Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00417/17.1BEVIS-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/04/2023
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Paulo Ferreira de Magalhães
Descritores:ARTICULADO SUPERVENIENTE; TEMPESTIVIDADE.
Sumário:
1 - Em vista da possibilidade de serem apresentados articulados supervenientes, o legislador veio consagrar um desvio ao regime processual a que se reporta a Petição inicial e a Contestação, permitindo às partes a quem aproveitem [Cfr. artigo 588.º do Código de Processo Civil], a dedução de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes, em articulado posterior ou em novo articulado, dessa forma assim se garantindo a atendibilidade desses factos na sentença [Cfr. artigo 611.º do CPC].

2 - No caso dos autos, a superveniência dos factos, a que se reporta o Réu, só alcança essa superveniência, visando assim a ampliação dos fundamentos da sua defesa, porque é o Réu que decide o quando e como dá esses factos por supervenientes, decorrentes da alegação de se tratarem de factos novos, por via da apresentação de articulado superveniente em Audiência final.

3 - A factualidade que o Réu reputou como sendo superveniente para assim deitar mão da apresentação de um articulado superveniente [Cfr. artigo 86.º do CPTA e 588.º do CPC], não tinha a final essa natureza novatória nesse tempo, pois que há muito que poderia ser conhecida pelo Réu, contanto que o mesmo para tanto assim se motivasse.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:


I - RELATÓRIO


Município ... [devidamente identificado nos autos], Réu na acção que contra si intentou a Associação ... [também devidamente identificada nos autos], inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, pela qual foi liminarmente indeferido o articulado superveniente por si apresentado na Audiência final, veio interpor recurso de Apelação.

*

No âmbito das Alegações por si apresentadas, elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“[…]
2.4. CONCLUSÕES
1. O articulado oferecido é tempestivo, sendo que a superveniência resulta demonstrada pelos próprios meios de prova juntos para a demonstração da realidade dos factos supervenientes: as informações do registo automóvel, de 15 de Dezembro de 2021;
2. A decisão recorrida, ao entender que quando a superveniência é subjectiva a parte que apresenta o articulado tem que demonstrar não apenas a tempestividade do articulado, mas também que o seu desconhecimento da factualidade superveniente lhe não é imputável por negligência grave violou, por grosseiro erro de interpretação e aplicação, a norma por si invocada, do nº 4 do artigo 588º do CPC, que não comtempla tal exigência, devendo ser revogada.
3. Na acção, a Autora, aqui recorrida, peticionou a condenação do Recorrente a pagar-lhe o valor de € 89.136,14 euros, em contrapartida da alienação ou venda dos bens constantes de inventário anexo ao protocolo em que tal valor foi fixado por acordo das partes (doc. nº ... da PI), alegando a Autora ser a proprietária de tais bens, entre os quais os veículos automóveis, de matrículas ..-IU-.. e ..-MC-.. e que os já havia entregue ao Recorrente;
4. O Réu, aqui Recorrente, na sua contestação impugnou que a Recorrida fosse a proprietária de tais bens e que lhos houvesse entregue ou transmitido o respectivo direito de propriedade, tendo requerido a produção de prova pericial, por perícia à contabilidade da Autora, designadamente do seu imobilizado e dos respectivos título de aquisição dos bens em causa, e sendo o caso, do respectivo registo;
5. Tal meio de prova foi indeferido pelo tribunal por despacho proferido em sede de audiência prévia realizada em 30 de Maio de 2019, com os seguintes fundamentos:
a. a matéria de facto que com a perícia se pretendida provar, estava perfeitamente ao alcance dos conhecimentos do tribunal, não exigindo outros conhecimentos de cariz técnico ou científico que os seus;
b. de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, não competia ao Réu a prova negativa de tais factos, mas à Autora a prova positiva dos factos pelo Réu impugnados.
6. Face ao despacho proferido em audiência prévia em 30/05/2019 que, por um lado, o dispensou dessa prova (ao aludir às regras de repetição do respectivo ónus) e que, por outro, lhe impediu essa prova, a conduta do Réu de apenas ter consultado no dia 15/12/2021 o registo automóvel, não é subsumível a qualquer negligência da sua parte, porquanto nenhum ónus probatório sobre o mesmo impedia, que não houvesse cumprido.
7. Nessa medida, a decisão recorrida violou por grosseiro erro de interpretação e aplicação, a norma por si invocada, do nº 4 do artigo 588º do CPC, que não comtempla tal exigência, devendo ser revogada e substituída por outra que, face à tempestividade do articulado, o admita.
8. A decisão proferida em 30 de Maio de 2019 que recaiu sobre o requerimento de prova pericial formulado pelo Recorrente, visando o esclarecimento dos factos necessários à determinação da titularidade do direito de propriedade sobre todos os bens e, portanto, também sobre os veículos automóveis que à Recorrida cabia transmitir ao Recorrente contempla uma solução jurídica absolutamente oposta à que resulta do despacho recorrido que não admitiu o articulado superveniente, quer quanto à questão concreta da repartição entre as partes do ónus da prova relativamente ao facto de a Autora, aqui Recorrida, ser a proprietária dos veículos automóveis, quer quanto à questão concreta do ónus de alegação dos factos constitutivos, impeditivos ou extintivos do direito da Autora por referência a essa concreta questão da propriedade sobre tais veículos.
9. Assim, a decisão recorrida, ao decidir da essencialidade da alegação pelo réu na contestação, de que a Autora não era a proprietária dos veículos automóveis e ao decidir que tal facto contrário ao alegado pela Autora na Petição deveria ter sido incluído na contestação, violou desde logo o caso julgado formado pela decisão por si proferida na audiência prévia de 30 de Maio de 2019, na qual decidiu indeferir a prova pericial requerida pelo Autor com fundamento nas regras de repartição do ónus da prova, por ao Réu não competir tal prova, cabendo à Autora a prova do facto positivo, constitutivo do seu direito.
10. Tal decisão, para além do disposto no n 4 do artigo 588º do CPC violou, por isso, também o disposto nos artigos 342º, nº 1 do Código Civil e 620º, nº 1 e 625º, nº 1 do CPC, devendo ser revogada e substituída por outra que, face à tempestividade do articulado superveniente oferecido e à inexistência de culpa do Recorrente na superveniência, o admita.
JUSTIÇA”
**

