Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01521/22.0BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/12/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:ILEGITIMIDADE ACTIVA;
PENHORA;
RECLAMAÇÃO DE ACTO DO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL:
Sumário:
I – Da articulação do disposto nos artigos 103.º da LGT com os artigos 9.º e 152.º e seguintes do CPPT, resulta um conceito amplo de legitimidade para o processo de execução fiscal, tanto que o artigo 276.º do CPPT atribui legitimidade quer ao executado quer a terceiros para reclamarem para o juiz das decisões do órgão de execução fiscal que afectem os seus direitos e interesses legítimos.

II – No que respeita à legitimidade activa, esta verifica-se quando o autor tem interesse directo em demandar, que se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção, sendo que, na falta de indicação da lei em contrário, são titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor.

III - O executado tem legitimidade para reclamar do acto de penhora, que lhe foi notificado, de valores depositados em conta bancária, onde consta como co-titular, mesmo que os fundamentos da impugnação desse acto se resumam ao argumento de que essas quantias são somente propriedade do outro titular, na medida em que tal acto é lesivo dos seus direitos e interesses legítimos, sendo manifesto o seu interesse directo em impugná-lo (cfr. artigo 276.º do CPPT e 30.º do CPC), expresso na consequência jurídica favorável de uma eventual procedência da reclamação (levantamento da penhora ilegal).*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

