Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00505/06.0BECBR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:12/15/2022
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:IMPOSTO SOBRE SUCESSÕES E DOAÇÕES;
INIMPUGNABILIDADE;
INEXISTÊNCIA DO FACTO TRIBUTÁRIO, FIXAÇÃO DO VALOR;
Sumário:I - A impugnação judicial deduzida contra a liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações não é o meio idóneo para reagir contra o acto de fixação de valores sobre que incidiu o imposto, sendo a forma de reagir contra este acto a contestação desses valores, requerendo a avaliação dos bens ainda não avaliados, prevista no artigo 87.º do CIMSISD.

II - A falta dessa contestação não impede o contribuinte de invocar e discutir a inexistência do facto tributário na impugnação judicial da liquidação do imposto sucessório, que se coloca a montante da fixação do valor, dado ser requisito de tributação a real e efectiva transferência de bens – cfr. a norma de incidência do imposto: artigos 1.º e 3.º §1.º do CIMSISD.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

AA, contribuinte fiscal n.º ..., com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ..., em ..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, proferida em 07/03/2012, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação do imposto sobre as sucessões e doações, no valor de €42.565,26, realizada no âmbito do processo de liquidação do imposto sucessório n.º ...87/2003, por óbito de BB, ocorrido em 20/08/2003, por não ter sido utilizado contra o acto de fixação de valores sobre que incidiu o imposto a contestação prevista no artigo 87.º do Código do Imposto Municipal de SISA e do Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISD).

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
“1) - Em primeiro dão se por reproduzidos todos os factos invocados na petição de impugnação judicial e nomeadamente
a) - que a F.N. no que concerne aos créditos de suprimentos serviu-se de um balancete analítico sem as contas 60 e 70 saldadas o que provoca, um reporte á data de 31-12-2001 (dois anos antes da morte de BB).
Efectivamente, sem quaisquer dúvidas que o balancete analítico entregue a F.N. com data de 23-12-2004 referido a 2002, sem as contas 60 e 70 saldadas o faz reportar á data de 31-12-2001.
b) - quer no balancete analítico de 23-12-2004 reportado a 31-12-2001 quer na situação patrimonial verificada no processo de insolvência nº ....47/06.1TBLSA do Tribunal ..., o saldo é negativo de - €22.594,98.
c) -Não houve quaisquer pagamentos de créditos de suprimentos no processo de insolvência, conforme certidão já junta aos presentes autos, mas a situação é também verificável pelo próprio balanço analítico de 23-12-2004 (referente ao ano de 2002) na coluna referente ao ANO ANTERIOR.
d) - é de facto por esta errónea quantificação dos valores a liquidar no processo sucessório e pela sua constatação no processo de insolvência que o Ilustre Procurador e apesar de considerar verificada a caducidade, pugnou pela procedência da impugnação neste campo. Mas não só por isto mas também por um louvável conceito de justiça material e porque se considera - na nossa opinião - que se deveria ter em conta o disposto no art 663 do C.P.Civil para efeitos de verificação de factos modificativos e extintivos verificados após a propositura da acção de impugnação.
2) - Deveria a F.N. ter solicitado e em relação a avaliação da quota e dos créditos de suprimentos, o balanço último ou seja, a data da morte e não servir-se de um balancete analítico sem as contas 60 e 70 saldadas, contrariando e violando manifestamente o referido no art 77 do C.I.S.S.D. e no que respeita a sociedade "N...., Lda.".
3) -No que concerne aos créditos verificados existentes no estabelecimento de BB (pai do ora impugnante) e referidos nas co 25.531,25541,25591 no montante de € 203.904,49 a F.N. serviu-se também dum BALANCETE referente ao ano de 2002 (e não o último balanço conforme expressamente impõe o art 22 nº 2 e art 77 do CISSD) : Efectivamente deveria a F.N. ter obtido o ultimo balanço e já que BB tinha contabilidade organizada.
4) - se o tivesse feito como impõe o art 22 nº 2 e 77 do CISSD, o resultado seria negativo de € 55.398,33, o que e confirmado no processo de insolvência que ainda corre no TJ. da ... e CUJA CERTIDÃO DO ESTADO DO PROCESSO JÁ FOI REQUERIDA E JUNTAR-SE-A aos presentes autos.
5) - outrossim a F.N. e dado que o pedido de insolvência da herança indivisa de BB deu entrada em Tribunal em Outubro de 2003, tendo a douta Sentença sido proferida em 02-04-2004, foi notificada para reclamar créditos, pelo que não desconheceu o estado de insolvência, quando procedeu a liquidação dos valores societários (créditos) o que revela não só uma violação do art 20 nº 2 e 77 do CISSD mas também uma manifesta má-fé, "pisando" os mais elementares direitos do cidadão a uma CORRECTA e JUSTA LIQUIDAÇAO para efeitos de liquidação de imposto devido.
6) - os bens sujeitos à avaliação foram efectivamente AVALIADOS no processo de liquidação, pelo que e de acordo com o art 87 seriam insindicáveis e mesmo admitindo que se está perante uma impugnação administrativa facultativa (art 87 do CISSD).
7) - No art 87 do CISSD estamos perante uma mera FACULDADE ou se quisermos perante uma impugnação administrativa facultativa e não NECESSÁRIA.
8) - sendo assim não é aplicável o art 134 do CPPT á mera faculdade prevista no art 87 do CISSD.
9) - Na vigência do CISSD, não havendo um CPT ou CPPT que são louváveis conquistas do pós 25 de Abril, mas apenas a vigência do C. Administrativo que não previa meios de impugnação judicial de actos externos ou definitivos, o MEIO GRACIOSO previsto no art. 87 do CISSD, jamais poderia ser condição previa desse outro meio contencioso (impugnação) que não existia no Ordenamento Jurídico Português á data de 1959.
10) - O D.L. nº 41969 de 1959, nas suas alterações de 91 (D-L 308/91) e 1992 (D-L 140/92) manteve intocável o art. 87, não lhe conferindo qualquer valor de impugnação necessária, quer expressamente quer implicitamente.
11) - A própria utilização do termo "poderão" demonstra que se trata de uma faculdade que o contribuinte utilizara ou não, para conseguir a revisão da liquidação, mas não como meio gracioso prévio da impugnação contenciosa. E tanto mais que o legislador mantêm o restante do art. 87 que refere que, no mesmo prazo (em 8 dias) poderá requerer o pagamento ou a dação em cumprimento ou o pagamento em prestações.
12) - Dão se por reproduzidas as considerações de direito que se explanaram em relação a este tema e nomeadamente os diversos Arestos, quer do STA (também em Pleno) e do TAC do Norte que consideram haver necessidade e após a vigência do CPTA (art. 51 nº 1 e 59) que o legislador expressamente crie ou mantenha impugnações administrativas necessárias, quer posteriores, quer anteriores ao CPTA.
13) - Se tivermos razão, com pensamos que sim e sendo a FACULDADE prevista no art. 87, MERA FACULDADE ou impugnação facultativa e já que segundo o D-L 41.969, tal faculdade não é MEIO GRACIOSO PRÉVIO e obrigatório de meios de impugnação contenciosa, então ao caso concreto não é aplicável o art. 134 nº 7 do CPPT, pelo que o impugnante poderia e aliás como o prevê a notificação por ele recebida em 10-3-2006 partir de imediato para a impugnação contenciosa como o FEZ e logo sem que se possa afirmar verificada a CADUCIDADE do direito de impugnar e manifestamente, em contrario do que foi Decidido pela DOUTA Sentença proferida nos autos..
14) - É manifesta que desde 1959 (data do D-L 41969), só após o 25 de Abril se procedeu a codificação de Diplomas de contencioso administrativo dispersos, o que se verificou nomeadamente com o C.P.Tributário aprovado pelo D-L 19/93 de 29-3.
Neste diploma prevê-se expressamente alguns casos de impugnação administrativa necessária ou obrigatória (casos de autoliquidação, da liquidação por estimativa, retenção na fonte e pouco mais). Não se descortina aí qualquer preceito idêntico ao nº 7 do art. 134 do CPPT. Ou seja no domínio do CPT todas as reclamações previstas em diplomas dispersos que não tivessem referencia EXPRESSA no C.P Tributário, teriam de ser entendidas como FACULTATIVAS (meras faculdades) e dentro destas esta decerto a contestação prevista no art. 87 do CISSD.
15) - Caso o CPPT o tivesse querido, dando um carácter de obrigatoriedade à contestação prevista no art 87 do CISSD, tê-lo-ia referido expressamente ou o Legislador poderia tê-lo feito nas alterações posteriores que fez ao CISSD , como sejam D.L. 308/91 e D-L 140/92 e NÃO O FEZ , pelo que também por aqui, se terá de considerar o meio gracioso previsto no art. 87 do CISSD como facultativo e como tal não abrangido pelo art. 134 nº 7 do CPPT.
DA ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE DO ART 134 Nº 7 DO CPPT E DE TODAS AS IMPUGANÇOES ADMINISTRATIVAS NECESSARIA NAO REFERIDAS EXPRESSAMENTE PELO LEGISLADOR, E APOS A ENTRADA EM VIGOR DO CPTA (ARTIGOS 51 Nº 1 E 59)
16) - Dão se por reproduzidas as considerações doutrinais e os arestos referidos no capítulo V das alegações (corpo das alegações).
17) - Após a revisão constitucional de 1989, com a redacção dada ao art. 268 nº 4, consideramos que todas as impugnações administrativas necessárias e nomeadamente após a entrada em vigor do CPTA (art. 51 e 59) devem CONSIDERAR-SE INCONSTITUCIONAIS e cuja declaração se requer.
18) - Ora com a entrada em vigor do CPTA, a impugnação directa não depende de previa reclamação (impugnação administrativa. necessária) podendo o cidadão abrir o contencioso directo. Sendo assim o art. 134 nº 7 do CPPT, (DIPLOMA ANTERIOR AO CPTA) não tendo sido revogado, passa a estar ferido de ilegalidade, O que DESDE já se invoca para ser Doutamente apreciado.
19) - Outrossim e face ao art. 268 nº 4 da CRP o art. 134 nº 7 do CPPT esta ferido de inconstitucionalidade material por violação do princípio Absoluto do direito de impugnar e ver apreciado judicialmente a lesão dos direitos e interesses legalmente protegidos,
O que desde já se INVOCA.
20) - Damos por reproduzidos os arestos do TCA do Norte de 1-12001 - proc nº 0064/09 , Ac do STA de 2-7-2009- proc nº 00708/07; Ac do STA de 4-6-2009 - proc nº 0377/08 e de 11-3-2010- proc nº 0701/09 e ainda o DOUTO Ac do STA em Pleno de 04-06-2009- proc nº 0337/08, "é necessário que a imposição de impugnações administrativas necessárias, após a entrada em vigor do CPTA, RESULTE expressamente.
21) - Deveria o Douto Tribunal ter aplicado o art. 663 do CP Civil, já que em relação a sociedade "N...., Lda.", o processo de insolvência veio revelar de forma clara não haver na massa insolvente bens que permitissem proceder ao pagamento à herança, dos suprimentos CONSIDERADOS no processo de liquidação, para efeitos de imposto sucessório. Convêm referir que a avaliação dos créditos existentes na empresa são avaliados pela F.N., mais de um ano após o decretamento da insolvência, o que se traduz para o ora impugnante de um verdadeiro CONFISCO FISCAL altamente reprovável e proibido constitucionalmente, violando- se assim o disposto nos art. 20 nº 2 e 77 do CISSD.
Foram violados os art. 20 nº 2 e 77 do CISSD, art. 134 nº 7 do CPPT, art. 87 do CISSD, art. 51 nº 2 e 59 do CPTA e art. 268 nº 4 da CRP
REQUER-SE: O PRAZO DE 20 DIAS PARA JUNTAR CERTIDÃO DO ESTADO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA DA HERANÇA INDIVISA DEIXADA POR ÓBITO DE BB E QUE CORRE AINDA SEUS TERMOS PELO TRIBUNAL JUDICIAL DA ....
Deverão assim Vexas Meritíssimos Juízes Desembargadores considerar o presente recurso procedente e provado e em consequência decidir em conformidade e nomeadamente ordenar que o processo baixe a 1ª instância para aí ser decidida da Impugnação contenciosa deduzida pelo ora recorrente.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA”

****
A Recorrida não contra-alegou.
****
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de não se vislumbrarem fundamentos para decisão diversa.
****
Com dispensa dos vistos legais, tendo-se obtido a concordância dos Meritíssimos Juízes-adjuntos, nos termos do artigo 657.º, n.º 4 do CPC; submete-se o processo à Conferência para julgamento.
****
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento, ao considerar verificada a excepção de inimpugnabilidade da liquidação, por não ter tido lugar previamente o procedimento de contestação dos valores sobre que foi liquidado o imposto previsto no artigo 87.º do Código do Imposto Municipal de SISA e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), e, consequentemente, ter julgado firmado na ordem jurídica o acto de fixação do valor tributável sobre que incidiu o imposto sobre as sucessões e doações.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Da sentença prolatada em primeira instância consta decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
Os factos relevantes para este efeito, constantes do P.A. apenso, são:
1. Por óbito de BB, ocorrido em 20 de Agosto de 2003, foi aberto o processo de Liquidação do imposto sucessório n.º ...87/2003,;
2. Apresentada relação de bens, na qual consta na verba n° 1 uma quota na sociedade "N...., Lda.", instruída com Balancete analítico e ainda um Balancete respeitante a um Estabelecimento Comercial (fls. 6, 7 e 9 verso);
3. A quota foi objecto de avaliação e a final foi liquidado imposto a pagar no valor de 42.565,26 € (fls. 15 a 26 e 27 a 29, processo de determinação do valor da quota 12/05);
4. Da liquidação foi o contribuinte AA notificado com carta registada com a/r, assinada em 20/3/2006, do ofício de fls. 31, dos valores que serviram de base à liquidação e que poderão ser objecto de contestação nos termos do artigo 87° do Código do Imposto sobre as sucessões. No prazo de 8 dias a contar da notificação que se considera feita no dia da assinatura do aviso de recepção. Os valores e a liquidação também poderão ser objecto de reclamação graciosa ou impugnação (…), (fls.32).”
*
2. O Direito

O tribunal recorrido, acompanhando jurisprudência do STA, concluiu que os contribuintes que discordem do acto de fixação do valor das quotas e/ou dos estabelecimentos comerciais, subjacentes aos actos de liquidação de imposto sucessório que lhes for notificado, devem contestá-lo, no prazo de oito dias, sendo a consequência de não o fazerem a caducidade do direito de contestarem judicialmente a referida fixação. Não tendo sido requerida a avaliação, não pode admitir-se, agora, a impugnação judicial para discussão da legalidade da fixação do valor das quotas, ficando precludido o direito de impugnar da quantificação do tributo.
Acrescentou, ainda, constar da notificação que foi efectuada ao impugnante, conforme fls. 31 e 32 do Processo Administrativo, quer a possibilidade de contestar os valores que serviram de base à liquidação, quer a possibilidade de reclamar ou impugnar a liquidação, pelo que não se poderá dizer que lhe foi negado o direito de discutir as liquidações, mas o impugnante, ao não ter previamente contestado aqueles valores, quando, de acordo com a referida notificação, tinha a faculdade de o fazer. Não se trata de impedir a impugnação do acto de liquidação com fundamento em qualquer ilegalidade, mas apenas de impedir que nesta se contestem os valores que serviram de base à mesma, sem previamente se terem esgotado os meios graciosos.
Resulta daqui que, tendo a Administração Tributária procedido a uma correcção dos valores referentes à quota e ao estabelecimento comercial supracitados, sobre os quais foi liquidado o imposto, o impugnante deveria ter solicitado a avaliação das quotas e do estabelecimento comercial herdados, nos termos do citado artigo 87.º do CIMSISSD, como foi expressamente indicado na notificação da liquidação, de fls. 31 e 32 do Processo Administrativo.
Pelo que, não pode admitir-se a impugnação judicial para discussão da legalidade da fixação de tais valores, na medida em que, tal como estabelece o n.º 7 do artigo 134.º do CPPT, esta só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação, ali se determinando que "(...) A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação (…)", na redacção dada pela Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho, aqui aplicável.
É este, em suma, o teor da sentença recorrida, resultando do mesmo ter o tribunal “a quo” entendido que o impugnante somente imputou, na sua petição de impugnação, vícios ligados à errónea quantificação dos valores sobre que incidiu o imposto sucessório.
Com efeito, a jurisprudência do STA vai no sentido de a impugnação judicial deduzida contra a liquidação de imposto sucessório não ser o meio idóneo para reagir contra o acto de fixação de valores sobre que incidiu o imposto (designadamente os atribuídos às quotas sociais que integravam o património do de cujus), sendo a forma de reagir contra este acto a contestação da avaliação prevista no artigo 87.º do CIMSISD. Na falta dessa contestação, o acto da fixação do valor tributável firma-se na ordem jurídica como caso decidido ou caso resolvido, deixando de poder ser invocada, na impugnação que venha a ser deduzida contra o acto de liquidação, a existência de qualquer ilegalidade na fixação daquele valor, segundo o artigo 86.º, n.º 2, da LGT e o artigo 134.º, n.º 7, do CPPT – cfr., neste sentido, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22 de Maio de 2012, proferido no processo n.º 5232/11, do Tribunal Central Administrativo Norte, de 24 de Abril de 2008, proferido no processo n.º 49/03, e também do Supremo Tribunal Administrativo, entre outros, vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, o primeiro com numerosa indicação de jurisprudência no mesmo sentido:
- de 13 de Abril de 2011, proferido no processo n.º 926/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 6 de Janeiro de 2012, págs. 655 a 660;
- de 6 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 399/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 22 de Março de 2012, págs. 1202 a 1205;
- de 11 de Março de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 01197/13.
Porém, é nossa convicção que o busílis da questão se prende com uma deficiente interpretação da petição inicial, dado que o impugnante aponta vários vícios à liquidação em crise, sendo certo que importam, essencialmente, os factos alegados que delimitam a causa de pedir, cabendo ao tribunal qualificá-los juridicamente.
Está em causa saber se ocorreu transmissão gratuita sujeita a imposto sucessório (imposto sobre as sucessões e doações), por força do óbito de BB, pai do impugnante, aqui Recorrente, em 20/08/2003.
A AT, através dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças ..., indicou valores, determinados nos termos do disposto no artigo 77.º do CIMSISD, para a quota social que o de cujus tinha na sociedade "N...., Lda.", bem como para suprimentos que terá realizado na mesma (saldo credor adicionado ao activo da herança), e para o estabelecimento comercial que BB tinha em nome individual, bem como relativo a empréstimos que o autor da herança terá feito à sua empresa em nome individual (saldo credor adicionado ao activo da herança).
Efectivamente, do valor atribuído à quota social e ao estabelecimento comercial, perfazendo o valor tributável da transmissão gratuita sujeita a imposto respeitante à herança do seu pai, teve o ora Recorrente conhecimento aquando da notificação da liquidação levada a cabo – cfr. ponto 4 do probatório.
A partir dessa notificação, o Recorrente poderia ter contestado os valores em causa, solicitando a sua avaliação, nos termos do artigo 93.º e seguintes do CIMSISD – cfr. artigo 87.º do mesmo diploma. Todavia, o Recorrente optou por deduzir a presente impugnação judicial, tendo em vista, essencialmente, na nossa óptica, demonstrar a inexistência do facto tributário.
Quanto aos detectados suprimentos à sociedade "N...., Lda.", o impugnante invocou, na sua petição inicial, não só que jamais obteria o pagamento dos mesmos, mas também que tal crédito da herança relativo a suprimentos não terá resultado de um efectivo/real empréstimo feito pelo sócio falecido, propondo-se fazer prova da inexistência do referido crédito e também da impossibilidade de facto e jurídica de ser pago pela referida sociedade "N...., Lda.", devido ao estado de insolvência/falência técnica da mesma, que já se verificava à data do falecimento do autor da herança – cfr. artigos 7.º a 18.º da petição de impugnação.
