Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00606/23.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/12/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:DÉFICE INSTRUTÓRIO,
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO,
PENHORA;
Sumário:
Revelando os autos insuficiência factual para a boa decisão da causa, em virtude de terem sido omitidas diligências probatórias indispensáveis para o efeito, impõe-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Tribunal recorrido para melhor investigação e nova decisão, em harmonia com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil ex vi artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 22/06/2023, que julgou improcedente a reclamação formulada contra o acto proferido, em 03/03/2023, pelo Coordenador da Secção de Processo Executivo ... do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., que indeferiu o pedido de notificação da penhora de vencimento ou o seu levantamento e a extinção do Processo de Execução Fiscal n.º ...25 e apensos, pedidos que formulou por entender, além do mais, não ser responsável pelo pagamento das dívidas exequendas.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso vem interposto da decisão que julgou improcedente a reclamação interposta pela Recorrente e manteve o acto reclamado, com as legais consequências.
B. A Recorrente é identificada na sentença como tendo residência em ..., quando esse não é o seu domicílio fiscal, a morada constante da procuração forense ou a morada inscrita nas certidões de dívida, o que lhe é de todo incompreensível.
C. Impugna-se a decisão que recaiu sobre os artigos 3., 5., 7., 8., 11. e 12. dos factos provados, uma vez que consistem na reprodução de documentos ou, no caso destes últimos, do uso da fórmula “dá-se por reproduzido o documento...”.
D. Os documentos são meios de prova, não factos, pelo que o Tribunal não cumpriu a obrigação prevista no artigo 123º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
E. Devem os autos baixar à 1ª instância para que o julgador possa eliminar dos factos aquilo que não são factos e dar como assentes quais os factos que verdadeiramente considera como provados fixando-os expressa e inequivocamente em enunciados descritivos e despidos de conceitos jurídicos.
F. A Recorrente discorda da decisão de não prova da existência da ordem de penhora, quando o órgão de execução fiscal a aceita e reconhece, sendo que o cerne da reclamação é, precisamente, não lhe ter sido esse acto dado a conhecer.
G. A douta decisão violou o disposto nos artigos 7º-A, nºs 1 e 2, 8º, nºs 1 e 3, e 87º, nº 1, alínea c) e nº 2 do CPTA.
H. O dever de gestão processual obrigava o Tribunal de 1ª instância a procurar uma decisão de mérito, notificando as partes para juntarem aos autos o documento que considerava faltar para esse efeito.
I. Ocorreu, também, nulidade por força do disposto nos artigos nos termos do disposto nos artigos 195º, 197º, 199º, 200º, nº 3, e 201º, todos do CPC.
J. Requer-se que seja revogada a decisão de matéria de facto não provada, dando-se por provada a existência da ordem de penhora ou que, em alternativa, seja declarada a nulidade, baixem os autos à primeira instância para que o juiz convide as partes a juntar aos autos o documento em falta.
K. Pese embora a douta sentença refira que “Como é sabido a penhora consiste numa apreensão de bens e sua afectação aos fins do processo de execução fiscal, e tratando-se de um acto lesivo dos direitos do executado e impugnável está sujeita a notificação”, decidiu, ainda assim, que não devia a Recorrente ser notificada da penhora, o que resulta incompreensível e incomportável.
L. Não pode aceitar-se o argumento de que só após a efectivação da penhora, com a entrega de um qualquer montante a retirar do vencimento da Reclamante é que órgão de execução deveria notificá-la à Reclamante, dado que o acto de penhora é prejudicial em si mesmo.
M. Viola-se, deste modo, o disposto no artigo 785º, nº 1 do CPC e no artigo 95º, nº 1 da Lei Geral Tributária.
N. Violam-se, também, os artigos 268º, nº 3 e 20º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
O. Pelo que deve ser decidido que o órgão de execução deverá notificar a Executada da penhora do seu salário.
P. Os princípios da prevalência da realização da justiça material, da prevalência da substância sobre a forma e do inquisitório a obtenção da verdade material como fim do processo fiscal pelo que o meio processual se deve conformar a essas exigências, permitindo-se que a Reclamante prove que não deve ser responsabilizada pelas dívidas exequendas.
Q. Sucede que está provado pelas sentenças judiciais, transitadas em julgado, proferidas nos processos nº ...2/08.5IDBRG e ...4/12.6IDBRG, ambos do Tribunal Judicial de ..., que a Recorrente não foi responsável pela falta de pagamento dos tributos na origem dos processo executivos.
