Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01309/22.8BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/12/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:ILEGALIDADE DA PENHORA, DISPENSA DE PROVA TESTEMUNHAL;
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE;
DÉFICE INSTRUTÓRIO
Sumário:I – A penhora é um acto processual de natureza não jurisdicional.

II – Resulta do disposto no artigo 217.º do Código de Procedimento e Processo Tributário e do princípio da proporcionalidade que a penhora, dada a sua natureza gravosa, deve limitar-se ao necessário para pagamento da dívida exequenda e do acrescido.

III – Revelando os autos insuficiência factual para a boa decisão da causa, em virtude de terem sido omitidas diligências probatórias indispensáveis para o efeito, impõe-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Tribunal recorrido para melhor investigação e nova decisão, em harmonia com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil ex vi artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

"AG", NIF ..., com sede na Rua ..., em ... – ..., interpôs recurso jurisdicional do despacho interlocutório que dispensou a produção da prova testemunhal, proferido em 21/09/2022, e da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proferida em 11/10/2022, que julgou improcedente a reclamação formulada contra o acto de penhora da fracção autónoma, designada pela letra ..., do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...21.º, realizado em 30/06/2022 e praticado pelo Serviço de Finanças ..., no âmbito dos processos de execução fiscal n.º ...45 e apensos.

O Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
A) A factualidade articulada e provada não permite que a impugnação possa ser julgada totalmente improcedente.
RECURSO DO DESPACHO INTERLOCUTÓRIO
B) O, aliás, douto despacho de fls... de que se recorre vem determinar a dispensa de inquirição das testemunhas arroladas pelo Reclamante/Recorrente, para se pronunciarem sobre a matéria do item 16 da Contestação da Fazenda Pública e pontos 13.º a 15.º do articulado superveniente apresentado no uso do direito ao contraditório.
C) Defende o MMO Juiz do tribunal a quo que tendo em conta os elementos constantes dos autos (…) não se mostra necessária a produção de prova testemunhal que vem arrolada.
D) Nos itens 16 e 17 da Contestação à presente oposição, bem como na Informação prestada pelo OEF, foi alegado que não existia no Serviço de Finanças competente o controvertido requerimento de nomeação de bens à penhora com pedido de suspensão do PEF, nem o Reclamante, ora Recorrente, apresentou comprovativo da apresentação desse requerimento, apesar de lhe ter sido pedido, o que não ocorreu porque o recorrente não possuía tal comprovativo.
E) Como, igualmente foi alegado, o controvertido requerimento de nomeação de bens à penhora foi enviado para o OEF através dos CTT em correio azul simples, depositado na loja dos CTT da Avenida dos Combatentes cidade ..., em envelope já franquiado, no dia 09.06.2022, após as 16:00horas.
F) Face à alegada inexistência daquele requerimento no OEF, o Recorrente fez a sua junção aos autos no articulado superveniente onde exerceu o direito ao contraditório, a fim de suprir a sua falta.
G) Tendo em vista a prova do envio daquele requerimento ao OEF, o Recorrente arrolou duas testemunhas conhecedoras directas do controvertido facto, diligência probatória que o Tribunal recorrido dispensou, com fundamento na sua desnecessidade em face dos elementos constantes do processo, tendo, a decisão final sido julgada improcedente por não se mostrar provado o referido facto.
H) Tecnicamente, impediu-se a produção de prova para depois se condenar por falta dessa prova. Na verdade, será pacífico entender que se um tribunal impedir uma das partes num litígio de provar determinado facto e depois condená-la por não ter provado esse facto isso constituirá uma verdadeira denegação de justiça.
I) Denegação de justiça, porquanto, é convicção do Recorrente que a recusa da diligência de prova em causa se terá devido à crónica falta de sala para inquirição de testemunhas no tribunal recorrido.
J) Por outro lado, o douto despacho recorrido ao impedir o Recorrente de fazer tal prova violou o princípio da proibição da indefesa enquanto emanação e corolário do princípio da tutela jurisdicional efectiva e do princípio da proporcionalidade (artº 20º, nº 4 e artº 18º, nº 2 da CRP)
K) A proibição da indefesa consiste na privação ou limitação do direito de defesa dos particulares perante os órgãos judiciais, nos quais se dirimem questões cuja resolução pode afectar a sua esfera jurídica.
L) Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed, Coimbra Editora, p. 163] a violação do princípio da proibição da indefesa, enquanto “(...) limitação do direito de defesa, verificar-se-á, sobretudo, quando a não observância “(...) de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar [e provar, acrescentamos nós] daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses”
M) Esta questão remete-nos para os princípios estruturantes da ordem jurídica democrática, onde encontra especial relevo o princípio do processo equitativo, integrado pelos elementos de densificação enunciados no artº 6º, § 1º da CEDH e no artº 14º do PIDCP – instrumentos internacionais de que Portugal é Parte – e que comandam a formulação das garantias inscritas no artº 20º da Constituição da República Portuguesa.
[Cfr. FALCÃO, Pedro Marinho “O Princípio da Proibição da Indefesa e a Tributação das Manifestações de Fortuna” Almedina, 2015, p.104]
N) Por sua vez, muito embora o legislador disponha de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, a verdade é que o direito ao processo inculca que os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva. [Cfr. MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui de “Constituição Portuguesa Anotada” Coimbra Editora, Tomo I, 2005, p.190]
O) E se o legislador ordinário não pode introduzir constrangimentos processuais que limitem ou inutilizem arbitrariamente o direito de defesa dos cidadãos, muito menos se admite que, por via de uma interpretação normativa dos tribunais se criem tais constrangimentos.
