Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00264/10.1BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/16/2014
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:PRINCÍPIO DA IMPUGNAÇÃO UNITÁRIA
INIMPUGNABILIDADE
ACTO IMEDIATAMENTE LESIVO
Sumário:I - Por força do princípio da impugnação unitária, plasmado no artigo 54.º do CPPT, só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento tributário, dado que só esse acto atinge ou lesa, de forma imediata, a esfera jurídica do contribuinte.
II - O acto de fixação do rendimento tributável, com recurso a correcções aritméticas, não representa a prática de um acto imediatamente lesivo, por não ser susceptível de provocar efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte.
III – A norma ínsita no artigo 54.º do CPPT, quando interpretada no sentido de obstar à impugnabilidade do acto de fixação do rendimento tributável, não contende com os princípios constitucionais constantes do artigo 18.º conjugado com o disposto no artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, maxime no que se refere ao direito à tutela jurisdicional efectiva, já que o artigo 54º do CPPT prevê expressamente a impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos interlocutórios.
IV – A norma ínsita no artigo 66.º, n.º 2 da LGT, quando interpretada no sentido de que, ainda que tenha sido feita atempadamente a reclamação ali referida, o contribuinte terá que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artigo.52.º da LGT e artigo 169.º do CPPT, não enferma de inconstitucionalidade resultante do facto de no nosso ordenamento jurídico-tributário não existir norma similar ao já revogado artigo 183.º-A do CPPT, nem contende com os princípios constitucionais vertidos no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente, com o princípio da proporcionalidade, já que se mantém a previsão legal constante dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:F..., Lda.
Recorrido 1:Ministério das Finanças e da Administração Pública
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I – Relatório

F…, EXPORTAÇÃO E IMPORTAÇÃO, LDA., intentou a presente acção administrativa especial contra o Ministério das Finanças e da Administração Pública, impugnando o despacho do Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de Braga, datado de 14.10.2009.
No Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi proferida sentença, em 14/07/2010, que absolveu o Réu da instância, por inimpugnabilidade do acto impugnado, decisão com que a autora não se conformou, tendo interposto o presente recurso jurisdicional.

Alegou, tendo concluído da seguinte forma:
I - Quando foi notificado à recorrente o Projecto de Relatório da Inspecção Tributária, para esta exercer o seu direito de audição, foi-lhe escamoteado na notificação o direito consagrado no artº. 101.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo, ou seja, não lhe foi feita indicação do local e horas a que poderia consultar o processo.
II - Nos termos do disposto no artº. 268.º, n.º 3, da C.R.P. e do artº. 100.º, n.º 2, do C.P.A., a recorrente tinha, e tem, o direito a ser notificada do Projecto de Relatório de Inspecção, através de uma notificação que, entre outras coisas, indicasse hora e local para consulta de todo o procedimento.
III - Nunca a Administração Tributária, no procedimento ora em causa, alguma vez notificou a recorrente no sentido de lhe indicar hora e local para consulta dos respectivos autos.
IV - O comportamento da Administração Tributária, neste caso concreto os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Braga, violou o disposto artº. 268.º, n.º 3, da C.R.P. e do artº. 100.º, n.º 2, do C.P.A., e também, pasme-se as próprias regras do seu funcionamento interno ( que a vinculam, cfr. artº. 68.º-A da LGT ).
V - Com esse comportamento a recorrente ficou sem saber, v.g., quais os elementos probatórios que a relacionam com a T..., sendo que, da notificação feita não resulta nenhuma imputação concreta de qualquer acto praticado pela recorrente que legitime as afirmações constantes do Projecto de Relatório da Inspecção, que lhe foi notificado.
VI - E, o mesmo se dirá relativamente ao alegado, hipotético e inexistente conluio entre a recorrente e a P..., uma vez que, em concreto, inexiste qualquer facto concreto directamente imputado à recorrente que permita concluir que a mesma tinha qualquer ligação com a P... fora do giro comercial de ambas.