R. A responsabilidade por tal foi integralmente de BB, por via de uma procuração conferindo-lhe os poderes necessários para gerir e administrar o estabelecimento comercial “Gabinete de contabilidade e serviços de agência do contribuinte”, com sede no ..., n.º 4, ..., em ..., praticar todos os atos comerciais inerentes e representá-la em todas as repartições públicas.
S. Desde a sua constituição e até ao ano de 2012, a administração do EIRL foi exercida, de facto, e em exclusivo, pela BB, tia da Reclamante, completamente de sua vontade, servindo-se da fachada da procuração para cometer um sem número de ilegalidades e crimes.
T. Era a BB quem administrava o gabinete de contabilidade, nomeadamente, contratando e despedindo os trabalhadores, ajustando com eles os seus salários, pagando-lhes as respectivas remunerações e quem se encarregava de entregar mensalmente as declarações de remunerações pagas aos trabalhadores ao serviço do EIRL e/ou gabinete de contabilidade.
U. E era também a BB quem se encarregava do pagamento das contribuições à Segurança Social, sendo da sua exclusiva responsabilidade, não só a decisão de pagar ou não pagar essas contribuições, como o acto de entregar ou não, efectivamente, os tributos.
V. A BB tinha o domínio completo da atividade do EIRL, pagamentos e giro comercial, desde o dia da sua constituição, sendo que a própria placa identificativa do gabinete de contabilidade tinha o seu nome e que a correspondência com os clientes e algumas entidades oficiais era assinada pela BB, em nome próprio, sem mencionar a qualidade de procuradora de AA, os recibos ou documentos de quitação eram passados em nome de BB, as faturas de telefone / internet do gabinete estavam em nome de BB, os pagamentos aos funcionários eram feitos pela referida BB e, finalmente, era esta que assinava os cheques.
W. As dívidas por falta de pagamento de contribuições dos trabalhadores do gabinete de contabilidade foram integralmente contraídas pela BB, fazendo um uso totalmente abusivo da procuração que a Recorrente ingenuamente lhe outorgou.
X. Os actos praticados pela BB foram contrário à ordem pública e aos bons costumes, nos termos do disposto no artigo 280º, nº 2 do Código Civil, e empreendidos no uso abusivo da procuração, já que actuou no âmbito formal dos poderes que lhe foram conferidos mas serviu-se deles para fim diverso daqueles a que se destinavam ou com desrespeito das instruções recebidas.
Y. A própria concordância interna do sistema judicial obriga a uma decisão que liberte a Recorrente do presente processo executivo, uma vez que existem decisões de outro Tribunal, já transitadas em julgado, que confirmam que esta não teve qualquer participação ou responsabilidade nas dívidas nascidas da actividade do gabinete de contabilidade.
Z. A douta decisão recorrida viola as decisões judiciais do Tribunal de ... e o disposto no artigo 104º, nº 2 da CRP, pelo que é ilegal, inconstitucional, e deve ser revogada, substituindo-se por uma que absolva a Recorrente da instância.
Termos pelos quais deve o presente recurso ser julgado procedente, ordenando-se a notificação da penhora e terminando o processo com a absolvição da Recorrente da instância por não ser a responsável pelos incumprimentos que geraram a execução.
Roga-se que, desta feita, se faça JUSTIÇA para a Recorrente.”

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O Recorrido não contra-alegou.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Dada a natureza urgente do processo, há dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito ao manter na ordem jurídica o acto reclamado.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto
Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“FACTOS PROVADOS
1. O “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.”, em 19/11/2009, instaurou contra AA, Contribuinte Fiscal nº ..., o Processo de Execução Fiscal nº ...25 e apensos, que correm termos na Secção de Processo Executivo da Segurança Social, com vista à cobrança de créditos da Segurança Social (contribuições e cotizações) no montante global de € 5.341,68.
2. Dá-se por reproduzida a certidão de dívida constante do Processo Execução Fiscal que se encontra a fls. 70 sitaf, e titula os créditos mencionados em 1, referentes ao período compreendido entre 2007/01 e 2009/07, no montante global de € 11.533,24.