P) A decisão interlocutória recorrida impediu o ora Recorrente de provar um facto com relevância para uma decisão final favorável.
Q) Portanto, o Tribunal recorrido entendeu que a produção de prova documental não era necessária à boa decisão da causa.
R) Buscando arrimo na douta sentença recorrida, mais precisamente, na motivação da matéria de facto, ficamos a saber que: “A referida prova testemunhal foi dispensada, dado que a mesma nunca teria a virtualidade de provar a receção pelo Serviço de Finanças ... (...) mas tão somente, a ser bem-sucedida, o envio do mesmo [...]”. (negrito nosso) “Cumpre, a este propósito, salientar que, estando em causa o início de procedimento administrativo em matéria tributária, terá de ser aqui aplicação o disposto no artº 104.º, nº 1, alínea b) do Código do Procedimento Administrativo, aqui aplicável ex vi artº 2.º, alínea d) do CPPT [...]”
S) Sendo estes os fundamentos da recusa das diligências de prova testemunhal é por demais evidente que o Tribunal recorrido não fez uma correcta interpretação e aplicação da lei e do direito. Com efeito, quando os contribuintes enviam requerimentos à AT por correio registado, falhando a sua recepção pela destinatária, só têm de provar “o envio” desse requerimento e nunca a “recepção” do mesmo, caso em que estaríamos perante um caso de probatio diabolica.
T) Mesmo aplicando o artº 104.º, nº 1, alínea b) do CPA – que não é de aplicar na execução fiscal – o que o legislador pretendeu com aquele normativo, foi assegurar a prova do envio de requerimentos. Nestes casos, se falhar a recepção, só resta a reconstituição do processo através de novo envio ou junção do requerimento não recebido.
U) Em todo o caso, sempre se dirá que o normativo do CPA invocado na douta sentença recorrida não tem aplicação nos processos de execução fiscal. Na verdade, no proémio do artº 2.º do CPPT estabelece-se que os diplomas legais nele listados serão de aplicação supletiva no procedimento e no processo judicial “de acordo com a natureza dos casos omissos” (negrito nosso)
V) Como decorre do disposto no artº 103.º, nº 1 da LGT: “O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária [e não dos executados] nos actos que não tenham natureza jurisdicional” (negrito nosso)
W) Se o processo de execução fiscal tem natureza judicial, o diploma legal que se lhe aplica supletivamente será o próprio CPPT, na parte relativa ao processo judicial tributário, e na impossibilidade de suprir a lacuna por essa via, o Código de Processo Civil, nos termos previstos na alínea a) e na alínea e) do CPPT e não o Código de Procedimento Administrativo, previsto na alínea d) do CPPT, como pretende o MMO Juiz recorrido – tudo porque é isso o que resulta da natureza do caso omisso em causa.
X) Deste modo, têm aplicação subsidiária no caso dos autos as regras da impugnação judicial regulada no CPPT, designadamente o disposto no artº 115.º, onde são admitidos os meios gerais de prova. Logo, no caso que aqui nos trás, a prova do envio do requerimento ao OEF a nomear bens à penhora pode ser feita por qualquer meio de prova admissível em direito.
Y) A única forma legítima de dispensar esta diligência de prova reside na possibilidade de o Tribunal dar o facto controvertido como provado através do regime de presunções judiciais, como também foi alegado pelo Recorrente.
NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao recurso, ordenando-se a baixa do processo ao tribunal de 1ª instância para aí se promover a realização das diligências de prova requeridas e a prolação de nova decisão final em face da prova que for efectuada.

II) - RECURSO DA DECISÃO FINAL
ERRO DE JULGAMENTO
DA FALTA DE DECISÃO SOBRE O REQUERIMENTO DE NOMEAÇÃO DE BENS À PENHORA
A) No que respeita à questão da falta de decisão do requerimento de nomeação de bens à penhora, suscitada pelo Reclamante e Recorrente, o Tribunal a quo considerou improcedente essa alegação, por entender que: “não ficou provada a apresentação pelo Reclamante junto do órgão da execução fiscal de requerimento de nomeação de bens à penhora (...) pelo que não se constitui qualquer dever legal de decisão por parte da Administração Tributária.” (Sic).
B) Mas, não será bem assim. Em primeiro lugar, porque foi o próprio tribunal que impediu o Recorrente de fazer essa prova, dispensando as diligências de prova testemunhal requeridas, sem fundamento legal, salienta-se, já que, neste caso, por se tratar de trâmite em processo de execução fiscal, processo de natureza judicial de acordo com o disposto no artigo 103.º, nº 1 da LGT, a lei admitia esse meio de prova de acordo com a aplicação subsidiária do artigo 115.º do CPPT que rege os meios de prova admissíveis em processo judicial tributário.
C) Em segundo lugar, porque o tribunal sempre poderia dar a alegação do Recorrente como provada socorrendo-se da figura da presunção judicial prevista no artigo 351.º do Código Civil, já que a mesma era admissível e os autos forneciam a matéria suficiente para a sua aplicação, como, de resto, foi alegado pelo Recorrente.