VII - Sem saber, em concreto, o que consta do procedimento que seja passível de fundamentar as conclusões constantes do Projecto de Relatório – se é que existe, o que não se concede e só por mera hipótese se refere -, não é possível à recorrente exercer cabalmente o seu direito de audiência prévia.
VIII - A audiência prévia dos interessados é uma formalidade essencial relativa à formação da vontade administrativa, cuja omissão vicia o acto administrativo praticado em 14 de Outubro de 2009, sendo que quando o mesmo foi praticado já o vício de violação do direito de audição tinha sido invocado, em articulado legalmente previsto, perante a própria Administração Tributária, ao abrigo do disposto no artº. 66.º da LGT.
IX - Assim sendo, verifica-se que o acto administrativo em causa nos presentes autos enferma do vício de anulabilidade, que desde já aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
X - O simples facto de no momento em que foi praticado o acto cuja suspensão de eficácia se requereu ainda não ter tido lugar a liquidação do imposto, não significa que, por força do mesmo, não se tenham produzido, de imediato, efeitos obrigacionais na esfera jurídica da recorrente.
XI - As alterações à matéria colectável são também actos susceptíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes, pois condicionam o ulterior acto de liquidação.
XII - No dia 14 de Outubro de 2009, com a prática do acto cuja suspensão se requereu, nasceu na esfera jurídica da recorrente uma obrigação de pagamento, que apesar de ainda não se encontrar liquidada, era já certa.
XIII - O acto praticado em 14 de Outubro de 2009 pela Administração Tributária, não teve em conta o disposto na Constituição, na Lei e nas suas regras internas de funcionamento da Direcção Geral dos Impostos, sendo que, no momento em que foi praticado o acto, o vício de que padecia o procedimento tributário já havia sido invocado pela recorrente junto da própria Administração Tributária.
XIII - O comportamento da Administração Tributária na situação em apreço potencia o aparecimento de uma situação favorável ao Estado e desfavorável ao particular, de forma completamente desproporcionada, directamente resultante de uma omissão da observância de formalidades legais por parte daquela, administrativa, legal e constitucionalmente obrigatórias.
XIV - Isto porque, o único período em que, de facto e de direito, foi dada aos contribuintes a possibilidade de não ser desproporcionalmente penalizado pela demora – publicamente conhecida e cujo único responsável é o Estado – nos processos de natureza fiscal que correm termos nos Tribunais Administrativos, foi entre 2000 e 2007, durante a vigência do artº.183º.-A do CPPT.
XV - Nesse período, se um processo judicial tributário ultrapassasse aquilo que o legislador entendeu como sendo um prazo razoável, as garantias que os contribuintes tinham de prestar, caducavam findo esse prazo, o que não se verifica actualmente, porque a aludida norma foi revogada pela Lei nº53-A/2006 de 29 de Dezembro.
XVI - Assim sendo, o acto praticado por M…, Chefe de Divisão, em 14 de Outubro de 2009, é anulável por se encontrar alicerçado num procedimento que padece do vício de violação de uma formalidade essencial, sendo que, tal acto, por si só, implica, sem mais, o nascimento de uma obrigação na esfera jurídica da recorrente.
XVII - Por força do disposto nos artºs.60.º da LGT e 60.º do RCPIT, seria no momento em que deveria exercer o seu direito de audição que a recorrente teria que, dentro do procedimento tributário, suscitar todas as questões que entendesse por bem fazer, nomeadamente invocar a violação das normas legais que, no seu entender, tinha sido feita pela Administração Tributária, o que a recorrente fez.
XVIII - Para não ter o seu património atacado por uma penhora alicerçada num procedimento em que houve flagrante violação de orientações genéricas – cfr. artº.55º, nº3, do CPPT e Circular nº13/99, de 8 de Julho da Direcção Geral dos Impostos – da lei – cfr. artºs.60º da LGT, 60º e 4º, alínea e) do RCPIT e 101º, nº2 do CPA – e também da Constituição – cfr. artº.268º -, a recorrente terá que prestar uma caução de centenas de milhares de euros, pois, os meios de reacção à sua disposição não têm efeito suspensivo.
XIX - Tal entendimento é manifestamente inconstitucional pois, em última instância, poderá permitir à Administração Tributária a obtenção de receitas através da cobrança indevida de tributos, bastando para o efeito que o custo que os contribuintes tenham que suportar com os meios de reacção ao seu alcance seja equiparado ou superior ao valor do tributo que aquela pretende receber, ainda que de forma indevida.
XX - É, por isso, inconstitucional, por violação do disposto no artº.268º, nºs.1 e 4, da CRP, a interpretação do artº.54º do CPPT, quando feita no sentido de que, mesmo não tendo sido cumpridas as orientações genéricas – cfr. artº.55º, nº3, do CPPT e Circular nº13/99, de 8 de Julho da Direcção Geral dos Impostos – e a lei – cfr. artºs.60º da LGT, 60º e 4º, alínea e) do RCPIT e 101º, nº2 do CPA – num procedimento tributário, e mesmo sendo esse facto comprovado por documento oficial – notificação -, a decisão que sanciona o Relatório e que dá origem ao nascimento da obrigação de imposto na esfera jurídica do contribuinte, não é passível de impugnação judicial.
XXI - É igualmente inconstitucional, por violação do artº.268º da CRP e do princípio da proporcionalidade, o nº2 do artº66º da LGT, quando interpretado no sentido de que, ainda que tenha sido feita atempadamente a reclamação ali referida, o contribuinte terá que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artº.52º da LGT e artº.169º do CPPT, sendo que tal inconstitucionalidade resulta do facto de nosso ordenamento jurídico-tributário não existir norma similar ao já revogado artº.183º-A do CPPT.
XXII - Ao não entender assim, violou o Meritíssimo Tribunal a quo o disposto nos artºs. 54º, 55º, nº3, do CPPT, 60º da LGT, 60º e 4º, alínea e) do RCPIT e 101º, nº2 do CPA e 268º da CRP.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V.Exªs. muito doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, por via disso, ser revogada a douta decisão recorrida, sendo substituída por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas.
Decidindo deste modo, farão V.Exª., aliás, como sempre, um acto de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

O Ministério das Finanças e da Administração Pública apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Tendo o procedimento de inspecção tributária, à luz do disposto no artigo 11º do RCPIT, natureza meramente acessória ou preparatória do acto tributário strictu sensu (acto de liquidação), o acto que o R. pretende atacar contenciosamente constitui um mero acto interlocutório.
2. Vigorando no regime jurídico-tributário o princípio da impugnação unitária – artigo 54º do CPPT – os actos interlocutórios não são passíveis de impugnação contenciosa, podendo os visados, na impugnação do acto final do procedimento, invocar qualquer ilegalidade verificada no decurso do procedimento.
3. A excepção a este princípio reporta-se exclusivamente aos casos de disposição expressa em sentido contrário – o que in casu não se verifica – e aos casos de lesão imediata dos direitos dos contribuintes.
4. Apelando à imediata lesão dos seus interesses para justificar a sua pretensão, a sociedade Recorrente acaba por assumir que a lesão não é imediata, só advindo do acto de liquidação subsequente ao procedimento inspectivo (artigo 6º das suas alegações de recurso jurisdicional).
5. Outra não poderia ser aliás a posição da Recorrente, uma vez que nunca o despacho que põe termo ao procedimento inspectivo, sancionando seu relatório, é apto de per se a provocar qualquer lesão imediata na esfera jurídica dos visados.
6. Assim, não sendo os actos interlocutórios, em regra, passíveis de impugnação contenciosa directa – face ao princípio da impugnação unitária – e não se descortinando qualquer lesão imediata dos direitos e interesses da Recorrente, é legitima a decisão prolatada no aresto sindicado.
7. As pretensas inconstitucionalidades suscitadas pela Recorrente, respeitam a matéria não apreciada pelo tribunal a quo (inconstitucionalidade da interpretação dada ao nº 2 do artigo 66º da LGT) e a argumentos e factualidade não consentâneas com a realidade do sistema jurídico-tributário (na parte em que entender haver inconstitucionalidade do artigo 54º do CPPT quando interpretado no sentido em que “num procedimento tributário… a decisão que sanciona o Relatório e que dá origem ao nascimento a obrigação de imposto na esfera jurídica do contribuinte, não é passível de impugnação judicial”), que nem foram objecto de apreciação pelo Tribunal a quo, e que denotam desconhecimento da legislação tributária – mais concretamente a legislação que expressamente regula o procedimento inspectivo e as garantias dos contribuintes.
8. É errada a afirmação formulada pela Recorrente, ao assumir que a decisão que sanciona o relatório inspectivo dá origem ao nascimento da obrigação de imposto na esfera jurídica da Recorrente, não tendo sequer o Tribunal a quo emitido pronúncia sobre tal questão, que justifique o apelo a apreciação da questão da constitucionalidade dessa “interpretação”.
9. Qualquer acto lesivo a decorrer da acção inspectiva será exclusivamente o acto de liquidação strictu sensu – relativamente ao qual são asseguradas à Recorrente todas as garantias impugnatórias graciosas e contenciosas legalmente consagradas e constitucionalmente “prescritas”.
10. A pretensa preterição de formalidade que a Recorrente defende, susceptível de gerar a anulabilidade do procedimento, pode e deve ser suscitada na impugnação do acto de liquidação subsequente, não resultando desse “adiamento” do momento de reacção qualquer lesão imediata da Recorrente.
11. Aliás, e como bem tem sido entendido pela jurisprudência, no segmento respeitante ao exercício do direito de audição em sede de procedimento inspectivo “no âmbito do direito de audição a não menção na notificação efectuada das horas em que o contribuinte poderia consultar o processo não constitui preterição de formalidade essencial, devendo entender-se, no caso, que o mesmo é consultável nas horas normais de expediente do Serviço” (Ac. T.C.A. Sul de 23.06.2009 – Procº 02905/09)
12. E, como sustenta a jurisprudência do STA – pese embora em Acórdão respeitante ao direito de audição plasmado no CPA, sem as particularidades do procedimento de natureza inspectiva-tributária previstos no RCPIT – “A falta desta… menção sem que esteja provado ou sequer alegado que a entidade recorrida impediu ou colocou qualquer obstáculo à consulta do processo em causa, constitui mera irregularidade não invalidante do acto final” (Ac. STA de 24.11.1999 – Procº 039437).
13. Logo, não resulta verificada qualquer preterição de formalidade susceptível de inquinar de forma imediata os interesses legalmente protegidos da Recorrente, que justifiquem a postergação do princípio da impugnação unitária vigente no ordenamento jurídico nacional.
14. O acervo legal que enforma o procedimento tributário assegura, de forma plena e eficaz a salvaguarda dos interesses dos contribuintes constitucionalmente consagrados, sendo a reclamação graciosa ou a impugnação judicial do acto de liquidação subsequente ao procedimento inspectivo aptas a alcançar tal desiderato, podendo os contribuintes, no uso daquelas garantias, suscitar qualquer ilegalidade.
15. A manutenção da decisão judicial proferida em primeira instância traduzirá uma correcta interpretação e aplicação da lei aos factos, não resultando da mesma qualquer postergação ou lesão de direitos da Recorrente, fazendo-se assim a devida Justiça.

O Ministério Público junto deste Tribunal não emitiu parecer.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir:
- (In)impugnabilidade do acto administrativo;

- Se a norma ínsita no artigo 54.º do CPPT, quando interpretada no sentido de obstar à impugnabilidade do acto de fixação do rendimento tributável, enferma de inconstitucionalidade;

- Se a norma ínsita no artigo 66.º, n.º 2 da LGT, quando interpretada no sentido de que, ainda que tenha sido feita atempadamente a reclamação ali referida, o contribuinte terá que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artigo 52.º da LGT e artigo 169.º do CPPT, enferma de inconstitucionalidade resultante do facto de no nosso ordenamento jurídico-tributário não existir norma similar ao já revogado artigo 183.º-A do CPPT.
III – FUNDAMENTAÇÃO

III - 1. Matéria de Facto
Uma vez que a sentença não alinhou os factos provados, embora os refira na apreciação jurídica que fez das questões processuais, dão-se por fixados os seguintes, nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, provados documentalmente:

1. Em 07.10.2009, foi elaborado Relatório de Inspecção Tributária, referente a F…, Exportação e Importação, Lda., onde foram realizadas correcções aritméticas, em sede de IVA, relativas aos exercícios de 2005, 2006 e 2007, no qual foi aposto o despacho de 14.10.2009, do Chefe de Divisão, M…, no qual consta “Sanciono as conclusões do relatório, bem como as correcções propostas. (…)” – cfr. fls. 137 do processo físico.
2. Pelo ofício n.° 50812508, datado de 28.10.2009, foi notificada a A. do teor do relatório de inspecção tributária, nos termos do art.° 77º da LGT e 62.° do RCPIT. Dando conta das correcções meramente aritméticas efectuadas à matéria tributável, sem recurso a avaliação indirecta, cujos fundamentos constam do referido Relatório. Alertando para que “A breve prazo, os serviços da DGCI procederão à notificação da liquidação respectiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar. Da presente notificação e respectiva fundamentação não cabe reclamação ou impugnação.” – cfr. fls. 136 a 152 verso do processo físico.
3. Em 29.02.2010, a autora, ora recorrente, apresentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga acção administrativa especial, tendo em vista impugnar o acto praticado por M…, proferido em 14.10.2009 – cfr. fls. 2 e 100 do processo físico.

III – 2. De Direito

A decisão recorrida julgou verificar-se a excepção invocada de inimpugnabilidade do acto administrativo proferido em 14.10.2009.
A Recorrente entende que o acto praticado pelo Chefe de Divisão, M…, em 14.10.2009, é anulável por se encontrar alicerçado num procedimento que padece de violação de lei por preterição de formalidade essencial.
Sustenta que, tratando-se de um acto administrativo praticado com violação de lei, causa um prejuízo irreparável, sendo susceptível de afectar direitos ou interesses legalmente protegidos, definido em função da garantia constitucional do nº 4 do art.° 268.° da CRP. É, assim, entendimento da Recorrente que o acto é impugnável, nos termos do art.° 54.° do CPPT e do n.°4 do art.° 268.° da CRP.
O Ministério das Finanças contrapõe que a notificação do relatórios de inspecção, por si só, não pode lesar a A., e que, qualquer lesão que se verifique na esfera jurídica da A., decorrerá sempre e necessariamente do acto de liquidação subsequente ao procedimento inspectivo, e não de qualquer acto praticado no âmbito daquele procedimento.
Estabelece o artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) que «1- Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.».
Tal preceito consagra o denominado princípio da impugnação unitária, segundo o qual só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento, e não já os actos interlocutórios ou procedimentais, dado que só aquele acto final atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do contribuinte, fixando a posição da administração tributária perante este e definido os seus direitos e obrigações. E dele resulta, ainda, que no contencioso tributário, ao contrário do que acontece actualmente no contencioso administrativo, o critério da impugnabilidade dos actos é o da sua lesividade imediata, ou seja, é a lesividade objectiva, imediata, actual e não meramente potencial; ou, por outras palavras, depende da produção de efeitos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte, pela violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Na verdade, enquanto a partir da entrada em vigor do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e da opção legislativa materializada no n.º 1 do seu artigo 51.º, a lesividade imediata do acto administrativo deixou de constituir atributo da sua impugnabilidade, pois que deixou de se exigir que o acto tenha sido praticado no termo de uma sequência procedimental, passando essa impugnabilidade a depender apenas da externalidade do acto, ou seja, da susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos que se projectem para fora do procedimento onde o acto se insere (lesividade potencial) - Cfr. o Prof. Mário Aroso de Almeida, in “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 2ª Ed., págs. 135/136 e Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilhe, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Comentado”, 2ª Ed., notas 1, 2 e 3 ao artigo 51º, págs. 306 a 313. - já no âmbito do contencioso tributário a impugnabilidade do acto continua a depender da sua lesividade imediata e actual, da produção de efeitos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte, pela violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
E porque é a esta luz que deve ser visto o princípio da impugnação unitária, inviabilizador da impugnabilidade dos actos procedimentais, compreende-se que ele só deve ceder naqueles casos em que o legislador consagrou norma expressa em sentido contrário ou naqueles casos em que se verifica a lesividade imediata do acto e em que, por isso, se torna imprescindível assegurar a tutela judicial efectiva em relação a esse tipo de acto, sendo que o conceito engloba apenas as situações de lesão imediata e actual, estando excluídas da garantia os actos cuja lesividade seja apenas potencial.
Deste modo, e concluindo, os actos interlocutórios do procedimento tributário, sendo meramente instrumentais ou preparatórios da decisão final, ainda que ilegais, não são, em princípio, lesivos dos interesses do contribuinte, pois a sua situação tributária não fica com eles definida ou resolvida. Na verdade, sendo o procedimento de liquidação tributária constituído por uma série de actos preparatórios e instrumentais, interligados e dirigidos à concretização de um resultado jurídico final, ou seja, à liquidação do montante do imposto que o contribuinte tem de entregar nos cofres do Estado, compreende-se que só o acto final (liquidação em sentido estrito) seja susceptível de afectar, de forma objectiva e imediata, a esfera jurídica do contribuinte, sendo esse, por conseguinte, o acto lesivo e contenciosamente impugnável.
Razão por que a sua ilegalidade só pode ser suscitada aquando da eventual impugnação deduzida contra o acto final lesivo. A menos que se trate de actos interlocutórios cujo escrutínio judicial imediato e autónomo se encontre expressamente previsto na lei (são os chamados “actos destacáveis”, que, na falta de imediata impugnação, se fixam ou consolidam na ordem jurídica, ficando precludido o direito ou a faculdade processual de posteriormente discutir a sua legalidade e afastada a possibilidade de impugnar, com base nessa ilegalidade, a liquidação que desse acto partiu) ou dos actos que, embora inseridos no procedimento tributário e anteriores à decisão final, sejam imediatamente lesivos, abrindo-se então a possibilidade da sua impugnação imediata, sem prejuízo de a sua ilegalidade poder, ainda, ser suscitada na impugnação que venha a ser deduzida contra o acto final, pois que do artigo 54.º do CPPT não decorre a preclusão desse direito para os actos não destacáveis e tal dimanar, similarmente, da regra contida no n.º 3 do artigo 51.º do CPTA, de aplicação supletiva ao contencioso tributário. Ou, ainda, os actos trâmite que ponham um ponto final na relação da administração com o interessado, já que nestes casos, muito embora o acto continue a ser, na economia geral do procedimento, um acto preparatório pré-ordenado ao acto final, é para o seu destinatário o acto que define a posição da Administração e, por isso, o acto lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos.
No caso vertente, a Recorrente instaurou acção administrativa especial, versando a impugnação do acto que determinou correcções aritméticas à matéria tributável.
Vejamos, por um lado, se se trata de acto previsto na lei como um acto destacável, ou se a sua impugnabilidade contenciosa directa e autónoma dependerá da sua qualificação como acto imediatamente lesivo.
O artigo 86.º da Lei Geral Tributária (LGT) refere que a avaliação directa é susceptível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa directa. O seu n.º 2, por seu turno, determina que a impugnação da avaliação directa depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão.
As correcções que a Administração Tributária (AT) pode efectuar à matéria colectável podem resultar, desde logo de uma avaliação directa, ou avaliação a priori, através da recolha e processamento dos dados das declarações ou através da verificação do seu conteúdo e de correcções de eventuais erros. Este tipo de avaliação assenta, assim, na análise da declaração do contribuinte ou nos elementos da sua contabilidade, dando origem a correcções técnicas ou meramente aritméticas, pois não envolvem um juízo subjectivo sobre a realidade dos factos. As correcções técnicas destinam-se a corrigir proveitos registados por montantes inferiores aos que constam das facturas emitidas, a desconsiderar custos ou perdas não comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora (artigo 23.º, do CIRC) ou deduções de imposto que se refira a operação simulada (artigo 19.º, n.º3 do CIVA) – correspondente à situação relatada no âmbito da presente inspecção tributária - bem como deduções de imposto referido em facturas ou documentos equivalentes que não obedeçam aos requisitos formais legalmente exigidos (artigos 19.º, n.º 2 e 6 e 35.º do CIVA).
Das correcções técnicas distinguem-se as correcções aplicáveis a desvios significativos (artigo 26.º, n.º 3, do CIRC) em relação a custos-padrão ou a taxas de reintegração ou amortização (art.º 31.º, n.º 3, do CIRC), que obedecem a critérios de razoabilidade e proporcionalidade e que por isso dependem de uma avaliação ponderada da AT.
Já na avaliação indirecta, que pressupõe uma falta de colaboração do contribuinte e a ausência, falta de apresentação ou deficiência dos elementos declarativos ou da contabilidade, a fixação da matéria colectável é feita com recurso a indícios e presunções, precisamente porque não é possível, como na avaliação directa, chegar a um resultado objectivo extraído da escrita do sujeito passivo ou da sua declaração.
Ora, compulsado o teor do relatório de inspecção tributária, não residem dúvidas estarem em causa correcções aritméticas.
Nos casos em que a determinação da matéria colectável é possível com base em elementos objectivos, como a contabilidade e respectiva documentação, não há lugar propriamente a uma avaliação da matéria colectável, mas sim ao seu cálculo, através da verificação desses elementos e operações matemáticas com base neles elaboradas.
O artigo 81.º da LGT refere-se cumulativamente a avaliação e cálculo da matéria colectável; contudo, entende-se estar reservada a designação de avaliação para os casos em que a determinação da matéria tributável é feita através de métodos que, mesmo com utilização de critérios objectivos (como exige o n.º 1 do artigo 84.º da LGT), não podem deixar de envolver uma margem de subjectividade – cfr. Jorge Lopes de Sousa in CPPT, anotado e comentado, 2006, volume I, Áreas Editora, página 835.
O esgotamento dos meios administrativos justifica-se quer na avaliação directa como na indirecta, sempre que haja uma avaliação propriamente dita, com intervenção de elementos subjectivos, e não um mero cálculo, baseado em operações matemáticas.
A subjectividade inerente a qualquer avaliação (seja directa, como a determinação do valor de um imóvel, seja a indirecta, como a assente em presunções) recomenda um esgotamento dos mecanismos administrativos de reapreciação, como meio de procurar diminuir essa carga subjectiva e, tendencialmente, promover a fixação tão objectiva quanto possível da matéria colectável, desejada pela lei (art. 84.°, n.°1, da L.G.T.).
Efectivamente, no caso em apreço, estão somente em causa correcções decorrentes de cálculos aritméticos, pelo que poderíamos, com este argumento, afastar a aplicação do disposto no artigo 86.º, n.º 1 da LGT.
Mas, mesmo que assim não seja, salienta-se que a redacção do artigo 86.º, n.º 1 da LGT menciona “nos termos da lei”, o que inclui o CPPT. Logo, não se coloca em causa o princípio da impugnação unitária, segundo o qual só existe impugnação judicial do acto final do procedimento, do acto que, por fixar a posição final da administração tributária, afecta imediatamente a esfera patrimonial do contribuinte, definindo os seus direitos e deveres, embora as ilegalidades que afectem os actos preparatórios do acto tributário sejam impugnáveis em sede de impugnação deste, como já referimos – cfr. artigo 54.º do CPPT.
Concluindo, por regra, as correcções aritméticas apenas podem ser judicialmente impugnadas em sede da impugnação da consequente liquidação.
Assim, não se tratando, o acto em crise, de um acto previsto na lei como um acto destacável, nem se tratando do acto final que põe termo à relação da administração com o interessado (termo que só ocorrerá com o acto da liquidação), a sua impugnabilidade contenciosa directa e autónoma dependeria da sua qualificação como acto imediatamente lesivo.
Como advertem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (Notas ao artigo 95.º da LGT, