Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00712/09.3BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/16/2016
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:João Beato Oliveira Sousa
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL; PRESCRIÇÃO
Sumário:Os hipotéticos danos invocados a título de “lucros cessantes” ocorridos para além do horizonte de três anos anteriores à data da propositura da acção indemnizatória devem considerar-se prescritos, quando não é alegada qualquer razão para o desconhecimento da sua ocorrência no decurso do tempo e desde a prática do acto cuja execução era alegadamente devida.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:RECICLAGEM DE PLÁSTICOS DAS B..., LDA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE MIRANDA DO CORVO
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
RECICLAGEM DE PLÁSTICOS DAS B..., LDA, veio interpor recurso da sentença pela qual o TAF DE COIMBRA, na presente acção administrativa comum contra o MUNICÍPIO DE MIRANDA DO CORVO, julgou procedente a excepção da prescrição de direito de crédito objecto do litígio e improcedente a acção.
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Em alegações o Recorrente formulou as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES:
A. No caso dos autos o evento danoso gerador de responsabilidade civil é, não a prática mas a omissão de um acto – a outorga da escritura de doação que desse cumprimento à deliberação camarária de 20 de Dezembro de 1999, aprovada em sessão da Assembleia Municipal de Miranda do Corvo de 25 de Fevereiro de 2000.

B. Não existia qualquer prazo fixado para a prática do acto omitido – o que obriga a que o mesmo pudesse ser praticado a todo o tempo. A deliberação ficaria cumprida em qualquer altura em que o acto fosse praticado.

C. Assim, enquanto de boa-fé se pudesse equacionar que o acto ia ser praticado, não existia facto ilícito, não existia violação de qualquer dever.

D. Antes da ocorrência do evento danoso não pode o lesado (que então ainda o não é) ter “conhecimento do direito que lhe assiste”, nos termos referidos no nº 1 do art. 498º do Código Civil.

E. Assim, na situação dos autos só passou a existir “evento danoso” a partir do momento em que ficou claro que o recorrido não iria cumprir a mencionada deliberação camarária; a partir do momento em que se retira dos seus dizeres ou do seu comportamento uma inequívoca vontade de não cumprir a deliberação.

F. Da carta enviada pelo recorrido à recorrente com data de 23 de Janeiro de 2006, não se retira essa vontade de não cumprir a deliberação. E menos ainda se conjugado o teor de tal carta com o ulterior procedimento do recorrido.

G. Aquela carta não refere que o recorrido já não pretende doar o terreno em causa à recorrida mas, pelo contrário, invoca uma (falsa) perda de interesse por parte da ora recorrente; limita-se, em bom rigor, a anunciar que se a recorrente não pretende o terreno, outros há que o pretendem.

H. E perante a imediata resposta da recorrente reiterando que pretendia o terreno, nunca o recorrido retorquiu que não o doava; nem então nem perante as ulteriores e sucessivas comunicações da recorrente no mesmo sentido, de que pretendia o cumprimento da deliberação camarária.

I. Ainda que a vontade do recorrido fosse então já a de não doar o terreno (o que se não aceita), sempre a sua continuada omissão em dizê-lo (em resposta àquelas comunicações da recorrente), criando-lhe a expectativa de que haveria de cumprir a mencionada deliberação, configuraria uma clara e flagrante situação de dolo por parte do Município, nos termos em que o mesmo é previsto pelo nº 2 do art. 321º do Código Civil, impeditivo da prescrição dos direitos que a recorrente aqui se arroga.

J. Sintomático de que a mencionada carta do recorrido de 23 de Janeiro de 2006 não transmite a vontade do recorrido em não cumprir a deliberação camarária é também o facto (anunciado à recorrente por cartas de 14 de Fevereiro e de 29 de Abril de 2008) de aquele ter sujeitado o assunto a apreciação de diversas entidades – o que bem demonstra que não tinha decidido não cumprir.

K. Ainda que o prazo prescricional já se tivesse então iniciado sempre tais comunicações do recorrido teriam interrompido aquela prescrição, começando, a partir de então, a correr novo prazo prescricional (cfr. arts. 325º e 326º do Código Civil) – razão pela qual nenhum direito se encontrava prescrito aquando da citação do ora recorrido para os termos da presente acção.

L. E mais esclarecedor ainda é o facto de, por carta de 2 de Junho de 2009, o recorrido ter anunciado à recorrente que ia cumprir a mencionada deliberação camarária e ia outorgar a escritura de doação.

M. Só na reunião de 9 de Junho de 2009 o recorrido comunicou à recorrente que o prédio que estava disposta a doar-lhe era outro que não o acordado; ou, se se preferir, que não ia cumprir a deliberação camarária com respeito ao prédio então acordado e definido.

N. Uma vez que só então ficou claro que o acto (realização da escritura de doação que daria cumprimento à deliberação camarária) ia ser omitido, então só a partir desse momento a recorrente podia ter conhecimento dos direitos que lhe assistiam em função desse acto que lhe causava lesão.

O. O evento só adquire a característica de danoso, obviamente, no momento em que o dano se produz, podendo até surgir danos que não existiam ainda à data em que aquele evento se produziu e que, ainda que dele decorrentes, só mais tarde se produziram.

P. Os danos que a recorrente aqui pretende ver ressarcidos resultam de factos ocorridos ao longo dos anos mas que só se assumiram como tal – como danos – quando foi constatado que o recorrido não ia celebrar a escritura de doação do prédio anteriormente acertado; até aí não eram danos, eram despesas e investimentos tendo em vista a construção da sua unidade fabril. Só com a recusa do recorrido em outorgar tal escritura é que a recorrente se apercebe que tais despesas e tais investimentos foram suportadas e foram feitos em vão, só então passando a ser danos.

Q. Sem conceder, algumas das despesas que aqui se assumiram como danos, como resulta da petição inicial, até apenas se verificam no período de três anos anteriores à citação do ora recorrido – pelo que, mesmo na tese da decisão recorrida, o direito ao seu ressarcimento não estaria prescrito.

R. Muito embora a prática do acto a que o recorrido se encontrava vinculado não tivesse prazo fixado, certo é que a partir do momento em que este assume que, independentemente de qualquer prazo, não o praticará (nunca o praticará), então passa a haver inequívoca violação da deliberação camarária e, assim, ilicitude no seu não cumprimento.

Nestes termos e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por despacho que, não decidindo pela inexistência de ilicitude no não cumprimento da deliberação camarária de 20 de Dezembro de 1999 e julgando improcedente a excepção da prescrição invocada, ordene o normal prosseguimento dos autos, com a adopção da normal e ulterior tramitação processual.

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Em contra alegação a Recorrida concluiu:

A. A Autora vem recorrer do douto despacho saneador/sentença que julgou procedente a excepção da prescrição do direito de crédito objecto do litígio e, consequentemente, improcedente a acção.

B. Acção na qual a Autora, ora Recorrente, contabilizou prejuízos de lucros cessantes desde o ano de 2000.

C. Ou seja, se a Recorrente determinou que os danos se começaram a verificar logo no ano de 2000 é porque tinha expectativas que a escritura de doação fosse celebrada nesse ano e essas expectativas foram goradas, sendo esse o momento em que, ressaltou do comportamento – omissão – da Recorrida uma inequívoca vontade de não cumprir a deliberação.

D. Pelo que, não pode a Recorrente situar o facto gerador de responsabilidade civil extracontratual numa data para efeitos de cálculo do montante indemnizatório e noutra data para “esconjurar a prescrição”.

E. Acresce que, mesmo que assim não se entenda, o conhecimento de que a Recorrida estava disposta a não cumprir o prometido pré-negocialmente sempre teria de ocorrer, o mais tardar, em 23.01.2006, quando remeteu à Recorrente a carta transcrita no ponto 14.º da matéria de facto assente, na qual lhe solicitava a devolução do terreno pré-acordado, dispondo-se apenas a negociar a doação de um outro terreno.

F. Deste modo, o termo do prazo de prescrição situa-se, no máximo, em 23.01.2009.

G. Sendo evidente que em 21.09.2009 – data em que deu entrada a Petição Inicial – já se encontrava prescrito o direito à indemnização peticionada, ex vi do disposto no n.º 1 do art. 498.º do CC.

H. Apraz ainda sublinhar que a Recorrente carece de razão quando sustenta que a falta de resposta a comunicações posteriores à carta transcrita no ponto 14.º da matéria de facto dada como provada lhe criou a expectativa de que a Recorrida ainda iria outorgar a escritura de doação do terreno pré-acordado, configurando uma situação de dolo por parte do Município, nos termos em que o mesmo é previsto pelo n.º 2 do art. 321.º do CC.

