Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01394/06.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/08/2007
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:LIBERDADE RELIGIOSA
INTIMAÇÃO PROTECÇÃO DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
DATA REALIZAÇÃO DE EXAME
Sumário:I. O art. 14.º da LLR vem dar concretização ao comando constitucional decorrente do art. 41.º da CRP, reconhecendo o direito de gozar os feriados religiosos da respectiva confissão o qual estava já implícito na previsão da al. c) do art. 10.º da LLR (direito de comemorar publicamente as festividades religiosas da própria religião), constituindo o disposto nos n.ºs 2 e 3 do aludido art. 14.º em matéria de aulas e de provas uma decorrência normal do referido direito para os alunos membros de confissões religiosas com feriados diferentes dos feriados legais.
II. Na ausência de norma expressa sobre dispensa de provas/exames de acesso a uma determinada profissão devemo-nos socorrer da norma contida no n.º 3 do art. 14.º da LLR a qual se revela apta a regular de igual modo também o tipo de provas, tudo sem prejuízo da natural, adequada e devida interpretação da terminologia legal.
III. O citado preceito poderá implicar, na generalidade das situações, a marcação de uma data alternativa para a prestação da prova, especificamente concebida para o beneficiário da norma, mesmo que seja só um, por exemplo nas situações em que não há pura e simplesmente uma segunda chamada – como será o caso do exame de agregação da Ordem -, e quando a chamada seguinte, já programada, aconteça apenas num prazo tão dilatado – como será também o caso do exame de agregação da Ordem -, que acabe por inviabilizar, na prática, o exercício, pelo respectivo titular, do direito que o legislador quis salvaguardar com o preceito, implicando que aquele tenha de optar entre, no caso, aceder em tempo útil a uma profissão, ou seguir as regras da religião que professa.
IV. Em regra, o exercício do direito em questão pressupõe, por força da al. b) do n.º 1 do art. 14.º, o envio pela igreja ou comunidade religiosa, ao membro do Governo competente, da declaração a que se refere a aludida alínea nos termos aí previstos.
V. A exigência daquela declaração, quanto mais não seja para declarar que em todos os anos vindouros os seus dias de guarda são sempre os mesmos dias da semana, é legalmente imposta como condição para o operar e legitimar do exercício daquele direito em face e na ponderação com os demais interesses e direitos em confronto.
VI. Com este regime e com aquele requisito formal veio introduzir-se um factor de objectividade e de segurança fáctico-jurídica em matérias como a da disciplina das relações de emprego e respectivo horário e da disciplina da leccionação (comparência às aulas e provas) em termos da justificação ou não de determinadas faltas na sua compatibilização com o direito à liberdade religiosa.
VII. Numa situação como a em causa em que estamos perante acesso ao exercício de actividade privada como profissional liberal (advocacia) a exigência daquela declaração mostra-se desfasada e inadequada, tal como, aliás, o poderão estar as demais alíneas do n.º 1 do art. 14.º.
VIII. No caso vertente o condicionamento ao exercício por parte da recorrente do direito à liberdade religiosa não pode legitimamente estar amarrado ao preenchimento do requisito da al. b) do n.º 1 do art. 14.º, sendo que não faz sentido adaptar e adequar este preceito nesse âmbito de molde a que o mesmo fosse lido como impondo uma comunicação anual à Ordem dos Advogados porquanto estar-se-ia a impor às igrejas ou comunidades religiosas um dever ou um ónus de comunicação a um número infindo e de muito difícil concretização, identificação ou definição de instituições ou entidades como meio único de assegurar e efectivar, na prática, aos seus crentes o legítimo e livre exercício do direito à liberdade religiosa.
IX. Daí que tem-se como violador do direito à liberdade religiosa (arts. 13.º e 41.º da CRP) a conduta da Ordem dos Advogados que negou o pedido urgente que lhe foi dirigido pela A. em 12/01/2006 e uma vez tomado conhecimento da calendarização das provas (para o dia 08/07/2006) de agendamento duma nova data para realização do aludido exame final de molde a ser compatível com sua prática religiosa, pedido esse que havia sido devidamente instruído. *

* Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:10/25/2006
Recorrente:V.
Recorrido 1:Ordem dos Advogados Portugueses
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Intimação Protecção Direitos, Liberdades e Garantias (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Negar provimento ao recurso
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
V…, devidamente identificada nos autos, inconformada veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF do Porto, datada de 07/07/2006, que indeferiu o pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias que a mesma havia deduzido nos termos do art. 109.º do CPTA contra a “ORDEM DOS ADVOGADOS”, igualmente identificada nos autos, e no qual peticionava que a fosse condenada “(…) a dispensar a Requerente da realização da prova escrita marcada para o dia 08 de Julho de 2006, …” e a “( …) marcar uma data alternativa ao dia 08 de Julho de 2006 para realização da prova escrita, pela Requerente, em dia que não coincida com Sábado, dia santo de guarda da organização religiosa de que … é membro, no prazo máximo de 5 dias …, sob cominação de pagamento de sanção pecuniária compulsória imposta … no caso de incumprimento da intimação (…).”
Formula, nas respectivas alegações (cfr. fls. 101 e segs. e correcção de fls. 200 e segs. na sequência do despacho de fls. 195/196 - paginação processo em suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário), as seguintes conclusões que se reproduzem:
“(...)
A. A douta sentença, ora recorrida, salvo o devido respeito, sofre de erro de julgamento, por errada interpretação das normas e, consequentemente, errada aplicação das mesmas.
B. Ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, deve entender-se que a LLR é aplicável ao caso sub judice analogicamente nos termos do artigo 10.º CC,
C. Uma vez que estamos perante um caso omisso atento o facto de não ser regulado por nenhuma disposição legal.
D. É a partir da ratio legis que é feito o recurso à analogia, a qual é a protecção da liberdade religiosa na prestação de provas no artigo 14.º/n.º3 LLR,
E. Logo a Recorrente, apesar de não estar abrangida em sentido estritamente literal por essa norma, encontra-se obrigada à prestação de provas na sequência de um período de formação.
F. Em relação à violação do princípio da igualdade com a marcação de uma data alternativa à prova, a Recorrente nunca peticionou a marcação de uma data posterior a 08 de Julho de 2006 mas apenas uma data alternativa.
G. Aliás, todas as diligências adoptadas pela Recorrente sempre foram tomadas com a devida antecedência (o primeiro requerimento deu entrada junto da Recorrida no dia 12.01.2006) para possibilitar às entidades competentes a marcação de uma data alternativa à supra citada.
H. De acordo com o princípio da igualdade, cumpre acrescentar que dadas as suas convicções religiosas, a Recorrente se encontra numa situação diferente da dos seus Colegas.
I. A sentença de que se recorre viola o princípio da igualdade consagrado constitucionalmente no artigo 13.º/n.º 1 da Constituição,
J. Atendendo ao facto deste princípio exigir uma igualdade material através da lei que implica tratar igual o que é igual e diferente o que é diferente.
K. In casu, dada a desigualdade da situação da Recorrente deve esta ser tratada de modo diferente com a marcação de uma data alternativa ao exame aqui em causa.
