alíneas referidas na conclusão 7 enunciam factos referentes à própria recorrente e não à sociedade "F…, S.A." - entidade esta a transmitente dos bens;
9. Não pode inferir-se de dos factos que fazem o teor das alíneas C), D), E), F), G), H), I), J), K), N) e L), dos Factos Provados, que a sociedade "F…, S.A." não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada", ou de que a recorrente conhece de tal facto.";
10. A situação sociedade "F…, S.A." enquadra-se no conceito de adequada estrutura empresarial de que lança mão a sentença em recurso;
11. A sociedade transmitente dos bens e a recorrente são sociedades distintas, sem qualquer relação societária entre si, com estruturas societárias diferentes, com interesses distintos e sem qualquer vínculo jurídico entre si, pelo que as responsabilidades de uma são intransponíveis para a outra e nem por via da reversão tributária haveria coincidência de eventuais responsáveis;
12. Os factos enunciados em sentença onde a mesma busca fundamento não servem à sustentação da decisão plasmada na sentença sub judice, tanto mais que a sociedade transmitente e a recorrente são sociedades distintas, sem qualquer relação societária entre si, com estruturas societárias diferentes, com interesses distintos e sem qualquer vínculo jurídico entre si, pelo que as responsabilidades de uma são intransponíveis para a outra e nem por via da reversão tributária haveria coincidência de eventuais responsáveis;
13. Carece a sentença em crise de sustentação factual e jurídica, impondo-se a sua revogação;
14. Há fundamento legal à procedência da pretensão da recorrente, assistindo-lhe o direito a ver anuladas as liquidações de IVA relativas ao exercício de 2005;
15. A decisão, ora recorrida, padece de vício, dela não se conformando a Recorrente;
16. Viola a douta sentença em recurso o disposto nos artigos 19.º, nº 4, do CIVA, 342.º, nº 1 e 396.º, ambos do C. Civil, 515.º, do C.P.Civil , bem como o primado da verdade material;
17. Impõe-se, por justiça e em nome da verdade material, a revogação da douta sentença proferida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir já que a tal nada obsta.
Objecto do recurso - Questões a apreciar e decidir:
As questões suscitadas pela Recorrente e delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões [nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º e 684º, nº s 3 e 4 todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 2º, alínea e) e artigo 281º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)] são as de saber se a sentença recorrida: (i) incorreu em erro de julgamento ao inferir dos factos assentes que a transmitente dos bens não dispunha de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada e, nessa medida, ter enquadrado a situação no artigo 19º, nº 4 do CIVA; (ii) incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto, por não ter levado ao probatório os factos provados referentes à sociedade transmitente.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
2.1.1. A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
A) - A impugnante é uma sociedade que exerce a sua actividade económica na área do comércio por grosso de móveis e artigos de mobiliário de uso doméstico (cfr. relatório final da inspecção tributária (IT), a fls. 122 dos autos);
B) - A sua constituição ocorreu em 21/03/2005 (cfr. art. 11º da p.i.; e certidão da Conservatória do Registo Comercial de Águeda, a fls. 116 dos autos);
C) - Os sócios da impugnante são os senhores F…, e R…, ambos gerentes, sendo necessária a assinatura de ambos para vincular a impugnante (cfr. art° 19º da p.i.; e certidão da Conservatória do Registo Comercial de Águeda, a fls. 116 dos autos);
D) - O gerente da impugnante senhor F… é accionista da empresa “F…, SA” desde 14/08/1998 (cfr. certidão da Conservatória do Registo Comercial de Águeda, a fls. 108/109 dos autos);
E) - O gerente da impugnante senhor F…, é filho do Administrador da “F…, SA”, também denominada G..., senhor F… (cfr. relatório final da IT, n° 16.6 de fls. 127 dos autos; e certidão da Conservatória do Registo Comercial de Águeda, a fls. 110 dos autos);
F) - A impugnante não possui instalações próprias, funcionando integralmente nas instalações da empresa “F…, SA”, também denominada G... (cfr. relatório final da IT, a fls. 122; e n° 16.5, a fls. 127 dos autos);