No que tange ao estabelecimento comercial da empresa em nome individual do autor da herança, o impugnante, igualmente, alegou, na petição de impugnação, que essa empresa, à data da morte e em 31/12/2003, estava em situação de falência técnica, que a mesma se dedicava à construção civil, não tendo continuado a sua actividade com os herdeiros, tendo suspendido totalmente as suas actividades após a data da morte do autor da herança (20/08/2003), tendo cessado definitivamente pagamentos e tendo sido declarada a sua falência em 02/03/2004. Mais uma vez, foram observados na escrita exibida empréstimos feitos pelo autor da herança à sua empresa em nome individual, invocando o impugnante que a empresa não tinha meios para liquidar esses ditos empréstimos; concluindo que a empresa em nome individual, à data de 31/12/2003, não tinha qualquer possibilidade financeira para satisfazer os seus compromissos com credores (incluindo o próprio autor da herança), estando o estabelecimento comercial com valor negativo e rematando que o impugnante nada recebeu (ou poderá receber), tendo sido tributados valores inexistentes (ou incobráveis) – cfr. artigos 19.º a 36.º da petição inicial.
Ao logo do seu articulado e in fine, o impugnante foi qualificando juridicamente estes factos como inexistência jurídica e factual (artigo 15.º e 36.º da petição), erro nos pressupostos (artigo 18.º da petição), erro na qualificação dos factos sujeitos a imposto (artigo 18.º e 41.º da petição), preterição de formalidades legais (artigo 18.º da petição), mas também erro na quantificação (artigo 12.º e 36.º da petição).
A interpretação que foi realizada pela sentença recorrida vai no sentido de tudo se reconduzir à errónea quantificação e, como o Recorrente não contestou os valores fixados segundo o disposto no artigo 87.º do CIMSISD, estaríamos nesta impugnação judicial perante um acto inimpugnável, na medida em que não foi utilizado previamente o meio previsto nesse artigo 87.º.
No entanto, é nossa firme convicção, como consta do texto do citado artigo 87.º, que o legislador pretendeu somente abarcar nessa norma a discussão de valores, no pressuposto de que ocorreu uma transmissão gratuita de bens. Se, como alega o impugnante, os herdeiros nada receberam, esta invocação está colocada a montante da fixação do valor, ao nível da inexistência do facto tributário, pelo que não fará qualquer sentido esgotar os meios administrativos para determinar a avaliação de bens que, alegadamente, não existirão e, por isso, não poderiam ter sido transferidos.
Dispõe o artigo 87.º do CIMSISD que "(...) No prazo de oito dias a contar da notificação, os contribuintes que não se conformarem com os valores sobre que foi liquidado o imposto poderão contestá-los, por si, seus representantes legais ou mandatários, requerendo avaliação dos bens ainda não avaliados no processo, salvo tratando-se dos seguintes:
1. Bens mobiliários ou imobiliários cujo valor tenha sido o atribuído em inventário, título de partilhas ou liquidação de estabelecimento comercial ou industrial;
2. Quotas ou partes em sociedades que não sejam por acções e continuem com o contribuinte, quando o seu valor tenha sido o atribuído em partilha;
3. Bens mencionados no n.° 7.° e última parte do n.° 4.° do artigo 79.° e no n.° 1.º deste artigo, quando não tenha sido aplicada a fórmula constante da alínea a) da regra 5.ª do § 3.° do artigo 20.°.
§ 1.° Em relação aos bens que forem objecto de pedido de avaliação, suspender-se-ão todas as diligências ulteriores à liquidação, devendo reformar-se esta, de acordo com os valores que lhes vierem a ser atribuídos, e notificar-se de novo aos interessados nos termos do artigo anterior.
