Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00239/12.6BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/20/2016
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:João Beato Oliveira Sousa
Descritores:JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA; RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL; SEGURADORA.
Sumário:Os tribunais administrativos são competentes, em razão da matéria, para as acções emergentes de responsabilidade civil extracontratual de entidade pública por acto de gestão pública, independentemente de intervir do lado passivo uma entidade privada, designadamente aquela para quem, por contrato de seguro, aquela haja transferido a sua responsabilidade.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:MUNICÍPIO DA FIGUEIRA DA FOZ
Recorrido 1:COMPANHIA DE SEGUROS A... PORTUGAL, S.A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO

MUNICÍPIO DA FIGUEIRA DA FOZ veio interpor recurso do despacho saneador pelo qual o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra se julgou materialmente incompetente para conhecer do pedido dirigido contra a COMPANHIA DE SEGUROS A... PORTUGAL, S.A. e, consequentemente a absolveu da instância na presente ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM, SOB FORMA SUMÁRIA, para efectivação de responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, intentada por AJGO e mulher MPSO contra o MUNICÍPIO DA FIGUEIRA DA FOZ e a COMPANHIA DE SEGUROS A... PORTUGAL, S.A.

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Em alegações o Recorrente formulou as seguintes conclusões:

I. Face ao que dispõe o art. 4º, 1º, al. g) do ETAF conjugado com o art. 211º/1 da CRP e o art. 18º/1 da LOFTJ, o tribunal administrativo é o competente para apreciar a presente acção em que discute a responsabilidade civil extracontratual do Município.

II. No âmbito desta acção pode ser demandada como parte principal, sem beliscar aquelas regras de competência, a companhia de seguros para quem a autarquia transferiu a sua responsabilidade, posto que o contrato de seguro não tem a virtualidade de alterar a responsabilidade jurídica do evento, mas apenas a pessoa responsável pelo pagamento dos danos que o mesmo originou.

III. Ao decidir em sentido diverso do que aquele que aqui se perfilha e em orientação totalmente oposta aos arestos proferidos pelo STA (processo 555/04 de 18/01/2005, processo 519/08 de 04/02/2009, processo 0302/04, de 17/10/2006), pelo Tribunal da Relação de Coimbra (em 17/05/2011, processo 69/09.2TBOLR.C1) e pelo Tribunal Central Administrativo Norte (6/04/2006, processo 02119/04.0BEPRT, e em 08/02/2007, processo 00441/05.7BEPNF-A), a Meritíssima Juiz incorreu em erro de interpretação e aplicação dos preceitos mencionados no ponto I, pelo que se impõe a revogação da sua decisão.

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O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu douto parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO

A única questão a resolver é se existe erro de julgamento quando o TAF declara a incompetência em razão da matéria dos tribunais administrativos e fiscais enquanto a demanda se dirige contra a Ré seguradora, após reconhecer que “o julgamento da situação sub judice, no que concerne ao pedido dirigido contra o réu Município, cabe claramente no âmbito da jurisdição administrativa”.

O debate é antigo. Vozes dissonantes se pronunciaram sobre o tema, algumas ecoam na decisão recorrida, mas o TAF desafinou, por assim dizer, relativamente à toada que no entendimento deste TCAN deve prevalecer.

Vejamos então a jurisprudência que, à semelhança do preconizado no douto parecer do MP, se entende consolidada como padrão a seguir.

Em tempos mais recentes aponta-se o Ac. deste TCAN, de 28/06/2013, Processo n.º 447/09.7BEPRT, que as acções emergentes de responsabilidade civil extracontratual de entidade pública e sociedade empreiteira, por acto de gestão pública, podem ser intentadas também contra a pessoa jurídica privada - seguradora - para quem esta, por contrato de seguro anterior, havia transferido a sua responsabilidade, podendo a intervenção ocorrer tanto a título principal como a título acessório.

A fundamentação de tal decisão apoia-se sobretudo no Ac. do STA, de 18/01/2005, do qual adiante se dará mais desenvolta notícia.

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Muito relevante como paradigma decisório para os presentes autos, por se debruçar sobre uma questão de competência praticamente idêntica, surge o Acórdão deste TCAN de 06-04-2006, Proc. 02119/04.0BEPRT, cujo elucidativo sumário se reproduz:
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«I. As acções emergentes de responsabilidade civil extracontratual de entidade pública, por acto de gestão pública, podem ser intentadas também contra a pessoa jurídica privada para quem aquela, por contrato de seguro anterior, haja transferido a sua responsabilidade.

II. Os tribunais administrativos são competentes, em razão da matéria, para conhecer e julgar actos de gestão pública, mas esta conclusão não se altera pelo facto de intervir, no lado passivo da acção, uma entidade privada.

III. Com efeito, a competência que se discute é em razão da matéria controvertida, ou seja, a natureza dos actos ou factos causadores dos danos cujo ressarcimento se imputa ao ente público. O contrato de seguro apenas faz transferir o “quantum” indemnizatório para a empresa seguradora, não a responsabilidade jurídica pelo evento.