L. Resulta também da jurisprudência este entendimento: “O principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição exige a dação de tratamento igual aquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções.” (vide Acórdão do Tribunal Constitucional de 01/03/1994 - Proc. n.º 92-0504 in www.dgsi.pt)
M. A diferenciação que é aqui reclamada é plenamente justificada, atendendo ao facto de estar aqui em causa um direito consagrado constitucionalmente e é feita em nome da igualdade de oportunidades no acesso à profissão de Advogada com o respeito por esse direito fundamental.
N. Pelo que, a diferenciação reclamada não é irrazoável, nem arbitrária.
O. É dever do Tribunal eliminar as diferenciações de que a Recorrente é alvo em virtude do seu direito fundamental à liberdade religiosa que o vincula.
P. Sendo este um tratamento completamente inadmissível num Estado de Direito pois “O principio da igualdade não só autoriza como pode exigir desigualdades de tratamento, sempre que por motivo de situações diversas um tratamento igual conduzisse a resultados desiguais” (vide Acórdão do Tribunal Constitucional de 12/12/1984 - Proc. n.º 84-0048 in www.dgsi.pt).
Q. Estamos ainda perante uma violação do artigo 18.º n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa quando na sentença recorrida é afirmado que os direitos, liberdades e garantias têm que ceder perante outros direitos e deveres (restringindo-se, por vezes, o seu núcleo essencial).
R. Ora, cumpre dizer que “só nos casos expressamente previstos na Constituição podem ser restringidos os direitos, liberdades e garantias e só a lei os pode restringir (art. 18.º/2: reserva de lei restritiva)”, conforme afirma J.J. Gomes Canotilho (a página 450 in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 6ª Edição, Almedina, 2002).
S. Pelo que, não pode uma sentença restringir um direito fundamental.
T. Logo, a restrição efectuada pelo Tribunal a quo é inconstitucional uma vez que viola o artigo 18.º/n.º 2 CRP, e ilegal, pois não existe nenhuma lei a autorizá-la.
U. Temos de atender ainda ao facto de estarmos perante a liberdade religiosa que é um direito fundamental que nem pode ser afectado pela a declaração de estado de sítio ou do estado de emergência conforme estabelece o artigo 19.º/n.º 6 CRP.
V. O Tribunal a quo adopta um entendimento inconstitucional, violando o princípio da salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais (artigo 18.º/n.º 3 CRP), ao afirmar que é possível por vezes restringir o conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias.
W. De acordo com esse princípio, existe um núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias que não pode, em caso algum, ser violado.
X. O Tribunal a quo aniquilou por completo o direito fundamental à liberdade religiosa da Recorrente.
Y. Assim, não tendo sido cumprido o disposto nos artigos 14.º/n.º 3 LLR, 13.º, 18.º/n.ºs 2 e 3 e 19.º/n.º 6 CRP, justifica-se a revogação da sentença recorrida. (…).”
O ente requerido, ora recorrido, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 137 e segs.) nas quais pugna pela improcedência do recurso e manutenção da decisão judicial recorrida, sem que haja, todavia, formulado conclusões.
O Ministério Público (MºPº) junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto nos arts. 146.º e 147.º ambos do CPTA veio emitir parecer onde sustenta o improvimento do recurso (cfr. fls. 175 e 176).
Exercido o contraditório sobre o referido parecer nos termos do art. 146.º, n.ºs 2 e 3 do CPTA nenhuma das partes veio responder (cfr. fls. 177 e segs.).
Sem vistos, dado o disposto no art. 36.º, n.ºs 1, al. e) e 2 do CPTA, foi o processo submetido à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que, pese embora por um lado, o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal de recurso em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito”, pelo que os recursos jurisdicionais são “recursos de ‘reexame’ e não meros recurso de ‘revisão’” (cfr. Prof. J. C. Vieira de Andrade in: “A Justiça Administrativa (Lições)”, 8ª edição, págs. 459 e segs.; Prof. M. Aroso de Almeida e Juiz Cons. C. A. Fernandes Cadilha in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, pág. 737, nota 1; Dr.ª Catarina Sarmento e Castro em “Organização e competência dos tribunais administrativos” - “Reforma da Justiça Administrativa” – in: “Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra - Stvdia ivridica 86”, págs. 69/71).
As questões suscitadas pela recorrente resumem-se, em suma, em determinar se na situação vertente a decisão recorrida ao indeferir o pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias deduzido enferma ou não de violação dos arts. 14.º, n.º 3 LLR, 13.º, 18.º,n.ºs 2 e 3 e 19.º, n.º 6 da CRP [cfr. alegações e conclusões supra reproduzidas].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Resultou apurada da decisão judicial recorrida a seguinte factualidade:
I) A requerente é advogada estagiária, inscrita, desde 15 de Outubro de 2004, na Ordem dos Advogados, no Conselho Distrital do Porto, com a cédula profissional n.º 12118-P – cfr. documento n.º 1 junto com o requerimento inicial.
II) Em 12/01/2006, requereu ao Presidente da CNEF a marcação de uma data alternativa à prova escrita do exame final de avaliação e agregação do estágio de advocacia, marcado para o dia 08/07/2006 (Sábado) – cfr. documentos n.º 2 e 3 juntos com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
III) A requerente é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia – cfr. documento n.º 4 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
IV) A organização religiosa referenciada em III) tem como dia santo de guarda o sábado, que começa com o pôr-do-sol de sexta-feira e termina com o pôr-do-sol de sábado – cfr. documento n.º 4 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
V) O Presidente da CNEF, em resposta ao requerimento apresentado, entendeu ser necessário fazer prova que tinha sido enviada a declaração a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei de Liberdade Religiosa (LLR) – cfr. documento n.º 5 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
VI) A requerente não apresentou o documento em falta, uma vez que a denominação religiosa a que pertence entende não ser necessário proceder ao envio ao membro do Governo competente em razão da matéria da indicação dos dias das festividades e períodos horários prescritos pela confissão que professa – cfr. documento n.º 6 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
VII) Em 23/02/2006, o Presidente da CNEF negou total provimento ao pedido da requerente – cfr. documento n.º 7 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
VIII) Em 22/03/2006, a requerente apresentou reclamação desta decisão – cfr. documento n.º 8 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
IX) Em 01/06/2006, a requerente foi notificada, por carta registada com aviso de recepção, que não terá apresentado novos factos ou argumentos jurídicos, remetendo a resposta do Presidente da CNEF para a decisão mencionada em VII) – cfr. documento n.º 9 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
X) Em 08/05/2006, a requerente interpôs recurso hierárquico para o Bastonário da Ordem dos Advogados – cfr. documento n.º 10 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
XI) Em 16/06/2006, pelo Vogal do Conselho Geral, foi negado provimento ao recurso hierárquico apresentado pela ora requerente, tendo sido mantido o despacho recorrido proferido pelo Presidente da CNEF – cfr. fls. 45 e 46 do processo administrativo apenso aos presentes autos, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
XII) A União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia, organização religiosa inscrita no registo de Pessoa Colectiva sob o n.º 592001350, não apresentou ao membro do Governo competente qualquer documento relativo ao disposto no artigo 14.º da LLR – cfr. declaração anexa ao documento n.º 6 junto com o requerimento inicial, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido.
XIII) O presente processo foi apresentado neste tribunal em 08/06/2006 – cfr. carimbo aposto no rosto do requerimento inicial e registo no Sistema Informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais (SITAF).
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3.2. DE DIREITO
Considerada a factualidade supra fixada importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.
Invoca a recorrente, enquanto fundamento de recurso, que a decisão recorrida contraria o que decorre do arts. 14.º, n.º 3 LLR, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3 e 19.º, n.º 6 da CRP, já que, segundo sustenta, na mesma recusou-se a aplicação à situação dos autos do art. 14.º da LLR quando o mesmo por efeito das regras de interpretação e integração de normas deveria ter sido empregue, conduzindo à decretação da pretensão até também por efeito do princípio da igualdade e comandos constitucionais insertos nos normativos citados.
A mesma havia defendido que tinha direito a ser dispensada da realização da prova de agregação marcada para Sábado (dia 08/07/2006), assistindo-lhe, ainda, o direito de a efectuar em data que não coincida com um Sábado, pelo que entende ser titular do direito à sua marcação no prazo máximo de cinco dias visto as decisões do ente requerido que negaram tais pedidos ofenderem o conteúdo essencial do direito fundamental de liberdade de consciência, de religião e de culto que emerge do art. 41.º da CRP.
Previamente à análise da pertinência da tese sustentada pela recorrente importa efectuar um breve enquadramento jurídico do meio contencioso “sub judice”.
Este meio processual de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, regulado nos artigos 109.º a 111.º do CPTA, constitui um processo autónomo que implica a emissão duma decisão definitiva e destina-se a dar cumprimento à exigência ditada pelo art. 20.º, n.º 5 da CRP quando nele se estatui que para “(…) defesa dos direitos liberdades e garantais pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”, normativo este que constitui uma das mais relevantes inovações introduzidas pela Lei Constitucional n.º 1/97 (cfr. Dr.ª Maria Fernanda Maçãs em “As formas de tutela urgente previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos” publicado in: Revista do MºPº Ano 25, Out/Dez. 2004, n.º 100, págs. 41 e segs., em especial, págs. 48 a 53 e in: “Reforma da Justiça Administrativa” – in: “Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra - Stvdia ivridica 86”, págs. 209 e segs.; Prof. M. Aroso de Almeida in: “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª edição, pág. 283).
Note-se que no n.º 5 do referido normativo não está em questão a criação de um qualquer meio cautelar, porquanto o que se visa seria a concretização de um direito a processos céleres e prioritários, de molde a obter-se uma eficaz e atempada protecção jurisdicional contra ameaças ou atentados aos direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos.
Com efeito, do comando constitucional em referência decorre a exigência de um programa completo de instrumentos processuais que integralmente satisfaçam a necessidade da tutela efectiva de quaisquer direitos ou interesses legalmente protegidos.
O que essencialmente se pretende é que a justiça, no caso a justiça administrativa, tenha sempre resposta, em termos procedimentais, à solicitação de tutela de direitos ou interesses; trata-se, afinal, de fazer corresponder a todo o direito uma acção adequada a fazê-lo exercitar e reconhecer em juízo (cfr. art. 02.º, n.º 2 quer do CPTA quer do CPC).
Já, porém, o comando constitucional não condiciona o legislador, respeitado que se mostre o modelo organizatório judicialista e a tutela efectiva dos direitos dos administrados, na sua opção pelas fórmulas de instituição da justiça administrativa e, muito menos, na articulação dos diversos meios processuais que disponibiliza ao administrado ou na fixação de pressupostos processuais de cada um deles, de que eventualmente resulte a preferência por um determinado meio que, em concreto, assegure a tutela efectiva, reclamada, do direito ou do interesse.
Não pode e não se extrai da previsão do art. 20.º, n.º 5 na sua conjugação com o art. 268.º, n.ºs 4 e 5 ambos da CRP, que o legislador constitucional tenha pretendido uma duplicação dos mecanismos contenciosos utilizáveis, porquanto o que ressalta dos mesmos comandos é que qualquer procedimento da Administração que produza uma ofensa de situações juridicamente reconhecidas tem de poder ser sindicado jurisdicionalmente.
É nesta total abrangência da tutela jurisdicional que se traduz a plena efectivação das garantias jurisdicionais dos administrados, não se enquadrando necessariamente nesta ideia de total garantia jurisdicional uma duplicação ou alternatividade de instrumentos e/ou meios processuais de reacção a uma dada actuação da Administração.
Daí que seguindo os ensinamentos do Prof. J. Gomes Canotilho (in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, págs. 506 e 507) estamos em presença dum “(…) direito constitucional de amparo de direitos a efectivar através das vias judiciais normais (…)” (vide ainda do mesmo ilustre Professor “Estudos sobre Direitos Fundamentais”, 2004, pág. 79).
Como doutamente se sustentou, a propósito da previsão do art. 109.º do CPTA, no acórdão do STA de 18/11/2004 (Proc. n.º 0978/04 - in: «www.dgsi.pt/jsta»), cuja jurisprudência e entendimento aqui se acolhem, pretendeu-se “(…) consagrar uma tutela jurisdicional reforçada nas situações tipificadas no já mencionado preceito, deste modo vincando a posição do cidadão como sujeito de direitos e liberdades, dando a tais direitos, liberdades e garantias um estatuto de “prefered position” (…).
Podemos, assim, encarar o regime acolhido nos já referidos artigos 109.º a 111.º do CPTA como uma clara manifestação da incidência e projecção de uma parcela nuclear do Direito Constitucional sobre institutos de Direito Processual Administrativo, assumindo-se, por isso, o contencioso administrativo como um dos elementos de garantia dos direitos fundamentais.
Os mencionados preceitos concedem ao juiz administrativo um poder de injunção, ainda que limitado às situações em que esteja em causa a protecção de direitos, liberdades e garantias, habilitando-o a adoptar todas as medidas necessárias a salvaguardar o exercício em tempo útil, dos direitos, liberdades e garantias, deste modo o dotando dos meios de acção indispensáveis a assegurar a defesa das “liberdades” dos “Particulares”. (…).”
E continua-se no referido acórdão o “(…) Legislador ordinário, dando cumprimento à imposição veiculada no n.º 5, do artigo 20.º do CRP, procedeu à revalorização fundamental do papel do juiz administrativo no campo da protecção dos direitos, liberdades e garantias, dando-lhe meios para obviar, rápida e eficazmente, às ameaças aos direitos, liberdades e garantias.
O interessado que pretenda aceder à via contenciosa mediante o pedido de intimação deverá invocar a lesão, ou ameaça de lesão, dos seus direitos, liberdades ou garantias, devendo formular o seu pedido contra o ente público de que proceda o acto ou omissão que ponha em risco ou atente contra os direitos, liberdades e garantias, podendo, também, formular o pedido contra particulares, designadamente concessionários, quando vise suprir a omissão por parte da Administração das providências adequadas a prevenir ou reprimir condutas lesivas dos direitos, liberdades e garantias do Interessado (cfr. n.º 2, do artigo 109.º do CPTA).
Temos, assim, que a pretensão terá de fundar-se na lesão ou ameaça de lesão de um direito, liberdade ou garantia, o que, de resto, deve ser devidamente referenciado pelo interessado na sua petição. (…).”
Como refere a Dr.ª Maria Fernanda Maçãs (in: loc. cit., pág. 50) “(…) Com a actual reforma, o legislador atenua de algum modo (…) críticas, consagrando este mecanismo de defesa dos direitos fundamentais contra actos administrativos. Na verdade, as violações aos direitos fundamentais vêm sobretudo da Administração, na medida em que continua a ser o poder estadual que convive mais de perto com os cidadãos e daí a maior susceptibilidade de lesar os seus direitos. (…)” (cfr. ainda outro loc. cit., pág. 218).
Para além disso temos que o legislador não restringiu este meio processual aos direitos, liberdades e garantias pessoais como estabelece o art. 20.º, n.º 5 da CRP visto que o seu âmbito abarca os direitos, liberdades e garantias do Título II, da Parte I da CRP, incluindo os de natureza análoga (art. 17.º da CRP), pelo que se consideram abarcados no seu âmbito os direitos de natureza análoga dispersos na CRP e fora do catálogo (cfr. nesta matéria, Dr.ª Maria Fernanda Maçãs in: loc. cit., pág. 50; Prof. J. C. Vieira de Andrade in: ob. cit., pág. 275 e nota 605; Dr.ª Sofia David in: “Das Intimações ….”pág. 121; Prof. M. Aroso de Almeida e Juiz Cons. C. A. Fernandes Cadilha in: ob. cit., pág. 537, nota 1; no sentido da inclusão na previsão do art. 109.º do CPTA da tutela do direito ao ambiente caso ocorram os demais pressupostos vide, por todos, Dr.ª Isabel Celeste Fonseca in: “Dos Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo (Função e estrutura)”, pág. 76).
Presentes estes considerandos de enquadramento quanto ao meio contencioso em presença importa agora fazer o cotejo dos normativos a ter em linha de conta para a apreciação da questão em discussão e, assim, aferir da pertinência da tese sustentada pela recorrente.
Preceitua-se no art. 13.º da CRP que:
1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Prevê o art. 18.º da Lei Constitucional que:
1 - Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2 - A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3 - As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”
Já o n.º 6 do art.19.º da CRP estipula que:
A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.”
E no art. 41.º da CRP, com a epígrafe “Liberdade de consciência, de religião e de culto”, consagra-se o seguinte regime:
1 - A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2 - Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3 - Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4 - As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5 - É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.
6 - É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.”
Por fim, decorre do art. 14.º da Lei n.º 16/01, de 22/06 (vulgo Lei Liberdade Religiosa – LLR) sob a epígrafe de “Dispensa do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso” que:
1 - Os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a) Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b) Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso;
c) Haver compensação integral do respectivo período de trabalho.
2 - Nas condições previstas na alínea b) do número anterior, são dispensados da frequência das aulas nos dias de semana consagrados ao repouso e culto pelas respectivas confissões religiosas os alunos do ensino público ou privado que as professam, ressalvadas as condições de normal aproveitamento escolar.
3 - Se a data de prestação de provas de avaliação dos alunos coincidir com o dia dedicado ao repouso ou ao culto pelas respectivas confissões religiosas, poderão essas provas ser prestadas em segunda chamada, ou em nova chamada, em dia em que se não levante a mesma objecção.”
Feito o cotejo dos normativos a atender importa, agora, tecer alguns considerandos de enquadramento do direito em discussão nos autos, ou seja, o direito à liberdade religiosa.
Este direito para além da sua consagração no ordenamento jurídico interno tem ainda pilares em termos do ordenamento jurídico internacional.
Assim, temos que ao longo do século passado vários documentos internacionais foram sendo produzidos e desenvolvidos com o propósito de promover princípios de liberdade religiosa. Desde logo, importa considerar, em termos de ordenação cronológica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), depois a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), seguindo-se a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base na Religião ou Crença (1981) e, por fim, o Documento Final de Viena (1989).
Cada um desses documentos promove a liberdade religiosa ao expor os direitos de tal significado que deverão ser universais.
Atente-se que no art. 18.º da DUDH resulta que a toda a pessoa é reconhecido o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, sendo que este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Ressalta, por conseguinte, da DUDH uma determinação vigorosa no sentido de que as diferenças religiosas individuais devem ser respeitadas, estribando-se num princípio político de que um papel fundamental do Estado é o de proteger a escolha religiosa e não ditar a conformidade religiosa.
Este princípio moderno de liberdade religiosa, através do qual os Estados declaram sua neutralidade sobre questões religiosas, permitindo a cada cidadão individualmente, com base na sua própria dignidade humana, adoptar as suas crenças religiosas sem medo de represália, é consequência natural do esclarecimento. Optou-se na DUDH por uma visão ampla da liberdade religiosa, liberdade positiva e negativa, liberdade individual, das famílias e das instituições; liberdade privada e pública.
Este direito prende-se com a dimensão mais íntima e pessoal de cada ser humano na medida em que diz respeito à procura, individual e/ou colectiva, duma resposta às questões de sentido existencial e ético da vida humana, sendo certo que a religião é tão antiga na vida das sociedades humanas como a própria pessoa, sua origem e razão de ser.
Trata-se dum direito cujo âmbito de aplicação se estende às condutas religiosas praticadas em privado ou em público, individual ou colectivamente.
Constitui, por conseguinte, um direito, liberdade e garantia que tem um âmbito normativo alargado.
Daí que o direito em referência protege não apenas a confissão dominante ou as confissões tradicionais mas igualmente todas as confissões e comunidades religiosas.
A liberdade em matéria religiosa implica, pois, a possibilidade de expressão social da diversidade enquanto essência do pluralismo, compreendendo “a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou a convicção, sozinho ou em comum …” (art. 18.º da DUDH), norma esta que é aplicável no âmbito do nosso ordenamento por força do art. 16.º, n.º 2 da CRP que determina a recepção formal da DUDH uma vez que a toma como pauta interpretativa e integradora dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais.
Note-se que a liberdade religiosa, na sua vertente individual, abarca, entre outras, a liberdade de observar dias de descanso e de celebrar as festas e cerimónias segundo os preceitos da própria religião [cfr. art. 06.º al. h) da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base na Religião ou Crença (1981)], recebido na nossa ordem jurídica por força do n.º 1 do art. 16.º da CRP.
Nas palavras do Prof. Jorge Miranda e do Dr. Rui Medeiros “(…) A consideração constitucional da liberdade de consciência, de religião e de culto revela-se no emprego do adjectivo inviolável, que só se encontra também no artigo 24.º sobre o direito à vida e no artigo 25.º sobre a integridade física e moral.
Embora possa configurar-se como uma só liberdade, importa deslindar. A liberdade de consciência – indissociável da liberdade de pensamento – é mais ampla do que a liberdade de religião, pois tem por objecto tanto as crenças religiosas como quaisquer convicções morais e filosóficas. Em contrapartida, ela só diz respeito ao foro individual, ao passo que a liberdade de religião possui uma necessária dimensão colectiva e institucional e implica também a liberdade das confissões religiosas.
… A liberdade individual de religião consiste, antes de mais, na liberdade de ter ou não ter religião e de mudar de religião.
E para quem professe uma religião compreende, designadamente: a) o direito de celebrar o respectivo culto e as respectivas festividades; b) o de cumprir os deveres dela decorrentes; c) o direito de a expressar por qualquer forma, através de palavras ou de símbolos; d) o de a manifestar na sua vida pessoal, v.g., contraindo casamento ou educando os filhos de harmonia com essa religião (cfr. artigo 36.º, n.ºs 2 e 5); e) o direito ao respeito dos seus sentimentos religiosos; f) o direito de difusão da sua religião ou de proselitismo, no respeito da liberdade dos outros. (…)” (in: “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, págs. 446 e 447).