G) - A impugnante não possui ao seu serviço qualquer trabalhador (cfr. relatório final da IT, n° 3.1 de fls. 124 dos autos);
H) - A impugnante não possui qualquer activo corpóreo ou financeiro (cfr. relatório final da IT, n° 3.2 de fls. 124 dos autos);
I) - O único fornecedor de mercadorias à impugnante (no período em questão) é a empresa “F…, SA”, também denominada G... (cfr. relatório final da IT, n° 4 de fls. 124 dos autos);
J) - Os clientes da impugnante resultam da respectiva transmissão operada pela empresa “F…, SA”, também denominada G... (cfr. relatório final da IT, n° 5 de fls. 124 dos autos);
K) - O único cliente da empresa “F…, SA”, também denominada G..., é a impugnante (cfr. relatório final da IT, n°5 de fls. 124 dos autos);
L) - O IVA dedutível a que a impugnante tem direito resulta da aquisição de mercadorias à empresa “F…, SA”, também denominada G... (cfr. relatório final da IT, n°8, e 8.1 de fls. 124 dos autos);
M) - A sociedade “F…, SA”, também denominada G..., é devedora de vários tributos à AF desde Agosto de 2004 - incluindo IVA - que na data da elaboração do relatório final da IT ascendiam a um montante superior a 700 000,00€ (cfr. relatório final da IT, a fls. 127 dos autos; e artigos 37° e 38° da p.i.);
N) - A impugnante procedia a pagamentos dos bens adquiridos à sociedade “F…, SA”, através de cheques assinados pelo seu gerente F…, filho do Administrador da “F…, SA”, senhor F…, os quais eram depositados na conta pessoal do gerente da impugnante F… (cfr. relatório final da IT, alíneas a) e b) de fls. 130 e 131 dos autos; e fls. 177 a 185 dos autos);
O) - A empresa “F…, SA”, emitia posteriormente à impugnante os recibos de quitação dos montantes inscritos nos cheques referidos na alínea N) supra, depositados na conta pessoal do gerente da impugnante F… (cfr. relatório final da IT, alínea b) de fls. 130 e 131 dos autos; e fls. 179, 182, e 185 dos autos);
P) - Na sequência de um pedido de reembolso de IVA pela impugnante, a IT determinou a realização de um acto inspectivo externo junto da impugnante (cfr. relatório final da IT, a fls. 121 e 122 dos autos);
Q) - A impugnante foi notificada do projecto de indeferimento do reembolso do IVA e das correcções ao IVA de 2005 e para, querendo, exercer o direito de Audição Prévia sobre o Projecto de Conclusões do Relatório de Inspecção (cfr. artigo 1° da p.i.; e fls. 35 e ss. dos autos);
R) - A impugnante exerceu o direito de audição prévia em 21/03/2006 apenas em relação ao período de Abril a Agosto de 2005 (cfr. art° 1° da p.i.; fls. 93 e ss. dos autos; fls. 136 dos autos; e fls. 217 dos autos);
S) - Por carta registada com aviso de recepção datada de 04/05/2005, a impugnante foi notificada da decisão proferida e do teor do relatório final, operando correcções ao IVA suportado e deduzido pela impugnante aquando das aquisições de bens junto da empresa F…, SA, nos meses de Abril a Agosto de 2005, nos termos do art° 19º/4 do CIVA, no montante de 756054,88€ (cfr. relatório final da IT, a fls. 133 e 134 dos autos);
T) - Por carta registada com aviso de recepção datada de 04/08/2006, foi a impugnante notificada do teor do relatório final relativo a IVA, operando correcções ao IVA suportado e deduzido igualmente pela impugnante aquando das aquisições de bens junto da empresa F…., SA, nos meses de Setembro a Dezembro de 2005, nos termos do art° 19°/4 do CIVA, no montante de 496403,53€ (cfr. relatório final da IT, a fls. 216 dos autos);
U) - A impugnante foi notificada das respectivas liquidações adicionais em causa (cfr. artigos 4º e 9° da p.i.; fls. 187 a 196; e fls. 233 a 240 dos autos);
V) - Da notificação das liquidações em causa deduziu a impugnante a presente impugnação judicial (cfr. parte superior e intróito da petição de impugnação, a fls. 2 dos autos).
2.2. Os Factos e o Direito
Como resulta da factualidade assente, os actos de liquidação adicional de IVA que foram objecto de impugnação judicial, emitidos após acção de inspecção levada a cabo pelos Serviços de Inspecção Tributária, na sequência de pedido de reembolso de IVA formulado pela Impugnante/Recorrente, resultaram de correcções aos valores de imposto dedutível em diversos meses do ano de 2005, no pressuposto de que o IVA liquidado no âmbito das operações comerciais realizadas entre a Impugnante e a sociedade “F…, S.A” (também denominada “G...”) fora indevidamente deduzido por aquela.