I. Com efeito, depois de intimada a proceder à devolução do terreno, nunca poderia a Recorrente criar qualquer expectativa quanto à outorga da escritura de doação do mesmo,

J. Decorrendo das regras da experiência que a Recorrida não respondeu às posteriores comunicações da Recorrente quanto ao assunto porque havia sido suficientemente clara e nada mais havia a acrescentar.

K. Nem tinha sequer obrigação de responder, nos termos do n.º 2, do art. 9.º do CPA.

L. Por último, importa referir que, ao contrário do que sustenta a Recorrente, a carta de 02.06.2009 apenas vem confirmar o teor da comunicação de 23.01.2006, a saber que a Recorrida pretendia cumprir a deliberação camarária – cedendo um lote com uma área até cerca de 7.990,00 m2 na zona industrial – doando um terreno diverso daquele cuja devolução havia já sido requerida.

M. Pelo que, carece de razão a Recorrente quando afirma que só na reunião de 09.06.2009 – quando, em bom rigor, a recorrida voltou a comunicar-lhe que o prédio que estava disposto a doar-lhe era outro que não o pré-acordado – é que ficou claro que o acto (realização da escritura de doação que daria cumprimento à deliberação camarária) ia ser omitido, sendo só a partir desse momento que poderia ter conhecimento dos direitos que decorriam desse acto supostamente lesivo.

N. Na verdade, quer a comunicação de 02.06.2009, quer a comunicação de 09.06.2009, consubstanciam apenas actos meramente confirmativos, nos termos da alínea b) do art. 53.º do CPTA, pelo que não poderiam ser impugnados (Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16 de Junho de 2005, Processo n.º 10907/01, disponível in www.dgsi.pt).

Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deve ser julgado improcedente o recurso interposto e mantida a decisão decretada pelo Venerando Tribunal a quo.

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QUESTÕES A RESOLVER

Erros de julgamento imputados à sentença, em conformidade com as conclusões da Recorrente, sobre a decisão do TAF ao julgar procedente a exceção de prescrição da peticionada obrigação de indemnizar, fundada em responsabilidade civil extracontratual.

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FACTOS

Consta da sentença:

Considerando as posições assumidas pelas partes nos articulados e os documentos oferecidos, são incontroversos ou provados os seguintes factos suficientes para conhecer desde já da excepção de prescrição:

1º. A Autora é uma sociedade por quotas constituída por escritura pública de 22 de Junho de 1998 — cfr. Doc. 1 da PI.

2°. Tem como objecto definido a reciclagem de matérias plásticas.

3°. A Autora contactou a Câmara Municipal de Miranda do Corvo, indagando sobre o interesse do Município em que ela se instalasse na área do respectivo concelho e sobre eventuais apoios que tivesse para o efeito - cfr. Doc. 2 da PI.

4°. Na sequência de tal pedido, a Câmara Municipal de Miranda do Corvo solicitou informação aos seus serviços (rectius, ao GAT Lousã) sobre a existência de terrenos disponíveis que pudessem ser cedidos a título gratuito à aqui A. para a implantação, por esta, da sua unidade fabril.

5º. A informação prestada (em 16 de Dezembro de 1999) indicou um terreno que se dizia reunir as condições pretendidas, dizendo textualmente: "A presente informação surge na sequência da solicitação da Câmara Municipal para colaboração na obtenção de soluções imediatas de implantação de novas indústrias, de grande importância para o Município de Miranda do Corvo. / Neste sentido, foram realizadas algumas reuniões, deslocações a várias zonas do Espaço Industrial e realizados alguns estudos, resultando esta síntese de informação, apresentada em anexo. / Ressalva-se no entanto que a localização da indústria deve respeitar o polígono de implantação apresentado na planta anexa, bem como o definido no art. 44°, Secção 6 - Espaços Industriais (não incluídos na Vila de Miranda do Corvo), do Plano Director Municipal, nomeadamente no que diz respeito ao índice de utilização máximo - 0.5 aplicado à área do lote - e percentagem de ocupação do solo - 45%"- cfr. Doc. 3 e 5 da PI.