«AA», NIF ..., residente na Rua ..., Apartamento ...3, ... ..., interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proferida em 20/07/2023, que julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade processual activa e absolveu a Reclamada da presente instância de reclamação do acto do órgão de execução fiscal, consubstanciado na penhora efectuada sobre conta bancária do Banco 1..., no valor de €6.310,22, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...34, instaurado pelo Serviço de Finanças ... à sociedade [SCom01...], Lda., e contra si revertido.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade processual do Reclamante e absolveu a Reclamada da instância, ao mesmo tempo que não admitiu o pedido de intervenção principal provocada, versando sobre matéria de direito, por o ora recorrente dela discordar e com ela não se conformar.
II. Para a determinação da legitimidade no processo judicial tributário releva, em primeiro lugar, a lei processual tributária, sendo que a primeira disposição a considerar para o caso é o artigo 9º, nº 4, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, segundo o qual têm legitimidade no processo judicial tributário os sujeitos do procedimento tributário, ou seja, de acordo com esta regra, tem legitimidade activa no processo judicial tributário o sujeito passivo do procedimento tributário.
III. Nos termos do preceituado no art. 30º, nº 1, do CPC o autor “é parte legitima quando tem interesse directo em demandar; o réu parte legitima quando tem interesse directo de contradizer”. O que significa que a legitimidade do autor se afere pela utilização derivada da procedência da ação e a legitimidade do réu pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
IV. Ao contrário da personalidade judiciária e da capacidade judiciária – que são requisitos genericamente exigidos para que um sujeito possa ser autor ou réu em qualquer ação -, a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Deste modo, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute.
V. O mesmo será, por isso, dizer que a legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. Art. 30º do CPC.
VI. Como primeira nota temos que a legitimidade processual é o pressuposto processual através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal.
VII. Tal pressuposto deverá ser aferido nos estritos termos em que o Autor no articulado inicial delineou ou configurou a relação material controvertida, gozando de legitimidade passiva a outra parte nesta relação (cfr. arts. 9º, nº 1 e 10º do CPTA).
VIII. A titularidade e, consequentemente, a legitimidade deverá ser aferida, pois, pelas afirmações do Autor na petição inicial, pelo modo como este unilateral e discricionariamente entende configurar o objeto do processo, sem que na determinação das partes legítimas se deva ter de aferir em função da efetiva titularidade da relação material controvertida existente, tomada de forma provisória como objetivamente existente com a configuração que vier a resultar das afirmações do Autor e do Réu, confirmadas pela instrução e discussão da causa.
IX. A legitimidade do Reclamante na situação sub judice se mostra verificada, dada não só pela vantagem que a procedência da ação lhe venha a causar, como também por ter sido apresentada pelo Reclamante na sua petição inicial atenta a notificação da penhora efetuada pela Autoridade Tributária.
X. Por força do que no quadro do art. 88º do CPTA se determina e impõe ao julgador, em sede do dever de conhecer obrigatoriamente de «todas as questões que obstem ao conhecimento do objeto do processo», do mesmo ressalta, em decorrência do princípio da cooperação processual (arts. 08º CPTA e 6º e 411º.º CPC), a existência dum dever de providenciar pela prévia correção dos articulados e do suprimento das exceções dilatórias.
XI. Na verdade, admite-se no art. 88º do CPTA não apenas a correção oficiosa de deficiências ou irregularidades de caráter formal de que as peças processuais eventualmente padeçam mas também o suprimento de exceções dilatórias e de irregularidades dos articulados ainda que com anulação de atos processuais caso não possam ser aproveitados, no que configura regime de regularização mais amplo que aquele que se mostrava previsto na LPTA (cfr. seu art. 40º).
XII. Configura tal despacho de aperfeiçoamento um convite que o julgador dirige à parte ativa para que esta supra ou corrija o vício de que padeça o articulado inicial em termos de assim se assegurar o prosseguimento do processo.
XIII. Assim sendo, o Reclamante é parte legítima para instaurar o presente procedimento de Reclamação de atos do órgão de execução fiscal, sem necessidade de estar acompanhada dos demais titulares da conta, designadamente a sua mãe «BB», que foi objecto de penhora.
XIV. Acresce que, o aqui Recorrente, aquando da pronúncia sobre a excepção de ilegitimidade suscitada no parecer da Digna Magistrada do Ministério Público, veio requerer a intervenção principal provocada, nos termos do disposto no artigo 316º do CPC, de «BB», titular da conta bancária objeto de penhora, para o caso do douto Tribunal entender que o Reclamante não podia intentar a presente Reclamação que deu origem aos presentes autos desacompanhado da sua mãe.