A Recorrida Associação ... apresentou Contra alegações, no âmbito das quais elencou a final as conclusões que ora se reproduzem:

“G. Conclusões:
1. O recurso a que ora se responde vem interposto da decisão do tribunal a quo de indeferimento liminar da admissão de articulado superveniente apresentado pelo recorrente no início da audiência final de 17/12/2021;
2. Tal despacho sustentou-se no n.º 4 do art 588.º do CPC, tendo o tribunal recorrido considerado verificar-se negligência grave do réu no desconhecimento dos factos constantes do articulado superveniente, posição essa com a qual a recorrida desde já concorda;
3. No nosso ordenamento jurídico vigora um princípio processual, transversal ao processo civil e administrativo, o princípio da concentração da defesa, previsto no n.º 1 do art. 573.º do CPC e no n.º 3 do art. 83.º do CPTA, através do qual toda a defesa deve ser deduzida na contestação, apenas sendo admitidos os factos supervenientes, depois de efectuada a prova dessa superveniência, quer objectiva, quer subjectiva;
4. Os factos alegados pelo recorrente no seu articulado superveniente carecem de superveniência objectiva, por se verificarem muito antes da altura em que o mesmo alega deles ter conhecimento, nem sequer se verificando, da parte do recorrente, qualquer prova apta a sustentar essa superveniência;
5. Pois, os documentos juntos pelo réu na audiência de julgamento apenas demonstram que alguém acedeu à base de dados do registo automóvel na data de 15/12/2021, não sendo idóneos a concluir, ao contrário da iludida versão que o recorrente pretende transmitir, que apenas tomou conhecimento de tais factos naquela data;
6. Isto sem prejuízo das consequências que possam recair sobre a posição sufragada pela autora, relativamente aos efeitos do registo automóvel, o qual é meramente declarativo e não constitutivo de direito;
7. Carecem também de superveniência subjectiva, circunstância essa que não foi sequer alegada pelo réu e, muito menos, provada pela parte que invoca a superveniência dos factos em causa;
8. O registo automóvel é público, de fácil acesso a qualquer cidadão sem necessidades de especiais conhecimentos técnicos ou profissionais;
9. Não sendo despiciendo afirmar que o recorrente, enquanto autarquia local, tem no seu mapa de pessoal trabalhadores de formação académica elevada e com experiência profissional bastante para acederem, de forma ainda mais facilitada, a tais informações;
10. Defende a recorrida, em consonância com a doutrina e jurisprudência, que a superveniência subjectiva deve ser alegada e provada pela parte a quem aproveita, no respeito pelo princípio da concentração da defesa, contrariando assim a posição do recorrente, que entende nenhum ónus nesse particular lhe incumbir, nem o tendo cumprido;
11. Independentemente da posição sufragada, o indeferimento liminar era a única decisão que encontrava respaldo nas normas legais em vigor e, por isso, a única que o tribunal recorrido podia ter tomado;
12. Atentos os factos alegados e as circunstâncias que medeiam a presente acção judicial, por exemplo o tempo decorrido desde a data de entrada da petição inicial em juízo, a facilidade de acesso à informação e os meios técnicos e humanos que o réu tem ao seu dispor, impunha-se ao recorrente um comportamento processual mais cauteloso, consonante com a defesa que entendeu apresentar e o ónus da prova que lhe compete;
13. Desta forma, sempre cumpriria ao tribunal a quo aferir da conduta processual do réu e decidir, com base em todo esse quadro factual, da verificação ou não de negligência na atuação do recorrente;
14. Dúvidas não podem restar que impendia e impende sobre o recorrente a obrigação de alegar e provar a superveniência subjetiva ou, por outras palavras e nos termos do n.º 4 do art.º 588.º do CPC, que a apresentação do articulado superveniente não era intempestiva ou, se o era, que tal conduta não derivou de culpa sua, o que manifestamente não se verifica;
15. No que ao despacho de indeferimento proferido em 30/05/2019 diz respeito, não são admissíveis as conclusões que o mesmo retira de tal acto decisório, por não encontrarem o mínimo acolhimento na sua letra;
16. O tribunal recorrido indeferiu a perícia contabilística solicitada pelo réu, fundamentando-se essencialmente nas regras da repartição do ónus da prova e na inutilidade de tal meio de prova para a boa decisão da lide;
17. Sem, contudo, curar de estipular ou desobrigar determinada parte ao cumprimento dos ónus da prova, comportamento esse que lhe estava vedado, por tais competências não se inserirem, quer a nível constitucional, quer legal, nas funções dos tribunais enquanto órgãos de soberania;
18. O réu não recorreu de tal despacho, tendo-se conformado com o seu teor e agora, de forma insustentada, pretende socorrer-se do dito despacho, alegando que este teve o condão de definir qual o ónus probatório que cabia a cada uma das partes na presente demanda, argumento no mínimo esdrúxulo;
19. Tal despacho menciona, simplesmente, aquilo que menciona, que não se vislumbra necessidade de uma perícia, tendo em conta as regras de repartição do ónus da prova e a celeridade que se deseja imprimir aos processos judiciais;
20. Por outro lado, também não colhe o argumento de que o recorrente foi enganado ou iludido pelo comportamento do tribunal recorrido, no sentido de que o indeferimento do meio de prova requerido formou nele a convicção de estar dispensado do ónus da prova que lhe competia em face da posição assumida na contestação, não lhe podendo ser vedada a apresentação de um articulado superveniente em desrespeito pelas normas legais vigentes;
21. Tal estado de espírito à parte somente se deve, pois, o objecto dos despachos em confronto é distinto, não se sobrepondo nem contrariando em si;
22. O despacho recorrido trata somente da verificação dos requisitos formais de admissibilidade do articulado superveniente, em nada confrontando ou inovando o despacho de 30/05/2019 e, por seu turno, o despacho recorrido limita-se a mencionar que se o réu entendia que tais factos eram essenciais, deveriam ter sido incluídos na contestação, sem se imiscuir nas regras legais da repartição do ónus da prova, terminando por julgar verificada a incúria do réu na apresentação do articulado superveniente;
23. Não se verifica, por isso, afronta ao caso julgado formal do despacho de 30/05/2019, sendo apenas de lamentar a conduta perpetrada pelo recorrente, pois, se entendia ter ficado impedido de produzir a prova dos factos que alegada, tinha o recurso como meio legal à disposição, ao invés de, com propósitos manifestamente dilatórios, apresentar um articulado superveniente com factos que de superveniência nada contêm;
24. Não foi violada qualquer norma legal, devendo a decisão recorrida ser mantida, nos seus exactos termos, por não merecer qualquer reparo.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, manter-se a decisão recorrida, nos termos em que foi proferida, com todas as legais consequências.
Assim se fazendo JUSTIÇA”