D) O Recorrente não pode aceitar o entendimento sufragado na douta sentença recorrida que determinou uma decisão final desfavorável quando, se tivesse sido apurada a matéria de facto de acordo com a lei e o direito, tal decisão teria de ser favorável.
E) O Reclamante e ora Recorrente insurgiu-se contra o facto de a penhora controvertida nos autos ser excessiva, violando o disposto no artigo 217.º do CPPT, que dá concretização ao disposto no artigo 266.º, nº 2 da CRP que, justamente, subordina a actuação dos órgãos administrativos, inter alia, ao princípio da proporcionalidade.
F) A penhora controvertida incidiu sobre um imóvel com o valor patrimonial de 52.220,51€ para garantir a cobrança de uma dívida no valor de 7.064,56€, como se mostra demonstrado nos itens G) e H) [anteriores E) e F)] do probatório.
G) Ora, uma penhora que excede o valor da dívida exequenda em mais de 7 vezes é excessiva/desproporcionada em qualquer parte do planeta, com a agravante de que o executado possuía outros bens susceptíveis de penhora, como o salário acima de €1.000,00 auferido pelo executado, a quota social indicada à penhora, saldos bancários; sem colocar em risco a sua proporcionalidade.
H) Como se constata, o Tribunal recorrido considera que a controvertida penhora não é desproporcionada invocando, essencialmente, os seguintes argumentos:
1) “[...] um bem imóvel (...) é mais facilmente vendável em execução fiscal do que uma quota de uma sociedade comercial, dado que as características e valor deste tipo de bens são mais dificilmente apreensíveis e cognoscíveis por parte dos potenciais compradores do que as características e valor de um bem imóvel corpóreo como seja um prédio urbano.” (Sic)
2) “[...] a avaliação de um bem imóvel afigura-se menos complexa e arriscada do que a avaliação de uma quota em sociedade comercial e, nessa medida, a venda do primeiro mostra-se mais atractiva e geradora de um maior número de potencias compradores interessados na sua aquisição do que a venda desta última.” (Sic)
3) “[...] é perfeitamente verosímil que, no momento da realização da penhora, o órgão de execução fiscal não tivesse conhecimento (e tal não lhe era exigido) da titularidade de uma quota em sociedade comercial pelo reclamante.” (Sic)
4) “E ainda que o órgão de execução fiscal tivesse conhecimento da existência de tal bem incorpóreo na esfera do Reclamante (...) não se impunha a penhora do mesmo, ao invés do bem que foi efectivamente penhorado, desde logo face à incerteza do valor de mercado da mencionada participação societária (o que não decorre de uma pura análise das contas da sociedade, mas de um estudo mais profundo, uma vez que a contabilidade baseia-se num conjunto de critérios de mensuração ou valorimétricos que não correspondem, necessariamente, ao valor de mercado e se a mesma seria efectivamente suficiente para garantir o crédito exequendo, para além da ofensa ao critério ínsito no artº 219.º, nº 1 do CPPT que tal opção envolveria.”(Sic)
5) “[...] O reclamante refere fugazmente que dispõe de salário e saldos bancários, sem, contudo, concretizar tais bens [...]”. (Sic)
I) No que diz respeito ao 1.º dos argumentos acima transcritos, constata-se que o Tribunal a quo não faz uma correcta análise da situação de facto.
J) O MMO juiz a quo não pode concluir liminarmente que no caso dos autos uma pequena loja comercial situada numa aldeia (...) é mais facilmente vendável do que uma quota social numa agência funerária, porque não é mesmo possível ter essa certeza. O recorrente considera que muito provavelmente, neste caso, ocorre o contrário.
K) Como diz o povo, na sua imensa sabedoria, as farmácias e as funerárias não vão à falência. (Sic) Trata-se de uma ideia sedimentada no imaginário popular de que as farmácias e as funerárias são negócios garantidos porque todos nós adoecemos, precisando de comprar os medicamentos para nos tratarmos e todos nós morremos, precisando que nos façam o funeral, pelo que nunca haverá falta de clientes!
L) O argumento esgrimido pelo MMO Juiz a quo, muito discutível, senão, mesmo, inaceitável no plano da hermenêutica jurídica; terá servido para aquele magistrado fazer uma aplicação do disposto no artº 219.º, nº 1 do CPPT, que rege os critérios da prioridade da penhora, fazendo-o prevalecer sobre o artº 217.º do mesmo Código, que consagra o princípio da proporcionalidade da penhora.
M) De facto, as normas em causa têm de ser harmonizadas e não fazer prevalecer uma sobre a outra, porquanto, como decorre da textualidade dessas normas, a penhora deve começar (requisito da prioridade) sobre os bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização, e, se mostre adequado ao montante do crédito exequendo (requisito da proporcionalidade).
N) No que diz respeito ao 2.º dos argumentos acima transcritos, constata-se que o Tribunal a quo insiste em não fazer uma correcta interpretação da lei. Na verdade, a avaliação de uma quota em sociedade comercial não tem nada de complexo, ou, pelo menos, será tão complexa como a avaliação de um imóvel.
O) Com efeito, como resulta do disposto no artº 225.º do CPPT, o valor das partes sociais ou quotas determina-se pelo último balanço, lá figurando no capital próprio, sem necessidade de mais indagações.