6°. Na planta anexa a essa informação surgia assinalado e representado o terreno em causa, um polígono de forma quase triangular - cfr. Doc. 3, 2ª folha.

7°. Precisamente na sequência da supra referida informação a Câmara Municipal de Miranda do Corvo, na sua reunião de 20 de Dezembro de 1999, deliberou nos seguintes termos: "A Câmara analisou o pedido e deliberou por unanimidade apoiar o investidor nos termos do artigo 4.° do Regulamento do Apoio ao Investidor nos seguintes termos: / a) oferta gratuita do terreno até cerca de 7.990 m2; / b) Execução do ramal de água a expensas da Câmara Municipal; / c) Execução do ramal de esgoto doméstico a expensas da Câmara Municipal; d) Pagamento da baixada de energia eléctrica até 50 KVA. Esta deliberação fica condicionada à aprovação pela Assembleia Municipal, por se tratar de um investimento especial, de acordo com o ponto 4.0 do já citado artigo 4.° do referido Regulamento" — cfr. Doc. 5 da PI.

8°. Na sessão da Assembleia Municipal de Miranda do Corvo de 25 de Fevereiro de 2000 foi aprovada por unanimidade a deliberação Camarária de 20 de Dezembro de 1999, respeitante à doação do referido espaço à sociedade aqui A. — cfr. Doc. 6.

9°. Depois de diversos contactos meramente orais no mesmo sentido, a A., em 28 de Agosto de 2001, dirigiu carta ao R. solicitando a realização da escritura pública de doação com a maior urgência possível — cfr. Doc. 7 da PI.

10°. Em 8 de Outubro de 2001 a A. apresentou na Câmara Municipal de Miranda do Corvo requerimento de aprovação do projecto de obras para a implantação, no referido local, do seu edifício fabril — cfr. Docs. 8 e 9 da PI.

11º. Para o que então solicitou à Câmara Municipal a planta de localização do prédio. Cfr. Docs. 10 e 11 da PI.

12°. O lote de terreno a ceder foi formado pela junção de diversos artigos matriciais rústicos, passando a constituir um artigo urbano, destinado a fins industriais, coma área de 7.990 m2, confrontando do Norte com Rua A do Loteamento Industrial de Miranda do Corvo, de Sul e Nascente com Câmara Municipal de Miranda do Corvo e do Poente com JF — cfr. Doc. 13 da PI.

13º. O Município aqui R. continuou a não outorgar a escritura pública de doação do terreno à sociedade ora A.

14°. Por carta de 26 de Janeiro de 2006 o R. contactou a A. Nos seguintes termos:
Assunto: Lote na Zona Industrial
Em 20 de Dezembro de 1999, foi cedido a V. Ex. um lote na zona industrial.
Por vicissitudes várias V. Ex.ª não têm utilizado o mesmo.
Dado que existem investidores interessados em construir no imediato, solicito a V. Exª colaboração no sentido de proceder à devolução do lote.
Caso V. Exª, no futuro, venha a retomar a ideia de construir uma nova unidade industrial, esta Câmara Municipal encontra-se disponível para colaborar.
Desde já mostramos total disponibilidade para reunir com V. Ex.ª. — cfr. Doc. 14 da PI.

15°. A Autora prontamente respondeu que continuava interessada no lote de terreno, frisando que havia já mesmo apresentado na Câmara Municipal um projecto de construção para o mesmo e solicitando uma reunião para "acertarmos o processo de legalização da cedência do respectivo lote, de modo a que nos permita dar continuidade ao projecto de implantação de novas instalações industriais" - cfr. Doc. 15.

16º. Sem qualquer resposta do ora R., a Autora insistiu perante aquele por carta de 28 de Dezembro de 2006 — cfr. Doc. 16 (sendo de referir que, estando a aqui A. inactiva no que toca à produção e comercialização, quem era conhecida no giro comercial era uma outra sociedade - com diferente objecto - com um sócio em comum, a "Joalplás - Indústria de Plásticos, Ld.ª", a quem, por vezes, erradamente, era enviada correspondência destinada à A. e de quem, por vezes e também erradamente, era usado papel timbrado para escrever cartas remetidas pela A).

17°. E em 12 de Dezembro de 2007 a Autora voltou a usar a via escrita para reclamar do R. a outorga da escritura pública de doação — cfr. Doc. 17 da PI.