XV. A titular da conta bancária – «BB» - tem interesse na presente ação já que do alegado e da descrita conduta da Reclamada Autoridade Tributária e Aduaneira advém-lhes um prejuízo sério.
XVI. Exige-se que entre o terceiro interveniente e uma das partes (autor ou réu) haja um interesse litisconsorcial quanto ao objeto da ação, isto é, que o terceiro e a parte sejam ambos contitulares da relação material controvertida, desencadeando-se, consequentemente, uma situação de litisconsórcio (necessário ou voluntário) sucessivo.
XVII. Volvendo ao caso em apreço e atendendo à relação material controvertida tal qual a mesma é apresentada pelo Reclamante, e caso o Tribunal venha a concluir que estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, então deve ser admitida a intervenção nestes autos da referida titular da conta «BB», pelo que, por se verificarem os pressupostos legais, e por força dos princípios da economia processual, da previsibilidade e da confiança, permite ao aqui Reclamante provocar a intervenção principal provocada, nos termos do disposto no artigo 316º do CPC, da referida «BB».
XVIII. Ao não ordenar-se o prosseguimento da instância, estaria a dar-se uma primazia absoluta e injusta ao direito adjetivo, com grave prejuízo para o direito substantivo e para os direitos dos cidadãos e da verdade material, em violação da tutela efetiva desses direitos, prevista no art. 20º da Constituição da República Portuguesa.
XIX. Ora, salvo o devido respeito, a excepção de ilegitimidade activa era passível de suprimento por via da intervenção principal provocada suscitada e requerida pelo aqui Recorrente, e que consequentemente, o requerimento para a intervenção principal provocada tinha de ter sido deferido, atento o disposto nos artigos 30º, 33º e 318º, nº 1, al. a), do CPC, porquanto dos autos, designadamente da prova produzida, não resulta certo e ineludível que a «BB», divirja do Autor/Reclamante relativamente ao objecto desta acção, além de que, a dedução do incidente de intervenção principal, como forma de resolver a dificuldade do Reclamante em se apresentar em juízo juntamente com a sua mãe é também solução aplicável no processo administrativo atenta admissão inserta no nº 8 do art. 10º do CPTA.
XX. A sentença viola o preceituado nos artigos 6º, 30º e 411º todos do CPC e os artigos 8º, 10º, 57º, 78º, 88º e 89º todos do CPTA e o artigo 40º da LPTA.
XXI. Deste modo, ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida não fez a correta aplicação do direito, designadamente, violando o disposto nos arts. 58.º, n.º 2 e n.º 4, do CPTA e art. 20.º da CRP, pelo que deve ser revogada, e proferido despacho que julgue o Reclamante parte legítima e/ou admita a intervenção principal da referida «BB» e seja este citada para a presente ação.
NESTES TERMOS,
E nos melhores de direito permitidos, dando provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão judicial recorrida com todas as legais consequências, e ordenar-se o envio dos presentes autos ao TAF de Braga para prosseguimento dos mesmos.
Assim, Vossas Excelências, no mais douto e sapiente critério e suprindo as lacunas de patrocínio, decidirão, como sempre, de
INTEIRA REPARAÇÃO E JUSTIÇA.”
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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Dada a natureza urgente do processo, há dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento na apreciação da excepção de ilegitimidade processual activa.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto
Para conhecimento da ilegitimidade processual do Reclamante foi proferida a seguinte decisão da matéria de facto:
“Apreciando a mencionada excepção, importa dar como assentes os seguintes factos:
A) A Reclamada emitiu a ordem de penhora n.º ...37, dirigida ao Banco 1..., S.A., para penhora de “[O]utros Valores e Rendimentos - Contas Bancárias” do Reclamante, no montante de € 6.310,22 (cf. pág. 47 do Sitaf);
B) A Reclamada remeteu ofício ao Reclamante, datado de 22.07.2022, no qual informa a realização da penhora referida na alínea A), no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...34 (cf. doc. n.º 1 junto com a petição inicial - pág. 6 do Sitaf e págs. 48 e 49 do Sitaf);
C) O Reclamante e «BB» são co-titulares da conta do Banco 1..., S.A. sobre que incidiu a penhora referida nas alíneas anteriores (facto não controvertido).
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A factualidade que se considerou provada resulta da prova documental e do confronto da posição assumida pelas partes nos respectivos articulados.
A prova documental teve por base os documentos juntos aos autos, conforme referido a propósito nas alíneas do probatório.
No que concerne ao facto vertido na alínea C), considerou-se o mesmo assente por acordo, face à posição assumida pelas partes nos respectivos articulados, designadamente, no artigo 8º da petição inicial e no artigo 11º da resposta.”