3. O “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.”, no Processo de Execução Fiscal nº ...25 e apensos, procedeu à citação da Reclamante para pagamento da quantia global de € 19.006,00, mediante carta registada com aviso de recepção (RP..........92PT), datada de 21/11/2009, remetida para “... ... ... ...”, documento do qual se extracta: “Pela presente fica citado(a) de que foi (foram) instaurado(s) nesta Secção de Processo contra V.ª Ex.ª (s) o (s) processo (s) de execução fiscal supra indicado(s), devendo proceder ao pagamento da dívida exequenda e acrescidos no prazo de 30 (trinta) dias a contar da concretização desta citação.
No mesmo prazo poderá requerer o pagamento em regime prestacional, nos termos do art.º 196º do CPPT, e/ou dação em pagamento nos termos do Art.º 201º do mesmo código ou então deduzir oposição judicial com base nos fundamentos estabelecidos no Art.º 204º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
Decorrido aquele prazo sem que o pagamento da dívida exequenda e acrescido se mostre efectuado e caso não exista, nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário, motivo para suspender a execução, a mesma prosseguirá a tramitação legal, designadamente para efeitos da PENHORA DE BENS e demais diligências estabelecidas naquele código.”.
O aviso de recepção relativo à missiva identificada em 3 foi assinado por “CC”, em 30/11/2009.
5. O “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.”, no Processo de Execução Fiscal nº ...89 e apensos, procedeu à citação da Reclamante para pagamento da quantia global de € 14.959,20, mediante carta registada com aviso de recepção (RP..........90PT), datada de 23/3/2010, remetida para “... ... ... ...”, documento do qual se extracta: “Pela presente fica citado(a) de que foi (foram) instaurado(s) nesta Secção de Processo contra V.ª Ex.ª (s) o (s) processo (s) de execução fiscal supra indicado(s), devendo proceder ao pagamento da dívida exequenda e acrescidos no prazo de 30 (trinta) dias a contar da concretização desta citação.
No mesmo prazo poderá requerer o pagamento em regime prestacional, nos termos do art.º 196º do CPPT, e/ou dação em pagamento nos termos do Art.º 201º do mesmo código ou então deduzir oposição judicial com base nos fundamentos estabelecidos no Art.º 204º do Código de Procedimento e Processo Tributário.
Decorrido aquele prazo sem que o pagamento da dívida exequenda e acrescido se mostre efectuado e caso não exista, nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário, motivo para suspender a execução, a mesma prosseguirá a tramitação legal, designadamente para efeitos da PENHORA DE BENS e demais diligências estabelecidas naquele código.”.
6. O aviso de recepção relativo à missiva identificada em 5 foi assinado por “DD”, em 30/3/2010.
7. A Reclamante, em 15/2/2023, apresentou no “Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.”, um requerimento no qual aludiu à existência de uma ordem de penhora do seu vencimento, e referiu que nunca foi notificada de tal penhora a fim de deduzir oposição, pelo que requereu se “digne julgar verificada uma irregularidade processual por falta de notificação da penhora à Executada”; Subsidiariamente sustentou que não é responsável pelo pagamento da quantia exequenda por nunca ter exercido a administração do EIRL que estava a cargo de BB, a quem outorgou procuração para tal, e concluiu pelo pedido de “encerramento dos autos”.
8. A pretensão mencionada em 7 foi indeferida por despacho de 3/3/2023, mediante concordância com a informação prestada no documento de fls. 70 sitaf que se dá por reproduzida, da qual se extracta: “Os processos em apreço foram instaurados contra a executada AA, NIF ..., por dívida enquanto pessoa singular equiparada a entidade empregadora.
Em 2009-11-30 e em 2010-03-31 a executada foi citada, no âmbito dos referidos PEF’s. Porém, apesar de constar, expressamente, nas referidas citações que a executada/requerente disponha de um prazo de 30 dias para reagir, certo é que a mesma nada fez.
Ou seja, a executada/requerente não apresentou oposição, não procedeu ao pagamento da dívida, nem requereu pagamento em prestações e o processo prosseguiu para a aplicação de medidas coercivas.
Estranhamente veio reagir à execução em causa passados vários anos com o presente requerimento.
Assim, no que concerne ao facto de alegado “não teve conhecimento da penhora de vencimento”, verifica-se que nas citações rececionadas pela executada/requerente também consta expressamente que decorrido o prazo de 30 dias, a contar da respetiva citação, sem que se mostre o pagamento efetuado e não exista motivo para suspender a execução, a mesma prosseguirá a tramitação processual, designadamente para efeitos de penhora de bens e demais diligências.