Com efeito, constataram os serviços da administração tributária, em síntese, que: (i) as duas empresas (Impugnante e “F…, S.A”) operam como se de uma única empresa se tratasse, operando a Impugnante nas instalações da outra sociedade e como departamento comercial daquela, usando toda a sua estrutura de armazenamento, logística, comercial e administrativa; (ii) têm (alguns) sócios comuns e um dos gerentes da Impugnante [F…] é filho do administrador da “F…, S.A” [F…]; (iii), a Impugnante é a única cliente da outra sociedade e esta a única fornecedora daquela; (iv) a sociedade “G...” não pode solicitar reembolsos de IVA, por ser devedora de tributos (incluindo IVA) ao Estado de valor superior a 700.000,00 euros; (v) existem práticas contabilísticas irregulares nas duas sociedades (v.g pagamentos da impugnante à outra sociedade que não entram nas contas bancárias desta, mas na conta bancária do gerente F…]. Perante esta factualidade, os referidos serviços concluíram que a Impugnante tinha sido constituída para contornar a impossibilidade de a sociedade “F…, S.A” solicitar reembolsos de IVA ao Estado e ainda que esta sociedade não tinha “adequada estrutura empresarial”, sendo tal facto do conhecimento da impugnante. Consequentemente, não aceitaram a dedução do IVA suportado nas aquisições de bens e serviços que a Impugnante fez àquela sociedade e, com base no disposto no nº 4 do artigo 19º do CIVA, emitiram as liquidações impugnadas de valor correspondente ao IVA indevidamente deduzido pela Impugnante.
A sentença recorrida aderiu à tese da administração tributária no sentido de a Impugnante não poder deduzir o IVA suportado nas aquisições de bens e serviços à sociedade “F…, S.A”, por se verificarem os pressupostos previstos no referido nº 4 do artigo 19º do CIVA e, consequentemente, julgou improcedente a impugnação judicial e manteve as liquidações impugnadas, basicamente, por: (i) a sociedade “F…, S.A” [transmitente dos bens] não ter entregado nos cofres do Estado o imposto liquidado; (ii) a impugnante ter ou dever ter conhecimento de que tal sociedade não dispunha de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada.
A Recorrente não se conforma com este entendimento, sustentando ter sido efectuado pelo Tribunal a quo uma incorrecta valoração da prova produzida nos autos e na qualificação jurídica dos factos, os quais não suportam a conclusão de que a sociedade “F…, S.A” não dispõe de adequada estrutura empresarial e, portanto, não se verificarem os requisitos para a aplicabilidade do disposto no nº 4 do artigo 19º do CIVA à situação sub judice.
Assim, a primeira questão que importa decidir é a de saber se a decisão recorrida fez um correcto julgamento ao concluir, face à matéria de facto dada como assente, estarem preenchidos os pressupostos previstos no nº 4 do artigo 19º do CIVA, nomeadamente o de que a sociedade transmitente dos bens não dispunha de adequada estrutura empresarial.
Vejamos.
Segundo o disposto no nº 4 do artigo 19º do CIVA, na redacção introduzida pelo artigo 47º, nº 2 da Lei 55 - B/2004, de 20 de Dezembro, aqui aplicável, os sujeitos passivos não podem deduzir o IVA que resulte de operações em que o transmitente dos bens ou prestador dos serviços não entregar nos cofres do Estado o imposto liquidado quando tenham ou devessem ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador dos serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada.
Esta norma resultou da transposição para a ordem jurídica nacional da Directiva comunitária nº 2003/92/CEE, do Conselho, de 7 de Outubro (que altera a Directiva nº 77/388/CEE, do Conselho, de 17 de Maio). Com esta norma pretendeu-se introduzir mais um mecanismo para combater, de forma eficaz, a fraude e evasão fiscal, nomeadamente a denominada “fraude carrossel”. Trata-se, como é sabido, de uma das formas de fraude mais perniciosas que o IVA está sujeito, sobretudo ao nível das exportações e transacções intracomunitárias.