P) No que respeita à avaliação dos imóveis, este corresponde ao valor patrimonial tributário constante da caderneta predial o qual se determina pela aplicação de uma fórmula constante do artº 38.º do CIMI estruturada para aproximar o valor patrimonial do valor de mercado em cerca de 80%, também sem necessidade de mais indagações.
Q) Sendo certo que também são esses os valores – precisamente esses – o do balanço e o da matriz, para efeitos de garantia, como decorre do artº 199.º-A do CPPT.
R) Por conseguinte, os potenciais compradores dos bens colocados em leilão público apresentarão as suas propostas partindo sempre dos valores anunciados, porquanto, os mesmos são determinados com base em critérios objectivos – e eles sabem disso.
S) No que diz respeito aos 3.0 e 5.0 dos argumentos acima transcritos, constata-se que o Tribunal a quo revela um total desconhecimento dos mecanismos à disposição da AT em matéria de execução fiscal.
T) Na verdade, o MMO juiz a quo avança a possibilidade de o órgão da execução fiscal não ter conhecimento da titularidade da controvertida quota social pelo Recorrente, bem como de outros bens, o que não tem qualquer aderência à realidade.
U) De facto, a AT dispõe de uma aplicação informática que dá pelo nome de SIPA – Sistema Informático de Penhoras Automáticas, que faz o cruzamento de toda a informação sobre bens existentes em qualquer registo – prédios, créditos, salários, pensões, contas bancárias, veículos automóveis, quotas e acções, etc., etc.
V) Ou seja, a AT tem conhecimento de todos os bens pertencentes aos executados que constem dos seus registos. NADA LHE ESCAPA.
W) Portanto, o órgão da execução fiscal tinha como saber, no momento da penhora, que o executado possuía a referida quota, bem como do seu valor e da existência de saldos bancários, através das demonstrações financeiras (demonstração de resultados+balanço) constantes da IES-Declaração Anual Simplificada, como do salário do recorrente, através da DMR-Declarações Mensais de Remunerações, como de créditos através do e-Factura, etc. etc.
X) No que diz respeito ao 4.º dos argumentos acima transcritos, constata-se que, de acordo com este argumento, o MMO Juiz recorrido sustenta que mesmo que o órgão da execução fiscal tivesse conhecimento da existência da controvertida quota social, não se impunha a sua penhora face à incerteza do valor de mercado.
Y) Mais uma vez estamos perante uma argumentação assente numa visão errada dos mercados e da contabilidade. De facto, a incerteza do valor de mercado é idêntica quer se trate de uma quota social quer se trate de um imóvel.
Z) O valor de mercado é um valor estatístico – retirado de uma amostra que pode variar de amplitude e não um valor científico. Por isso, quando se pretende fazer uma venda, irão, certamente, surgir vários valores de mercado, consoante as características dos bens à venda que sejam levadas em linha de conta na hora de apurar o valor venal.
AA) Por outro lado, o valor de mercado de uma quota social expresso no balanço de uma empresa até pode ser bastante fiável, porquanto, como decorre dos parágrafos 97 a 99 da Estrutura Conceptual (EC) integrante do SNC – Sistema de Normalização Contabilística, publicada no DR-II Série pelo Aviso nº 8254/2015, de 29 de Julho, os critérios de mensuração aí previstos permitem apurar um valor contabilístico da empresa com grande aproximação ao valor real.
NESTES TERMOS, violou a douta sentença recorrida artigos 18.º, nº2, 20.º, nº 4, 266.º, nº 2 e 268.º, nºs 4 e 5 da CRP, artigos 115.º e 217.º do CPPT e 351.º do Código Civil e em conclusão, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida com qualquer dos fundamentos invocados pelo Recorrente.
Assim se fazendo serena e sã JUSTIÇA!”
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso interposto do despacho interlocutório e julgar prejudicado o conhecimento do recurso deduzido contra a sentença final.
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Dada a natureza urgente do processo, há dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se o despacho interlocutório enferma de erro ao dispensar a produção da prova testemunhal e se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, por considerar que o acto de penhora em crise era legal.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“Com relevância para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:
IV.1. DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito, julgam-se provados os seguintes factos, com atinência aos meios de prova respetivos:
A) Em 28-02-2022 foi autuado pela Direção de Finanças ... contra o Reclamante o PEF n.º ...45, para cobrança coerciva de dívidas de IVA relativas ao ano de 2017, no montante de 343,85 € – cfr. fls. 1 a 3 do PEF - documento SITAF n.º 006654601;
B) Em 04-04-2022, foi autuado pela Direção de Finanças ... contra o Reclamante os PEF n.ºs ...71, ...98, ...10, ...36, ...44, ...52, ...60, ...87, para cobrança coerciva de dívidas de IVA relativas aos anos de 2019 a 2021, de montantes inferiores a 550,00 €, considerando cada PEF individualmente – cfr. fls. 7 a 9, 11 a 13, 15 a 17, 19 a 21, 23 a 25, 27 a 29, 31 a 33 e 35 a 37 do PEF - documento SITAF n.º 006654601;
C) O Serviço de Finanças ... remeteu ao Reclamante, por correio simples, citações referentes aos PEFs identificados em A) e B), as quais foram recebidas em data não concretamente apurada, mas anterior a julho de 2022 – cfr. admissão pelo Reclamante nos arts. 12.º, 13.º, 16.º e 17.º da petição inicial, documentos n.ºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 juntos com a petição inicial – fls. 23 a 30 do documento SITAF n.º 006654598 – e fls. 10, 14, 18, 22, 26, 30, 34 e 38 do PEF - documento SITAF n.º 006654601;
D) O Serviço de Finanças ... remeteu ao Reclamante, por carta registada com aviso de receção, com o registo “RQ.....09T”, citação, datada de 10-07-2022, referente ao PEF identificado em A) e respetivos apensos, constituídos pelos PEFs identificados em B), a qual foi recebida em 12-07-2022 – cfr. documento n.º 17 junto com a petição inicial – fls. 45 do documento SITAF n.º 006654598 – e fls. 4 e 6 do PEF - documento SITAF n.º 006654601;
E) O valor global das dívidas de IVA, juros e custas a que se reportam os PEFs identificados em A) e B), à data da citação referida na alínea D) era de 7.064,56 € - cfr. documento n.º 17 junto com a petição inicial – fls. 45 do documento SITAF n.º 006654598 – e fls. 4 do PEF - documento SITAF n.º 006654601;
F) Em 30-06-2022 foi efetuada, a pedido da Administração Tributária no âmbito de diversos PEFs, entre os quais os identificados em A) e B), uma penhora sobre a fração autónoma designada pela letra ..., destinada a comércio, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ... sob o artigo ...21, com o valor patrimonial tributário de 52.220,51 €, titulada pelo Reclamante – cfr. documentos n.º 16 e 19 juntos com a petição inicial – fls. 44, 49 e 50 do documento SITAF n.º 006654598 – e documento “Informação 277º do CPPT” – documento SITAF n.º ...99;
G) No âmbito do PEF identificado em A), foi elaborado pelo Serviço de Finanças ... plano oficioso de pagamento em prestações, tendo sido pagas três prestações – cfr. documento “Informação 277º do CPPT” – documento SITAF n.º 006654599;
H) No âmbito dos PEF identificados em B), foram elaborados pelo Serviço de Finanças ... planos oficiosos de pagamento em prestações, não tendo sido paga nenhuma prestação – cfr. documento “Informação 277º do CPPT” – documento SITAF n.º 006654599;
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Factos Não Provados
1) No âmbito dos PEFs identificados em B), o Reclamante apresentou junto do Serviço de Finanças ..., requerimento de nomeação de bens à penhora, tendo em vista a suspensão de tais PEFs, indicando, para efeitos de penhora, uma quota na sociedade “AG - Unipessoal, Lda.”, NIPC ..., e juntando um balanço do ano de 2021, relativo à mencionada sociedade;
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Motivação da Decisão de Facto
A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados resultou do exame das informações e dos documentos, não impugnados, que constam dos autos, e bem assim, da posição assumida pelas partes nos seus articulados, na parte em que não assumem oposição entre si, conforme referido em cada um dos pontos do “probatório”.
O facto não provado resultou da insuficiência de prova carreada para os autos, no que tange à receção pelo Serviço de Finanças ... do requerimento referido no ponto 1).
Com efeito, o Reclamante referiu que tal requerimento foi enviado no dia 09-06-2022, após as 16H00, através de correio azul simples, motivo pelo qual não pode exibir documento comprovativo de tal envio, propondo-se provar tal facto através de testemunhas que arrolou (cfr. documento SITAF n.º 006659680).
A referida prova testemunhal foi dispensada, dado que a mesma nunca teria a virtualidade de provar a receção pelo Serviço de Finanças ... do requerimento referido em 1) do probatório, mas tão somente, a ser bem sucedida, o envio do mesmo (o próprio Reclamante admite estar impedido de comprovar a entrega do requerimento em questão no Serviço de Finanças – cfr. art. 15.º do requerimento a que corresponde o documento SITAF n.º 006659680), circunstância que sempre se mostraria irrelevante para a boa apreciação e decisão da causa.
Cumpre, a este propósito, salientar que, estando em causa o início de procedimento administrativo em matéria tributária, terá aqui aplicação o disposto no art.º 104º, n.º1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo, aqui aplicável ex vi art.º 2º, alínea d), do CPPT, no qual se estabelece que “os requerimentos dirigidos a órgãos administrativos podem ser apresentados por remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da apresentação a da efetivação do respetivo registo postal”, resultando deste preceito normativo a obrigatoriedade de os requerimentos apresentados por correio serem enviados por correio registado (valendo como data de apresentação do requerimento a data da expedição por correio), formalidade que, como expressamente reconhecido pelo Reclamante, não terá sido observada, o que obsta à demonstração da apresentação do requerimento por outra forma que não por via da apresentação do documento comprovativo da expedição por correio sob registo do requerimento inicial, tratando-se de matéria cuja prova não resulta passível de ser substituída pela prova testemunhal oferecida pelo Reclamante.
Daí que tenha restado ao Tribunal dar como não provada a factualidade enunciada no mencionado ponto.”

A decisão interlocutória recorrida, proferida em 21/09/2022, tem o seguinte teor:
Analisados os fundamentos invocados pelo Reclamante, e tendo em conta os elementos constantes dos autos, considero que não se mostra necessária a produção de prova testemunhal que vem arrolada.