18º. O que voltou a fazer por carta de 7 de Fevereiro de 2008, indagando agora junto do R. se este estava ainda em condições de cumprir todos os requisitos da acordada cedência do lote, nomeadamente no que tocava à sua "dimensão, área de implantação e edificabilidade" — cfr. Doc. 18.

19°. Quase um ano volvido sem qualquer resposta, de novo a A., em 9 de Abril de 2009, solicitou à R. informação sobre o seu posicionamento — cfr. Doc. 21.

20°. Tendo então recebido do R. a resposta de que é cópia o Doc. 22 da PI.

21°. Em 21 de Maio de 2009 a A. insistiu novamente com o R. no sentido da celebração da escritura pública de doação, predispondo-se ainda a aguardar pela mesma até ao dia 15 de Junho, sob pena de deixar de ter interesse na doação e responsabilizar o R. pelos prejuízos causados com a não celebração do negócio desde o ano de 2000 — cfr. Doc. 25 da PI.

22°. Respondeu o R., por carta de 2 de Junho de 2009, dando nota uma vez mais que "estão a ser adoptados todos os procedimentos para a realização da escritura" e convocando a A. para uma reunião no dia 9 de Junho de 2009 — cfr. Doc. 26.

23°. A A. compareceu à referida reunião, mas não aceitou celebrar escritura porque o prédio que a Ré se propunha doar não era aquele que havia sido acordado.

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DIREITO

No artigo 86º e último da PI a Autora sintetiza a causa de pedir nestes termos:

«Estão, pois, reunidos os pressupostos da atrás referida responsabilidade civil extracontratual: há danos sofridos pela A. como consequência directa e necessária do acto ilícito do R., consistente, quer no facto de logo após a deliberação da Assembleia Municipal de 25 de Fevereiro de 2000 não ter dado cumprimento à mesma outorgando a aí decidida doação do terreno, quer no facto de continuar sem o fazer até ao presente nos exactos moldes que criou à A. expectativas em que o faria».

A conjunção disjuntiva utilizada (“…quer…quer…”) sugere que no entender da Autora estará em causa uma dupla fonte de ilicitude e da correspondente obrigação de indemnizar. Refere-se, por um lado, à pura e simples inexecução das deliberações em causa, através da realização da escritura de doação do terreno (lote) cedido, como consta no artigo 59º da PI: “O Município aqui R. não deu cumprimento (ou execução) às supra referidas deliberações dos seus órgãos: a deliberação da Câmara Municipal de 20 de Dezembro de 1999 e a deliberação da Assembleia Municipal de 25 de Fevereiro de 2000”. E, por outro lado, foca o problema na perspectiva do atraso nessa execução, geradora da pendência durante 9 anos duma situação jurídica indefinida, em que as ditas deliberações não são executadas nem revogadas. É o que se lê no artigo 83º da PI: “…mesmo que a A. tivesse aceitado receber o terreno agora proposto pelo R. (…) sempre a doação se concretizaria com cerca de 9 anos de atraso relativamente ao que era suposto e expectável”.

O TAF percepcionou essa duplicidade, dizendo:

«O facto, o puro facto, consiste na omissão desde 2000, durante dez anos, da doação objecto da deliberação de 16/12/1999, referida a um prédio determinado, designadamente mediante a omissão da celebração da escritura pública.

Já a ilicitude, face à argumentação jurídica da Autora, dir-se-ia ter como que duas faces.

Uma residiria no incumprimento da deliberação camarária, sancionada pela assembleia municipal, da doação do terreno bem concreto e definido, identificado no artigo 12 supra. Outra na violação do dever de boa-fé (artigo 6°-A do CPA) na relação com a Autora enquanto particular em relação com a Administração, parte num procedimento de apoio ao investimento.»

O TAF procurou ultrapassar essa ambiguidade através da eliminação de uma das perspectivas, ou da sintetização de ambas, o que fez do seguinte modo:

«Porém parece-me que não reside ilicitude alguma na inexecução, em si mesma, da deliberação, desde logo porque não havia prazo legal para tal que vinculasse o Réu.

Ilícita sé poderia ser a violação do princípio da boa-fé no procedimento de apoio ao investimento em que a Autora foi parte.