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2. O Direito

O Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, que julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade processual activa e absolveu a Reclamada da instância.
Nessa decisão recorrida é realizado um correcto enquadramento jurídico, que vem sendo acolhido, pelos nossos tribunais, pelo menos desde a jurisprudência vertida no Acórdão do STA, de 07/07/2010, proferido no âmbito do processo n.º 0532/10, onde se observa um aprofundado tratamento da questão. Ou seja, o juízo, em concreto, sobre a legitimidade do Reclamante, sempre passará pela indagação, nos termos do artigo 30.º do CPC, do seu interesse directo em reclamar, que será aferido pela vantagem jurídica que para ele resultará da anulação do acto reclamado e pela desvantagem jurídica que lhe advirá da manutenção desse mesmo acto, sendo que nessa indagação são de considerar como titulares daquele interesse os sujeitos da relação controvertida, tal como a configura o Reclamante. Porém, adiantamos, desde já, que a situação concreta que nos ocupa não se mostra cabalmente subsumida a tais ensinamentos de direito.
Como resulta da decisão da matéria de facto, a Reclamada emitiu a ordem de penhora n.º ...37, dirigida ao Banco 1..., S.A., para penhora de “[O]utros Valores e Rendimentos - Contas Bancárias” do Reclamante, aqui Recorrente, no montante de €6.310,22. As partes não discutem que este é executado/revertido no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...34, ao abrigo do qual foi realizada a penhora, e que o ora Recorrente foi notificado desse acto de penhora. Resulta, igualmente, dos factos selecionados pelo tribunal recorrido que o Recorrente e «BB» são co-titulares da conta do Banco 1..., S.A. sobre que incidiu a penhora referida.
O Recorrente sustenta a verificação da sua legitimidade na situação sub judice, dada não só pela vantagem que a procedência da ação lhe venha a causar, como também por ter sido apresentada pelo Reclamante na sua petição inicial atenta a notificação da penhora efetuada pela Autoridade Tributária.
O processo de execução fiscal (PEF) é um processo de natureza judicial (cfr. artigo 103.º, n.º 1, da LGT), “sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional”.
Assim, desde logo, há uma clara distinção entre processo de execução fiscal e procedimento administrativo tributário, configurando realidades distintas.
O PEF, como qualquer processo, define-se como uma sucessão ordenada de actos visando a obtenção de um determinado fim, no caso a cobrança coerciva de determinadas dívidas (cfr. o artigo 148.º do CPPT).
Assim, atenta a circunscrição constante do mencionado artigo 103.º da LGT, caberá aos Tribunais Tributários a prática, no âmbito destes processos, dos actos de natureza jurisdicional, cabendo aos órgãos da administração tributária os demais – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2003, de 12/02/2003.
A este propósito, é de chamar à colação o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT, nos termos do qual “(…) [a]os serviços da administração tributária cabe: (…) f) Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 151.º do presente Código”.
O legislador optou por atribuir a “um órgão administrativo competência funcional para agir como agente ou operador auxiliar do juiz na realização da função executiva, praticando todos os actos inscritos nesse meio processual, tendo em vista a agilização do processo e a obtenção da maior eficácia na arrecadação de receitas do Estado, libertando o juiz de todos os actos que não envolvam uma função materialmente jurisdicional” – cfr. Acórdão do STA, de 23/02/2012, proferido no âmbito do processo n.º 059/12 e sua análise em torno da natureza dos actos praticados no âmbito do processo de execução fiscal.
Neste contexto, os órgãos da administração tributária podem praticar, no âmbito da execução fiscal, actos materialmente administrativos, como resulta do n.º 2 do artigo 103.º da LGT, mas também actos de natureza processual – cfr., para uma abordagem desta distinção, os Acórdãos do STA, de 11/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 0312/18, e de 25/01/2017, no processo n.º 012/17, e ampla jurisprudência no mesmo citada.
No que tange aos actos de natureza processual, podem consubstanciar-se em meras operações materiais ou em actos processuais de natureza não jurisdicional.
A estes actos de natureza processual não se aplicam, pois, os princípios inerentes ao procedimento tributário, que lhes é estranho, estando sim submetidos aos princípios e normas inerentes à actividade processual.
Atendendo à concreta tramitação do PEF, prevista no CPPT, temos assim que, após a sua instauração, são praticados, designadamente, os seguintes actos processuais de natureza não jurisdicional:
a) Citação;
b) Penhora – cfr. artigos 215.º e seguintes do CPPT;
c) Venda.
Assim, nestes actos processuais de natureza não jurisdicional inclui-se a penhora.
Com efeito, a penhora define-se como a apreensão judicial de bens do executado, com o objectivo último de satisfação do direito do exequente, sendo-lhe reconhecida uma dupla função: a de especificar os bens que hão de ser pela mesma abrangidos e a de dar segurança de que tais bens se conservarão em condições de serem vendidos, por forma a satisfazer o direito de crédito do exequente –cfr. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Volume II, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, Páginas 90 e 91.
Como é sabido, a penhora é um acto lesivo dos direitos do executado, sendo impugnável, pelo que está sujeita a notificação.