Assim, dispenso a produção da prova testemunhal oferecida, tendo em conta que do processo constam já todos os elementos necessários para a boa instrução e decisão da causa.
Notifique.
Após, vão os autos ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 278º, n.º2, do CPPT.”

2. O Direito

A remessa da presente reclamação para o tribunal “a quo” assentou na alegada circunstância de o acto de penhora reclamado ser lesivo dos direitos e interesses protegidos do reclamante, aqui Recorrente, atenta a invocação de a penhora ser imediatamente lesiva, por ser desproporcional e desadequada ao montante em dívida.
O reclamante, ora Recorrente, insurgiu-se contra o facto de a penhora controvertida nos autos ser excessiva, violando o disposto no artigo 217.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que, na sua óptica, dá concretização ao disposto no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que subordina a actuação dos órgãos administrativos, inter alia, ao princípio da proporcionalidade.
De facto, o acto de constituição da garantia patrimonial em que a penhora se resolve está submetido a um princípio estrito de proporcionalidade, de harmonia com o qual devem ser penhorados apenas os bens suficientes para satisfazer a prestação exequenda e as despesas previsíveis da execução.
Efectivamente, de acordo com o artigo 217.º do CPPT, “A penhora será feita somente nos bens suficientes para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, mas, quando o produto dos bens penhorados for insuficiente para o pagamento da execução, esta prosseguirá em outros bens”.
Por outro lado, estabelece o artigo 199.º, n.º 4 do CPPT que: “Vale como garantia para os efeitos do n.º 1 a penhora já feita sobre os bens necessários para assegurar o pagamento da dívida exequenda e acrescido ou a efectuar em bens nomeados para o efeito pelo executado no prazo referido no n.º 6.”
Resulta, portanto, destas normas, e independentemente de terem sido ou não nomeados bens à penhora, não perdendo de vista o princípio da proporcionalidade, que a penhora se deve limitar ao necessário para pagamento da dívida exequenda e do acrescido. Este princípio determina, em primeiro lugar, que a penhora seja limitada a bens no valor suficiente para assegurar o pagamento da quantia exequenda, e, ainda, que a escolha dos bens a penhorar seja adequada a assegurar um mínimo de prejuízo ao executado, sem prejuízo do direito do exequente - cfr. Rui Duarte Morais, in A Execução Fiscal, 2ª edição, página 93. Neste sentido, veja-se, ainda o Acórdão do STA, de 19/09/2012, proferido no âmbito do processo n.º 0861/12.
Tendo de obedecer a regras estritas de atingir o património do devedor apenas na medida do necessário para satisfação da dívida e relativamente aos bens que satisfazendo os direitos do credor menor dano causem ao devedor, não é, porém, possível a este tribunal sindicar a alegada desproporcionalidade, que o tribunal recorrido entendeu não se verificar quanto ao acto de penhora, na medida em que o probatório não se apresenta suficiente, em face da factualidade que se mostra invocada pelo reclamante.
Com efeito, no artigo 29.º da petição de reclamação foi invocado que a penhora deve ser anulada com fundamento na sua desproporcionalidade, sem prejuízo de poder prosseguir noutros bens. Por outro lado, o Recorrente afirma ter nomeado um bem à penhora, a quota da sociedade comercial “AG - Unipessoal, Lda.”, e dispor, ainda, de salário e saldos bancários – cfr. artigos 31.º e 34.º da reclamação.
Em singelo, os valores em cobrança coerciva nos processos de execução fiscal em apreço rondam os €500,00, perfazendo na totalidade o montante de €7.064,56 – cfr. pontos B) e E) da decisão da matéria de facto.
Constatando-se do probatório – cfr. ponto F – que o imóvel penhorado tem o valor patrimonial de €52.220,51, sendo a dívida exequenda global de €7.064,56, somente não haveria, ainda assim, excesso de penhora, se se tratasse do único bem conhecido ao executado.
Contudo, como vimos, o reclamante indicou a existência de outros bens (quota social, remunerações, saldos bancários), pelo que se impunha a instrução dos autos no sentido de averiguar a efectiva disponibilidade dos mesmos para penhora à data de 30/06/2022 [cfr. ponto F) do probatório] e, independentemente da eventual nomeação de bem à penhora, do conhecimento pelo órgão de execução fiscal da existência de outros bens para além do bem imóvel penhorado.
A verdade é que o reclamante invocou possuir outros bens penhoráveis, não tendo o tribunal recorrido atendido a tal alegação, por ter considerado que os mesmos não se encontravam devidamente identificados ou individualizados pelo aqui Recorrente. Nessa sequência, o julgamento da primeira instância parece fundar-se na convicção da existência de um único bem, o prédio penhorado; daqui resultando que, ainda que o bem tivesse um valor muito superior ao da dívida, como tem, sendo o único bem penhorável do executado, ainda assim, não se poderia considerar haver desproporção, nos termos do artigo 217.º do CPPT.
Na verdade, discordamos do tribunal recorrido quando afirma ser perfeitamente verosímil que, no momento da realização da penhora, o órgão de execução fiscal não tivesse conhecimento (e tal não lhe era exigido) da titularidade pelo reclamante de uma quota em sociedade comercial, tanto mais que se trata de uma sociedade unipessoal – ““AG - Unipessoal, Lda.””. Acresce que a AT teria, certamente, conhecimento das declarações de rendimentos apresentadas pelo Recorrente, que lhe permitiriam verificar a existência de outros bens penhoráveis, como os invocados salários auferidos, por exemplo.