Tal como sustentaram Prof. J. J. Gomes Canotilho e Dr. Jónatas Machado o “(…) direito à liberdade religiosa goza do regime específico dos direitos, liberdades e garantias … . Ele é directamente aplicável, no sentido de que vale ‘sem lei, contra a lei e em vez da lei’, vincula entidades públicas e privadas (art.18.º/1 da CRP) …. … a sua restrição só pode ser feita através da lei, quando isso seja adequado, necessário e proporcional em sentido estrito para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18.º/2 da CRP).
A consideração de todos os cidadãos como livres e iguais é uma das bases fundamentais da construção de uma ordem constitucional de justiça e reciprocidade. A essa exigência procura dar resposta o princípio da igualdade. Este visa proteger a liberdade e a diversidade dos cidadãos e dos grupos e preservar as condições de pluralismo e abertura necessárias à renovação social e cultural através do ‘pacífico confronto das ideias’ ….
…, a noção de igual liberdade religiosa tem subjacente o princípio de que os cidadãos e as confissões religiosas devem ser tratados como iguais, isto é como igualmente livres e dignos de consideração e respeito. (…)” (em: “Bens culturais, propriedade privada e liberdade religiosa” in: Revista MP, Ano 16, n.º 64, págs. 23 e 24) (sublinhados nossos).
Aprofundando a matéria e sua interligação com o princípio da igualdade referem ainda estes Autores “(…) A este propósito, há que referir dois corolários do princípio da igualdade só aparentemente contraditórios. Por um lado, pode falar-se de uma proibição de diferenciação … sempre que por este meio se ponha em causa as finalidades substantivas do princípio da igualdade. Nestes casos, tratamento como igual significa o direito a um tratamento igual. No entanto, nalgumas circunstâncias a igualdade formal dará lugar a uma igualdade meramente aparente, se não mesmo a situações de verdadeira discriminação. Deste modo, também é de considerar a existência de uma obrigação de diferenciação de tratamento jurídico …. Aqui, direito a um tratamento como igual pode significar direito a um tratamento especial. No entanto, é importante salientar que nem todas as diferenciações serão igualmente legítimas. Elas encontram um limite intransponível na garantia da igualdade qualitativa. As diferenciações jurídicas têm como objectivo último a consideração dos cidadãos como livres e iguais.
O tratamento das confissões religiosas como iguais obriga à concessão a todas elas de uma mesma medida de liberdade, tão ampla quanto isso seja compatível, por via de um processo de ponderação proporcional de bens, com a protecção dos direitos e interesses constitucionalmente protegidos. (…)” (in: loc. cit., págs. 24 e 25) (sublinhados nossos).
E mais à frente afirmam ainda que: “(…) é constitucionalmente inadmissível a degradação estadual do fenómeno religioso ao estatuto de manifestação cultural inferior, produto da superstição ou da menoridade intelectual.
… O direito a uma igual liberdade religiosa tem como corolário o princípio da neutralidade e não identificação estadual em matéria religiosa …. Ele pretende apenas garantir a imparcialidade dos mesmos perante cidadãos de diferentes credos religiosos, precludindo o favorecimento de uns e o prejuízo de outros em virtude das suas convicções e práticas religiosas …. ele pretende afirmar o Estado como casa comum de todos os cidadãos, considerados como livres e iguais, assegurando a inclusividade de todos os espaços públicos, sejam eles de natureza discursiva ou institucional. (…)” (in: loc. cit., págs. 29 e 30).
Importa, todavia, ter presente que no que concerne ao seu exercício os direitos constitucionais, onde se inclui o da liberdade religiosa, não têm uma natureza de direitos absolutos, pois podem e devem sofrer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos, como expressamente se prevê no n.º 2 do art. 18.º da CRP e é igualmente afirmado no art. 06.º da LLR.
Neste caso e como já vimos supra o próprio n.º 2 do art. 41.º da CRP estabelece que «ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa», disposição esta que consubstancia uma proibição de qualquer discriminação fundada em motivos religiosos, seja negativa seja positiva, tratando-se “(…) de uma explicitação do art. 13.º, n.º 2 (princípio da igualdade). Além de ninguém poder ser prejudicado nos seus direitos por motivos religiosos, também ninguém pode ser isento dos seus deveres jurídicos (obrigações) ou deveres cívicos (…)” (cfr. Profs. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in: “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição, pág. 243).
Ora a propósito dos limites a que está sujeito o direito à liberdade religiosa refere o Dr. Paulo Pulido Adragão que a “(…) Constituição não sujeita a liberdade religiosa a quaisquer limites específicos. Ser-lhe-á certamente aplicável a cláusula geral de limites prevista no art. 29.º, n.º 2 da Declaração Universal, antes referida. Se se considerar a interpretação deste preceito feita, em especial, pelo art. 9.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a liberdade religiosa estará sujeita, no ordenamento jurídico português, às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente:
- A promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros;
- A satisfazer as justas exigências da segurança pública, da moral, da saúde e da ordem pública, numa sociedade democrática.
Entende-se ainda, dada a analogia de situações, que os limites à liberdade de associação, previstos pela Constituição, constituirão também pressupostos materiais negativos da liberdade de constituição de confissões religiosas e, nesse sentido, limites derivados à liberdade religiosa. Assim, os grupos que se proponham fins violentos ou contrários à lei penal (art. 46.º, n.º 1) ou, ainda, enquadráveis no tipo proibitivo do art. 46.º, n.º 4, não poderão constituir-se ao abrigo da liberdade religiosa. (…)” (in: “A Liberdade Religiosa e o Estado”, Almedina, Setembro 2002, pág. 373 e para mais desenvolvimentos vide a doutrina explanada a págs. 411 e segs. e 477 e segs.).
Revertendo, agora, em particular ao art. 14.º da LLR, supra reproduzido, e àquilo que foi o entendimento que fez vencimento na decisão judicial recorrida, temos que o mesmo vem dar concretização ao comando constitucional decorrente do art. 41.º da CRP, reconhecendo o direito de gozar os feriados religiosos da respectiva confissão o qual estava já implícito na previsão da al. c) do art. 10.º da LLR (direito de comemorar publicamente as festividades religiosas da própria religião), constituindo o disposto nos n.ºs 2 e 3 do aludido art. 14.º em matéria de aulas e de provas uma decorrência normal do referido direito para os alunos membros de confissões religiosas com feriados diferentes dos feriados legais (cfr. em sentido concordante com a amplitude reconhecida à dispensa do trabalho, de provas e de aulas por motivo religioso, mas critico quanto à limitada previsão da al. a) vide Dr. Paulo Pulido Adragão in: ob. cit., págs. 471 e 472).
Argumentou-se na decisão judicial recorrida que “(…) a qualidade da requerente, enquanto advogada estagiária, não se enquadra em qualquer dos números do artigo 14.º da LLR.
Enquanto profissional liberal não está abrangida pelas disposições contidas no n.º 1, aplicáveis a funcionários do Estado e a trabalhadores em regime de contrato de trabalho. Também não pode qualificar-se a requerente como aluna do ensino público e privado, para efeitos do disposto nos números 2 e 3 do mesmo preceito legal.