Como refere JORGE LOPES DE SOUSA, in CPPT, Anotado e Comentado, vol. IV, 6.ª edição, página 270 “(…) Esta regra de obrigatoriedade de notificação de todos os actos que afectem as partes num processo é corolário do princípio da boa-fé e da cooperação que deve ser observado nas relações entre todos os intervenientes processuais na generalidade dos processos (arts. 226º e 226º-A do CPC), que impõe, seguramente, que as partes tenham conhecimento de todos os actos que as possam prejudicar e em que possam exercer direitos a fim de poderem providenciar para defesa dos seus interesses, em sintonia com a imposição constitucional de notificação dos actos administrativos, que se estabelece no nº 3 do artigo 268º da CRP que, pelas mesmas razões, será aplicável a actos praticados em processos judiciais, em que vigora um princípio geral de proibição da indefesa (art. 20º, nº 1 da CRP)”.
Sendo efectuada a notificação do acto da penhora, o Recorrente podia, ou não, exercer os seus direitos de defesa, plasmados entre outros, no artigo 278.º, n.º 3 do CPPT, nomeadamente sobre a:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que foi realizada;
b) Imediata penhora dos bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência sobre bens que, não respondendo, nos termos de direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido abrangidos pela diligência;
d) Determinação da prestação de garantia indevida ou superior à devida.
No caso, o Recorrente exerceu os seus direitos de defesa, enquanto executado no processo de execução fiscal, sustentando que os bens penhorados não deviam ter sido abrangidos pela diligência, pois, apesar de constar como co-titular da conta bancária em causa, os valores apreendidos são, alegadamente, propriedade da outra titular da conta colectiva e não seus.
Destarte, a penhora, sendo acto lesivo dos direitos do executado, é impugnável, pelo que está sujeita a notificação, nos termos do n.º 3 do artigo 268.º e n.º 1 do artigo 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa – cfr. Acórdão deste TCA Norte, de 26/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 02264/14.3BEBRG-A.
Não podemos esquecer que o Recorrente reclamou do acto de penhora de valores da conta bancária de que é formalmente co-titular no Banco 1..., S.A., na sequência de notificação expressa desse acto lesivo. Pelo que não vislumbramos a impossibilidade de este acto lesivo ser impugnado pelo próprio executado/revertido, aqui Recorrente.
De facto, da articulação do disposto nos artigos 103.º da LGT com os artigos 9.º e 152.º e seguintes do CPPT [artigos 152.º (legitimidade dos exequentes) e 153.º a 161.º [legitimidade dos executados], resulta um conceito amplo de legitimidade para o processo de execução fiscal, mas, in casu, não está sequer em causa a legitimidade de terceiros para reclamarem para o juiz das decisões do órgão de execução fiscal que afectem os seus direitos e interesses legítimos. Estamos, apenas, perante a atribuição de legitimidade ao próprio executado pelo artigo 276.º do CPPT.
Como enfatiza o Recorrente, o Reclamante é parte legítima no presente processo de Reclamação de acto do órgão de execução fiscal, sem necessidade de estar acompanhado dos demais titulares da conta, designadamente a sua mãe «BB», que foi objecto de penhora.
Como é sabido, na reclamação das decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal o Tribunal tributário funciona como uma espécie de “instância de recurso e não como tribunal de primeira instância”, pelo que apenas pode sindicar o acto conforme foi praticado, constatar se a decisão reclamada reúne ou não todos os requisitos legais para ser confirmada, anulando-a na situação contrária. Não pode restaurar, ou completar, de alguma forma a decisão reclamada, que é uma decisão proferida no processo de execução fiscal, mas que pode consubstanciar actos de diferente natureza, como referimos supra.
Como tal, observando o acto de penhora, qua tale foi proferido, verificamos que o executado tem interesse em eliminá-lo da ordem jurídica, uma vez que a exequente, tendo em vista a prossecução da execução fiscal, terá que promover novas diligências no sentido de apreender bens penhoráveis que se mostrem na titularidade do executado/revertido. De forma imediata e directa, o Recorrente, na qualidade de executado, tem interesse em impugnar o acto de penhora, dado lhe poder surgir uma vantagem jurídica da procedência da reclamação, consubstanciada em todos os efeitos da eliminação desse acto de penhora da ordem jurídica. Contudo, a consequência jurídica favorável não é só o levantamento da penhora, pois a procedência da reclamação evita, instantaneamente, o prosseguimento dos termos subsequentes da execução, dado importar, previamente, que a exequente dê notícia na execução fiscal da existência de bens, que podem até inexistir, na esfera patrimonial do revertido (para nova apreensão). Acresce existir um interesse legítimo em que no processo de execução fiscal em análise, onde o Recorrente é executado, não se mostre realizada uma penhora ilegal.
Daí que, ao contrário do que sustenta a sentença recorrida, não se afigure como manifesta a falta de legitimidade por parte do Recorrente, assentando o seu interesse em lançar mão da reclamação precisamente na circunstância de ele poder obter algum benefício com o provimento da reclamação, como vimos, na perspectiva dos direitos e interesses que pretendeu defender.
Salientamos que a legitimidade processual do reclamante para a apresentação da reclamação não deve ser confundida com a procedência ou improcedência desta, em resultado da apreciação dos fundamentos ali invocados. Temos, pois, que a legitimidade activa é uma condição necessária para obter uma apreciação sobre o mérito da pretensão e não, naturalmente, uma condição da sua procedência (a qual só em momento posterior será apreciada). Com efeito, importa não confundir a questão de fundo, aquela que será sujeita à apreciação de mérito do Tribunal, com o pressuposto processual que precede, cronologicamente, tal análise.
Nesta conformidade, tanto basta para julgar prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no recurso, na medida em que urge remeter o processo ao tribunal recorrido para prossecução dos autos se a tal nada mais obstar.
Pelo exposto, impõe-se revogar a sentença recorrida, devendo ser concedido provimento ao recurso.