Como refere Clotilde Celorico Palma [em Harmonização comunitária do IVA - Quo vadis?], “A característica fundamental da "fraude carrossel" é o aproveitamento da associação de operações em que o IVA é cobrado pelo fornecedor ao seu cliente (geralmente nas operações dentro de um EM) e de operações sem cobrança do IVA entre os contratantes (em regra nas operações intracomunitárias). Esta associação, que é inerente ao regime actual, permite a um sujeito passivo a aquisição de bens sem pré - financiamento do IVA e a facturação em seguida do IVA ao abrigo de uma entrega interna destes bens. Sucede que tal sujeito passivo desaparece e não paga esse IVA à administração fiscal, enquanto que o comprador dos bens exerce o seu direito à dedução.”
Portanto, com o objectivo combater a fraude ao IVA (invocado pelo Governo português para introduzir esta e outras alterações ao IVA na Lei do OE para 2005), foi introduzido o mecanismo previsto no artigo 19º, nº 4 do CIVA, que impede a dedução do IVA em caso de verificação dos seguintes pressupostos: (i) o imposto resulte de operações em que o transmitente ou o prestador dos serviços não entregou o imposto liquidado nos cofres do Estado; (ii) o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente em causa não dispunha de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a respectiva actividade comercial.
No caso em apreço, as operações postas em causa pela administração tributária [por entender ter sido indevidamente deduzido o IVA pela impugnante], foram as realizadas entre a impugnante (adquirente) e a sociedade “F…, S.A” (transmitente).
Ora, não vem questionado pela Recorrente que a sociedade “F…, S.A” não entregou o imposto liquidado nos cofres do Estado, sendo a quantia em dívida de €700.000,00. O principal ponto da discórdia da Recorrente reporta-se ao segmento da sentença recorrida que, acolhendo os argumentos da administração tributária, concluiu que a sociedade “F…, S.A” não tinha adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada. A este propósito, na sentença recorrida foi considerado o seguinte: “(…) Daqui se infere que uma empresa com uma “adequada estrutura empresarial” para o exercício da respectiva actividade económica será uma entidade dotada de todos os necessários meios de capital e de trabalho para o efeito, em ordem a assegurar o respeito pelos compromissos na sua múltipla relação funcional, com os trabalhadores ao seu serviço, com os seus fornecedores de bens e serviços, com os seus clientes, e com o Estado e a sociedade, e a assegurar igualmente a expectativa de cumprimento de tais compromissos relacionais tida pelos terceiros que com ela se relacionam. Ora, uma empresa devedora de tributos ao Estado em montante superior a 700 000,00 € - nos quais se inclui IVA (cfr. alínea M) do probatório supra), e com uma prática de duvidosa gestão contabilística/empresarial ao permitir o recebimento de créditos de empresas suas clientes através de conta pessoal de um dos seus accionistas (cfr. alíneas D, N e O) do probatório supra), com todas as dúvidas relativas a falta de transparência funcional que tal prática implica, afigura-se ao Tribunal como uma entidade que não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade comercial por forma a honrar regular e normalmente os inerentes compromissos que advêm da sua múltipla relação funcional e que dela é legítimo esperar”.
Portanto, a conclusão a que se chegou na sentença recorrida - de que a sociedade “F…, S.A” não dispunha de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade comercial - assentou (exclusivamente) nos seguintes fundamentos (de facto): (i) ser a sociedade em causa devedora de tributos (incluindo IVA) ao Estado num montante superior a € 700.000,00 [alínea M) do probatório]; (ii) ter uma prática de duvidosa gestão contabilística/empresarial por permitir o recebimento de créditos de empresas suas clientes através de conta pessoal de um dos seus accionistas [alíneas D), N) e O)].
Com o devido respeito, não vemos como estes fundamentos possam ser suficientes para suportar aquela conclusão. É certo que a lei não nos dá uma definição do que seja “adequada estrutura empresarial”, deixando uma grande margem de discricionariedade à administração tributária quanto à interpretação de tal conceito. Porém, uma adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada não poderá deixar de ser uma organização apta à prossecução da actividade desenvolvida pela empresa, nomeadamente, em termos de instalações, equipamentos, máquinas, recursos humanos e materiais, que lhe permitam desenvolver essa actividade. Ou seja, dispor de uma organização empresarial com os meios materiais e humanos necessários para realizar a sua actividade em condições apropriadas de qualidade e eficiência.