*

O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso interposto, fixando os seus efeitos.

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O Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional.


***

Com dispensa dos vistos legais [mas com envio prévio do projecto de Acórdão], cumpre apreciar e decidir.

***

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, cujo objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das respectivas Alegações - Cfr. artigos 144.º, n.º 1 do CPTA, e artigos 639.º e 635.º n.ºs 4 e 5, ambos do Código de Processo Civil (CPC), ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3 do CPTA [sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem deva conhecer oficiosamente], e que se resumem a saber se o Tribunal a quo errou no julgamento por si prosseguido e que está na base da decisão recorrida em torno da não admissão do articulado superveniente.

**

III - FUNDAMENTOS
IIIi - DE FACTO

Visando a decisão do presente recurso, este TCA Norte dá como provada a seguinte matéria de facto:

1 – A Autora ora Recorrida apresentou no TAF de Viseu a Petição inicial que motiva os autos, tendo a final formulado o respectivo pedido, do qual para aqui se extrai parte como segue:
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a apresente acção ser julgada procedente, por provada e, por via da mesma, condenar-se o réu ao pagamento da quantia de €89 136,14 [...]“

2 - Por julgamos com relevo para a decisão a poferir, a Autora ora Recorrida, referiu sob os pontos 21.º, 22.º, 23.º, 24.º e 25.º da Petição inicial, o que por facilidade para aqui se extrai como segue:
Início da transcrição
“[...]

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[...]“
Fim da transcrição

3 – Com a Petição inicial, a Autora ora Recorrente juntou 7 documentos, não constando desse acervo qualquer anexo ao documento ... a que se reportam os pontos 21.º e 22.º, e que deva ser inerente a um “inventário de bens“;

4 – O Réu ora Recorrente deduziu Contestação, tendo a final formulado o respectivo pedido, do qual para aqui se extrai parte como segue:
Termos em que:
a) Deve a excepção de não cumprimento ser julgada procedente e a Ré absolvida do pedido; quando assim se não entenda
b) Sempre deve a acção ser julgada improcedente e, da mesma forma, a Ré absolvida do pedido.

5 – Com a Contestação, o Réu ora Recorrente juntou 1 documento, que é atinente ao anexo ao documento ... a que se reportam os pontos 21.º e 22.º da Petição inicial, inerente a um “inventário de bens“;

6 – Para aqui se extrai esse “inventário de bens“ como segue:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

7 – Com a Contestação, o Réu ora Recorrente requereu a realização de prova pericial, para o que formulou os quesitos que a seguir para aqui se extraem como segue:

Início da transcrição
“[...]
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]

[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
[…]”
Fim da transcrição

8 – No dia 17 de novembro de 2017, a Autora ora Recorrida deduziu Réplica, no âmbito da qual pugnou pela improcedência da matéria exceptiva invocada pelo Réu ora Recorrente, tendo ainda junto 4 documentos, e de entre estes, o inventário a que se reportou como anexo ao doc. n.º ... com a Petição inicial;

9 – Na Audiência prévia realizada no dia 30 de maio de 2019, entre ao mais, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e os temas da prova, assim como apreciada a prova requerida pelas partes, tendo neste domínio sido apreciada e indeferida a produção de prova pericial requerida pelo Réu, nos termos que para aqui se extraem como segue:

Início da transcrição
“[…]
Despacho
Veio o Réu requerer a realização de prova pericial tendo por objecto a contabilidade, a documentação e a correspondência da Autora de natureza contabilística ou não.
Nos termos do disposto nos artº 467º e seguintes do CPC, este meio de prova destina-se exclusivamente a comprovar matéria de facto cujo cariz técnico ou científico não esteja ao alcance do conhecimento deste tribunal.
Por outro lado, e aquando da determinação das diligências instrutórias a realizar, está o tribunal obrigado a determinar apenas aqueles que se afigurem de necessárias e pertinentes para a apreciação do mérito da lide. Ora, atento o objecto do litígio e os temas de prova fixados na presente audiência prévia, considera este tribunal não se verificar a necessidade de realização de tal diligência probatória, mais ainda quando se toma em consideração as regras quanto à repartição do ónus de prova, bem como a proibição da prática de atos inúteis.
Assim, face a tudo o que antecede, indefere-se a requerida prova pericial.
Notifique.
[…]”
Fim da transcrição




10 - No dia 17 de dezembro de 2021 foi realizada a Audiência final que era devida nos autos, de cuja acta para aqui se extrai o que segue:

Início da transcrição
“[…]
---Neste momento, pelo Ilustre Mandatário do R. foi pedida a palavra e no seu uso pelo mesmo foi dito que requer a apresentação de um articulado superveniente e que por uma questão de simplicidade apresenta por escrito, fornecendo cópia ao Tribunal e à Ilustre colega Mandatária da A. ---
De imediato pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Fica o documento a constar em anexo à ata tendo em conta que o Ilustre Mandatário o apresentou por escrito. ---
Face à extensão do articulado interrompe-se a audiência por 10 minutos para análise do mesmo. ---
Gravação: 00:01:00 a 00:02:41. ---
***
Retomada a audiência pela Mmª Juiz foi dada a palavra à Ilustre Mandatária da Autora para se pronunciar. ---
Dada a palavra à Ilustre Mandatária pela mesma foi fito que: ---
A Autora não prescinde do prazo de 10 dias para se pronunciar sobre os factos alegados no articulado superveniente todavia desde já consigna que não é feita qualquer prova da superveniência já que a data de 15.12.2021 que consta dos documentos anexos ao articulado apenas comprova que os mesmos foram obtidos nesse dia e não que só nesse mesmo dia chegaram ao conhecimento do R. ---
Tratam-se de certidões do registo automóvel que apenas foram requeridos no dia 15.12.2021 isto é, vésperas do julgamento sendo certo que a Autora pode desde já demonstrar requerendo a junção aos autos de documento que no dia 12.09.2018 informou o Município ... da penhora do veículo de matrícula ..-MC-.., em resultado da falta de cumprimento das obrigações a fornecedores consequência direta da falta de cumprimento por parte do Município do seu compromisso referindo no referido ofício a exclusão de qualquer responsabilidade pela penhora do referido veículo em virtude das anteriores interpelações para que o Município procedesse ao registo automóvel do veículo.-
Logo pelo menos desde Setembro 2018 que era do conhecimento do R. a possível venda do veículo MC em sede executiva. ---
Sem prejuízo de vir completar e demonstrar o que se alega relativamente ao veículo Nissan da matrícula IU a conclusão de que o mesmo é da propriedade da Banco 1... é precipitada porquanto o contrato de leasing celebrado com esta instituição foi integralmente cumprido existindo já a respetiva quitação sendo que, para proteger tal bem das sucessivas penhoras que caíram sobre a A. e uma vez que entendia a A. que tendo disponibilizado já o veículo ao abrigo do protocolo que se discute nestes autos para o domínio do Município não tinha, nem tem legitimidade para consolidar a propriedade do mesmo na Associação, razão pela qual, como salvaguarda desse património foi decidido não afastar o ónus que ainda se encontra em registo a favor da Banco 1... sendo que tem na sua posse documento que possibilita o seu destrato. ---
Além de que por outro lado o R. Município não ignora que o veículo IC se encontra aparcado nas instalações da Associação à sua inteira disposição. ---
Requer assim a junção do documento. ---
***
Seguidamente pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte: ---
DESPACHO
Face à apresentação do articulado superveniente por parte do R. Município ... cabe ao Tribunal antes de mais pronunciar-se quanto à respetiva admissibilidade. ---
Decorre do artº 86º CPTA em conjugação com o artº 588º CPC que o articulado superveniente pode ser utilizado para a alegação de factos que dada a sua superveniência não poderam ser invocados nos articulados normais. ---
A superveniência no presente caso é subjetiva porquanto a parte alega que só teve conhecimento dos factos ora alegados depois de findar o prazo de apresentação dos respetivos articulados. ---
Aliás, refere que, tais factos chegaram ao seu conhecimento com a consulta do registo automóvel efetuada no dia 15/12/2021. ---
Acontece porém que neste último caso, ou seja quando a superveniência é subjetiva o articulado superveniente é rejeitado quando esse facto não tenha sido apresentado em tempo por culpa da parte (n.º 4 do artigo 588ºdo Código de Processo Civil). ---
Isto é, é necessário que a parte demonstre que desconhecia esse facto sem que lhe seja imputável negligência grave por esse desconhecimento. ---
Ora, o facto ora demonstrado era essencial e deveria ter sido incluído na respetiva contestação. ---
É certo também que o acesso ao registo automóvel é livre pelo que qualquer parte, em qualquer altura, poderá consultar os elementos aí constantes.
Daí que o Tribunal não possa admitir o presente articulado superveniente porquanto o desconhecimento deste facto resulta de grave negligência da parte – cfr. nesse sentido, Teixeira de Sousa in Estudos sobre o Novo Processo Civil ---
Assim pelo exposto indefere-se liminarmente a apresentação do articulado superveniente. –
Notifique. ---
***
Do antecedente despacho foram todos os presentes notificados. --- [o que constitui objecto do presente recuso de Apelação - Cfr. fls. dos autos; SITAF].
[…]”
Fim da transcrição

11 – Por julgarmos com relevo para a decisão a proferir, para aqui extraímos o articulado superveniente apresentado pelo Réu ora Recorrente, como segue:

Início da transcrição
“[…]
Nos artigos 20º a 23º da Petição Inicial, a Autora alegou, no essencial, o seguinte:
• Em 29/06/2017 celebrou com o Réu, Município ..., o protocolo que consta do documento nº ... que então juntou;
• Através desse protocolo comprometeu-se a vender ao Reu e este comprometeu-se a comprar-lhe, pelo montante de € 89.136,14 euros, os bens que constavam do anexo a esse mesmo protocolo
Pela presente acção, a Autora pretende receber o preço convencionado.
Lido o documento denominado “Protocolo” (documento nº ... da Petição), a deliberação do executivo municipal que aprovou a sua celebração (doc. nº ... da PI) e o documento nº ... que a Autora juntou com a sua Réplica (cfr. fls. 169 do processo desmaterializado SITAF), conclui-se que tal contrato de alienação tinha por objecto, além do mais, dois veículos automóveis, de matrículas ..-IU-.. e ..-MC-.., dos quais a Autora dizia ser proprietária (cfr. o “inventário” do património da Autora, a que corresponde o referido doc. ... de fls. 169 dos autos).
O Réu tomou conhecimento em 15 de Dezembro de 2021, como resulta dos documentos emitidos pela Conservatória ... dessa data (docs. nºs ... e ... que se juntam e aqui dão por reproduzidos), do seguinte:
Esses veículos, não são propriedade da Autora (docs. nºs 1 e 2);
O veículo de marca Nissan, de matrícula ..-IU-.. nunca foi propriedade da Autora (doc. nº 1);
Esse veículo é propriedade da Banco 1..., encontrando-se tal direito registado a favor da Banco 1... desde 29/06/2018 (doc. nº ...);
À data da celebração do protocolo, em 29/06/2017, o direito de propriedade sobre esse veículo estava registado a favor do Banco 1... S. A. (doc. nº ...);
O veículo Fiat de matrícula ..-MC-.. é propriedade de [SCom01...], Lda, com sede na Rua ..., ..., tendo registado a seu favor tal direito em 09/03/2021 (doc. nº ...);
10º A Autora deixou de ser proprietária de tal veículo em 04/11/2016, tendo nessa data sido inscrito a favor de «AA», residente na Rua ..., ..., o respectivo direito de propriedade (doc. nº 2), pessoa que à data do protocolo celebrado por Autora e Réu, era o seu proprietário.
11º Ainda nesse mesmo dia 15 de Dezembro de 2021 (conforme documento nº ... que se junta e aqui dá por reproduzido), tomou o Réu conhecimento de que o veículo de marca Nissan, de matrícula ..-IU-.. não é actualmente objecto de qualquer seguro, pelo que será legítimo concluir que nem sequer se encontra em utilização.1
12º Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a respectiva prestação enquanto o outro não cumprir ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo (artº 428º, nº 1 do Código Civil).
13º A Autora não apenas não cumpriu a sua obrigação de entrega dos bens, como não ofereceu o seu cumprimento simultâneo com a prestação do Réu, do pagamento do preço, como se colocou voluntariamente na posição de não poder oferecer esse cumprimento simultâneo, o que justifica por inteiro a recusa do Réu com fundamento no disposto no artigo 428º, nº 1 do Código Civil em proceder ao pagamento, excepção de não cumprimento esta já invocada na contestação e que aqui, agora com fundamento nos factos supervenientes, se reitera.
14º Para além disso, dos factos agora conhecidos, resulta que a Autora vendeu ao Réu bens de que não era e de que não é proprietária, que são de terceiro e em relação aos quais não tem poder de disposição.
15º E tal circunstância, verificava-se já à data da celebração do contrato pelo qual declarou vender esses mesmos bens.
16º Independentemente da qualificação jurídica que possa ser conferida ao “protocolo”, é inequívoco que se trata de um contrato bilateral oneroso, pelo qual se alienam bens, pelo que, nos termos do disposto no artigo 939º do Código Civil, lhe são aplicáveis as normas da compra e venda (artº 939º do Código Civil).
17º A compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço (artº 879º do Código Civil).
18º A venda de bens alheios, efectuada por quem não tem legitimidade para os alienar, é nula (artº 892º do Código Civil), nulidade que se invoca e que é do conhecimento oficioso.
19º A declaração da nulidade tem efeitos retroactivos, deixando de haver lugar ao pagamento do preço e devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado (artº 289º do Código Civil).

Termos em que:
a) deve o presente articulado superveniente ser liminarmente admitido, porque tempestivo e porque relativo a factos exceptivos do direito que a Autora pretende fazer valer e que, por isso, são de manifesto interesse para a decisão da causa, ordenando-se a notificação da parte contrária para lhe responder;
b) deve a final o contrato de alienação e bens titulado pelo protocolo invocado pela Autora, de 29/06/2017, ser declarado nulo, por força do disposto nos artigos 892º e 939º do Código Civil, com as consequência previstas no artigo 289º e seguintes do mesmo Código;
c) quando assim não seja, conclui-se como na contestação, devendo ser julgada procedente a invocada excepção de não cumprimento.

Pede deferimento
[…]”
Fim da transcrição

*


A convicção deste TCA Norte, no que diz respeito à matéria de facto estruturada supra, fundou-se no teor das peças processuais apresentadas nos autos assim como nas decisões neles contidas, alicerçada na consulta da plataforma SITAF.


**

IIIii - DE DIREITO

Está em causa a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que tendo apreciado a pretensão deduzida pelo Réu em torno da apresentação de um articulado superveniente na pendência da Audiência final, julgou pelo seu indeferimento liminar.

Como assim dispõe o artigo 627.º, n.º 1 do CPC, as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos, para efeitos de poderem ser evidenciadas perante o Tribunal Superior as irregularidades de que a Sentença pode enfermar [que se reportam a nulidades que afectam a Sentença do ponto de vista formal e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade], assim como os erros de julgamento de facto e/ou de direito, que por si são resultantes de desacerto tomado pelo Tribunal na formação da sua convicção em torno da realidade factual, ou da interpretação e aplicação do direito, em termos tais que o decidido não está em correspondência com a realidade fáctica ou normativa.

Constituindo os recursos jurisdicionais os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, por via dos quais os recorrentes pretendem alterar as sentenças recorridas, nas concretas matérias que os afectem e que sejam alvo da sua sindicância, é necessário e imprescindível que no âmbito das alegações de recurso os recorrentes prossigam de forma clara e objectiva as premissas do silogismo judiciário em que se apoiou a decisão recorrida, por forma a evidenciar os erros em que a mesma incorreu.

Como assim resulta das conclusões das Alegações de recurso, o Recorrente centra a sua pretensão recursiva, essencialmente, na sustentação de que o articulado superveniente que apresentou nos autos foi oferecido de forma tempestiva, e que essa superveniência resulta demonstrada pelos próprios meios de prova juntos para a demonstração da realidade dos factos supervenientes, que são as informações do registo automóvel, por si obtidas a 15 de Dezembro de 2021.