IV. Aferindo-se a competência material dos Tribunais Administrativos pela alínea g) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, o que implica ou exclui tal competência não é a qualidade dos sujeitos em si mesma considerada mas tal qualidade conjugada com as questões a apreciar que impliquem a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.»

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Pelo modo como nesse acórdão de 06-04-2006 se define a questão a resolver, ressalta a já apontada similitude com o caso vertente. Aí se diz:

«A questão que se coloca nestes autos não é uma questão nova e tem mesmo sido em sentidos diametralmente opostos pelas várias instâncias administrativas.

Resume-se tal questão, no essencial, em saber se em acção de condenação em que se pretende efectivar a responsabilidade civil extracontratual de um ente público por actos decorrentes da sua actividade “pública” pode ou não ser demandada, simultaneamente com o ente público, a companhia de seguros para a qual aquele transferiu a sua responsabilidade pelo pagamento dos valores indemnizatórios que venham a ser devidos pela prática de actos (ou omissões) ilícitos no âmbito daquela responsabilidade.»

Seguidamente, nesse mesmo acórdão, enaltece-se o já falado Ac. do STA, de 18/01/2005, Recurso n.º 555/04, afirmando-se que encontrou para o problema uma “solução sedutora”. Elogio perfeitamente justificado, pela solução e pela demonstração.

Esse acórdão do STA é dotado do seguinte sumário:

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«I - As acções emergentes de responsabilidade civil extracontratual de entidade pública, por acto de gestão pública, podem ser intentadas também contra a pessoa jurídica privada para quem aquela, por contrato de seguro anterior, haja transferido a sua responsabilidade.

II - Os tribunais administrativos são competentes, em razão da matéria, para conhecer e julgar actos de gestão pública, mas esta conclusão não se altera pelo facto de intervir, no lado passivo da acção, uma entidade privada.

III - Com efeito, a competência que se discute é em razão da matéria controvertida, ou seja, a natureza dos actos ou factos causadores dos danos cujo ressarcimento se imputa ao ente público. O contrato de seguro apenas faz transferir o “quantum” indemnizatório para a empresa seguradora, não a responsabilidade jurídica pelo evento.»

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Afirmou-se ainda no citado acórdão deste TCAN de 2006, e reafirma-se, que o citado acórdão do STA de 2005, embora produzido à luz da anterior legislação, “mantém a sua actualidade, e com mais acuidade, face à nova legislação”, sendo esta o ETAF aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro.

Uma breve meditação induz que a elegância da solução desenhada no referido acórdão do STA (de resto, será justo dizê-lo, com apoio explícito em decisões antecedentes do mesmo Tribunal) assenta por um lado no seu radicalismo, no sentido de remontar à raiz do feixe problemático, ou seja, à relação jurídica matriz e irredutível fundada na responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, contemplada no artigo 4º/1/f) do ETAF. E, por outro lado, na sua força unificadora, impedindo que se disseminem por processos e jurisdições diversas questões que mais não são que declinações em torno da primordial tutela dos mesmos interesses, mormente os dos lesados.

Resta transcrever parte da fundamentação desse acórdão do STA que se antolha mais significativa e concludente com proveito para o caso dos presentes autos. Assim:

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Julgamos, assim que a questão, objecto do presente recurso - limitando-a metodologicamente à definição dos indíces de competência - radica em saber se os Tribunais Administrativos têm competência para julgar o pedido formulado numa acção de responsabilidade civil, por actos de gestão pública, contra a seguradora, para quem foi transferida a responsabilidade civil, emergente dos factos ilícitos invocados na causa de pedir.

A resposta, a nosso ver é afirmativa.

Como se disse no recente Acórdão deste Supremo Tribunal de 22-9-04 (recurso 529/04), referindo-se a esta corrente, e explicitando as suas razões fundamentais: “ (…) A jurisprudência deste Tribunal tem repetidamente afirmado que nas acções emergentes de responsabilidade civil de pessoa colectiva pública, por acto de gestão pública, podem ser chamadas a intervir as entidades seguradoras para quem aquela tenha transferido a sua responsabilidade. Entendimento que o Acórdão de 6-3-2001 (rec. 46.913) justificou assim: “É que os Tribunais Administrativos são efectivamente competentes para conhecer e julgar os actos de gestão pública que, obviamente, subjazem numa relação jurídica administrativa, nos termos do artigo 3º do ETAF, e que não sejam excepcionados pelo art. 4º, questão pacífica nos autos. E essa conclusão não se altera pelo facto de intervir, no lado passivo da acção, uma entidade privada.Com efeito, a competência do Tribunal que se discute, é em função da matéria controvertida, ou seja, a natureza dos actos ou factos causantes dos danos cujo ressarcimento se imputa à responsabilidade da CMG. É bom não esquecer que a responsabilidade dos danos alegados, é sempre e apenas do autor do facto lesivo, no caso imputado à CMG, haja ou não contrato de seguro a transferi-la, que é alheio a esta questão. Acontece é que, se este existir, lhe serve para cobrar do tomador a medida da responsabilidade, em espécie ou equivalente. Mas apenas para isso e não para alterar os dados da questão subjacente da responsabilidade, ou seja, a natureza dos actos responsáveis, que sempre pertenceram ao ente público, no que de gestão pública forem, e só em função deste têm que ser aferidos. O contrato de seguro faz transferir o quantum indemnizatório para a entidade seguradora, suposta a legalidade dele, não a responsabilidade jurídica pelo evento e a sua autoria. Assim, a função do interveniente principal passivo reduz-se a mero auxiliar ou associado na defesa dos interesses do réu que, se também são seus, são-no porém só reflexamente, na medida das vicissitudes da acção. Assim também, o seu posicionamento na relação jurídica processual tem por objecto os mesmos actos causantes do dano alegado, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido do réu, e não os factos jurídicos derivados do contrato de seguro que os liga. Logo, a pedra de toque que serve para julgar da competência do Tribunal em razão da matéria na acção, é só uma e a mesma, seja para as partes principais, seja para os chamados, tanto quanto são únicos e os mesmos os factos geradores da responsabilidade que são trazidos pelo autor à colação. Este não imputa à CMG responsabilidade pelo alegado contrato de seguro, mas por actos ou omissões dela, no exercício de função pública, que lhe causaram danos. Quem responde por eles é a Câmara e só a Câmara. Quem lhos pagará efectivamente é outra coisa”.