O TJUE na sua jurisprudência mais recente, deu algumas orientações sobre os critérios para detectar práticas abusivas, ou seja, expedientes puramente artificiais. No caso Cadbury (Acórdão de 12 de Setembro de 2006, Processo C- 196/04), em que concluiu que as legislações nacionais, como a do Reino Unido, relativa às sociedades estrangeiras controladas, estão genericamente em conformidade com o Tratado, na medida em que prossigam o objectivo legítimo de combater a fraude ou a evasão fiscal, só sendo estas regras contrárias aos artigos 43.º e 48.º CE, quando se apliquem a expedientes que não constituam “expedientes puramente artificiais”, referiu que “são factos determinantes para aferir da existência de tais expedientes saber se o contribuinte tem uma intenção subjectiva de obter uma vantagem fiscal estabelecendo-se noutro EM, se existe um estabelecimento no EM que prossiga actividades económicas e se esse estabelecimento dispõe de uma existência física em termos de instalações, pessoal e equipamento, ou seja, um estabelecimento real que realize actividades económicas genuínas e não uma mera “caixa de correio” ou uma subsidiária “de fachada”.
Afigura-se-nos que o citado nº 4 do artigo 19º do CIVA, introduzido no âmbito do combate à fraude fiscal, pretende, efectivamente, sancionar os expedientes artificiais, designadamente, nos casos em que não existe um estabelecimento real e as empresas são criadas apenas com o objectivo de obter determinada vantagem fiscal, ou seja, em que a única justificação de determinada empresa é dar origem ao direito fiscal reivindicado e não a prossecução de qualquer actividade económica.
No caso concreto, a administração tributária não recolheu quaisquer elementos no sentido de demonstrar que a sociedade transmitente dos bens não dispunha de uma “adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada”, nos moldes que vimos referindo. Antes, dos (2) relatórios de inspecção juntos aos autos resulta exactamente o contrário: a sociedade “F…, S.A” tem instalações, máquinas, equipamentos e trabalhadores próprios [que são utilizados pela impugnante], tem clientes (pelo menos a impugnante), labora e tem receitas próprias. Aliás, tais factos (maioria), constam da factualidade assente [cfr. alíneas F), G) e H) do probatório]. Tem, de resto, toda a razão a Recorrente quando refere que esses factos vertidos no probatório são referentes à Impugnante e não à sociedade “F…, S.A” [8ª conclusão]. Porém, a exigência de adequada estrutura empresarial prevista no nº 4 do artigo 19º do CIVA reporta-se à transmitente dos bens ou prestadora de serviços (neste caso, a sociedade “F…, S.A”) e não à adquirente dos bens (Impugnante), sendo, assim, totalmente irrelevantes os factos assentes no probatório [alíneas F), G) e H)] relativamente à impugnante para os efeitos previstos naquele normativo.
Manifestamente, não é suficiente referir que a transmitente dos bens é devedora de tributos ao Estado, de montante superior a 700.000,00 euros e tem práticas de duvidosa gestão contabilística/empresarial por permitir o recebimento de créditos de empresas suas clientes através de conta pessoal de um dos seus accionistas para suportar a conclusão de que a empresa em causa não tem adequada estrutura empresarial susceptível de desenvolver a actividade declarada.
Assim, é de concluir que a administração tributária não logrou demonstrar que a sociedade transmitente dos bens não dispusesse de adequada estrutura empresarial para o exercício da actividade declarada e, por isso, a sentença recorrida que afastou o direito à dedução do imposto por parte da impugnante com fundamento no artigo 19º, nº 4 do CIVA não pode subsistir na ordem jurídica, devendo, pois, proceder o presente recurso.
Face à procedência da questão nos termos que acabamos de referir, fica prejudicada a apreciação da questão relativa ao eventual erro da sentença recorrida no julgamento da matéria de facto, porquanto, tal erro, mesmo a verificar-se, não se reflecte na questão já apreciada nem é susceptível de alterar o sentido da decisão sobre tal questão.
3. Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar a decisão recorrida;
c) Julgar a presente impugnação judicial procedente e, em consequência, anular as liquidações impugnadas.
Custas pela Fazenda Pública, apenas na 1ª instância.
Porto, 15 de Fevereiro de 2012
Ass. Fernanda Esteves
Ass. Álvaro Dantas
Ass. Anabela Russo