Ou seja, estando a Audiência final a decorrer, na sua pendência o Réu apresentou aquele articulado, com fundamento na superveniência de novos factos que chegaram ao seu conhecimento no dia 15 de dezembro de 2021, tempo que foi acedido o registo automóvel dos dois veículos em causa.

Está em causa a situação registral dos dois veículos que estão colocados no acervo de bens que a Autora refere ter alienado ao Réu, tudo na base do protocolo entre ambos outorgado.

Ora, esse protocolo foi efectuado em data muito anterior ao tempo em que a Autora ora Recorrida vem a Tribunal pugnar pela condenação do Réu no pagamento da quantia que era relativa ao correspectivo valor da alienação dos bens a que se reportava esse protocolo, constante de uma relação a ele anexa.

Quer a Autora, quer o Réu, sabiam já em momento muito anterior à vinda a Tribunal qual a natureza da relação controvertida existente entre ambas as entidades, que se reconduzia ao não pagamento de um concreto valor, por conta da invocada aquisição/alienação de concretos bens.

Na Petição inicial a Autora reporta-se a esses bens, sem os identificar, e de resto, sem juntar a esse articulado o anexo a que se reporta o documento n.º ... junto com a Petição inicial.

Na Contestação apresentada, o Réu bem sinalizou essa irregularidade, e procedeu ele à junção aos autos, por via da sua Contestação, desse inventário de bens, que segundo alegado pela Autora na Petição foram colocados na disponibilidade do Réu, e nesse patamar, que é o respectivo proprietário.

Com a junção por parte do Réu, na sua Contestação, do documento que devia vir anexo ao documento ... junto com a Petição inicial, se não antes, foi pelo menos nessa data que o Réu ficou a saber e a conhecer que de entre os bens relacionados no inventário, e quanto a cuja totalidade de bens [incluindo os veículos automóveis] peticiona a Autora a condenação do Réu no pagamento da quantia de €89.136,14, estavam dois veículos automóveis, devidamente identificadas pela sua marca e modelo, e respectiva matrícula.

E muito claramente, era nessa altura o momento processual idóneo para apresentar a defesa que tivesse por devida, e nomeadamente, invocar e provar que em face dos identificados veículos, cuja propriedade a Autora assaca ao Réu, que tal assim não acontecia por força do que assim estava declarado no registo.

Saber de quem é a propriedade dos veículos, e se por via do mero protocolo assinado e do pagamento do preço global que vem exigido, a mesma se transmitiria para o Réu, essa já era matéria que o Tribunal a quo tinha identificado como integrante do objecto do litígio e dos temas de prova que foram identificados, e que serviria de base à ulterior instrução dos autos em audiência contraditória.

Sendo certo que atenta a natureza e âmbito da relação controvertida tida e mantida pela Autora e pelo Réu, era manifesto e imperioso ser dilucidado sobre os termos e os pressupostos em que a Autora detinha na sua posse os dois veículos e bem assim, se após a subscrição do protocolo os mesmos passaram a estar na imediação jurídica do Réu, e se nessa medida os deveria ter registado na Conservatória de registo automóvel a seu favor, por tudo isso contender com o pagamento de um concreto valor global, de €89.136,14 que o Réu terá assumido com sendo devido à Autora, não é pelo facto de também essa questão em torno dos dois veículos ser controvertida, que só na pendência da realização da Audiência final é que pode/deve ser apresentado articulado superveniente com fundamento em que só nessa concreta data se acedeu às bases do registo automóvel, para dessa forma dar como tempestivo o articulado querido apresentar.

Daí que bem decidiu o Tribunal a quo quando tendo apreciado o articulado superveniente apresentado pelo Réu ora Recorrente, julgou pela sua inadmissibilidade processual, atenta a sua intempestividade, tendo assim decidido pela sua rejeição liminar.

Com efeito, na óptica do demandante, a Petição inicial é o instrumento processual próprio para expor os factos essenciais que integram a causa de pedir e as razões de direito que sustentam a sua busca de tutela jurisdicional, e na óptica do demandado, por sua vez, é na Contestação que o mesmo deve deduzir toda a sua defesa, podendo fazê-lo por impugnação e/ou excepção, devendo nela “expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor” e “expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação – Cfr. artigos 571.º, n.º 1, e 572.º, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Civil.

Ora, em vista da possibilidade de serem apresentados articulados supervenientes, o legislador veio consagrar um desvio aqueles regimes processuais [v.g., Petição inicial e Contestação], permitindo às partes [Cfr. artigo 588.º do Código de Processo Civil] a quem aproveitem, a dedução de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes, em articulado posterior ou em novo articulado, dessa forma assim se garantindo a atendibilidade desses factos na sentença [Cfr. artigo 611.º do CPC].

No caso dos autos, a superveniência dos factos, a que se reporta o Réu, só alcança essa superveniência, visando assim a ampliação dos fundamentos da sua defesa, porque é o Réu que decide o quando e como dá esses factos por supervenientes, decorrentes da alegação de se tratarem de factos novos, por via da apresentação de articulado superveniente - Cfr. Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, págs. 163/164.