Ora, a executada/requerente não pode vir agora alegar que desconhecia a aplicação das medidas coercivas aplicadas, quando a mesma teve conhecimento desse facto nas referidas citações.
Deste modo, verifica-se que as medidas coercivas foram devidamente aplicadas à executada/requerente.
Salienta-se que até à presente não foram transferidos para a entidade exequente (Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.), nem aplicados aos processos, quaisquer valores provenientes de penhoras.
Por outro lado, a executada/requerente argumenta que tendo outorgado uma procuração a uma terceira pessoa nenhuma responsabilidade lhe pode ser atribuída.
Salvo o devido respeito, a executada não tem qualquer razão pois a outorga de procuração a favor de um terceiro não transmite a gerência de direito, nem de facto para esse terceiro, agindo este em nome da outorgante e produzindo os seus efeitos na esfera jurídica daquela.
Neste sentido o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 09-04-2002: “A procuração outorgada pelo gerente a favor de terceiro é ineficaz para a transmissão da administração de direito (art. 252º nº 5 e 261º nº 2 CSC). A dita procuração é também ineficaz para a transmissão da gerência de facto porque titula um mandato com representação, nos termos do qual os actos do representante produzem os seus efeitos na esfera jurídica do representado – gerente (art.258º e 1178º nº 1 C. Civil).
Na mesma esteira, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 10-05-2018: “Da conjugação dos n.º 5 e 6 do artigo 252.º do CSC resulta estar vedado aos gerentes “fazer-se representar no exercício do seu cargo”, podendo, no entanto, a sociedade constituir procuradores ou mandatários, sendo que os actos praticados por estes se repercutem na esfera jurídica do mandante.
A existência de uma procuração enquadra-se no apuramento do exercício de facto da gerência, pois pode ser considerada como uma forma indirecta desse exercício.
II – PARECER/PROPOSTA
Pelo exposto, e salvo melhor opinião, proponho o indeferimento do pedido constante do requerimento apresentado pela executada AA, NIF ....”.
9. O despacho de indeferimento mencionado em 8 foi notificado ao ilustre mandatário da Reclamante em 8/3/2023.
10. A presente reclamação foi apresentada em 20/3/2023.
11. Dá-se por reproduzido o documento junto pela Reclamante com o seu articulado, constituído por cópia da sentença proferida no Processo nº ...2/08.5IDBRG, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., e absolveu a arguida, ora Reclamante, de um crime de abuso de confiança fiscal por não se ter provado que foi a arguida a tomar a decisão de não proceder ao pagamento dos impostos ao Estado.
12. Dá-se por reproduzido o documento junto pela Reclamante com o seu articulado, constituído por cópia da sentença proferida no Processo nº ...4/12.6IDBRG, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., e absolveu a arguida, ora Reclamante, de um crime de abuso de confiança fiscal e consequente pedido cível “posto que sempre lhes falharia a tipicidade criminal”.
FACTOS NÃO PROVADOS
Nada mais se provou com interesse para o conhecimento do mérito, designadamente não se provou a existência da alegada ordem de penhora do vencimento da Reclamante, nem a retenção de parte do seu salário.
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MOTIVAÇÃO
A matéria de facto provada resultou da matéria alegada e não contestada, comprovada pela prova documental junta aos autos referida no probatório em relação a cada facto, designadamente pela informação oficial prestada e processo de execução fiscal junto aos autos (artigos 74º e 76º, nº 1, da Lei Geral Tributária, e artigo 362º e seguintes do Código Civil), documentação não impugnada pela Reclamante, e outra de conhecimento oficioso do Tribunal, dispensando a respectiva alegação, nos termos do artigo 412º do Código de Processo Civil.
A matéria de facto não provada resultou da total ausência de prova, necessariamente documental, de tal facto, designadamente da notificação da penhora à entidade patronal (que não identificou), ou recibo de vencimento com os alegados descontos que nem sequer concretizou.”

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2. O Direito

A Recorrente começa por impugnar a decisão da matéria de facto, designadamente os pontos 3., 5., 7., 8., 11. e 12. dos factos provados, bem como os factos não provados, nomeadamente a existência da ordem de penhora, pois o órgão de execução fiscal aceita-a e reconhece-a, acentuando que o cerne da reclamação é, precisamente, não ter sido esse acto dado a conhecer à reclamante.
Importa, desde logo, salientar que a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos, sendo que as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante ou indeferido o seu aditamento – cfr., neste sentido, o Acórdão do TCA Sul, de 22/05/2019, proferido no âmbito do processo n.º 1134/10.9BELRA.