Na verdade, a requerente, na qualidade de advogada estagiária, pretende o acesso a uma profissão – a advocacia – que tem regras disciplinadoras, tal como o acesso às diversas profissões. Dependendo da actividade profissional que se pretende exercer, pode o interessado estar condicionado a um concurso, com provas, com entrevista profissional ou outros requisitos previstos legalmente e às regras definidas, nomeadamente, pela entidade empregadora.
Assim, entende-se que o acesso a uma profissão não é análogo a nenhuma das situações reguladas na LLR.
(…), para se efectivar uma interpretação extensiva temos que presumir que o legislador quis incluir uma situação não mencionada na norma.
E é aqui que o tribunal tem entendimento diverso. Não terá sido por acaso que o legislador terá regulado apenas a dispensa do trabalho dos funcionários aí descritos e a dispensa de aulas e prestação de provas de alunos do ensino público e privado, não mencionado quaisquer outras situações.
Poderíamos pensar que se apenas indicou estas situações, outras que surjam, não se incluem nesta norma. Mas nem sempre o legislador é exaustivo e pode ter-se esquecido de prever situações susceptíveis de protecção semelhante.
E a questão é precisamente esta, o tribunal entende que o caso da requerente não é semelhante a nenhum dos descritos no artigo 14.º da LLR, pois a protecção que se justifica acautelar no direito ao ensino não é similar à escolha da profissão ou género de trabalho.
Assim, ao efectuar uma interpretação extensiva do disposto nos n.º 2 e 3 poderemos estar a ultrapassar a intenção do legislador, uma vez que não existe o mínimo de correspondência na letra da lei. (…).”
Temos para nós que, de harmonia com o que supra se referiu quanto ao âmbito individual e colectivo do direito à liberdade religiosa, não se afigura adequada e correcta a leitura feita na decisão judicial quando afastou a aplicação do n.º 3 do art. 14.º da LLR à situação da recorrente pelo facto de a mesma se situar no domínio do acesso a uma profissão e no exercício de poderes públicos e não no domínio de provas habilitacionais em processo de formação escolar, liceal ou universitária.
Na verdade, constitui um dado adquirido, certo, o de que no âmbito da LLR inexiste qualquer normativo que consagre ou discipline em matéria de exames de acesso a uma determinada profissão.
Ora face aos contornos atrás expendidos em que se desenvolve e se afirma o direito à liberdade religiosa dúvidas não temos que, na ausência de norma expressa sobre dispensa de provas/exames de acesso a uma determinada profissão, nos deveremos socorrer da norma contida no n.º 3 do art. 14.º da LLR a qual se revela apta a regular de igual modo também o tipo de prova como aquela a que a recorrente se deverá e terá de submeter, tudo sem prejuízo da natural, adequada e devida interpretação da terminologia legal “provas de avaliação dos alunos”, no que se traduz numa correcta e conforme hermenêutica com a nossa Lei Fundamental e respeitadora da especial vinculação das entidades públicas ou a exercer funções públicas (como é o caso da Ordem dos Advogados) aos direitos, liberdades e garantias, em particular, ao direito à liberdade religiosa, até por força do regime decorrente dos arts. 09.º e 10.º do CC.
Note-se que este entendimento ao contrário do que também se sustentou na decisão judicial recorrida não envolve a colocação da recorrente numa posição de vantagem face aos demais candidatos ao referido exame na medida em que aquela disporia de mais tempo para se preparar.
Na verdade, não pode considerar-se e argumentar-se que a interessada, aqui recorrente, face à pretensão que havia formulado e antecedência com que a havia deduzido, ficasse colocada numa situação ou posição de vantagem em relação aos outros candidatos pois a mesma nunca solicitou que uma eventual prova alternativa viesse ou tivesse de ser efectivada em data posterior à da prova que se mostrava agendada, podendo realizar-se até em data anterior no e para o que a antecedência com que colocou a questão à Ordem dos Advogados teriam permitido lograr tal desiderato.
Por outro lado, analisado o Regulamento Geral de Formação aplicável à recorrente [Regulamento n.º 42-A/2002, publicado no DR II Série, n.º 250, 2º Suplemento, de 29/10/2002 (alterado pela deliberação n.º 1713/2002 publicada no DR II Série, n.º 288, de 13/12/2002 e pela deliberação n.º 585/2004 publicada no DR II Série n.º 105, de 05/05/2004), tendo sido entretanto revogado pelo Regulamento n.º 52-A/05/2005 publicado no DR II Série n.º 146, de 01/08/2005] afigura-se-nos, tal como sustentou o Sr. Provedor de Justiça na pronúncia dirigida ao Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados e que se mostra junta aos autos, que o n.º 3 do art. 14.º da LLR “… poderá implicar, na generalidade das situações, a marcação de uma data alternativa para a prestação da prova, especificamente concebida para o beneficiário da norma, mesmo que seja só um, por exemplo nas situações em que não há pura e simplesmente uma segunda chamada – como será o caso do exame de agregação da Ordem -, e quando a chamada seguinte, já programada, aconteça apenas num prazo tão dilatado – como será também o caso do exame de agregação da Ordem -, que acabe por inviabilizar, na prática, o exercício, pelo respectivo titular, do direito que o legislador quis salvaguardar com o preceito, implicando que aquele tenha de optar entre, no caso, aceder em tempo útil a uma profissão, ou seguir as regras da religião que professa. …”.
A efectivação do direito à liberdade religiosa por parte da recorrente reclamava e impunha, mais do que a simples justificação de não comparência e do direito à não realização do exame final na data agendada, o que, aliás, até foi reconhecido pela Ordem, a marcação duma nova data que se adequasse ao exercício daquele seu direito fundamental inviolável porquanto ao assim não proceder a Ordem pôs em causa aquele direito da recorrente.
Mas será que, no caso vertente, a este entendimento obstaculiza o regime decorrente do art. 14.º da LLR, nomeadamente, a al. b) do n.º 1 do citado normativo?
Pensamos que a resposta a esta questão terá de ser negativa pelos fundamentos que explicitaremos de seguida.
É certo que para as situações abrangidas pelo aludido dispositivo legal o exercício do direito em questão pressupõe, em nosso entendimento, por força da al. b) do n.º 1 do art. 14.º, o envio pela igreja ou comunidade religiosa, ao membro do Governo competente, da declaração a que se refere a aludida alínea nos termos aí previstos.
Na verdade, a dispensa do trabalho, das aulas e de provas escolares por motivo religioso segundo o regime que se mostra consagrado no art. 14.º está condicionado quanto a qualquer uma daquelas facetas pela observância do envio por parte da igreja ou comunidade religiosa, no ano anterior, ao membro do Governo competente em razão da matéria da indicação dos dias de descanso semanal, dos dias das festividades e dos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam no ano em curso.
Note-se ainda que os alunos sujeitos às provas a que se reporta o n.º 3 do art. 14.º da LLR são inequivocamente os mesmos que se mostram aludidos no n.º 2 do mesmo preceito legal, não fazendo sentido uma leitura do preceito contrária no sentido de que o n.º 3 nada tem que ver com o n.º 2 porquanto se trataria de interpretação jurídica divergente claramente com a letra e espírito do normativo legal em referência, sem um mínimo de apoio legal.
Não faz sentido algum que fosse necessária a declaração enunciada na al. b) do n.º 1 para a dispensa da frequência das aulas prevista no n.º 2 e já assim não fosse para o regime de prestação de provas definido no n.º 3 do mesmo preceito e que se seguia àquele.
Assim, a exigência daquela declaração, quanto mais não seja para declarar que em todos os anos vindouros os seus dias de guarda são sempre os mesmos dias da semana, é legalmente imposta como condição para o operar e legitimar do exercício daquele direito em face e na ponderação com os demais interesses e direitos em confronto.
Trata-se da introdução dum requisito formal com o qual se pretende consagrar um regime de equiparação de todas as igrejas ou comunidades religiosas em termos de lhes impor, sem excepção, a necessidade de apresentação da declaração como condição para o operar e desfrutar do direito à liberdade religiosa ao abrigo do regime previsto no art. 14.º da LLR.
Com este regime e com aquele requisito formal veio introduzir-se um factor de objectividade e de segurança fáctico-jurídica em matérias como a da disciplina das relações de emprego e respectivo horário e da disciplina da leccionação (comparência às aulas e provas) em termos da justificação ou não de determinadas faltas na sua compatibilização com o direito à liberdade religiosa.
Compreende-se, assim, que o desiderato final expresso com aquele comando legal foi o de evitar que uma parte importante do direito à liberdade religiosa (direito ao culto e à comemoração pública das festividades religiosas da própria religião), uma matéria e área tão sensível, ficasse na disponibilidade e à mercê da interpretação e entendimento subjectivo ou mesmo arbitrário da entidade empregadora ou da entidade directiva do estabelecimento escolar, visando-se o evitar o apelo aos factos de “conhecimento público” e, assim, introduzir mais rigor e objectividade nesta sede.
Como condição para o evitar de eventuais arbítrios e soluções que inviabilizassem o exercício oportuno e efectivo do direito à liberdade religiosa impôs o legislador a satisfação daquela condição formal [apresentação da declaração anual - al. b) do n.º 1 do art. 14.º], condição essa garante de objectividade e de efectividade do legítimo exercício deste direito na sua compatibilização com os outros interesses e direitos potencialmente conflituantes.
Esta limitação ou restrição ao direito ter-se-ia, assim, como adequada, necessária e proporcional face aos outros interesses conflituantes em termos, desde logo, do reconhecimento e do respeito dos direitos e liberdades dos outros no confronto com aqueles, e, bem assim, do satisfazer de justas exigências e interesses em matéria de segurança e de disciplina pública em termos da relação de emprego, seja ele público ou privado, e do funcionamento do sistema escolar numa sociedade democrática.
Questão que se pode, todavia, colocar é a de se saber se um tal regime legal não poderá ser susceptível de violar em concreto o direito à liberdade religiosa quando mercê e por força duma omissão do envio da declaração anual por parte da igreja ou comunidade religiosa de que é membro uma determinada pessoa individual não for dispensada do trabalho ou de aulas e provas escolares ficando impossibilitada do culto, da participação nas festividades e do cumprimento dos deveres e impostos pela sua crença, sendo dessa forma “punido” por um incumprimento duma formalidade que o mesmo não controla, nem pode controlar e para a qual nada tem a ver uma vez que a lei não lhe impõe algum dever de controlo ou conferir poder de imposição de tal conduta.
Não ocorrerá aqui uma violação dum direito e liberdade individual constitucionalmente qualificado como “inviolável” quando o sujeito activo detentor desse direito se vê cerceado do mesmo com fundamento numa omissão de formalidade que manifestamente não lhe é imputável?
De igual modo não haverá também violação do direito à liberdade religiosa quando na al. a) do n.º 1 do art. 14.º da LLR se restringe aquele direito apenas aos trabalhadores que prestem a sua actividade laboral em regime de flexibilidade de horário ficando de fora os demais? A este propósito e para mais desenvolvimentos atente-se o posicionamento do Dr. Paulo Pulido Adragão (in: ob. cit., págs. 471 e 472).
Tratam-se, no entanto, de questões que, salvo melhor opinião, não se enquadram ou relevam na situação concreta “sub judice”.
Com efeito e na sequência do que atrás foi já sendo afirmado, havendo ou estando-se perante uma lacuna legal importa integrar a mesma com a norma que o próprio intérprete criaria e que se mostre adequada e harmónica com o espírito do sistema legal (cfr. arts. 09.º e 10.º do CC), fazendo-o cumprindo também o princípio da interpretação e integração das leis em conformidade com a Constituição.
Perante uma situação de facto carecedora de decisão jurisprudencial impõe-se encontrar na interpretação e na integração, enquanto momentos distintos mas conexos de “captação ou obtenção do direito”, a solução jurídica justa do caso concreto, sendo que o método mais frequente para a integração de lacunas de regulamentação aberta é a analogia mediante a transferência duma regulamentação de certas situações para outros casos merecedores de igualdade de tratamento jurídico.
Ora as normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias podem elas próprias estabelecer a eficácia na esfera ou ordem jurídica privada, conferindo aos particulares nas suas relações com outros sujeitos, mormente privados, o direito de invocarem as normas constitucionais que expressamente vinculam os actos dos entes sujeitos aos direitos fundamentais.
Como sustenta eloquentemente o Prof. J. J. Gomes Canotilho “(…) a função de protecção jurídica dos direitos fundamentais como normas garantidoras de bens jurídicos (dignidade, liberdade, vida, integridade pessoal), aponta não apenas para o dever do legislador estabelecer uma ordenação adequada das relações jurídicas privadas sob o pontos de vista dos direitos, liberdades e garantias, mas também para a responsabilidade de os tribunais encontrarem uma solução justa para os casos de conflitos de posições fundamentais. Os diferentes tribunais (…) devem considerar os direitos, liberdades e garantias como medidas de decisão dos casos concretos. Os juízes embora vinculados em primeira linha pela mediação legal dos direitos, liberdades e garantias, devem também dar operatividade prática à função de protecção (objectiva) dos direitos, liberdades e garantias (…)”, rematando que a “(…) vinculação dos tribunais pelos direitos, liberdades e garantias é, deste modo, uma expressão do dever de protecção (…) que incumbe ao Estado relativamente à efectivação destes direitos (…)” (in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, págs. 1292 e 1300).
Assim e retornando ao caso em análise temos como legítimo, para o efeito, o socorrermo-nos da norma que no caso o legislador criou fazendo apelo, assim, do regime consagrado no art. 14.º da LLR mas agora devidamente adaptado tanto para mais que no caso estamos face a disciplina que se prende com o processo de formação, de acesso e exercício duma actividade privada desenvolvida enquanto profissão liberal, situação que não se mostra minimamente configurada na previsão do normativo em referência a qual se circunscreve ou reconduz às situações de trabalho dependente (no âmbito da Administração Pública ou no âmbito da actividade privada) e de formação escolar (em escolas públicas ou privadas).
À luz da esfera ou do âmbito de previsão da norma as exigências e requisitos/condições ali enunciados mostram-se lógicos e consequentes com as situações que visam regular e disciplinar.
De facto e no que ora releva quanto ao requisito do envio da declaração aludida na citada al. b) temos que o mesmo, considerando os objectivos que a ele presidem, faz sentido e mostra-se adequado de molde a que haja aquele tipo de comunicação junto do membro do Governo competente em razão da matéria quando nos encontremos perante situações que se enquadrem naquele normativo ou a ele sejam similares em termos de exercício de actividade. Nessa medida, relativamente aos funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas faz sentido que a comunicação seja feita ao Ministro das Finanças e da Administração Pública e que em relação dos trabalhadores em regime de contrato de trabalho a comunicação seja dirigida ao Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social. O mesmo se dirá em relação aos alunos porquanto a comunicação deverá ser endereçada, em função das várias fases do processo educativo/formativo, ao Ministro da Educação e ao Ministro da Ciência e do Ensino Superior.
Já numa situação, como a em causa, em que estamos perante acesso ao exercício de actividade privada como profissional liberal (advocacia) a exigência daquela declaração mostra-se desfasada e inadequada, tal como, aliás, o poderão estar as demais alíneas do n.º 1 do art. 14.º.
Não faz sentido, mostrando-se inconsequente, uma exigência de comunicação anual ao membro do Governo competente em razão da matéria quando, desde logo, não se descortina qual seria o membro de Governo competente relativamente à Ordem dos Advogados e sendo que inexiste qualquer superintendência ou tutela do Governo face à Ordem dos Advogados visto esta, em termos legais e estatutários, enquanto “… associação pública representativa dos licenciados em Direito que, em conformidade com os preceitos deste Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem profissionalmente a advocacia …” goza de personalidade jurídica e é “… independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras …” (cfr. art. 01.º da Lei n.º 15/05, de 16/01 – Estatuto da Ordem dos Advogados).
Nessa medida, temos que no caso vertente o condicionamento ao exercício por parte da recorrente do direito à liberdade religiosa não pode legitimamente estar amarrado ao preenchimento do requisito da al. b) do n.º 1 do art. 14.º (envio da declaração anual ao membro do Governo competente), sendo que não faz sentido adaptar e adequar este preceito nesse âmbito de molde a que o mesmo fosse lido como impondo então uma comunicação anual à Ordem dos Advogados porquanto assim estar-se-ia a impor às igrejas ou comunidades religiosas um dever ou um ónus de comunicação a um número infindo e de muito difícil concretização, identificação ou definição de instituições ou entidades como meio único de assegurar e efectivar, na prática, aos seus crentes o legítimo e livre exercício do direito à liberdade religiosa.
Uma “falha” ou “esquecimento” quanto a uma entidade a ser objecto daquela comunicação (seja uma ordem profissional ou não) geraria a impossibilidade ou o impedimento dos seus membros de exercitarem o seu direito à liberdade religiosa na sua plenitude quando a identificação e definição daquela entidade não resulta de forma clara, inequívoca e sem margem para dúvidas da lei.
Não parece, contudo, ter sido esse o objectivo ou fim último do legislador, nem nos parece que seja essa a melhor interpretação e aplicação do comando constitucional que consagra o direito à liberdade religiosa porquanto uma tal exigência redundaria, muito possivelmente, numa limitação ilegítima, ilegal e até mesmo inconstitucional do direito em questão.
Assim, na sequência do que vimos expondo e tendo presente a factualidade fixada [cfr., em especial, n.ºs I), II), III) e IV)] temos para nós que assistirá razão à recorrente.
De facto, a mesma teve o cuidado de, quando tomou conhecimento da calendarização das provas, expor a sua situação e requerer a sua pretensão (agendamento de nova data para realização do exame final compatível com sua prática religiosa) junto do Presidente da Comissão Nacional de Estágio e Formação da Ordem dos Advogados.
Fê-lo com nota de “urgente” em 12 de Janeiro de 2006 quando o exame final estava agendado para o dia 08 de Julho do mesmo ano e sendo que no procedimento “sub judice” deduzido junto da Ordem dos Advogados a recorrente procedeu ainda à junção de declaração da igreja ou organização religiosa de que é membro na e da qual consta que “… os Adventistas do Sétimo Dia têm como dia santo de guarda o Sábado que, segundo as Sagradas Escrituras, começa ao pôr-do-sol de sexta-feira e termina ao pôr-do-sol de Sábado, não tendo no seu calendário quaisquer festas móveis ou outros períodos de descanso …” (cfr. doc de fls. 24 dos autos e fls. 37 do PA apenso cujo teor aqui se dá por reproduzido).
Decorre do circunstancialismo apurado que a Ordem dos Advogados detém, por lhe haver sido atempadamente comunicado, informação inequívoca de que a recorrente enquanto membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia tem como seu dia de descanso o Sábado, conhecimento esse que é feito cerca de 06 meses antes da data aprazada para a realização do exame final e como tal num lapso temporal que lhe permitia ou permitiria ter compatibilizado os agendamentos com a observância e respeito da pretensão da recorrente enquanto estribada no direito à liberdade religiosa.
Em concreto e pese embora inexistir um dever de comunicação à Ordem dos Advogados temos, contudo, que a mesma substancial e materialmente, detinha informação em tudo similar àquela que obteria se tivesse havido aquela declaração.
Daí que numa correcta interpretação e adequação do quadro legal em conformidade com a Lei Fundamental em termos de optimizar e garantir o efectivo e integral respeito dos direitos, liberdades e garantias, em concreto, o direito à liberdade religiosa, deveria a Ordem dos Advogados ter procedido à marcação duma data para a realização da prova final compatível com a pretensão que a recorrente havia formulado no uso dum seu legítimo direito. Não podemos deixar de ter presente e em mente no julgamento a efectuar que os direitos fundamentais são reconhecidos também como direitos de cada ser humano, seja indivíduo seja como membro de formação social onde desenvolve e forma a sua personalidade.
Assim sendo no contexto exposto o não agendar por parte da Ordem dos Advogados duma nova prova marcada para além daquela que estava prevista para o dia 08/07/2006 violou o conteúdo essencial da liberdade religiosa da recorrente, infringindo os arts. 13.º e 41.º da CRP.
Terá, pelos fundamentos e razões ora explanados, que proceder a pretensão da recorrente.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes deste Tribunal em:
A) Conceder provimento ao recurso jurisdicional e consequentemente revogar a decisão judicial recorrida;
B) Deferir o pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias “sub judice” condenando a Ordem dos Advogados a:
- Ter a A. como dispensada da realização da prova escrita integradora do exame final de avaliação e agregação que se encontrava marcada para o dia 08 de Julho de 2006;
- Proceder, no prazo de 10 (dez) dias, à marcação duma nova data para realização pela A. daquela prova escrita em dia que não coincida com Sábado, sendo que na dilação daquela marcação ou agendamento não deverá ser ultrapassado o prazo de 30 (trinta) dias.
Sem custas dada a isenção objectiva legal [cfr. al. c), do n.º 2, do art. 73.º-C, do CCJ e art. 189.º do CPTA].
Notifique-se, sendo ainda, pessoalmente, o Exm.º Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados. D.N..

Restituam-se aos ilustres mandatários judiciais das partes os suportes informáticos gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA).
Porto, 08 de Fevereiro de 2007
Ass.) Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass.) José Augusto Araújo Veloso
Ass.) Jorge Miguel Barroso Aragão Seia