(…)
No presente caso, como se pode ver, do art. 15º da petição inicial a é imputado o acidente à “
culpa da Câmara Municipal, por erro manifesto de concepção do sistema de protecção lateral da ponte, que é um imóvel seu e por falta de iluminação da zona onde a mesma está desprovida de corrimões e onde existe o buraco onde o autor caiu”.

O que se pede ao tribunal é que aprecie um facto ilícito imputado a um ente público, gerador de responsabilidade civil extracontratual. O pedido de condenação da seguradora em virtude da transferência da responsabilidade civil, emergente de actos de gestão pública, ainda que possa envolver questões de direito privado (nulidade do contrato de seguro, eficácia do mesmo perante terceiros, amplitude dos danos transferidos, franquias, etc.) não deve implicar a incompetência do tribunal para o julgamento da questão principal, ou seja da existência de responsabilidade civil extracontratual do ente público.

(…)

É verdade que o caso dos autos, cuja causa de pedir assenta em duas relações jurídicas conexas, uma de direito público (a génese da obrigação de responsabilidade civil) e outra de direito privado (a transferência dessa responsabilidade civil para uma Seguradora, através de um contrato de seguro), as quais, de acordo com as regras gerais, implicaria a competência de tribunais diferentes para o julgamento de cada uma delas.

Nestes autos o recorrente começou por intentar a acção apenas contra a Seguradora nos tribunais judiciais. Porém, estes tribunais declinaram a competência, alegando que a relação subjacente ao pedido de condenação da seguradora era a apuramento da responsabilidade civil extracontratual de um ente público. O recorrente acabou por deixar transitar a decisão da relação, por não ter validamente recorrido para o Tribunal de Conflitos – que, oportunamente rejeitou o recurso.

Assim, para que o recorrente possa exercer plenamente o seu direito de acção haveria dois caminhos abstractamente possíveis:

- (i) propor em cada ordem de tribunais, a acção relativa a cada questão; - (ii) propor a acção no tribunal competente para uma das questões, que por extensão conhecerá da outra.
Consideramos, sem qualquer hesitação, que o Tribunal competente para uma questão fundamental adquira, verificados certos condicionalismos, competência para conhecer das questões conexas.

O art. 96º do C. Proc. Civil prevê os casos em que tal acontece, permitindo uma extensão da competência do tribunal competente para a questão principal, para o conhecimento das questões incidentais ou daquelas que o réu suscite como meio de defesa (competência por conexão).

(…)

Tendo em conta os termos em que a acção é proposta, verificamos que o autor pretende ver reconhecido o direito a uma indemnização por actos de gestão pública, imputados ao Município de S. Pedro do Sul. O julgamento desta pretensão, isto é, o apuramento dos pressupostos da respectiva responsabilidade deve ser determinante para aferir a competência, uma vez que a transferência da responsabilidade civil (contrato de seguro) só surge se esta também existir.

Assim, em nosso entender, caberá aos Tribunais Administrativos o julgamento das acções para efectivação da responsabilidade civil extracontratual, por actos de gestão pública, não sendo tal competência afastada quanto ao julgamento dos pedidos formulados contra as seguradoras para quem tais entidades tenham transferido a respectiva responsabilidade civil – competência que subsistirá mesmo para o julgamento de questões de direito privado, suscitadas pela ré na sua defesa relativamente ao contrato de seguro invocado.»


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Prosseguindo na jurisprudência citada e transcrita conclui-se que assiste razão ao Recorrente, no sentido de o presente litígio ser pertinente à jurisdição administrativa e, assim, a decisão recorrida não pode manter-se.

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DECISÃO

Pelo exposto acordam em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.

Sem custas, por não haver oposição ao recurso.


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Porto, 20 de Maio de 2016
Ass.: João Beato Sousa
Ass.: Helder Vieira
Ass.: Alexandra Alendouro