Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03442/19.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:12/03/2021
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:DECISÃO DISCIPLINAR- ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS- DIREITO DE RETENÇÃO-NOTA DE HONORÁRIOS
Sumário:1-O artigo 219.º da LGTFP constitui uma norma especial sobre os requisitos da decisão administrativa disciplinar e que, por isso, afasta o regime do CPP.

2-O relatório final há- de ser completo e conciso, indicando os elementos referidos no art.º 219.º, n.º1 da LGTFP, mas não se exige “a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, que é reclamada pelo art.º 374.º, n.º 2 do CPP para as sentenças proferidas em processo criminal.

3-Trata-se de estabelecer um regime de menor solenidade comparativamente com as sentenças criminais e que, interpretado à luz das garantias do direito de defesa constitucionalmente assegurado (art.º 32.º, n.º 10 da CRP), exige é que a descrição factual que conste da decisão disciplinar permita ao “arguido” defender-se adequadamente dos factos que lhe são imputados.

4- Apresentada a nota de honorários e despesas, com a discriminação dos serviços prestados, o advogado goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número 1 do art.º 96.º do EOA, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.
Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Recorrente:M.
Recorrido 1:Ordem dos Advogados
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

1.RELATÓRIO.
1.1.M., Advogada, com domicílio profissional na cidade do Porto, intentou a presente ação administrativa contra a Ordem dos Advogados (OA), com sede em Lisboa, doravante Entidade Demandada ou Ré (R.), indicando como Contrainteressada A., residente em Espanha, pedindo que seja « anulada a decisão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, proferida em 23-09-2019, no processo n.º 56/2015- CS/R, tudo com as legais consequências», que confirmou a aplicação da pena de multa, fixada no valor de €1.000,00 (mil euros), com pagamento no prazo de três meses, “acrescida da entrega das quantias recebidas a título de tornas pertencentes à participante”, no prazo de 15 dias, sob pena de, não cumprindo, ser determinada a suspensão da inscrição da Autora.
Para tanto alega, em síntese, que a referida deliberação do Conselho Superior da OA, que negou provimento ao recurso interposto da deliberação do Conselho de Deontologia do Porto da OA, padece do vício de forma, por falta de fundamentação, ao omitir na decisão e no parecer prévio ao ato impugnado a indicação concreta de um só facto provado ou não provado e ainda por omissão de pronúncia sobre a questão suscitada no recurso a propósito da errada apreciação da matéria de facto.
Mais alega que o ato impugnado enferma de ilegalidade decorrente por errada apreciação da matéria de facto quanto à invocada prescrição do procedimento disciplinar e da própria infração.
Refere que a decisão impugnada fez uma incorreta interpretação dos institutos da compensação e da retenção e que o ato posto em crise enferma, nesta parte, de um abuso de direito.
1.2. Citada, a Entidade Demandada apresentou contestação, na qual se defendeu por impugnação, pugnando pela improcedência da ação.
1.3. Citada, a Contrainteressada não contestou, tendo apenas junto aos autos procuração forense.
1.4. Foi proferido despacho em que se dispensou a realização de audiência prévia, se considerou desnecessária a produção de outros meios de prova para além dos que constam dos presentes autos e do processo administrativo (PA), considerando-se esses elementos documentais suficientes, pertinentes e idóneos, sem necessidade de outras indagações, para conhecer do pedido formulado e fixou-se o valor da causa em €1.000,00 (mil euros).
1.5. Julgou-se a presente ação integralmente improcedente e absolveu-se a Entidade Demandada do pedido, constando esse saneador-sentença da seguinte parte dispositiva:
«Ante o exposto, porque não provada, julgo a presente acção improcedente, mantendo na ordem jurídica o acto impugnado.
Custas pela Autora – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º do CPTA, 6.º, n.º 1, e 14.º-A, alínea e), do RCP.
Registe e notifique.»
1.6. Inconformada com o assim decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes Conclusões:
«I
O documento nº8 junto com a petição inicial é um documento emitido pela ré, na qual esta reconhece expressamente que no dia 31 de Janeiro de 2008 a recorrente enviou a nota de honorários à contra-interessada e nessa mesma nota de honorários procedeu à compensação dos créditos “que se arrogou“ (cfr. fls. 137 e 138 do processo disciplinar); nesse mesmo documento nº8 junto com a p.i. é igualmente referido pela ré o seguinte: Posteriormente, a pedido da participante, em Maio de 2008, a Arguida discriminou a sua Nota de Honorários (cfr. fls. 138, ponto 12 do processo disciplinar).
II
Assim sendo, deve ser adicionado à matéria de facto um ponto com o seguinte teor:
A autora apresentou à contra-interessada, em Janeiro de 2008, a sua nota de honorários, tendo, mais tarde, complementado essa nota, sem alterar os respectivos valores, com a descriminação de todos os seus items, tendo tal facto sido expressamente reconhecido pelo réu
III
Conforme claramente resulta do ponto 17 dos factos provados, não há qualquer factualidade concretamente indicada no acto administrativo aqui em causa, não há qualquer referência factual, nem sequer por remissão, para qualquer outra peça constante do processo disciplinar, tendo-se limitado o autor do acto a pronunciar-se apenas sobre o recurso interposto pela também aqui recorrente e nada mais.
IV
Nos processos disciplinares elaborados pela recorrida é necessário haver uma indicação expressa dos factos em que os mesmos se baseiam sendo também obrigatória na fundamentação das decisões que coloquem termo aos mesmo a existência de uma fundamentação factual, expressa ou por remissão, dentro de um enquadramento que obedeça aos princípios decisórios no processo penal, artº.201º, nº2, da Lei nº35/2014, de 20 de Junho, ex vi artº.126º da Lei nº145/2015, de 8 de Setembro.
V
Considerando que o acto em causa nestes autos não contém um só facto provado, verifica-se que ao julgar que o mesmo está devidamente fundamentado a douta decisão aqui em crise violou o disposto nos artºs.152º e 153º do Código de Procedimento Administrativo, bem como o disposto no artº.268º, nº3, da CRP.
VI
Uma coisa é a prescrição do direito de perseguir o agente a quem é imputada a prática de uma infracção permanente, cujo alargamento do prazo de prescrição disciplinar tem origem na conduta daquele, outra, bem diferente, é saber se a entidade com poder para exercer a acção disciplinar iniciar a sua actuação disciplinar dentro do referido prazo alargado pode, a partir desse momento, prevalecer-se na sua conduta de regras procedimentais distintas em termos de prazos para os seus próprios actos e para as suas próprias decisões.
VII
A resposta a tal questão só pode ser negativa, desde logo, por falta de suporte constitucional, pois viola frontalmente o disposto no artº.20º, nº4, da CRP, segundo o qual todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
VIII
Sendo omisso o EOA em matéria de prazo máximo de duração do procedimento disciplinar, esta questão tem que ser analisada tendo em atenção o disposto no nº5 do artº.178º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho, aplicável ex vi artº.126º do actual Estatuto da Ordem dos Advogados.
IX
O citado artº.178º, nº5, da Lei nº35/2014, de 20 de Junho, regula precisamente o prazo de prescrição do processo procedimento disciplinar em si mesmo, limitando a sua duração máxima a 18 meses, sendo que o referido período, poderá ser suspenso, durante o tempo em que, por força de decisão ou de apreciação judicial de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
X
O entendimento acima sustentado, no sentido de que próprio processo disciplinar tem prazos próprios de prescrição a partir do momento em que é instaurado e independentemente do tipo de infracção em causa, é reforçado pelo facto de o artº.220º da Lei nº35/2014, de 20 de Junho, prever também uma caducidade do direito de aplicar a sanção disciplinar, relevando aqui o disposto nos nºs.4, 5 e 6 da referida norma.
XI
O facto de o actual Estatuto da Ordem dos Advogados ser posterior à instauração do processo disciplinar onde foi praticado o acto em causa, não impede a aplicação subsidiária da Lei nº35/2014, de 20 de Junho no seu decurso, nomeadamente na parte em que fixa a duração máxima do processo disciplinar.
XII
Conforme resulta do Parecer que fundamenta o acto administrativo aqui em causa, foi nomeada uma Srª. Relatora em 12 de Janeiro de 2018, sendo que em 16 de Julho 2019 a mesma abriu mão dos autos (cfr. ponto 16 dos factos provados), o que quer dizer que o processo esteve parado mais de 18 meses após a sentença de anulação da primeira decisão do processo a prolação do acto administrativo aqui em causa.
XIII
Tomando só em consideração os dois períodos acima referidos, verifica-se que entre a nomeação das Srªs. Relatoras do processo no Conselho Superior e as datas das respectivas decisões, o processo disciplinar esteve parado cerca de 30 meses, as quais quer sejam consideradas individualmente, quer sejam consideradas no seu conjunto, violam frontalmente o disposto no artº.20º, nº4, da CRP, já acima citado.
XIV
Por isso, tendo em atenção o supra dito, verifica-se que o procedimento disciplinar aqui em causa prescreveu, tendo também caducado o direito da ré em aplicar a sanção disciplinar, mostrando-se igualmente violado o disposto no artº.20º, nº4, da CRP, o que desde já aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
XV
Por força do exercício do seu mandato o advogado vê nascer na sua esfera jurídica um direito de crédito sobre o mandante, tendo este o direito a receber do advogado/mandatário todos os montantes que o mesmo tenha recebido na sequência do aludido exercício, ou seja, pode-se dar o caso de ambos, mandante e mandatário, serem, em simultâneo, credor e devedor um do outro.
XVI
Quer o Meritíssimo Tribunal a quo no ponto 21 dos factos provados, quer a recorrida, quer ainda contra-interessada reconhecem que existe um crédito de honorários da recorrente pelos serviços profissionais prestados no valor, pelo menos, € 18.387,60 (dezoito mil trezentos e oitenta e sete euros e sessenta cêntimos).
XVII
No momento em que foi proferida a decisão em causa nos presentes autos todos aqueles que iriam ser abrangidos pelos efeitos jurídicos da mesma não só sabiam que existe um crédito de honorários da recorrente sobre a contra-interessada, como também qual o valor que a recorrida atribuía ao mesmo.
XVIII
Apesar disso, no acto administrativo aqui em causa, a recorrida decidiu não só penalizar disciplinarmente a recorrente, como também exigir que a mesma entregue à contra-interessada a totalidade do valor, incluindo o relativo ao crédito que a própria recorrida expressamente reconheceu que a recorrente detém sobre a contra-interessada.
XIX
Tendo mantido tal entendimento, a douta decisão aqui em crise, além de ter dado cobertura judicial a um acto eivado do vício de abuso do direito, impôs à recorrente um sacrifício totalmente desproporcionado relativamente aos interesses das partes no processo, na medida em que salvaguarda em excesso o direito da contrainteressada, permitindo-lhe receber valores que a mesma nem sequer reclamou judicalmente durante mais de um dezena de anos, ao mesmo tempo que impõe à recorrente um sacrifício total do seu direito, reconhecido por todas as partes, colocando-a numa posição de, senão de impossibilidade, de grande dificuldade em exercer o mesmo.
XX
Face ao supra exposto, verifica-se que a douta sentença aqui em crise viola o princípio da proporcionalidade previsto no artº.5º, nº2, do CPA, e no artº.18º, nº2, da CRP.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V.Exªs. muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e, a final, julgado provado e procedente e, por via disso, ser revogada a douta decisão recorrida, sendo substituída por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas.
Decidindo deste modo, farão V.Exª., aliás, como sempre, um acto de
INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.»

1.7. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.8. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146º, n.º 1 do CPTA, o Ministério Público não emitiu parecer.
1.9. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
*
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber:
b.1- Se na sentença recorrida, a 1.ª Instância incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto ao não levar aos factos que deu como assentes a facticidade constante do documento n.º 8 junto com a p.i., a qual deve ser adicionada à matéria de facto;
b.2- Se nessa sentença, a 1ª Instância, incorreu em erro de direito:
(i)ao considerar como estando devidamente fundamentado o ato impugnado, quando inexiste uma indicação expressa ou por remissão, dos factos em que o mesmo se baseou, em violação do disposto nos artigos 152.º e 153.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e artigo 263.º, n.º3 da Constituição ( Conclusões IV e V);
(ii) ao julgar incorretamente como não verificada a prescrição do procedimento disciplinar, quando por força da aplicação do disposto no artigo 178.º, n.º5 da Lei 35/2014, de 20 de junho, no qual se prevê que o procedimento disciplinar prescreve no prazo de 18 meses, devia ter declarado o procedimento disciplinar como prescrito ( Conclusões VI a XIV);
(iii) ao exigir que a Recorrente devolva à contrainteressada a totalidade do valor dos honorários que lhe liquidou na respetiva nota de honorários, assim violando o princípio da proporcionalidade na medida em que impõe à Recorrente um sacrifício totalmente desproporcionado relativamente aos interesses das partes no processo (Conclusões XV a XIX).
*
III- FUNDAMENTAÇÃO
A. DE FACTO.
3.1.A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade:
«1) Em 31.01.2008, a Autora manifestou a sua intenção de proceder à compensação de honorários e apresentou à Contrainteressada a respectiva nota de honorários e despesas, com o seguinte teor:
NOTA DE HONORÁRIOS E DESPESAS
Processo de Inventário n. 0 5.35/1995 — 1ª Secção, 1ª Vara Cível do Porto
Despesas de expediente 500€
Provisão 18.10.1994 (80.000pts) 500€
Preparo inicial (7.000$00) 34,91€
Selos procurações (253$00x2) 2,52€
Provisão 05.02.1996 (100.00pts=122.630$00) 611,67€
Provisão 30.06.1997 (250.000pts) 1.500€
Certidão judicial 3,59€
Provisão 21.07.1998 (250.000pts 1.500€
Provisão 08.07.2002 1.000€
Despesas transferência 10,40€
Provisão 09.08.2006 2.500€
Taxa de justiça 181,60€
Anúncio Jornal Público 96,80€
Pagamento parcial de torna Jazigo / D. Marlene 7.751,45€
Restante pagamento de tornas D. Marlene 17.713.02€
Honorários (1994/2008) 25.000€
Total 25.829.82€ 33.076,12€
Saldo a V/favor de 7.246,30€”
(cf. - documento n.º 3 junto com a petição inicial);
2) Após a apresentação da nota de honorários, entre a Autora e a Contrainteressada foram trocadas comunicações por via electrónica (cf. documento n.º 3 junto com a petição inicial);
3) Em 14.10.2010, a Contrainteressada apresentou uma participação no Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados contra a ora Autora (cf. fls. 7 e ss. do processo administrativo - PA);
4) Em 27.05.2011, com base na participação referida em 3), o Conselho Deontológico do Porto da Ordem dos Advogados instaurou um processo de inquérito contra a ora Autora (cf. fls. 80 do PA);
5) Em 28.01.2013, o Relator-Adjunto do Conselho de Deontologia do Porto da OA emitiu parecer, no qual propôs a conversão dos autos de inquérito em processo disciplinar contra a ora Autora (cf. fls. 87 e seguintes do PA);
6) Em 01.02.2013, o Conselho de Deontologia do Porto da OA deliberou ratificar a proposta de conversão do processo de inquérito em processo disciplinar (cf. fls. 93 do PA);
7) Pelo ofício n.º D/2928-13, com data de 02.02.2013, enviado através de carta registada sob o n.º RM8183 1308 5PT, a ora R. comunicou à A. a deliberação referida em 6) e o despacho do Relator do Conselho de Deontologia do Porto da OA, que ordenou a notificação da Autora para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias (cf. documento n.º 10 junto com a petição inicial – cf. fls. 95 do PA);
8) Em 22.11.2013, foi proferido despacho de acusação contra a ora A. (cf. fls. 116 e ss. do PA);
9) Pelo ofício n.º D/9587-13, com data de 27.11.2013, a R. comunicou à ora Autora, através de carta registada com aviso de recepção sob o n.º 955734915PT, o despacho de acusação (cfr. fls. 120 e ss. do PA);
10) No Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados foi proferido o Relatório Final, com o seguinte teor (por excerto):
“3.ª Secção
Proc. Disciplinar n.º 370/2011-P/D
Participante: A.
Participadas: Dr.ª M. — CP(...)-P
Relator: N.
Relator Adjunto: P.
RELATÓRIO FINAL
RELATÓRIO
A Sr.ª A. participou da Sr.ª Dr.ª M., titular da cédula profissional nº (...)-P, com escritório no Porto.
Por deliberação de 01.02.2013, foi instaurado processo disciplinar, a qual foi notificada à Arguida por carta registada de 02.04.2013.
A Arguida pronunciou-se nos termos de fls. 94 e seguintes.
Foi ouvida a testemunha indicada pela Arguida e obtida a confiança do processo judicial nº 535/1995 da primeira vara cível do Porto, do qual foram extraídas cópias que se encontram anexadas aos presentes autos.
Para submissão a julgamento em processo disciplinar, a 22 de Novembro de 2013, foi deduzida acusação, contra a Dr.ª M. (cédula nº (...)-P), Advogada com inscrição em vigor, por violação dos deveres previstos nos artigos 92º, 95º nº 1 alínea a) e 96º todos do EOA, nos termos seguintes:
1. A Arguida é advogada no activo, com pagamento de quotas, inscrita na Ordem dos Advogados em 23/03/1988, com escritório na Praça (…).
2. No âmbito do processo de inventário que sob o n o 535/1995 correu termos pela 1.ª secção da 1.ª Vara Cível do Porto a Arguida interveio como mandatária da Participante.
3. Em Julho de 2007, a Arguida recebeu a quantia de 7.751,45€ relativa a tornas devidas à sua cliente no âmbito do supra referido processo.
4. Do que não deu conhecimento à cliente.
5. Em Janeiro de 2008 a Arguida recebeu a quantia de 17.713,02€ relativa às restantes tornas devidas à sua cliente no âmbito do supra referido processo.
6. No dia 31 de Janeiro de 2008 a Arguida enviou à participante a nota de honorários, com um valor de honorários de 25.000,00€ acrescido de despesas de 829,82€.
7. Na mesma nota de honorários a Arguida fez constar o valor de tornas, pertencentes à participante, e que ela recebeu de 7.751,45€ e de 17.713,02€.
8. Na mesma nota de honorários desde logo a Arguida procedeu à compensação dos créditos que se arrogou (ver facto 6) com os créditos a favor da participante, designadamente os das tornas a que esta tinha direito (v. facto 7).
9. Assim se fazendo de imediato pagar do valor dos honorários,
10. E expressando um saldo final ainda a favor da participante de 7.246,30€ (já abatidos os honorários e as despesas que apresentou).
11. Foi por esta via a primeira vez que a Arguida deu conhecimento à participante do recebimento das quantias relativas às tornas (facto 3 e facto 5).
12. Posteriormente, a pedido da Participante, em Maio de 2008 a Arguida discriminou a sua Nota de Honorários.
13. A Arguida efectuou a retenção do valor relativo às tornas devidas à sua cliente antes de apresentada a respectiva nota de honorários.
14. A Arguida premeditou a realização da prévia retenção do valor relativo às tornas como forma de se cobrar pelo seu trabalho.
15. O direito de retenção para ser validamente exercido implica a prévia apresentação ao cliente da nota de honorários, como decorre do disposto no n.º 3 do artigo 96.º do EOA.
16. Não pode também o Advogado que tenha cobrado um crédito em dinheiro do seu constituinte remeter-lhe a conta de honorários e, sem o seu acordo, deduzir estes no montante do crédito cobrado para. lhe remeter apenas o saldo apurado. Vide Acórdão do C. Superior de 17/6/83, na ROA, 43.º , pág. 853.
17. Pelo que, com a sua conduta, a Sr.ª Advogada participada violou, voluntariamente o disposto nos artigos 92º, 95º, nº1 alínea a) e 96º do EOA.
18. Cometendo infracção disciplinar (idem, artº 110º).
19. Em abstracto, pode ser aplicada qualquer das penas previstas no artº 125º a) a d) do mesmo diploma.
Regularmente notificada desta acusação, a Senhora Advogada arguida apresentou defesa a fls. 120, nos termos seguintes:
(...)
Não há nulidades, a instância é regular e válida e os autos contém todos os elementos necessários para avaliação final da conduta da Sr. a Advogada arguida.
FACTOS JURIDICAMENTE RELEVANTES PROVADOS
DA ACUSAÇÃO
Consideram-se provados todos os factos da acusação, suportados em documentos pela análise dos mesmos juntos aos autos e pela interpretação que deles retira qualquer intérprete comum, colocado na posição de um destinatário normal.
Também se consideram provados na medida em que se mostram parcialmente reconhecidos os factos pelo teor da defesa. Isto apesar dos “desvios” que quanto aos mesmos factos são feitos pela defesa, o que não permite considerar a defesa como confissão plena e eficaz. Pelo que, se antecipa já, não é utilizável a confissão como circunstância atenuante a ponderar aqui.
DA DEFESA
Considera-se apenas provado que a Senhora Advogada Arguida enviou à sua cliente comunicação informando que o saldo de 5.207,34€, que resultou da operação de compensação feita na nota de honorários, a favor da cliente seria retido até que a participante esclarecesse se é sujeito passivo de IVA em Espanha.
FACTOS NÃO PROVADOS:
DA ACUSAÇÃO
Inexistem factos não provados
QUALIFICAÇÃO E GRAVIDADE DA CONDUTA:
A acusação imputa à Sr. a Advogada Arguida a violação dos artigos 92º, 95º nº 1 alínea a) e 96º do EOA.
Dispõe o artigo 92º do EOA que:
1- A relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca.
2 - O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas.
Como refere o acórdão do C. Superior de 9/1/2004, em Jurisprudência do Conselho Superior, pág. 796: «A relação de confiança entre cliente e advogado deve considerar-se condição “sine qua non” da representação profissional ido advogado».
Transparece do supra exposto a inexistência de confiança da Sr.ª Advogada Arguida na sua Cliente.
E resulta da conduta da Sr. a Advogada Arguida, ao reter o valor relativo às tornas devidas à sua cliente antes de ter apresentado a sua nota de honorários — no caso da primeira prestação das tornas mantendo oculto o seu recebimento por seis meses — e ao permanecer na posse dessas quantias que estas acções não foram, nem são, praticadas de forma a defender os interesses legítimos da sua cliente.
O elenco dos deveres enunciados no nº 1 do artigo 95º do E.O.A. não é taxativo entendendo-se (ver anotação a este artigo em “Estatuto da Ordem dos Advogados - Anotado e Comentado”, Fernando Sousa Magalhães, Edições Almedina) que “um advogado deve aconselhar e defender o seu cliente com prontidão, consciência e diligência. O advogado assume pessoalmente a responsabilidade pelo cumprimento do mandato e deve informar o seu cliente da evolução do assunto que lhe foi confiado.”
Ora a ocultação do recebimento da primeira prestação das tornas, mantendo a sua cliente na ignorância deste facto por seis meses, com o intuito confessado de reter em seu poder esse montante para se fazer de imediato pagar do valor dos seus honorários que não divulgou previamente à cliente constitui manifesta violação dos deveres dos advogados nas suas relações com os clientes.
Lê-se no nº 1 do artigo 96º do EOA que o «advogado deve dar a aplicação devida a valores, objectos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado».
Por outro lado o n o 3 do mesmo artigo refere que o «advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objectos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objectos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a estes prejuízos irreparáveis»
(...)
Assim, tudo ponderado, considerando em especial, o grau de culpa (esta enquanto limite da pena), à gravidade da infracção, situada a um nível médio, e às suas consequências (de que resultou que a cliente ficasse e se mantenha desapossada de relevante quantia) proponho, por se me afigurar como suficiente e adequado, em vista às necessidades de prevenção geral e especial da punição, que à arguida seja aplicada a pena disciplinar de Multa, cujo montante se deve fixar em € 1.000,00 (mil euros), prevista na alínea c) do nº do artigo 125º do EOA, acrescida obrigação de entrega das quantias recebidas a título de tornas pertencentes à participante, nos termos do disposto nº 4 do artigo 125 0 do EOA.
A Sessão para deliberação.
Porto, 31 de Outubro de 2014 (...)”
(cf. documento n.º 8 junto com a petição inicial – cf. fls. 125 e ss. do PA);
11) Em 31.10.2014, o Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados deliberou aplicar à A. uma pena de multa, fixada no valor de €1.000,00 (mil euros), acrescida da entrega das quantias recebidas a título de tornas pertencentes à participante (cf. fls. 160 do PA);
12) Pelo ofício n.º D-7777-14, com data de 07.11.2014, a R. comunicou à A. a deliberação referida em 11), através de carta registada com aviso de recepção sob o n.º RF 072409280PT (cf. fls. 163 e ss. do PA);
13) Em 26.11.2014, a A. interpôs recurso para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, com o seguinte teor - por excerto - (cf. documento n.º 4 junto com a petição inicial – cf. fls. 163 e ss. do PA):
“(...) O Senhor Relator-Adjunto considerou provados todos os factos constantes da acusação, o que de modo algum se pode admitir, designadamente não deve ser considerado provado o ponto 17.º e, em consequência o ponto 18 dos factos que o Senhor Relator Adjunto considerou provados.
Concretamente, não foi provado, nem poderia ser por não corresponde á verdade, de que modo a ora recorrente violou o disposto no artigo 92.º e n.º 1 do artigo 95.º do E.O.A..
Isto porque nada no presente processo disciplinar, nem documentos nem, por certo, a prova testemunhal de dois colegas que bem acompanharam o ocorrido, prova que a ora recorrente em algum momento tenha deixado de defender os interesses do cliente ou que, de algum modo, tenha deixado de cumprir os deveres que o disposto no n.º 1 do artigo 95.º lhe impõe.
Na verdade, o senhor relator adjunto apenas fundamentou, num acórdão com mais de 30 anos de cega e cristalizada aplicação, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 96.º do E.O.A e essa, não pode proceder por contradição com o único facto que a ora recorrente logrou provar.
Ou seja, que, em bom rigor, o valor dos honorários foi compensado pelas tomas pelo que a única retenção comprovada, no valor de 5.207,34€, foi feita depois do envio da nota de despesas e honorários, pelo que de nenhum modo viola o referido normativo, até porque tal retenção só se mantém por inércia da participante que prefere apresentar queixa e pedido de laudo ao qual não deu o devido seguimento do que esclarecer a sua situação fiscal, de modo a que a quantia lhe seja entregue, se for o caso.
Pelo que, ainda que o presente processo disciplinar não tivesse prescrito, ainda assim, não poderiam ter resultado provados os factos em que o Senhor Relator-Adjunto fundamentou a sua decisão corroborada, por certo por desconhecimento dos detalhes da questão, pelo acórdão que a subscreveu. (...)”
(cfr. documento n.º 4 junto com a petição inicial – cf. fls. 165 e ss. do PA);
14) Em 02.04.2016, o Conselho Superior da Ordem dos Advogados deliberou aprovar “o parecer do (a) relator (a) que antecede, e assim, por unanimidade, decidem julgar improcedente o Recurso da Sra. Advogada arguida (recorrente), confirmando-se inteiramente a decisão recorrida, mantendo-se a pena acessória de restituição das quantias recebidas a título de tornas, sem prejuízo de eventual exercício do direito de retenção até ao limite da conta de honorários apresentada. Mais deliberam, nos termos do art.º 10.º, n.º 1 do Regulamento Disciplinar (Reg. N.º 668/2015) advertir expressamente a recorrente da obrigação de restituir as verbas em causa no prazo de 15 dias (conforme o disposto no art.º 138.º, n.º 1, c) do EOA de 2005), bem como no pagamento da multa no prazo de 3 meses (art.º 138.º, b) do EOA), sob pena de, não cumprido, se determinar a suspensão da inscrição da Sra. Advogada” (cf. fls. 220 do PA);
15) Em 05.08.2016, a ora A. apresentou neste Tribunal uma acção administrativa, que deu origem ao Processo n.º 1987/16.7BEPRT, contra o Conselho Superior da Ordem dos Advogados e a aqui Contra-interessada, na qual foi decidido anular o acto referido em 14. (cf. fls. 418 e ss. e 675 do PA);
16) Em 12.01.2018, a Dra. L. foi nomeada Relatora no processo disciplinar instaurado contra a ora Autora, e posteriormente, abriu mão dos autos em 16.07.2019 (cf. fls. 578 e 580 do PA);
17) Em 06.08.2019, no Conselho Superior da Ordem dos Advogados foi elaborado o seguinte parecer:
“PROCESSO: Nº 56/2015-CS/R
RECURSO DA DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DE DEONTOLOGIA DO PORTO
RECORRENTE: Dra. M.
RECORRIDA: A.
RELATOR: J.
PARECER
I - ENQUADRAMENTO:
Não se conformando com o Acórdão deste Conselho Superior da Ordem dos Advogados Portugueses de fls. 215, Acórdão que, na sequência do Parecer de fls. 207 e seguintes, decidiu o seguinte relativamente ao Acórdão do Conselho de Deontologia do Porto de fls. 155: “acordam os da 1ª Secção do Conselho Superior, reunidos em dois de abril de dois mil e dezasseis, em aprovar o parecer do (a) relator (o) que antecede, e assim, por unanimidade, decidem julgar improcedente a decisão recorrida, mantendo-se a pena acessória de restituição das quantias recebidas a título de tornas, sem prejuízo de eventual exercício do direito de retenção até ao limite do conto de honorários apresentada. / Mais deliberam, nos termos do artigo 10º, nº 1, do Regulamento Disciplinar (Reg 668º de 2015) advertir expressamente a recorrente da obrigação de restituir as verbas em causa no prazo de 15 dias (conforme o disposto no artº 138º, nº 1, c) do EOA de 2005) bem como no pagamento da multa no prazo de três meses (artº 138º, b) do EOA), sob pena de, não cumprindo, se determinar a suspensão da inscrição da Sra. Advogada”, a aqui Recorrente interpôs ação administrativa comum, com vista à respetiva anulação,
Terminava o seu petitório nos seguintes termos: “Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exª suprirá, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, por via disso, ser anulada a decisão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, proferida em 02-04-2016, no processo 56/2015-CS/R, tudo com as legais consequências,
Tendo tal ação corrido os respetivos termos junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto sob o número 1987/16.7BEPRT (e respetivo apenso “A”) (U.O.2), como resulta de fls. 500 e seguintes, foi proferida a seguinte decisão, entretanto transitada em julgado: “Nesta conformidade, pelas razões aduzidas, julga-se a presente ação procedente, e, consequentemente, anula-se o ato impugnado”.
Anulado o Acórdão de fls. 215, mantém-se por apreciar o recurso interposto peta Recorrente, acima melhor identificada.
A instância mantém-se válida e nada impede a prolação de decisão sobre o recurso interposto.
*****
Para o que nos importa, esclarece-se que:
— a fls. 2 e seguintes consta a participação da ora Recorrida contra a neste momento Recorrente;
— a fls. 75 está o Despacho a determinar a instauração de processo de inquérito à Participada;
— na sequência do Parecer de fls. 82 e seguintes, foi ratificada a conversão de tal Inquérito em Processo Disciplinar, como resulta de fls. 88;
— corrida a Instrução, foi deduzida acusação contra a Participada (fls. 111) e seguintes;
— consta defesa escrita, a fls. 119 e seguintes, na qual é requerida a produção de prova testemunhal e documental, prova essa que veio a ser produzida, como melhor resulta de fls. 133 e 134;
— o Relatório Final produzido no Conselho de Deontologia do Porto está fls. 136 e seguintes, estando o Acórdão condenatório a fls. 155;
— o recurso interposto pela Senhora Advogada Participada está a fls. 161 e seguintes; — Nomeada, em 21 de abril de 2015, para exercer as funções de relatora a Mui Ilustre Advogada e Vice-Presidente deste Conselho Superior, Dra. Paula Lourenço, a mesma proferiu o Parecer de fls. 207 e seguintes;
— Corridos os autos de processo administrativo comum acima identificados, foi nomeada, em doze de janeiro de 2018, para exercer as funções de relatora a Mui Ilustre Advogada e Conselheira deste Conselho Superior, Dra. L., a mesma abriu mão dos autos em 16 de julho de 2019, na sequência do que os autos me foram redistribuídos para neles exercer as funções de relator, em 18 de julho de 2019.
***** *****
II - FACTOS RELEVANTES E APRECIAÇÃO:
S.m.o., da fundamentação (e, ainda mais, das conclusões — dando-se ambas aqui por reproduzidas para todos os efeitos legais) ressaltam serem três as questões que a Recorrente traz colação para o Recurso que interpõe, e pelo qual pede que seja declarada nula a decisão que lhe aplicou como sanção disciplinar a de multa, acompanhada da sanção acessória de restituição de quantias.
Primeira: a da prescrição do processo;
Segunda: a da compensação e retenção como infração disciplinar;
Terceira: a das sanções (principal e acessória) que lhe foram aplicadas em face das circunstâncias agravantes e atenuantes verificadas.
Passo, pois, à respetiva análise.
No que à primeira diz respeito, desde já adianto não assistir razão à Recorrente.
Tem toda a razão a decisão posta em crise quando afirma que estamos perante uma infração permanente.
Vejamos: seguindo a lição do Professor Eduardo Correia (in Direito Criminal, l, páginas 309 e seguinte), a propósito da sua classificação dos crimes em razão da sua estrutura típica:
“Tipos de crimes permanentes são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo.... Na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem aliás nada de característico em relação o qualquer outro crime; outra, e esta propriamente típica, que, corresponde à permanência ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que, para alguns autores consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.
A existência deste dever, naturalmente ligada à natureza dos bens jurídicos protegidos, distingue o crime permanente dos chamados crimes de efeitos permanentes -, v, g. o furto. Nos crimes permanentes, realmente, o primeiro momento do processo executivo compreende todos os actos praticados pelo agente até ao aparecimento do evento (v. g. no crime de cativeiro do art.º 328º privação da liberdade do violentado), isto é, até à consumação inicial da infracção; a segunda fase é constituída por aquilo a que certos autores fazem corresponder uma omissão, que ininterruptamente se escoa no tempo, de cumprir o dever, que o preceito impõe ao agente, de fazer cessar o estado antijurídico causado, donde resulta, ou a corresponde, o protrair-se da consumação do delito, Desta forma, no crime permanente haveria, pelo menos, uma acção e uma omissão, que o integrariam numa só figura criminosa.”
Importa, pois, para que se possa dizer que estamos perante uma infração permanente, que, da estrutura típica do ilícito (neste caso) disciplinar, se possa afirmar que, tendo ocorrido um que colocou o ilícito em execução, essa execução que só ocorre efetivamente quando o faz cessar o comportamento proibido pela norma violada.
E, s.m.o., é precisamente nessa categoria que temos de enquadrar o ilícito previsto no artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na redação resultante da Lei nº 15/2005, de 26 de janeiro.
De facto, se a solicitação (mesmo se considerarmos que ela não era necessária, nos termos do preceito) dá o mote (passe a expressão) ao cometimento da infração, ela decorre ininterruptamente (i.e., permanentemente) até que o obrigado à restituição desses valores efetivamente os restitua.
Como decidiu, recentemente, o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 5 de dezembro de 2016, relatado pelo Ex.mo Desembargador Nelson Fernandes (e a propósito de infração disciplinar laboral): “Como se referiu já, nestes casos o facto punível cria um estado anti-jurídico que é mantido pelo autor, gerando esta permanência a realização ininterrupta do tipo — o facto renova-se continuamente —, estando assim aquele a actuar com o propósito inicialmente formulado e nunca abandonado, ou seja mantendo em reiteração o animus criminoso.”
E, obviamente, tal tem consequências no início do prazo de prescrição, como manda a alínea c) do artigo 112º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na redação resultante da Lei nº 15/2005, de 26 de janeiro.
No caso concreto dos autos, há de relevar a circunstância de, como a Recorrente confessa, ter cessado o patrocínio e nunca ter restituído à sua cliente os valores que esta havia recebido a título de tornas.
Tal vale por dizer que, contrariamente ao que pretende a Recorrente, no caso concreto dos autos, a prescrição — salvo se tiver havido já restituição das quantias “retidas” (do que os autos não são sabedores) — ainda nem sequer começou a correr.
Assiste, portanto, razão ao Conselho a quo.
Também no que à segunda questão diz respeito, falha verdade aos argumentos da Recorrente.
É claro o artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados de 2005:
«Artigo 96.º
Valores e documentos do cliente
1- O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objectos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesa, logo que tal lhe seja solicitado.
2- Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objectos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.
3- O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores objectos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objectos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.
4- Deve, porém, o advogado restituir tais valores e objectos, independentemente do pagamento a que tenho direito, se o cliente tiver prestado caução arbitrada pelo conselho distrital.
5- Pode o conselho distrital, antes do pagamento e a requerimento do advogado ou do cliente, mandar entregar a este quaisquer objectos e valores quando os que fiquem em poder do advogado sejam manifestamente suficientes para pagamento do crédito.” Recorrente vem afirmar que se limitou a exercer o seu (legítimo) direito de retenção, apesar de acabar por demonstrar que o que efetivamente pretendia era compensar as quantias que tinha recebido com aquelas que entendia devidas pelos seus honorários e despesas,
Vejamos, porém, se poderia ter tido tal comportamento.
Desde logo, tendo recebido as quantias devidas à sua cliente a título de tornas entre julho de 2007 e janeiro de 2008, hão tinha, manifestamente, direito a exercer direito de retenção sobre essas verbas.
E não tinha por uma razão essencial: o número 3 do artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados de 2005 é claro como a água ao prever que apenas após a apresentação da conta de honorários e despesas goza do direito de retenção sobre as verbas que constassem daquela nota.
O mesmo vale por dizer que a norma (especial) do artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados de 2005 afasta o regime (geral) dos artigos 757º e seguintes do Código Civil, sendo que, enquanto que este prevê a possibilidade de retenção “mesmo antes do vencimento do seu crédito, desde que entretanto se verifique alguma das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo”, o Estatuto da Ordem dos Advogados define um regime diferente: para que possa haver direito de retenção, é necessário que haja prévia apresentação da Nota de Honorários e Despesas. E diga-se que nem poderia ser de outro jeito, se o legislador quisesse manter a coerência do sistema normativo: como permitir, numa relação que deve ser especialmente baseada na confiança recíproca e onde o Advogado deve colocar os interesses do cliente e da deontologia (mesmo) à frente dos seus próprios interesses, como justificar que uma dívida hipotética (in casu, seguramente não existente, porque ainda não havia sido apresentada a Nota de Honorários e Despesas) pudesse fundar um direito para o Advogado que, na prática é especialmente gravoso para o cliente?
Mas, por outro lado, também é preciso que se diga que não poderia ter compensado as verbas que tinha em sua posse com aquelas que tivesse direito a título de honorários e reembolso de despesas.
E vetusta, é certo, mas nem por isso menos acertada e fixada como obrigatória entre a classe a doutrina do Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados Portugueses de 17 de junho de 1983, que fixa como assente que o Advogado não pode, sem prévia autorização do cliente, compensar verbas que tenha direito a receber com verbas que tenha recebido por ser Advogado daquele concreto cliente e que são deste (ainda para mais quando não pode considerar — como é caso — como exigíveis as verbas que lhe são cabidas...).
A compensação não autorizada, ademais in casu considerando que havia séria discordância entre a Recorrente e a Recorrida sobre a forma como haveriam de ser calculados os honorários devidos, nunca poderia ser tida por outra coisa que não por infração disciplinar, por violação do disposto no artigo 96º do Estatuto da Ordem dos Advogados de 2005
Falece, assim, o segundo argumento da Recorrente.
*****
A Recorrente argumenta ainda que não foram tidas em consideração, na graduação da sanção que lhe foi aplicada, as circunstâncias atenuantes e agravantes que in casu terão ocorrido.
Para a análise deste argumento da Recorrente, cumpre, antes do mais afirmar que o Estatuto da Ordem dos Advogados (na redação aplicável), previa como circunstâncias atenuantes as seguintes (cfr. artigo 127º):
«a) O exercício efectivo da advocacia por um período superior a cinco anos, sem qualquer sanção disciplinar;
b) A confissão;
c) A colaboração do advogado arguido para a descoberta da verdade;
d) A reparação espontânea, pelo advogado arguido, dos danos causado pela sua conduta.»
Por seu turno, previa como circunstâncias agravantes, estas (cfr. artigo 128º):
«a) A verificação de dolo;
b) A premeditação;
c) O conluio;
d) A reincidência;
e) A acumulação de infracções;
f) A prática de infracção disciplinar durante o cumprimento de pena disciplinar ou de suspensão da respectiva execução;
g) A produção de prejuízo de valor igual ou superior a metade do alçado dos tribunais da relação»
Exatamente como a decisão posta em crise, considero que apenas a circunstância atenuante referida na alínea c) do artigo 127º se pode considerar verificada.
Na verdade, ao contrário do que a Recorrente afirma, não se pode dizer que há confissão (em sentido jurídico sem que a afirmação do cometimento dos factos traga consigo a admissão do desvalor (in casu, deontológico) dos mesmos, sem que isso traga a noção de que quem confessa assume a natureza delituosa do seu comportamento. Os autos demonstram exatamente o oposto disso: a Recorrente chega mesmo a afirmar, ao longo dos autos que o seu comportamento é normal e eticamente aceitável. Não releva, pois: o que sucedeu não é uma verdadeira confissão, mas antes e apenas uma narração desgarrada de autocensura ética de comportamentos eticamente relevantes.
De igual sorte, tanto quanto os autos demonstram, até ao momento do recurso não tinha havido reparação. E, muito menos, que a mesma se pudesse dizer “espontânea”, exigência do preceito para que possa tal circunstância ser valorada como atenuante.
Já quanto às agravantes, estou em crer que o dolo e a premeditação são evidentes, como evidente é a acumulação de infrações.
Cabia, mesmo assim, a pena de multa? Creio que a interpretação redutora da Recorrente, afirmando que a multa apenas cabe às infrações cometidas a título de negligência não pode colher. Tenhamos por certo que, a sermos assim restritivos na leitura do artigo 126º levaria a que tivesse de lhe ser aplicada uma pena de suspensão, negando à pena de multa aquilo que, dentro da sua plasticidade e amplitude, pode ser aplicada tanto às situações de dolo como de negligência. A correta interpretação a fazer do preceito é a de que o legislador não quis deixar de ir além da advertência ou da censura quando estejamos perante comportamentos negligentes que, ou por a gravidade da conduta ser elevada ou pelo desvalor do resultado saltar demasiado à vista, não veem suficientemente assegurada a intenção normativa da punição com as duas primeiras formas de sanção que o Estatuto prevê.
O seu quantum, apesar de não ter sido posto em causa discutido pela Recorrente, não merece crítica, s.m.o.: serve, ao invés, as finalidades das sanções que o Estatuto da Ordem dos Advogados prevê, ao nível da prevenção geral e especial.
Quanto à restituição dos montantes pertencentes à sua cliente que o Acórdão em crise ordena como sanção acessória e que a Recorrente invectiva, creio que é de elementar justiça que se confirme a decisão do Conselho a quo, mantendo a sanção acessória nos seus precisos termos.
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III - PROPOSTA DE DECISÃO:
Por todas as razões acima expostas, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, mantendo, em consequência a seguinte decisão do Conselho de Deontologia do Porto (sic): “aplicar à Srª Advogada Arguida, Drª M., titular da cédula profissional nº (…)-P, a pena de MULTA, pelo valor de € 1.000,00 (mil euros), prevista na alínea c) do nº 1, do artigo 125º do EOA, acrescida da entrega das quantias recebidas a título de tornas pertencentes à participante, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 125º do Estatuto da Ordem dos Advogados”.
Mais deliberam, nos termos do artigo 10º, nº 1, do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Advogados (Regulamento n.º 668-A/2015, publicado no Diário da República, s.2, n.2 194 (1. º suplemento), de 5 de Outubro de 2015) advertir expressamente a recorrente da obrigação de restituir as verbas em causa no prazo de 15 dias (conforme o disposto no artº 138º, nº 1, c) do Estatuto da Ordem dos Advogados de2005) bem como no pagamento da multa no prazo de três meses (artº 138º, b) do Estatuto da Ordem dos Advogados, na mesma redação), sob pena de, não cumprindo, tal poder determinar a suspensão da inscrição da Senhora Advogada Recorrente, por decisão do Presidente do órgão de competente em matéria disciplinar, sem precedência de qualquer notificação.
É essa a proposta de decisão que submeto à próxima reunião da 3ª Secção do Conselho Superior da Ordem dos Advogados Portugueses.
Porto, 6 de agosto de 2019, (...)” - (cf. fls. 684 a 692 do PA);
18) Em 23.09.2019, com base no Parecer supra, o Conselho Superior da Ordem dos Advogados deliberou o seguinte:
“Acordam os membros da 3.ª Secção do Conselho Superior, reunidos em vinte e três de Setembro de dois mil e dezanove, em aprovar o parecer do Relator que antecede e assim nos seus precisos termos e fundamentos, negar provimento ao recurso” – (cf. fls. 693 do PA);
19) Pelo ofício n.º CS2813, com data de 26.09.2019, a R. comunicou à A. o parecer e o acórdão supra elencados, através de carta registada com aviso de recepção sob o n.º RH402415474PT (cf. fls. 695 do PA);
20) Em 30.11.2015, a Contrainteressada pediu a elaboração de laudo sobre os honorários peticionados pela A. ao Conselho Superior da Ordem dos Advogados, que emitiu parecer, do qual consta (por excerto):
“(...) IV - CONCLUSÕES
Em conformidade com tudo o que se deixa dito, e atento, nomeadamente, o grau de importância, complexidade, urgência, criatividade intelectual empenhados no assunto, bem como o tempo despendido, a longa duração do processo e os resultados obtidos, entende-se que não merecem laudo favorável os seguinte honorários apresentados pela Senhora Dra. M.:
a. € 25.000,00 no processo de inventário (de 1994 a Janeiro de 2008);
b. € 1 .750,00 no recurso de apelação (de Fevereiro a Junho de 2008). Mas entende-se que mereceriam laudo favorável os seguintes honorários:
c. € 16.397,60 no processo de inventário (de 1994 a Janeiro de 2008);
d. € 1.450,00 no recurso de apelação (de Fevereiro a Junho de 2008)
Lisboa, 30 de Novembro de 2015 (...)” - (cf. fls. 252 a 264 do PA).
Factos não provados
Inexistem factos não provados com relevância para o mérito da presente causa.
Motivação da decisão sobre a matéria de facto
A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto fundou-se sobre a prova documental inserta nos autos físicos e no PA, conforme indicado em cada um dos pontos do probatório, cuja produção e genuinidade não foi impugnada pelas partes.»
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III.B.DE DIREITO
b.1. Do erro de julgamento sobre a matéria de facto decorrente da sentença recorrida não ter levado aos factos assentes a facticidade constante do documento n.º 8 junto com a p.i..
A Apelante advoga que o documento n.º 8 junto com a p.i. é um documento emitido pela Ré no qual a mesma reconhece expressamente que no dia 31 de janeiro de 2008, a Recorrente enviou a nota de honorários à contrainteressada e nessa mesma nota de honorários procedeu á compensação dos créditos “que se arrogou”. Mais afirma que nesse documento é igualmente referido pela Ré o seguinte: “Posteriormente, a pedido da participante, em maio de 2008, a arguida discriminou a sua Nota de Honorários”, razão pela qual deve ser adicionado à matéria de facto um ponto com o seguinte teor:
«A autora apresentou à contrainteressada, em janeiro de 2008, a sua nota de honorários, tendo, mais tarde, complementado essa nota, sem alterar os respetivos valores, com descriminação de todos os seus itens, tendo tal facto sido expressamente reconhecido pelo réu».
Vejamos.
Para decidir se deve ao não aditar-se aos factos assentes a matéria suscitada pela Apelante, tem de se aferir se essa facticidade releva para a decisão da presente causa, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, e se, por conseguinte, essa facticidade carecia de constar do elenco dos factos provados ou não provados na sentença recorrida.
Com efeito, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 607º do CPC, na sentença, o juiz deve “discriminar os factos que considera provados” e “declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados”.
Os factos que incumbe ao juiz declarar provados e não provados na sentença, discriminando nela os que julga provados, não são todos os factos que tenham sido alegados pelas partes nos seus articulados, nomeadamente, pela apelante, na petição inicial, mas tão-somente os factos essenciais que constituem a causa de pedir que elegeu e que integram a previsão abstrata da norma ou normas de onde aquela faz derivar o direito que invoca, de obter a anulação do ato administrativo praticado pela entidade demandada .
Neste sentido, já antes da revisão operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, ponderou-se em aresto deste TCAN que “o julgador deve proceder ao julgamento de facto selecionando da alegação feita pelas partes aquela matéria factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se reporte ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa Ac. TCAN de 02/03/2012, Proc. 02459/07.6BEPRT, in base de dados da DGSI..
Destarte, quanto à facticidade em relação à qual a apelante acusa a omissão de pronúncia, no sentido de que a 1ª Instância não a julgou como provada ( nem como não provada, acrescentamos), impõe-se verificar se essa concreta facticidade consubstancia efetivamente factos essenciais ou complementares da causa de pedir em que aquela sustentou o pedido em ver anulado o ato administrativo praticado pela entidade demandada que lhe fixou a pena de multa de 1000€, acrescida da entrega à Contrainteressada das quantias recebidas a título de tornas pertencentes à participante.
A Recorrente invoca que no ponto 1 dos factos provados é referido o envio da “Nota de Honorários” mas no ponto 2 dos factos provados «é omitido que na sequência das comunicações eletrónicas a Nota de Honorários foi novamente apresentada de forma discriminada pela recorrente». E esse facto é relevante para o mérito da causa, tendo em conta o disposto no art.º 96.º, n.ºs 3,4 e 5, da Lei n.º 15/2005, de 26/01.
Considerando que nos presentes autos está em causa a impugnação da decisão disciplinar por via da qual a Apelante foi sancionada com uma pena de multa e com a imposição da obrigação de devolver à participante, aqui contrainteressada, o valor das tornas que recebeu, por se considerar que à mesma não assistia o direito de retenção sobre esses montantes na medida em que ainda não tinha apresentado a nota de honorários à sua constituinte quando reteve essas quantias, afigura-se que perante as várias soluções de direito plausíveis a referida matéria possa assumir relevo no conhecimento do mérito da ação.
Assim, adita-se aos factos assentes o ponto 2.1, com o seguinte teor:
««A autora apresentou à contrainteressada, em janeiro de 2008, a sua nota de honorários, tendo, mais tarde, complementado essa nota, sem alterar os respetivos valores, com discriminação de todos os seus itens, tendo tal facto sido expressamente reconhecido pelo réu».
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b.2. Dos erros de julgamento sobre a matéria de direito.
(i)Da falta de fundamentação do ato impugnado.
Nas conclusões III, IV e V, a Apelante impetra erro de julgamento quanto ao mérito da sentença recorrida por nela se ter considerado que o ato impugnado estava fundamentado, quando a seu ver resulta claramente do ponto 17) dos factos assentes que no ato administrativo impugnado não vem discriminada nenhuma factualidade concreta, nem sequer por remissão para qualquer outra peça ou documento do procedimento disciplinar, quando se sabe que em tais processos disciplinares é necessário que haja uma indicação expressa dos factos em que a decisão disciplinar se baseia, dentro de um enquadramento que obedeça aos princípios decisórios no processo penal, artº.201º, nº2, da Lei nº35/2014, de 20 de Junho, ex vi artº.126º da Lei nº145/2015, de 8 de Setembro, violando o disposto nos artºs.152º e 153º do Código de Procedimento Administrativo, bem como o disposto no artº.268º, nº3, da CRP.
A 1.ª Instância considerou que a decisão disciplinar estava devidamente fundamentada. Para o efeito, depois de enunciar o que deve entender-se por fundamentação das decisões administrativas, começou por identificar a seguinte questão, que foi colocada pela autora, no ponto III do requerimento que dirigiu ao Conselho Superior: “(...) Não deve ser considerado provado o ponto 17.º e, em consequência, o ponto 18 dos factos que o Senhor Relator Adjunto considerou provados. Concretamente, não foi provado, nem poderia ser por não corresponder à verdade, de que modo a ora recorrente violou o disposto no artigo 92.º e n.º 1 do artigo 95.º do E.O.A”.
Seguidamente, e em ordem a demonstrar a falta de razão da autora na critica apontada, a 1.ª Instância, tomando em consideração o parecer emitido pelo Relator, aprovado pelo Conselho Superior da OA, esclareceu que no ponto II, sob a epígrafe “Factos relevantes e apreciação”, no que respeita à compensação e retenção como infração disciplinar, o Relator refere que:
“(...) No caso em concreto, há de relevar a circunstância de, como a Recorrente confessa, ter cessado o patrocínio e nunca ter restituído à sua cliente os valores que esta havia recebido a título de tornas (...).
A Recorrente afirmou que se limitou a exercer o seu (legítimo) direito de retenção, apesar de acabar por demonstrar que o que efectivamente pretendia era compensar as quantias que tinha recebido com aquelas que entendia devidas pelos seus honorários (...)
Desde logo tendo recebido as quantias à sua cliente a título de tornas entre julho de 2007 e janeiro de 2008, não tinha, manifestamente, direito a exercer o direito de retenção sobre essas verbas (...)”.
Com base nessa facticidade, o Tribunal a quo concluiu que «da fundamentação da matéria de facto constante do parecer emitido pelo Relator, verifica-se que não se trata de juízos conclusivos, sem a indicação de factos que o sustentem. Considera-se, sim, suficiente e perceptível o enquadramento factual e a estrutura lógica do discurso, considerando-se, por isso, cumprido o dever de fundamentação prescrito na lei.
No caso em apreço, o Relator justificou cabalmente a proposta de decisão, ao circunscrever os factos imputados – confissão da não restituição das quantias recebidas e a demonstração de que pretendia exercer a compensação dos valores recebidos a título de tornas com a devida pelo valor dos honorários –, subsumindo-os na previsão legal e tirando a respectiva consequência.
Ao contrário do entendimento da A., que propugna a tese de que deve ter aplicabilidade o artigo 607.º, n.º 3, do CPC, nas decisões em apreço, segundo o qual deve “o juiz discriminar os factos que considera provados e indiciar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”, nada na lei impõe que na fundamentação dos actos administrativos haja a declaração dos factos que os julga provados e não provados, tal como preceituado pelo legislador para a elaboração de sentenças judiciais.
São campos distintos de actuação, não se devendo convocar uma norma de processo judicial civil para o caso vertente, porquanto, a R. actua ao abrigo de normas de cariz público, devendo, por conseguinte, fundamentar as suas decisões apenas de acordo com as citadas normas do CPA e conforme o que dita o específico estatuto disciplinar, sem necessidade de recorrer ao CPC.
Assim sendo, conclui-se que na deliberação ora impugnada, que remete para o parecer prévio, encontram-se devidamente justificados os pressupostos de facto em que assentou a deliberação, tendo ponderado as concretas questões suscitadas no recurso interposto pela A., tanto mais que os pontos 17 e 18 inserem matéria de direito e conclusivas.
Ante o exposto, por se encontrarem devidamente enunciados os pressupostos de facto da deliberação ora impugnada, constantes do parecer prévio (fundamentação “per relationem” – cf. artigo 153.º, n.º 1, do CPA), julga-se improcedente o alegado vício de forma por falta de fundamentação.»
Pese embora a fundamentação das decisões administrativas, e com exigência acrescida, as decisões punitivas de cariz sancionatório como são as decisões disciplinares tenham de ser devidamente fundamentadas, delas tendo de constar as razões de facto e de direito que levaram a Administração a decidir nos moldes em que decidiu, tal não significa que as decisões sancionatórias estejam sujeitas aos mesmos formalismos e ao mesmo tipo de fundamentação que as leis processuais adjetivas prescrevem para as decisões judiciais.
O artigo 126.º do EOA estabelece que ao «Ao exercício do poder disciplinar da Ordem dos Advogados, em tudo o que não for contrário ao estabelecido no presente Estatuto e respetivos regulamentos, são subsidiariamente aplicáveis as normas procedimentais previstas na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho».
É consabido que a decisão disciplinar constitui o culminar de um procedimento próprio e autónomo pelo qual, no exercício do poder disciplinar, se visa, na sequência de uma tramitação legalmente prevista, apurar a responsabilidade disciplinar e aplicar, quando seja o caso, uma sanção disciplinar pela prática da infração disciplinar.
Logo, como não podia deixar de ser, exige-se que sejam indicados os elementos que contribuíram para a decisão por forma a que o destinatário se aperceba de todos os factos que lhe são imputados e dos pontos necessários à sua defesa, em sintonia com o direito constitucional à notificação de atos lesivos e à respetiva fundamentação expressa e acessível e com a garantia do direito à defesa.
O artigo 219.º da LGTFP constitui uma norma especial sobre os requisitos da decisão administrativa disciplinar e que, por isso, afasta o regime do CPP. Ou seja, o relatório final há-de ser completo e conciso, indicando os elementos referidos no art.º 219.º, n.º1 da LGTFP, mas não exige “a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, que é exigida pelo art.º 374.º, n.º 2 do CPP para as sentenças proferidas em processo criminal.
Trata-se de estabelecer um regime de menor solenidade comparativamente com as sentenças criminais e que, interpretado à luz das garantias do direito de defesa constitucionalmente assegurado (art.º 32.º, n.º 10 da CRP), exige é que a descrição factual que conste da decisão disciplinar permita ao arguido defender-se dos factos que lhe são imputados de modo a ser-lhe possível, com base nessa perceção, defender-se adequadamente
No que se refere ao relatório final, o art.º219.º a LGTFP esclarece que finda a defesa do arguido o instrutor elabora relatório completo e conciso donde conste a existência material das faltas, sua qualificação e gravidade, importâncias que porventura haja a repor e seu destino, e bem assim a sanção disciplinar que entender justa ou a proposta para que os autos se arquivem por ser insubsistente a acusação, designadamente por inimputabilidade do trabalhador.
Importa atender aqui ao que se escreveu no Ac. do TCA Norte proferido no processo 827/07.2BEPRT, no que à fundamentação da valoração da prova na decisão disciplinar respeita: “[…]a fase da apreciação da prova, actividade que tem por fim extrair de cada um dos meios de prova o máximo de conclusões com o máximo de probabilidades e do conjunto do material probatório uma determinada conclusão. Produzida a prova, o órgão instrutor deve fazer uma interpretação das provas, dizendo o que se deve concluir delas, e uma avaliação ou valoração, indicando qual o grau de probabilidade que reveste essa conclusão.
Dada a natureza inquisitória do procedimento disciplinar e em conjugação com o princípio da verdade real (cfr. arts. 56º e 86º do CPA), em regra, nesta fase vigora o princípio da livre apreciação das provas, segundo o qual o órgão instrutor tem a liberdade de, em relação aos factos que hajam servir de base à aplicação do direito, os apurar e determinar como melhor entender, interpretando e avaliando as provas de harmonia com a sua própria convicção.
Todavia, esta “liberdade probatória” não é total e completa, pois evidentemente que está condicionada pela finalidade de se obter o mais elevado grau possível de aproximação à verdade. O instrutor não pode avaliar as provas simplesmente segundo as suas opiniões individuais, mas segundo as regras da verdade histórica e com fundamentação da decisão. A «livre convicção», sob pena de não ter qualquer conteúdo lógico, não significa ausência de motivos de convicção, mas apenas que o juízo em que se traduz a apreciação não decorre directamente de regras legalmente impostas.
[…] Na apreciação das provas, não se trata de decidir através da impressão ou intuição que se tem, mas segundo a persuasão racional que o órgão administrativo tem das provas recolhidas através do processo. A autonomia que o órgão administrativo tem na apreciação das provas está pois submetida a um princípio de racionalidade, cuja violação é controlável pelo tribunal. A função de controlo judicial limita-se assim a detectar se a apreciação das provas tem uma base racional, se o valor das provas produzidas foi pesado com justo critério lógico, não enfermando de erro de facto ou erro manifesto de apreciação.
É através da fundamentação da decisão que se deve averiguar se a valoração das provas está racionalmente justificada e se ela é capaz de gerar uma convicção de verdade sobre a prática dos ilícitos disciplinares imputados ao recorrente.”
No caso, tendo em conta o teor do parecer prévio no qual se encontram explicitados e devidamente enunciados os pressupostos de facto da deliberação ora impugnada, (fundamentação “per relationem” – cf. artigo 153.º, n.º 1, do CPA), impõe-se concluir pela improcedência do invocado fundamento de recurso, e pela confirmação da sentença recorrida.
(ii) Da prescrição do procedimento disciplinar
Nas conclusões VI a XIX das respetivas alegações de recurso, a Apelante assaca erro de julgamento à sentença recorrida por ter julgado que no caso não ocorria a prescrição do procedimento disciplinar que contra si foi instaurado, o qual culminou com a decisão disciplinar impugnada na presente ação, invocando as mesmas razões que na ação deduziu contra a decisão disciplinar que lhe foi aplicada, nada acrescentando de novo contra a sentença proferida pelo Tribunal a quo.
A Recorrente advoga que sendo o Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) omisso em matéria de prazo máximo de duração do procedimento disciplinar, esta questão tem que ser analisada tendo em atenção o disposto no nº5 do artº.178º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº35/2014, de 20 de Junho, aplicável ex vi artº.126º do atual EOA.
O artº.178º, nº5, da Lei nº35/2014, de 20 de Junho, regula precisamente o prazo de prescrição do processo disciplinar em si mesmo, limitando a sua duração máxima a 18 meses, sendo que o referido período, poderá ser suspenso, durante o tempo em que, por força de decisão ou de apreciação judicial de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
O entendimento acima sustentado, no sentido de que próprio processo disciplinar tem prazos próprios de prescrição a partir do momento em que é instaurado e independentemente do tipo de infracção em causa, é reforçado pelo facto de o artº.220º da Lei nº35/2014, de 20 de Junho, prever também uma caducidade do direito de aplicar a sanção disciplinar, relevando aqui o disposto nos nºs.4, 5 e 6 da referida norma.
O facto de o atual Estatuto da Ordem dos Advogados ser posterior à instauração do processo disciplinar onde foi praticado o ato em causa, não impede a aplicação subsidiária da Lei nº35/2014, de 20 de junho no seu decurso, nomeadamente na parte em que fixa a duração máxima do processo disciplinar.
Conforme resulta do Parecer que fundamenta o ato administrativo aqui em causa, foi nomeada uma Srª. Relatora em 12 de janeiro de 2018, sendo que em 16 de julho 2019 a mesma abriu mão dos autos (cfr. ponto 16 dos factos provados), o que quer dizer que o processo esteve parado mais de 18 meses após a sentença de anulação da primeira decisão do processo a prolação do acto administrativo aqui em causa.
Tomando só em consideração os dois períodos acima referidos, verifica-se que entre a nomeação das Srªs. Relatoras do processo do Conselho Superior e as datas das respectivas decisões, o processo disciplinar esteve parado cerca de 30 meses, as quais quer sejam consideradas individualmente, quer sejam consideradas no seu conjunto, violam frontalmente o disposto no artº.20º, nº4, da CRP, já acima citado.
Por isso, tendo em atenção o supra dito, verifica-se que o procedimento disciplinar aqui em causa prescreveu, tendo também caducado o direito da ré em aplicar a sanção disciplinar, mostrando-se igualmente violado o disposto no artº.20º, nº4, da CRP, , segundo o qual todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo..
Mas sem razão, na medida em que, conforme decorre da sentença recorrida, o disposto no artigo 178.º da LGTFP não é aplicável na situação vertente, conquanto o regime legal da prescrição do processo disciplinar contra advogados é o que vem estabelecido no EOA.
Conforme se lê na sentença recorrida, todos os argumentos que a Recorrente repete nesta instância contra a sentença recorrida foram ponderados, tendo-se concluído pela não verificação da invocada prescrição do procedimento disciplinar com base na seguinte fundamentação que passamos a reproduzir e que subscrevemos integralmente :«A A. aduz, em síntese, o seguinte:
- Nas infracções permanentes previstas no artigo 117.º do EOA, o procedimento disciplinar não pode ter uma duração ilimitada;
- O procedimento disciplinar prescreveu, já que, decorreram mais de 18 meses entre a estabilização da instância disciplinar (a data em que a A. apresentou o recurso e a Contra-interessada tomou posição no processo, descontado o tempo de duração do anterior processo judicial) e a data da decisão do processo disciplinar;
- O processo disciplinar esteve parado cerca de 30 meses entre a nomeação da Relatora e a decisão;
- A referida paragem viola o disposto no artigo 20.º, n.º 4, da CRP, segundo o qual todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo;
- O Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09.09, não prevê expressamente o prazo máximo de duração do mesmo, daí que, sendo omisso, a questão deve ser analisada tendo em atenção o disposto no artigo 178.º da LGTFP.
Como atrás se expôs, a A. defende a aplicabilidade do artigo 178.º da LGTFP, por omissão do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) quanto à matéria de prazo máximo de duração do procedimento disciplinar, por remissão do artigo 126.º da Lei n.º 145/2015, de 09.09, aplicável subsidiariamente “em tudo o que não for contrário ao estabelecido no EOA”.
Desde já se afirma que a A. não tem razão, visto que, o regime jurídico da prescrição do procedimento disciplinar encontra-se exaustivamente previsto no EOA.
Vejamos então.
Dispõe o artigo 96.º, n.º 3, do EOA, que “O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objectos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente (...)” (sublinhado meu).
De acordo com o artigo 112.º da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, que corresponde ao artigo 117.º da Lei n.º 145/2015, de 09.09, com a epígrafe “Prescrição do procedimento disciplinar”, em vigor à data dos factos:
“1 - O procedimento disciplinar extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática da infracção tiver decorrido o prazo de cinco anos.
2 - O prazo de prescrição do procedimento disciplinar corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, o prazo de prescrição só corre:
a) Nas infracções instantâneas, desde o momento da sua prática;
b) Nas infracções continuadas, desde o dia da prática do último acto;
c) Nas infracções permanentes, desde o dia em que cessar a consumação.
4 - A prescrição do procedimento disciplinar tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. (...)” – (negrito e sublinhado meus).
O artigo 113.º, n.º 1, do EOA, prevê que o prazo de prescrição se suspende nos seguintes casos:
“a) O processo disciplinar estiver suspenso, a aguardar despacho de acusação ou de pronúncia em processo criminal;
b) O processo disciplinar estiver pendente, a partir da notificação da acusação nele proferida;
c) A decisão final do processo disciplinar não puder ser notificada ao arguido, por motivo que lhe seja imputável”.
Segundo o artigo 113.º, n.º 2, do EOA, a suspensão, quando resulte da situação prevista na alínea b) do número anterior, não pode ultrapassar o prazo de dois anos.
Mais prescreve o artigo 113.º, n.º 3, do EOA, que o prazo prescricional volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.
Além disso, o prazo de prescrição interrompe-se, nos termos do artigo 114.º do EOA, com a notificação ao advogado arguido da instauração do processo disciplinar e da acusação.
Após cada período de interrupção começa a correr novo prazo de prescrição (artigo 114.º, n.º 2, do EOA).
A prescritibilidade do exercício da acção disciplinar constitui um princípio geral do direito sancionatório, funcionando o Código Penal como “regime padrão e em cujo art.º 121.º se encontra consagrado tal princípio (...) Daí que a prescritibilidade das infrações constituirá um princípio geral do direito sancionatório, princípio este que se mostra presente no nosso direito disciplinar, não só no regime padrão inserto nos vários ED’s, mas, também, nos vários regulamentos disciplinares especiais, com a expressa previsão de normas sobre prescrição, relativas quer ao procedimento disciplinar quer às penas nele concretamente aplicadas.” – cfr. Acórdão do STA, de 31.01.2019, emitido no processo n.º 01558/17, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, à semelhança do que sucede no Direito Penal, no processo disciplinar, a infracção disciplinar pode ser instantânea, continuada, permanente ou duradoura.
A este propósito, chama-se à colação o Acórdão do TCA Norte, de 10­-02-2017, proferido no processo n.º 658/16, disponível em www.dgsi.pt, do qual se extrai a seguinte passagem: “O Prof. Eduardo Correia (in Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, 1983 (reimpressão), nota 1 da pág. 23) afirma que este tipo de ilícitos estruturam-se em duas fases distintas: a primeira que se analisa na produção de um estado antijurídico e que nada tem de distinto em relação às demais infracções; uma segunda, esta específica e a conferir justificação material ao diferente regime, mormente no domínio da contagem do prazo prescricional, corresponde à manutenção desse evento e que consiste no cumprimento do comando (tácito) que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesses jurídicos, em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz. Desta forma, no crime permanente existirá uma acção e uma omissão indivisíveis e que a lei integra numa só figura criminosa. Pelo contrário, nos ilícitos instantâneos com efeitos duradouros inexiste o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa. No caso dos autos, foi imputada ao Autor a violação dos deveres ínsitos nos art.ºs 76.º, n.º 1, 2 e 3, 79.º, alínea a), 83.º, n.º 1, alínea c), d), g), h), 84.º, n.º 1 do EOA com as alterações ocorridas em 2001 e arts. 83.º, n.º 1 e 2, 86.º, al. a), 92.º, n.º 1 e 2, 95.º, n.º 1, al. a) e b), 96.º, n.ºs 1 e 2 do actual EOA, Lei n.º 15/2005 de 26/01, por se ter apropriado de valores monetários que se destinavam aos seus clientes e os ter depositado na sua conta bancária. Trata-se, assim, de uma infracção permanente ou duradoura, em duas fases, sendo que a primeira ocorre quando o Autor se apropria da quantia e a não entrega e a segunda quando mantém a intenção de não entregar ao longo do tempo, sendo que se lhe impunha que cumprisse os deveres que sobre ele impendiam. Estamos, desta forma, perante um ilícito que persiste no tempo, constituindo comportamentos omissivos que perduram enquanto o Autor não praticar o facto que tem omitido desde o momento da apropriação – a entrega ao mandante”.
Da factualidade apurada resulta que, no âmbito do patrocínio forense desempenhado em processo de inventário, a A. recebeu as quantias devidas à Contrainteressada a título de tornas, cujo montante reteve para pagamento de honorários, sem a prévia apresentação da nota de honorários e despesas.
Considerando que a A. não pode ignorar os deveres estatutários previstos no artigo 96.º, n.ºs 1 e 2, do EOA, a decisão unilateral de não restituir o valor das tornas consubstancia um acto concludente de inversão da posse dos valores recebidos.
Tendo presente que a A. recusou a entrega das quantias à Contrainteressada, retendo-as ao longo do tempo, e nada constando dos autos que comprove a entrega efectiva de qualquer montante à Contrainteressada, conclui-se que a consumação do ilícito disciplinar perdura no tempo e só cessará quando a A. deixar de reter a quantia a título de tornas.
A infracção disciplinar imputada à A. integra, com efeito, um ilícito permanente ou duradouro, cujo início do prazo de prescrição só pode ser contado após a cessação da situação de infracção (só a partir do dia em que cessar a consumação), pois que a conduta imputada à A. consistiu em ter recebido montantes a título de tornas, entre 2007 e 2008, e não as ter transferido para a Contrainteressada.
Nessa medida, não tendo a A. até à data da decisão final do procedimento disciplinar cumprido com o dever de entrega daqueles montantes, conclui-se que o prazo de prescrição do procedimento disciplinar ainda nem sequer começou a correr aquando da prolação da decisão final emitida nesse mesmo processo disciplinar.
Em conclusão, é de julgar improcedente o invocado vício de violação de lei, na modalidade de erro sobre os pressupostos de direito.»
No caso, como bem considerou a 1.ª Instância, o comportamento da Recorrente constitui uma infração continuada uma vez que impendendo sobre a mesma a obrigação legal de restituir os montantes que recebeu a título de tornas pertencentes à Contrainteressada e não os tendo ainda entregue, ou seja, verificando-se que à data da decisão final do procedimento disciplinar ainda não tinha cumprido com o dever de entrega daqueles montantes, só pode concluir-se que o prazo de prescrição do procedimento disciplinar ainda nem sequer começou a correr aquando da prolação da decisão final emitida nesse mesmo processo disciplinar.
Conforme se ponderou no Ac. TCAN, de 15.07.2014, processo n.º 00907/05.9BELSB: «As infrações permanentes completam-se num dado instante quanto a todos os seus elementos constitutivos. Todavia, só se consumam materialmente quando cessa o efeito do ilícito, como seja a realização do fim do agente. Como ensina Wessels (Derecho Penal, Parte General, Buenos Aires, 1980, p. 10), “a manutenção da situação ilícita depende da vontade do autor, de modo que este realiza o tipo não só quando provoca a situação, como quando a deixa perdurar”; enquanto perdura a conduta lesiva, em cada um desses momentos, o facto como que se renova, continua a realizar-se a violação do interesse que a norma quer tutelar, e inclusivamente a contribuir para o incremento da ilicitude e da pena; casos em que permanece o dever, que se renova a cada instante, porque não cumprido, de, por exemplo, entregar o alheio, que o agente ainda detém ilegitimamente; a permanência deste dever é que vai determinar que a infração se consuma no preciso momento, e só nesse, em que o dever já não tenha de ser cumprido, nomeadamente, porque a quantia em dinheiro foi entregue ou devolvida, pondo-se termo à situação antijurídica.
Segundo Eduardo Correia, na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem, aliás, nada de característico em relação a qualquer outro crime, e, outra, esta propriamente típica, que corresponde à permanência ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que para alguns autores consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesse jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz. (Direito Criminal, I, p. 309).

Como também refere este eminente mestre de Coimbra, a existência do dever de cessar o estado antijurídico criado, faz distinguir os crimes permanentes dos crimes de efeitos permanentes, aqueles que se esgotam num único momento, mas cujos efeitos se podem prolongar no tempo. É, pois, importante não confundir o crime instantâneo com o crime permanente, quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, dado que se prolongam no tempo. Todavia, são efeitos que dizem respeito às consequências nocivas que podem derivar do crime, em nada alterando a sua estrutura no que se refere à instantaneidade da consumação. Casos em que o agente cria uma situação antijurídica, mas a sua manutenção já não tem significado típico. Nestes ilícitos de efeitos permanentes, com características duradouras, por vezes mencionados como delitos de situação (délit de situation, Zustandsdelikt - Kindhäuser, Strafgesetzbuch, 4ª ed., Nomos, 2010, pág. 131), - como a bigamia (art. 247º CP), ou a ofensa à integridade física prolongada, como também será o caso do art. 144º, c) do Código Penal, com a provocação de doença permanente ou anomalia psíquica incurável -, o agente, uma vez criada a situação, que a seguir lhe escapa das mãos, fica sem qualquer capacidade de lhe pôr termo.
Não havendo de confundir a consumação das infracções com a cessação dos efeitos dessa consumação.
Os efeitos são especialmente importantes para a questão da prescrição, uma vez que de modo diferente ao das infracções de execução instantânea (em que o prazo de prescrição corre desde o dia em que o facto se tiver consumado - (art. 119º, nº 1, do CP), esta “só corre” “nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação” (art. 119º, nº 2, a), do CP) - Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2014, Almedina, pág. 462.
Como é o caso.

No que diz respeito à retenção ilegítima do dinheiro do cliente pelo seu advogado, e também na falta de comunicação de mudança do escritório, estamos perante infracções permanentes.» ( sublinhado nosso).
A igual conclusão também chegou o TCAS, no seu Acórdão de 30/04/2015, processo n.º 07219/11, em cujo sumário se refere que:« I-Nas infrações permanentes o prazo de prescrição do procedimento disciplinar apenas começa a correr quando cessa a infração».
Por fim, no mesmo sentido também já se pronunciou a mais alta instância desta jurisdição, o Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 11/01/2011 , processo n.º 1214/09, em cujo sumario concluiu que IX - Relativamente a infrações duradouras, o prazo de prescrição só se começa a contar com a cessação da atividade ou omissão que constitui a infração».
Na situação vertente, considerando que os factos imputados à Recorrente e pelos quais a mesma foi disciplinarmente sancionada, consubstanciam uma infração por omissão (abstenção da atividade devida), cuja consumação se protrai no tempo e só cessa quando, por ação (comportamento ativo), o agente cumpre o dever que, por omissão, incumpria, ou quando se torna objetivamente impossível que ainda possa cumpri-lo, ou seja, no caso, apenas cessa com a restituição das quantias que lhe foram entregues, naturalmente que o cômputo do prazo de prescrição do procedimento disciplinar decorrente da prática de infrações de carácter permanente apenas se inicia desde o dia em que cessar a consumação.
Logo, como bem se julgou na sentença recorrida, não tendo a Recorrente até à data da decisão final do procedimento disciplinar cumprido com o dever de entrega daqueles montantes, só pode concluir-se que o prazo de prescrição do procedimento disciplinar ainda nem sequer começou a correr aquando da prolação da decisão final emitida nesse mesmo processo disciplinar.
Termos em que, em razão de tudo quanto se expendeu, se tem de concluir pela sucumbência do invocado fundamento de recurso.

(iii) Da violação do princípio da proporcionalidade.
Por fim, nas conclusões XV a XX, a Recorrente assaca à sentença recorrida erro de julgamento decorrente da violação do princípio da proporcionalidade.
Alega para o efeito, que no exercício do mandato forense, pode dar-se o caso de mandante e mandatário, serem, em simultâneo, credor e devedor um do outro, pelo que, resultando provado no ponto 21 dos factos assentes que existe um crédito de honorários da recorrente pelos serviços profissionais prestados no valor, pelo menos, de € 18.387,60 (dezoito mil trezentos e oitenta e sete euros e sessenta cêntimos), tendo a sentença mantido o entendimento expresso na decisão disciplinar impugnada, para além de dar cobertura judicial a um ato eivado do vício de abuso do direito, impôs à recorrente um sacrifício totalmente desproporcionado relativamente aos interesses das partes no processo, na medida em que salvaguarda em excesso o direito da contrainteressada, permitindo-lhe receber valores que a mesma nem sequer reclamou judicialmente durante mais de um dezena de anos, ao mesmo tempo que impõe à recorrente um sacrifício total do seu direito, reconhecido por todas as partes, colocando-a numa posição de, senão de impossibilidade, de grande dificuldade em exercer o mesmo.
É inquestionável que a Apelante, como advogada, tem o direito de se fazer pagar pelos serviços que presta aos seus constituintes. Porém, considerada a relevância pública das funções que exerce, sobre a qual impende «o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas »( art.º 92.º, n.º2 do EOA), a Recorrente está vinculada ao cumprimento das regras estabelecidas no EOA, onde se incluem as que regulam a fixação e pagamento de honorários.
Assim, no EOA, na versão aplicável aos autos, conferida pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro, estabelece-se no n.º1 do artigo 100.º ( n.º3 do art.º 105.º do atual EOA) que « Os honorários do advogado devem corresponder a uma compensação económica adequada pelos serviços efetivamente prestados, que deve ser saldada em dinheiro e que pode assumir a forma de retribuição fixa», determinando-se no n.º2 que «Na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respetiva conta de honorários com a discriminação dos serviços prestados».
A apresentação da conta de honorários com a discriminação dos serviços prestados, constitui uma formalidade destinada à prova da liquidação do crédito por honorários e, consiste simultaneamente na interpelação para pagamento desse crédito.
Conforme se sumariou no Acórdão do TRL, de 19/12/2019, proferido no processo n.º 56285/17.9YIPRT.L1-6: Trata-se da imposição de uma formalidade que se destina à demonstração da liquidação do crédito de honorários e, simultaneamente, à interpelação para pagamento, desse crédito, exigindo a lei que seja feita por escrito». ( no mesmo sentido, cfr. Ac. do TRG, de 13.10.2016, processo n.º 465/14.3T8VRL-A.G1).
E para o que releva à economia destes autos, importa considerar o disposto no artigo 96.º do EOA, em cujo n.º 1 se começa por dispor que « O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.»
E no n.º3 desse artigo prescreve-se que « O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.»
É pacifico que o direito de retenção pode ser validamente exercido pelo senhores advogados, desde que verificados os requisitos enunciados no n.º3 do art.º 96.º do EOA. Este direito de retenção consiste numa manifestação do direito de retenção previsto nos artigos 754.º e seguintes do Cód. Civil, emergindo não como um meio de coação do cumprimento de uma obrigação, mas como um verdadeiro direito real de garantia.
Segundo o ensinamento e palavras de ANTUNES VARELA, o direito de retenção é “o direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os mais credores”.
Decorre do regime estabelecido no art.º 754.º do C. Civil que são requisitos genéricos de que depende a existência e o exercício do direito de retenção: (i) a detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem;(ii) que o retentor seja credor da pessoa com direito à entrega; (iii)que o crédito do retentor resulte de despesas com a coisa ou de prejuízos provenientes da própria coisa retida Por sua vez, no art.º 755.º do CC sob a epígrafe “casos especiais”, enumeram-se algumas situações onde o credor goza de igual direito”. (v. Parecer do CG n.º E-1077/1996, de 11 de maio de 1996).
Na al.c), do n.º 1 do art. 755.º do CC prevê-se expressamente que o mandatário (forense ou não) goza, também, do direito de retenção sobre as coisas que lhe tenham sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua atividade.
Assim, conjugando o regime geral previsto no C.C. com o regime específico aplicável ao mandato forense, disciplinado no n.º 3 do art.º 96.ºdo EOA ( n.º3 do art. 101.º do atual E.O.A) conclui-se que, não obstante a natureza real do direito, o EOA prevê um requisito adicional para o seu exercício que é, justamente, que a consequência da retenção dos valores ou objetos não ponha em causa a prova do direito do cliente ou lhe cause prejuízos irreparáveis pois, nesse caso, tal direito (embora de natureza, como vimos, real), cederá em função do interesse do cliente, por força daquela norma.
Isto posto, é inequívoco que o advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, com a discriminação dos serviços prestados, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número 1 do art.º 96.º, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis.
Por conseguinte, o direito de retenção apenas surge após apresentação da nota de honorários, como decorre do disposto no n.º3 do art.º 96.º do EOA, não estando consentido aos senhores advogados recorrerem à compensação, ou seja, a pagarem-se pelas suas próprias mãos.
A compensação, na definição dada por ANTUNES VARELA é o “meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor”, estando-se, em tais situações, perante dois créditos que mutuamente se extinguem ou, pelo menos, parcialmente assim sucederá. São pressupostos da compensação: (i) a reciprocidade dos créditos; (ii) Validade, exigibilidade e exequibilidade do contracrédito (do compensante), do crédito activo; (iii) Fungibilidade do objeto das obrigações; (iv) Existência e validade do crédito principal.
Em suma, enquanto o direito de compensação pressupõe reciprocidade de créditos que mutuamente se extinguem, a retenção visa garantir o pagamento de um crédito pelo devedor, e enquanto aquele tem como consequência a extinção dos créditos compensados, o direito de retenção é, meramente, uma garantia especial de cumprimento de uma obrigação que, claro está, não se encontra ainda extinta.
Ou seja, a compensação faz extinguir o direito creditício do credor, enquanto a retenção apenas faculta ao credor a possibilidade de garantir que, futuramente, o seu crédito será, efectivamente, satisfeito.
Será, portanto, a existência ou não de créditos recíprocos e a consequência do exercício de cada um daqueles direitos que permitirá, com facilidade até, destrinçar os casos subsumíveis no direito de compensação dos no direito de retenção.
No caso, a Recorrente ao fazer suas as quantias recebidas a título de tornas e que pertenciam à contrainteressada, sua cliente, antes de lhe ter remetido a comptente nota de honorários com os serviços prestados discriminados, pagou-se pelas suas próprias mãos, ou seja, recorreu à compensação ( cfr. Art.º 847.º, n.º1 do C.Civil), fazendo valer em seu benefício um direito que não lhe assistia.
A este respeito lê-se na sentença recorrida o seguinte: «O artigo 110.º do EOA, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26.01, aplicável à data dos factos, preceitua que: Comete infracção disciplinar o advogado ou advogado estagiário que, por acção ou omissão, violar dolosa ou culposamente algum dos deveres consagrados no presente Estatuto, nos respectivos regulamentos e nas demais disposições legais aplicáveis.
O ilícito disciplinar foi imputado à A. por violação dos artigos 92.º, 95.º, n.º 1, alínea a), e 96.º do EOA, e tem a ver com o momento e a forma como a impetrante exerceu o direito de retenção e o direito à compensação por honorários.
Nesse contexto, a valoração da responsabilidade disciplinar deve ser apreciada em função das normas jurídicas que regem o estatuto deontológico e profissional do advogado previstas no EOA.
A compensação é uma modalidade de extinção de duas obrigações, cujos requisitos estão definidos no artigo 847.º do CC, que pressupõe um encontro de contas e depende de uma declaração compensatória receptícia, na qual o credor, ao mesmo tempo, se exonera da sua dívida e cobra-se de um crédito – neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 20.11.2012, emitido no processo n.º 114/09, disponível em www.dgsi.pt.
Exige-se, por isso, a verificação dos requisitos enunciados no artigo 847.º do CC: (i) a existência de dois créditos recíprocos; (ii) a exigibilidade do crédito do autor da compensação; (iii) que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade (homogéneas); (iv) a não exclusão da compensação por lei; (v) e a declaração de vontade de compensar.