Mas a causa de pedir, ou seja, os factos integrantes dessa violação do princípio da boa-fé, não está, atentos os termos em que a Autora os formula, bem como ao pedido, está no facto de em 2009 o Réu pretender impor uma doação de um terreno diverso. Está, sim, na recusa prática em fazer a doação do prédio acima identificado, tal como fora deliberado e pré-negocialmente acordado: ou não se pediria uma indemnização por dez anos de lucros cessantes.»

E com esta visão unidimensional (atenta a interpretação exposta) o TAF partiu então para a contagem do prazo de prescrição de 3 anos, previsto no artigo 498º/1 do C. Civil, colocando o dies a quo no ano 2000 (em que alegadamente os danos se começaram a verificar), vindo consequentemente a concluir que esse prazo já tinha expirado à data de interposição da acção em 2009. Para tanto argumentou:

«No nosso caso, os factos integrantes do facto ilícito e o seu conhecimento pela Autora, ocorreram quando?

O Autor, para esconjurar a prescrição, situa em 2009 tais factos ou ao menos o seu conhecimento, pois, diz, só então o Réu assumiu expressamente a sua recusa em doar o terreno original.

Mas não lhe assiste razão.

Os danos, esses começaram a verificar-se logo em 2000, ano em que o Autor coloca o seu início e em que portanto, dá a entender inequivocamente que "confiava" vir a fazer-se a escritura. Por sua vez, o conhecimento da omissão da escritura e do an - que não do quantum - dos mesmos danos, é dizer, dos pressupostos do direito indemnizatório, esse aconteceu logo no mesmo ano de 2000, que foi aquele em que as suas expectativas se goraram.»

A P.I. da presente acção, cujo objecto se esgota na reclamação do sobredito e alegado direito de crédito, deu entrada em 21/9/2009, bem depois, portanto, de ter expirado o prazo de prescrição do artigo 498° n° 1 do CC contado a partir de qualquer daquelas termos iniciais, pelo que se impõe julgar procedente a excepção peremptória de prescrição e, consequentemente e sem mais indagações de facto ou de direito, julgar improcedente a acção.»

Assiste razão ao TAF em situar logo no ano 2000 o conhecimento pela Autora “do direito que lhe compete”, pois isso está em harmonia com o alegado (com realce gráfico) no artigo 80ª da PI, onde se lê: «Atente-se que o dano de lucro cessante de que acaba de se falar existe e existiria mesmo que o R. tivesse, agora – em 2009 – cumprido o que era devido, doando à A. o lote em causa. É que este dano decorre da delonga na doação do terreno e não do incumprimento definitivo de tal doação; decorre do facto de durante todo este tempo o terreno não ter sido transmitido (assim impossibilitando a A. de iniciar o seu projecto industrial e o rentabilizar) e não do facto de, agora, em definitivo ele não ser doado. A (não concretizada) doação do lote no ano de 2009 não apagaria esses danos de lucro cessante então já verificados e produzidos».

No entanto também assiste razão à Recorrente ao alegar que, do seu ponto de vista, daquilo que configurou como causa de pedir, a omissão ilícita só pode considerar-se consumada, ou finda, no momento em que o Réu praticasse o acto em falta (escritura de doação) ou explicitasse definitivamente que não iria praticá-lo.

Ciente da hipotética relevância desta linha de raciocínio, o TAF enfrentou-a mas acabou por concluir na mesma pela prescrição, nestes termos:

«Mas mesmo que assim não se entenda, o conhecimento de que o Réu estava disposto a não cumprir o prometido pré-negocialmente sempre teria de ocorrer, o mais tardar, em 26 de Janeiro de 2006, quando o Réu remeteu à Autora a carta acima transcrita, na qual lhe solicitava a devolução do terreno, dispondo-se apenas a negociar a doação de um outro.

Assim, entendo que o termo a quo do prazo de prescrição do direito de crédito invocado pela Autor se situa em 1 de Janeiro de 2003 ou, o mais tardar em 26 de Janeiro de 2006.»

Não se acolhe a visão do TAF neste particular. Na verdade, cf. 14º da matéria de facto, o Réu não ordena à Autora a devolução do lote cedido, antes se limita a solicitar a sua colaboração nesse sentido, formulando assim claramente um convite, uma sugestão, para imprimir ao assunto outro dinamismo. Ou seja, a Administração, apesar de já mencionar como hipótese a “devolução do lote”, buscava ainda um consenso e, portanto, ainda não se havia firmado um incumprimento definitivo das deliberações em causa.

Tanto assim que, em 2009, cf. 22º da matéria de facto, o Réu informou a Autora de que “estão a ser adoptados todos os procedimentos para a realização da escritura”, sem dizer que a mesma incidiria sobre um prédio diverso do identificado nas ditas deliberações.

E assim, só em 09-06-2009, cf. 23º da matéria de facto, a Autora ficou ciente de que “o prédio que a Ré se propunha doar não era aquele que havia sido acordado”, projectando-se aí sim, de modo firme, a decisão do Município em não proceder à escritura de doação do prédio indicado nas deliberações.

No entendimento deste Tribunal (TCAN) e perante o modo como a ilicitude é configurada, a causa de pedir apresenta-se como complexa, por a responsabilidade imputada ao devedor dimanar de factos diversos com base normativa diferenciada. Por um lado a mora do devedor, prevista no artigo 804º/1 do C. Civil e, por outro, a falta de cumprimento (definitivo) da obrigação, consignada no artigo 798º do mesmo Código, considerando que em princípio nada impede a aplicabilidade destas regras, sedeadas no Título “Das Obrigações em Geral”, à responsabilidade extracontratual. Nesse sentido aponta, por exemplo, o artigo 805º/2/b) onde se dispõe que há mora independentemente de interpelação “Se a obrigação provier de facto ilícito”.

Na realidade, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sem impedir a responsabilidade pelo prejuízo decorrente do incumprimento definitivo, posto que o credor mantenha, apesar da mora, interesse no cumprimento.

Mas, os hipotéticos danos invocados a título de “lucros cessantes”, ocorridos para além do horizonte de três anos anteriores à data da propositura da presente acção (anteriores, portanto, a 21-09-2006) devem considerar-se prescritos, pois não é alegada qualquer razão para o desconhecimento desses danos (decorrentes da mora no cumprimento da obrigação) à medida que se iam verificando no decurso do tempo.

Só assim será possível respeitar o critério legal do artigo 498º/1 do C. Civil interpretado segundo a jurisprudência que tem sido emanada neste TCAN. Por exemplo:

Segundo o Acórdão deste TCAN de 28-02-2014, Proc. 00332/04.9BEVIS «A expressão ter "conhecimento do direito" não é, ou não significa, necessariamente conhecer na perfeição e na sua integralidade todos os elementos que compõem o dever de indemnizar, porquanto deriva do referido n.º 1 do art. 498.º do CC que o exercício do direito é independente do desconhecimento da "pessoa do responsável" e da “extensão integral dos danos”.»

E, conforme 00949/14.3BEPRT, também deste Tribunal, Acórdão de 05-02-2016, «O prazo da prescrição começa a contar a partir do momento em que o direito pode ser exercido (artigo 306º, nº1, do Código Civil), sendo que, no âmbito específico da prescrição do direito de indemnização, presume o legislador que o mesmo pode ser exercido a partir do momento do seu conhecimento pelo lesado, embora desconheça ainda a pessoa do responsável e a extensão integral dos danos (artigo 498º, nº1, do Código Civil).»

Com este limite, isto é, quanto aos danos ainda não prescritos provenientes da mora do devedor com referência aos últimos três anos, o recurso deverá assim obter provimento, não sendo de manter a decisão que julgou improcedente a acção logo no saneador e devendo a mesma prosseguir a sua tramitação, nada mais obstando, para que a pretensão indemnizatória da Autora seja a final julgada procedente ou improcedente, na parte não prescrita, consoante a verificação ou inverificação dos pressupostos da responsabilidade civil aplicáveis.

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DECISÃO

Pelo exposto acordam em:

- Conceder parcial provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, julgando procedente a exceção de prescrição apenas quanto aos danos alegados pela Autora ocorridos anteriormente a 21-09-2006.

- Negar provimento ao recurso no demais.

- Determinar a baixa dos autos para que a respectiva tramitação prossiga os seus trâmites em ordem ao conhecimento de mérito sobre o direito de indemnização invocado, na parte não prescrita.

Custas pela Recorrente e pelo Recorrido em partes iguais.

Porto, 16 de Dezembro de 2016
Ass.: João Beato Sousa
Ass.: Hélder Vieira
Ass.: Joaquim Cruzeiro