Por vezes, quando está em causa apreciar a legalidade de um acto impugnado, como é o caso, poderá ser útil e até conveniente que se transcreva no probatório a fundamentação desse acto, com vista a uma melhor percepção do mesmo, tal como foi praticado, ou os dizeres constantes de “citação”, por extracto, para conhecimento dos seus termos; porém, já não se afigura uma boa técnica dar por reproduzidos integralmente documentos, dado que estes, enquanto meios de prova, se destinam a provar factos simples, que devem ser criteriosamente seleccionados pelo julgador.
A decisão da matéria de facto impugnada afirma não se ter provado a existência da alegada ordem de penhora do vencimento da reclamante, aqui Recorrente, nem a retenção de parte do seu salário. Para tanto, motivou tal decisão na circunstância da total ausência de prova, necessariamente documental, de tal facto, designadamente da notificação da penhora à entidade patronal (que não identificou), ou recibo de vencimento com os alegados descontos que nem sequer concretizou.
Na fundamentação da sentença recorrida podemos ler, além do mais, o seguinte:
“(…) Além disso, a Reclamante alegou que teve conhecimento da penhora do seu vencimento por intermédio da sua entidade patronal, mas não juntou prova da existência dessa penhora, e nem sequer concretizou quais os alegados montantes que lhe foram retidos, ónus que sobre ela recaía. Por outro lado, do processo executivo em causa, a fls. 70 sitaf, nada consta em concreto acerca da alegada penhora, designadamente a eventual notificação da entidade patronal da Reclamante, e o Exequente deu conta que “até à presente, não foram transferidos para o Reclamado (Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.), nem aplicados aos processos, quaisquer valores provenientes de penhoras”.
Assim sendo, não se vislumbra como pode efectuar-se a notificação de uma penhora que ainda não se consumou, e ainda que tivesse ocorrido o Exequente teria de aguardar pela atitude da entidade patronal da Reclamante, que inclusivamente poderia recusar-se, com fundamento legal, a depositar o vencimento em causa, nomeadamente por ser impenhorável. Efectivamente, só depois de depositado um qualquer montante a retirar do vencimento da Reclamante é que o Exequente podia dar conta da concretização da penhora e dele dar conhecimento à Reclamante para esta tomar posição sobre a penhora e discutir a sua legalidade. (…)”
Compreendemos a perplexidade da Recorrente, dado que, escalpelizado o acto reclamado, parece que o órgão de execução fiscal não coloca em causa a determinação da penhora do vencimento da Recorrente: “(…) Deste modo, verifica-se que as medidas coercivas foram devidamente aplicadas à executada/requerente.
Salienta-se que até à presente não foram transferidos para a entidade exequente (Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P.), nem aplicados aos processos, quaisquer valores provenientes de penhoras. (…)”
Contudo, como vimos, o tribunal recorrido afirma expressamente que, do processo executivo em causa, a fls. 70 sitaf, nada consta em concreto acerca da alegada penhora, designadamente a eventual notificação da entidade patronal da reclamante.
Neste contexto, tudo aponta para eventual incompletude do processo de execução fiscal ínsito nos autos, dado que, devidamente analisado, apenas consta do mesmo as citações respectivas e o pedido da Recorrente que deu origem ao acto reclamado, bem como este.
Não podemos olvidar que, em caso de subida imediata da reclamação, a Autoridade Tributária remete, por via electrónica, a reclamação e o processo executivo que a acompanha – cfr. artigo 278.º, n.º 5 do CPPT.
Em face da matéria de facto não provada, e agora impugnada, este tribunal encontra dificuldade séria em sindicar tal decisão, pois tudo indica não ter sido o processo executivo remetido completo por via electrónica ao tribunal.
Vejamos em que evidências assenta esta nossa convicção:
Atendendo à concreta tramitação do processo de execução fiscal (PEF), prevista no CPPT, temos que, após a sua instauração, são praticados, designadamente, os seguintes actos processuais de natureza não jurisdicional:
a) Citação;
b) Penhora – cfr. artigos 215.º e seguintes do CPPT;
c) Venda.
Logo, nestes actos processuais de natureza não jurisdicional inclui-se a penhora.