Acontece que, no caso concreto, é pela nota de honorários e despesas que o advogado procede à fixação do montante que lhe é devido pelo mandante, nota essa que dá a conhecer ao cliente o montante sujeito a pagamento, interpelando-o por esse meio, pelo que, sem a prévia apresentação da nota de honorários ao constituinte, o crédito do mandatário não é certo, nem líquido, nem exigível.
Ademais, se do artigo 96.º, n.º 3, do EOA, dimana que o direito de retenção do advogado apenas surge depois da apresentação da nota de honorários, impõe-se concluir que o eventual recurso ao instituto civilista da compensação, por maioria de razão, também não é permitido pelas normas deontológicas do EOA sem que haja, também, o acordo do mandante, ou, pelo menos, sem que o advogado, igualmente, lhe apresente, primeiro, a respectiva nota de honorários.
Isto porque a relação de confiança subjacente ao exercício do mandato forense impede que ocorra a extinção da obrigação de entrega dos montantes que a A. detinha a título precário e em nome alheio, através da compensação de créditos, sem que exista o acordo prévio entre o advogado e o mandante.
Conforme resulta da factualidade assente nos autos, a A. recebeu o 1.º valor devido a título de tornas (€7.751,45) em Julho de 2007, nada reportando à Contrainteressada e, bem assim, quando recebeu em Janeiro de 2008 o 2.º valor (€17.713,02), somente em 31 de Janeiro de 2008 comunicou esses recebimentos, juntamente com a nota de honorários, deduzindo a esses valores, no saldo apurado, o montante indicado a título de honorários.
“In casu”, o montante do crédito devido à A. encontrava-se controvertido, conforme se retira das comunicações electrónica trocadas entre as partes, tendo a Contrainteressada, inclusive, por sua iniciativa, requerido em momento posterior a emissão de um laudo.
É certo também que a emissão do laudo sobre a nota de honorários da A. reveste a natureza de um parecer técnico, no qual se ajuíza sobre a aplicação dos critérios previstos no artigo 100.º, n.ºs 1 e 3, do EOA, e não consiste no reconhecimento pela R. de que os serviços profissionais foram efectivamente prestados, porquanto, não lhe compete apreciar e ponderar no âmbito da acção disciplinar da existência do crédito da A., mas sim aos Tribunais enquanto órgãos de soberania – cfr. artigo 2.º do Regulamento dos Laudos de Honorários n.º 40/2005, publicado no D.R., II Série, n.º 98, de 20/05/2005 – cf. ainda o Acórdão do STJ, de 12-07-2018, proferido no processo n.º 701/14, disponível em www.dgsi.pt.
É forçoso concluir, assim, que não existe qualquer contradição entre a emissão do laudo, ainda que parcialmente favorável à A., e os fundamentos diversos do acto impugnado, posto que, como atrás se aflorou, o laudo é um parecer técnico, mas não traduz o reconhecimento pela respectiva ordem profissional de que os serviços de advocacia foram efectivamente prestados nos moldes contabilizados pelo advogado.
Em rigor, o segmento primordial do acto impugnado é o de versar sobre uma conduta infractora da associada da R., valorando o confronto desse comportamento activo ou passivo da advogada à luz das regras deontológicas vigentes, procurando sancionar essa conduta em caso de comprovação da infracção.
Contudo, já não compete à R., no estrito exercício da sua competência disciplinar, indagar outros segmentos, nomeadamente, o de apurar a certeza ou a exigibilidade do crédito por honorários, cujos contornos se enquadram já na relação creditícia em função do contrato de mandato e não em resultado directo da função disciplinar da Ré.
Em suma, conclui-se que não se encontram reunidos, no caso em apreço, os requisitos necessários para que ocorra a compensação de créditos nas relações entre advogado e mandante, quer por não existir a reciprocidade e exigibilidade, do lado da A., do crédito no momento da compensação, quando fez suas as quantias entregues a título de tornas, sem nada reportar à Contrainteressada, quer, do lado da mandante, por não existir a necessária concordância para que ocorra a compensação.
Por tudo quanto se expôs, julga-se improcedente o invocado vício de violação de lei na modalidade de erro sobre os pressupostos de direito.
Do alegado erro na apreciação jurídica da matéria relativa à retenção
A A. sustenta, em resumo, que:
- O acto em causa enferma de abuso de direito;
- O acto impugnado não reconhece à A. o direito de reter qualquer verba para garantia do seu direito de crédito;
- O acto impugnado, segundo a A., viola o disposto no artigo 101.º, n.º 3, do EOA de 2015, conjugado com os artigos 754.º e 755, n.º 1, alínea f), do CC.
A questão ora suscitada contende com a legalidade do segmento decisório na parte em que deliberou a restituição das quantias recebidas a título de tornas pertencente à Contrainteressada, (i) no montante de €7.751,45, em Julho de 2007, (ii) e no montante de €17.713,02, em Janeiro de 2008.
O abuso de direito está consagrado no artigo 334.º do Código Civil, dispondo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Importa ter em conta, por isso, a conduta adoptada pelas partes.
No que respeita à R., atente-se à circunstância já atrás focada de que a responsabilidade disciplinar do advogado é independente da acção de honorários, tal como são independentes, em conformidade com o disposto no artigo 116.º, n.º 1, do EOA, a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade civil (contratual) ou criminal do advogado.
Ao certo, não podia a A. olvidar, na altura da ocorrência dos factos, que no caso de desacordo com o cliente, devia instaurar de imediato a acção de honorários, porquanto, como já ficou dito atrás, não compete à Ordem dos Advogados decidir no âmbito da acção disciplinar, nem através da emissão de laudo, sobre a existência do crédito da A., mas sim aos Tribunais enquanto órgãos de soberania – cfr. Fernando Sousa Magalhães, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, Almedina, 6.ª ed., 2010, p. 153 e Parecer do Conselho Geral de 24/4/1954, na ROA, 20.º, p. 148.
Em causa está, portanto, a definição jurídica do exercício do direito de retenção, como garantia do cumprimento por parte da Contrainteressada do pagamento dos honorários devidos pelos serviços prestados pela A. no exercício da advocacia.
Importa, pois, salientar o enquadramento legal vigente à data dos factos, para aferir da actuação da Ré.
O Código Civil prevê, especificamente, nos artigos 754.º e 755.º, n.º 1, alínea c), o gozo do direito de retenção, que desempenha a função de garantia, pelo “mandatário, sobre as coisas que lhe tiveram sido entregues para o exercício do mandato, pelo crédito resultante da sua actividade”.
Nos termos do artigo 96.º, n.º 3, do EOA (correspondente ao actual artigo 101.º, n.º 3, da Lei n.º 145/2015, de 09.09), “O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objectos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, (...)” (sublinhado meu).
O artigo 125.º, n.º 4, do EOA, preceituava que, independentemente da decisão final do processo, “pode ser imposta a restituição de quantias, documentos ou objectos que hajam sido confiados ao advogado”.
Visto isto, importa, sublinhar que o preceituado no artigo 96.º, n.º 3, do EOA, determina o preciso momento a partir do qual é lícito ao advogado exercer o direito de retenção sobre quantias e documentos – note-se, somente após a apresentação da nota de honorários.
A acrescer, o legislador atribuiu a competência à Ordem dos Advogados para a resolução de questões relacionadas com o direito de retenção dos advogados sobre valores e documentos dos clientes, ao aludir, nos artigos citados, à possibilidade de arbitragem de caução e de emissão de ordem de entrega de valores aos clientes, sem prejuízo da impugnação nos Tribunais das decisões proferidas pela Ordem dos Advogados.
Saliente-se, contudo, que a competência para o conhecimento de outras questões está subtraída, sob pena de usurpação de poderes, aos órgãos da Ordem dos Advogados, cabendo ao Tribunais o conhecimento de questões que tenham em vista infirmar o pedido formulado na acção de honorários – cfr. Orlando Guedes da Costa, Direito Profissional do Advogados, Almedina, 6.ª ed., p. 263.
Isto porque, conforme já se afirmou atrás, a infracção cometida pela A. tem natureza permanente ou duradoura, ou dito de outra maneira, é uma infracção por omissão, cuja consumação só cessa quando, por um comportamento activo, o agente cumpre com o dever que, por omissão, incumpria – a entrega dos montantes retidos em Junho de 2007 e em Janeiro de 2008.
Deste modo, concluindo-se pela existência de uma infracção permanente, não há lugar ao direito de retenção, dado que, a nota de honorários foi apresentada pela A. em momento posterior ao exercício daquela mesma retenção.
Tendo presente o disposto no artigo 96.º, n.º 3, do EOA, a prévia apresentação da nota de honorários e despesas pelo advogado ao seu cliente constitui um pressuposto formal imprescindível ao exercício do direito de retenção, sem o qual essa mesma retenção se tem de reputar como ilícita.
Como ensina Mário Júlio Almeida Costa, o direito de retenção previsto no artigo 754.º do CC depende de três requisitos: (i) a detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem; (ii) apresentar-se o detentor, simultaneamente, credor da pessoa com direito à entrega e (iii) a existência de uma conexão directa entre o crédito do detentor e a coisa detida – cfr. Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., 2018, p. 974.
No caso em apreço, o primeiro dos requisitos não se verifica, como acima sobejamente se afirmou, porquanto, na falta da prévia apresentação da nota de honorários e despesas ao cliente, a detenção dos montantes recebidos a título de tornas pela A. é ilícita.
Isto é, o direito de retenção sobre as quantias só opera a partir da elaboração e apresentação ao cliente da nota de honorários e despesas, como prevê o artigo 96.º, n.º 3 do EOA, pelo que, ante a ilicitude acima destacada, impera o dever estatutário da A. de restituir as quantias recebidas, ilicitamente retidas.
Sendo a retenção dos valores a título de tornas ilícita, a A. não podia ter fundado de forma legítima qualquer confiança de que lhe assistia o direito de retenção, já que, tal direito assentava numa premissa errónea, ou seja, numa base de ilegalidade por falta de um pressuposto, incumprido pela própria impetrante.
A vertente decisória da R. que obriga à restituição dos valores está dentro dos limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim social e económico que enformam o direito disciplinar da R. e a sua prerrogativa em zelar pelo cumprimento dos deveres deontológicos dos seus associados, tanto mais que as quantias recebidas pela A., por tornas, pertencem por direito original à Contrainteressada, a sua cliente, que é a beneficiária directa do segmento decisório ora em causa, e não à própria R., que não está a fazer suas tais maquias.
Daí que, a decisão impugnada e o segmento decisório ora sindicado não constituem qualquer abuso de direito, não se mostrando violado o atrás transcrito artigo 334.º do Código Civil.
Assim sendo, concluindo-se pela existência da infracção disciplinar nos contornos atrás gizados, não podia a R. concluir de forma diversa, ou seja, mandando restituir à Contrainteressada as quantias indevidamente retidas pela Autora.
Quanto ao comportamento da Contrainteressada, da análise da factualidade assente resulta que a mesma não actuou de forma a criar a confiança e a convicção na A. de que se conformava com o valor peticionado na nota de honorários e despesas que lhe apresentou.
Na verdade, sobre esta matéria, os autos mostram-nos, nas comunicações electrónicas trocadas, que, nos meses seguintes à apresentação da nota de honorários, a Contrainteressada interpelou para que lhe fosse restituído o valor das tornas, tendo, inclusive, ameaçado que, caso não fosse entregue, apresentaria à R. participação pela prática de ilícito disciplinar.
Desta forma, conclui-se que o comportamento da Contrainteressada não foi susceptível de criar a confiança na A. de que iria proceder de forma diversa daquela em que actuou, isto é, nunca a Contrainteressada agiu como se prescindisse do valor das tornas, nem demonstrou estar de acordo com o valor dos honorários e despesas.»
O assim decidido, conforme resulta de tudo quanto se expendeu, não merece qualquer censura, antes a nossa inteira concordância. E do assim decidido não decorre nenhuma ofensa ao princípio da proporcionalidade. Na verdade, não está em causa impor à Recorrente que prescinda do seu direito ao pagamento dos serviços prestados, antes que proceda à sua cobrança nos termos que lhe são consentidos pelas normas do EOA a que se encontra vinculada.
Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.

IV- DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.

*
Porto, 03 de dezembro de 2021.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Isabel Jovita
_____________________________________
i) Ac. TCAN de 02/03/2012, Proc. 02459/07.6BEPRT, in base de dados da DGSI.