Perante a matéria alegada na petição de reclamação, não se vislumbra o alcance do despacho interlocutório proferido em 21/09/2022, principalmente porque, tudo indica, verificar-se défice instrutório nos presentes autos.
Recordemos o teor da decisão interlocutória: Analisados os fundamentos invocados pelo Reclamante, e tendo em conta os elementos constantes dos autos, considero que não se mostra necessária a produção de prova testemunhal que vem arrolada.
Assim, dispenso a produção da prova testemunhal oferecida, tendo em conta que do processo constam já todos os elementos necessários para a boa instrução e decisão da causa.
Como já referimos, ressalta fulcral a invocação de desproporcionalidade da penhora realizada em 30/06/2022, por contender directamente com a matéria que urge apreciar, por via da imediata lesividade do acto reclamado, circunstância que impôs a remessa da reclamação para o tribunal recorrido.
Compulsados os autos, não detectamos todos os elementos necessários para a decisão desta questão, dado falharem os concernentes à existência de outros bens para além do prédio penhorado. Somente levando ao probatório essa informação de bens penhoráveis ou a sua inexistência à data da penhora, será possível sindicar a legalidade do acto reclamado, na perspectiva da violação do princípio da proporcionalidade.
Esta constatação, desde logo, abala a fundamentação genérica vertida no despacho interlocutório proferido em 21/09/2022, relativa à suficiência probatória já constante dos autos.
Recordamos que, no processo judicial tributário, vigora o princípio do inquisitório, o que significa que o tribunal não só pode, como também deve, realizar todas as diligências que considere úteis ao apuramento da verdade.
Deste modo, tendo sido sugerida a realização de uma diligência, o juiz só não a deve fazer se a considerar inútil ou dilatória em despacho devidamente fundamentado.
Ora, analisando o pedido do Recorrente e o teor do despacho recorrido, ressalta que o tribunal recorrido dispensou a prova testemunhal por ser seu entendimento, se bem entendemos a motivação da decisão recorrida, que, considerando a factualidade alegada e tendo em conta as questões que importa apreciar, a produção de prova testemunhal não se mostra necessária, dado se encontrarem os autos instruídos com os elementos bastantes à decisão.
Atendendo às insuficiências que já observámos, necessariamente, o despacho interlocutório recorrido não se apresenta devidamente fundamentado, por não espelhar, em concreto, a inutilidade, desnecessidade ou impertinência da prova solicitada, pelo que não poderá manter-se na ordem jurídica.
Na medida em que a sentença recorrida adita fundamentos para a dispensa da prova testemunhal, enquadrando juridicamente a situação e considerando estar em causa “o início de procedimento administrativo em matéria tributária”, não podemos deixar de ponderar e esclarecer o seguinte:
O processo de execução fiscal (PEF) é um processo de natureza judicial (cfr. artigo 103.º, n.º 1, da LGT), “sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional”.
Assim, desde logo, há uma clara distinção entre processo de execução fiscal e procedimento administrativo tributário, configurando realidades distintas.
O PEF, como qualquer processo, define-se como uma sucessão ordenada de actos visando a obtenção de um determinado fim, no caso a cobrança coerciva de determinadas dívidas (cfr. o artigo 148.º do CPPT).
Assim, atenta a circunscrição constante do mencionado artigo 103.º da LGT, caberá aos Tribunais Tributários a prática, no âmbito destes processos, dos actos de natureza jurisdicional, cabendo aos órgãos da administração tributária os demais – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 80/2003, de 12/02/2003.
A este propósito, é de chamar à colação o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT, nos termos do qual “(…) [a]os serviços da administração tributária cabe: (…) f) Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 151.º do presente Código”.
O legislador optou por atribuir a “um órgão administrativo competência funcional para agir como agente ou operador auxiliar do juiz na realização da função executiva, praticando todos os actos inscritos nesse meio processual, tendo em vista a agilização do processo e a obtenção da maior eficácia na arrecadação de receitas do Estado, libertando o juiz de todos os actos que não envolvam uma função materialmente jurisdicional” – cfr. Acórdão do STA, de 23/02/2012, proferido no âmbito do processo n.º 059/12 e sua análise em torno da natureza dos actos praticados no âmbito do processo de execução fiscal.
Neste contexto, os órgãos da administração tributária podem praticar, no âmbito da execução fiscal, actos materialmente administrativos, como resulta do n.º 2 do artigo 103.º da LGT, mas também actos de natureza processual – cfr., para uma abordagem desta distinção, os Acórdãos do STA, de 11/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 0312/18, e de 25/01/2017, no processo n.º 012/17, e ampla jurisprudência no mesmo citada.
No que tange aos actos de natureza processual, podem consubstanciar-se em meras operações materiais ou em actos processuais de natureza não jurisdicional.
A estes actos de natureza processual não se aplicam, pois, os princípios inerentes ao procedimento tributário, que lhes é estranho, estando sim submetidos aos princípios e normas inerentes à actividade processual.