Com efeito, a penhora define-se como a apreensão judicial de bens do executado, com o objectivo último de satisfação do direito do exequente, sendo-lhe reconhecida uma dupla função: a de especificar os bens que hão-de ser pela mesma abrangidos e a de dar segurança de que tais bens se conservarão em condições de serem vendidos, por forma a satisfazer o direito de crédito do exequente –cfr. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Volume II, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, Páginas 90 e 91.
No âmbito da execução fiscal, a mesma pode assumir igualmente uma função garantística, enquanto estiver, designadamente, pendente oposição à execução fiscal.
O acto que ordena a penhora é o mandado de penhora, que se limita a, considerando a dívida exequenda, ordenar diligências no sentido de proceder à realização do mencionado acto.
Com efeito, atento o disposto no artigo 172.º, n.º 2, do CPC, aplicável subsidiariamente, considerando o consignado na alínea e) do artigo 2.º do CPPT (atentando, tal como já se referiu supra, que nesta parte os actos em causa são de natureza processual), o mandado é o acto processual através do qual é ordenada a execução de um acto processual.
Tudo indica que poderemos estar perante sistema informático de apoio que funciona automaticamente (SIPE), pelo que, muitas vezes, será aquando da efectivação da penhora que se especificarão todos os elementos relevantes.
Na medida em que o PEF poderá ter sido transferido para essa aplicação informática que gere os processos de execução fiscal (SIPE), o acto que determinará o acto processual de natureza não jurisdicional de penhora é aí comummente denominado de “pedido de penhora”, que pressupõe diligências prévias.
De todo o modo, pelo menos, terá que constar do PEF eventual notificação da entidade patronal da reclamante para penhora do seu vencimento.
Ora, é todo este circunstancialismo prévio e inerente a hipotética penhora “automática”, que terá sido realizada, que se impõe apurar.
Como se refere na sentença recorrida, nos termos do n.º 1 do artigo 215.º do CPPT, procede-se à penhora quando, findo o prazo posterior à citação, não tiver sido efectuado o pagamento.
Por outro lado, é ainda de considerar o disposto no artigo 52.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, lido em consonância com o artigo 169.º, n.º 1, do CPPT, que prevêem que, no caso de existência de oposição à execução fiscal, esta execução fique suspensa até à decisão do pleito, se constituída garantia (art.º 195.º do CPPT) ou prestada nos termos do artigo 199.º do mesmo código ou quando a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda.
Como tal, quer a penhora quer o mandado que a ordena têm como pressuposto esta circunstância: a de não ter sido efectuado o pagamento ou não ter sido constituída garantia.
A sentença recorrida não fixou factualidade quanto às vicissitudes em que terá ocorrido o acto de penhora, nem os autos fornecem elementos para a fixar, com a segurança e certeza exigíveis; o que impede qualquer juízo sobre os factos não provados e, consequentemente, sobre o acto reclamado.
Não podemos esquecer a importância da remessa integral do PEF, dado que os factos que do mesmo emergem são de conhecimento oficioso – cfr. artigo 412.º do CPC.
Por outro lado, também os factos alegados pela reclamante, que se mostrem necessários para sindicar a legalidade do acto reclamado, devem ser considerados pelo tribunal, não devendo este perder de vista o princípio do inquisitório previsto nos artigos 13.º e 99.º do CPPT.
Verificando-se défice instrutório, impõe-se a remessa ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto para promover diligências instrutórias e, após ampliação do probatório fixado nos termos supra referidos, proferir nova decisão final.
Deste modo, não podendo sufragar-se, sem mais, o julgamento produzido em 1.ª instância, impõe-se anular, segundo o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, a sentença, de molde a permitir que, no tribunal recorrido, sejam efectivadas as diligências probatórias que se mostrem adequadas e necessárias ao esclarecimento, mais completo possível, dos aspectos apontados como deficitariamente instruídos, no sentido de averiguar esses factos, levando os mesmos ao probatório.
O exposto é suficiente para conceder provimento ao recurso, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.

Conclusão/Sumário

Revelando os autos insuficiência factual para a boa decisão da causa, em virtude de terem sido omitidas diligências probatórias indispensáveis para o efeito, impõe-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Tribunal recorrido para melhor investigação e nova decisão, em harmonia com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil ex vi artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e ordenar a remessa do processo à 1ª instância para nova decisão, com preliminar ampliação da matéria de facto, após a aquisição de prova conforme acima se indica.

Custas a cargo do Recorrido, que não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.

Porto, 12 de Outubro de 2023

Ana Patrocínio
Maria do Rosário Pais
Cláudia Almeida