§ 2.º Se os contribuintes não quiserem requerer avaliação, poderão eles próprios, ou as pessoas notificadas em sua vez, declarar por termo no processo, dentro do mesmo prazo de oito dias, que preferem pagar o imposto de pronto, pedir o seu pagamento em maior número de prestações do que as indicadas na parte inicial do § 1.° do artigo 120.° ou ainda requerer a dação em cumprimento nos termos do artigo 129.°-A.
Na óptica deste tribunal, sendo a alegação na acção totalmente baseada na circunstância de os factos em que assentou a tributação não terem qualquer expressão realista, a factualidade invocada direcciona, portanto, a questão a ser apreciada judicialmente para o patamar da inexistência do facto tributário.
No fundo, o que importa será determinar o que constitui o acervo hereditário e averiguar se, realmente, quanto aos bens em discussão, a herança nada recebeu quanto à quota societária, aos suprimentos, ao estabelecimento comercial e aos créditos de empréstimos à empresa em nome individual, face à falência da sociedade, da empresa e à incobrabilidade desses créditos.
Como se julgou no Acórdão do TCA Sul, de 14/01/2020, no âmbito do processo n.º 9814/16.9BCLSB, urge apurar se houve uma real e efectiva transmissão da riqueza capaz de dar origem à tributação em imposto sucessório. Se os bens inexistirem ou os suprimentos não tiverem originado na esfera jurídica dos herdeiros um enriquecimento do seu património, haverá que concluir que não terá ocorrido a transferência real e efectiva de bens, nos termos e para os efeitos da incidência prevista no artigo 1.º e 3.º §1.º do CIMSISD.
A interpretação que efectuamos da petição de impugnação reconduz-se a que o impugnante pretende precisamente provar que, à data da morte do autor da herança, a empresa em nome individual não teve continuidade, que a sociedade estava insolvente e que os suprimentos/empréstimos inexistiam ou que, pelo menos, esses créditos da herança eram incobráveis, não tendo o impugnante, enquanto herdeiro, nada recebido a esse respeito, pelo que a transmissão a título gratuito de riqueza/bens não terá sido real e efectiva.
O impugnante propôs-se realizar uma prova ampla, tendo, inclusivamente, arrolado testemunhas na petição inicial. Logo, não vislumbramos que o disposto no artigo 87.º do CIMSISD impeça que o impugnante demonstre erro nos pressupostos (de facto), comprove a inexistência do facto tributário ou prove factualidade reveladora de uma errónea qualificação da riqueza capaz de dar origem à tributação em imposto sucessório. Note-se que a pretensão do impugnante não se subsume à discussão de valores, mas à (in)existência de uma real e efectiva transmissão de riqueza tributável.
Não se verificando a falta do pressuposto da acção julgado pelo tribunal recorrido, a impugnação judicial deverá prosseguir, se a tal nada mais obstar, designadamente, fixando a matéria de facto que se lograr apurar, após aquisição e produção da prova que o impugnante sugeriu, em consonância com os factos invocados nos respectivos articulados (não sendo possível conhecer do mérito dos presentes autos, em substituição do tribunal a quo, em virtude da total falta de fixação da matéria de facto com relevância para a decisão da causa).
O exposto é suficiente para conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no mesmo.

Conclusões/Sumário

I - A impugnação judicial deduzida contra a liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações não é o meio idóneo para reagir contra o acto de fixação de valores sobre que incidiu o imposto, sendo a forma de reagir contra este acto a contestação desses valores, requerendo a avaliação dos bens ainda não avaliados, prevista no artigo 87.º do CIMSISD.
II - A falta dessa contestação não impede o contribuinte de invocar e discutir a inexistência do facto tributário na impugnação judicial da liquidação do imposto sucessório, que se coloca a montante da fixação do valor, dado ser requisito de tributação a real e efectiva transferência de bens – cfr. a norma de incidência do imposto: artigos 1.º e 3.º §1.º do CIMSISD.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e determinar a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra para que, se a tal nada mais obstar, aí se proceda à fixação da matéria de facto e se conheça do mérito da causa.

Custas a cargo da Recorrida, que não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.

Porto, 15 de Dezembro de 2022


Ana Patrocínio
Paula Moura Teixeira
Conceição Soares