Atendendo à concreta tramitação do PEF, prevista no CPPT, temos assim que, após a sua instauração, são praticados, designadamente, os seguintes actos processuais de natureza não jurisdicional:
a) Citação;
b) Penhora – cfr. artigos 215.º e seguintes do CPPT;
c) Venda.
Logo, nestes actos processuais de natureza não jurisdicional inclui-se a penhora. Mas, ainda assim, a penhora, sendo um acto lesivo dos direitos do executado, é impugnável, pelo que está sujeita a notificação, nos termos do n.º 3 do artigo 268.º e n.º 1 do artigo 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a penhora define-se como a apreensão judicial de bens do executado, com o objectivo último de satisfação do direito do exequente, sendo-lhe reconhecida uma dupla função: a de especificar os bens que hão-de ser pela mesma abrangidos e a de dar segurança de que tais bens se conservarão em condições de serem vendidos, por forma a satisfazer o direito de crédito do exequente –cfr. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Volume II, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, Páginas 90 e 91.
No âmbito da execução fiscal, a mesma pode assumir igualmente uma função garantística, enquanto estiver, designadamente, pendente oposição à execução fiscal.
O acto que ordena a penhora é o mandado de penhora, que se limita a, considerando a dívida exequenda, ordenar diligências no sentido de proceder à realização do mencionado acto.
Com efeito, atento o disposto no artigo 172.º, n.º 2, do CPC, aplicável subsidiariamente, considerando o consignado na alínea e) do artigo 2.º do CPPT (atentando, tal como já se referiu supra, que nesta parte os actos em causa são de natureza processual), o mandado é o acto processual através do qual é ordenada a execução de um acto processual.
Tudo indica estarmos perante um sistema informático de apoio que funciona automaticamente (SIPE), pelo que, muitas vezes, será aquando da efectivação da penhora que se especificarão todos os elementos relevantes.
Na medida em que os PEF terão sido transferidos para essa aplicação informática que gere os processos de execução fiscal (SIPE), o acto que determinará o acto processual de natureza não jurisdicional de penhora é aí comummente denominado de “pedido de penhora”, que pressupõe diligências prévias.
Ora, é todo este circunstancialismo prévio e inerente à penhora “automática”, que terá sido realizada, que se impõe apurar.
Como se refere na sentença recorrida, nos termos do n.º 1 do artigo 215.º do CPPT, procede-se à penhora quando, findo o prazo posterior à citação, não tiver sido efectuado o pagamento.
Por outro lado, é ainda de considerar o disposto no artigo 52.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, lido em consonância com o artigo 169.º, n.º 1, do CPPT, que prevêem que, no caso de existência de oposição à execução fiscal, esta execução fique suspensa até à decisão do pleito, se constituída garantia (art.º 195.º do CPPT) ou prestada nos termos do artigo 199.º do mesmo código ou quando a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda.
Como tal, quer a penhora quer o mandado que a ordena têm como pressuposto esta circunstância: a de não ter sido efectuado o pagamento ou não ter sido constituída garantia.
Esta abordagem também se justifica, uma vez que do probatório consta terem existido planos prestacionais – cfr. ponto G) e H).
A sentença recorrida não fixou factualidade quanto ao circunstancialismo em que ocorreu o acto de penhora ou no que tange à existência eventual de variados bens penhoráveis (quota social, salários, saldos bancários, ou outros), devidamente organizada temporalmente, nem os autos fornecem elementos para a fixar, com a segurança e certeza exigíveis; o que impede qualquer juízo sobre a violação do princípio da proporcionalidade pelo acto reclamado de penhora.
Verificando-se défice instrutório, impõe-se a remessa ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para promover diligências instrutórias e, após ampliação do probatório fixado nos termos supra referidos, proferir nova decisão final.
Deste modo, não podendo sufragar-se, sem mais, o julgamento produzido em 1.ª instância, impõe-se anular, segundo o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, a sentença, de molde a permitir que, no tribunal recorrido, sejam efectivadas as diligências probatórias que se mostrem adequadas e necessárias ao esclarecimento, mais completo possível, dos aspectos apontados como deficitariamente instruídos, no sentido de averiguar esses factos, levando os mesmos ao probatório.
O exposto é suficiente para conceder provimento a ambos os recursos, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas.

Conclusões/Sumário

I – A penhora é um acto processual de natureza não jurisdicional.
II – Resulta do disposto no artigo 217.º do Código de Procedimento e Processo Tributário e do princípio da proporcionalidade que a penhora, dada a sua natureza gravosa, deve limitar-se ao necessário para pagamento da dívida exequenda e do acrescido.
III – Revelando os autos insuficiência factual para a boa decisão da causa, em virtude de terem sido omitidas diligências probatórias indispensáveis para o efeito, impõe-se a anulação da sentença recorrida e a baixa do processo ao Tribunal recorrido para melhor investigação e nova decisão, em harmonia com o disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil ex vi artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento a ambos os recursos, revogar a decisão interlocutória proferida em 21/09/2022, anular a sentença recorrida e ordenar a remessa do processo à 1ª instância para nova decisão, com preliminar ampliação da matéria de facto, após a aquisição de prova conforme acima se indica.

Custas a cargo da Recorrida, que não incluem a taxa de justiça, uma vez que não contra-alegou.

Porto, 12 de Janeiro de 2022

Ana Patrocínio
Paula Moura Teixeira
Conceição Soares