Conclusões/Sumário

I – Da articulação do disposto nos artigos 103.º da LGT com os artigos 9.º e 152.º e seguintes do CPPT, resulta um conceito amplo de legitimidade para o processo de execução fiscal, tanto que o artigo 276.º do CPPT atribui legitimidade quer ao executado quer a terceiros para reclamarem para o juiz das decisões do órgão de execução fiscal que afectem os seus direitos e interesses legítimos.
II – No que respeita à legitimidade activa, esta verifica-se quando o autor tem interesse directo em demandar, que se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção, sendo que, na falta de indicação da lei em contrário, são titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor.
III - O executado tem legitimidade para reclamar do acto de penhora, que lhe foi notificado, de valores depositados em conta bancária, onde consta como co-titular, mesmo que os fundamentos da impugnação desse acto se resumam ao argumento de que essas quantias são somente propriedade do outro titular, na medida em que tal acto é lesivo dos seus direitos e interesses legítimos, sendo manifesto o seu interesse directo em impugná-lo (cfr. artigo 276.º do CPPT e 30.º do CPC), expresso na consequência jurídica favorável de uma eventual procedência da reclamação (levantamento da penhora ilegal).


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e determinar a remessa do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para prossecução dos autos, se a tal nada mais obstar.

Custas a cargo da Recorrida, que não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.

Porto, 12 de Outubro de 2023

Ana Patrocínio
Maria do Rosário Pais
Cláudia Almeida