Ou seja, e como assim está justaposto à decisão recorrida, sabendo e conhecendo o Réu ora Recorrente, pelo menos a partir da data em que podia deduzir a sua defesa, por excepção e/ou por impugnação, com referência à causa de pedir e ao pedido que contra si foi formulado pela Autora, era nesse momento que devia congregar a sua defesa, e juntando se fosse caso disso, os documentos que pudessem ser causa impeditiva, extintiva ou modificativa da pretensão condenatória da Autora, e tanto, pelo menos, quanto aos veículos automóveis.

A factualidade que o Réu reputou como sendo superveniente para assim deitar mão da apresentação de um articulado superveniente [Cfr. artigo 86.º do CPTA e 588.º do CPC], não tinha a final essa natureza novatória nesse tempo, pois que há muito que poderia ser conhecida pelo Réu, contanto que o mesmo para tanto assim se motivasse.

Em conformidade com o que assim apreciou o Tribunal a quo, o facto de o Réu ter apresentado o articulado superveniente na Audiência final [superveniente, por ser apresentado em momento posterior ao tempo processual em que é devido serem apresentados os articulados principais], e reportado a factos que reputa de essenciais, e que deveria ao invés ter sido apresentado/motivado na Contestação, e não tendo demonstrado porque não o fez antes, justificando fazê-lo nessa altura na decorrência da consulta efectuada ao registo em 15/12/2021 [sendo que a Audiência final ocorreu em 17/12/2021], é claro que a não apresentação desses factos com a Contestação é imputável apenas e só ao Réu, não se verificando assim por parte do Tribunal a quo o invocado erro de interpretação e aplicação do artigo 588.º, n.º 4 do CPC.

Se o Réu se autodeterminou por assinar um protocolo de onde emergem a sua responsabilidade por adquirir bens identificados que passam a integrar o seu património, com o consequente dever de pagar uma concreta quantia, e estando no cômputo desses bens, dois veículos sujeitos a registo, não podia a actuação do Réu nesse domínio, ainda antes da fase contenciosa, ter passado ao lado da necessária consulta do estado registral dos bens que se propôs adquirir.

E ao contrário do que sustenta o Recorrente, a decisão recorrida, que não merece a censura jurídica que lhe vem por si dirigida, não viola de forma alguma o caso julgado formado [Cfr. artigo 620.º, n.º 1 do CPC] pela decisão do Tribunal a quo quando indeferiu o pedido de produção de prova pericial.

Caso não tivesse concordado com aquele indeferimento da prova pericial requerida, tinha o Réu ao seu dispor a sindicância jurisdicional dessa decisão, mas o que é certo é que nesse conspecto nada reflectem os autos

Como assim apreciou e decidiu o Tribunal a quo em torno do indeferimento da prova pericial, não estava em causa matéria eminentemente técnica que por si estivesse subtraída ao conhecimento do Tribunal, sendo até que, relativamente aos veículos automóveis, a realização de uma perícia para avaliar a sua dominialidade traduziria a prática de um acto proibido por lei [Cfr. artigo 130.º do CPC], pois que para esses efeito, funcionam as regras do direito registral, designadamente por titulação dos factos que devem ser objecto de registo.

Relativamente à decisão em torno do ónus de prova que cumpre ser observado, se pela Autora se pelo Réu, essa é matéria que será aferida pelo Tribunal a quo em sede da fixação dos factos que julgará como provados e os que julgará não provados, corrida que seja a instrução dos autos, quanto aos factos dela carecidos.

De todo o modo, a regra geral vigente no nosso ordenamento jurídico em torno da função das provas é clara, no sentido de que as mesmas têm por função a demonstração de factos, sendo que em sede do ónus da prova, aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, e quanto à prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita [Cfr. artigos 341.º e 342.º, ambos do Código Civil].

Em suma, não tendo o Recorrente evidenciado as razões e fundamentos para não ter podido apresentar todos os factos que tem por relevantes para a sua defesa no âmbito da Contestação deduzida, antes tendo referido por que os quis trazer aos autos por via de articulado superveniente apresentado na Audiência final, a invocada superveniência e com os contornos delineados pelo Recorrente, com fundamento em ter sido nessa data que acedeu ao registo automóvel, tratando-se da invocação de uma superveniência subjectiva, efectivamente não logrou o Réu tornar evidente que não foi por negligência grave que lhe é apenas a si imputável, que não pode apresentar esses factos em momento processual anterior, antes porém e apenas na Audiência final.

De modo que, a pretensão recursiva do Recorrente tem assim de improceder.

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IV – DECISÃO

Nestes termos, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, os juízes da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, Acordam em conferência em NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Recorrente Município ..., confirmando a decisão recorrida.

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Custas a cargo do Recorrente – Cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.




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Notifique.

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Porto, 04 de outubro de 2023.

Paulo Ferreira de Magalhães, relator
Maria Alexandra Ribeiro
Luís Migueis Garcia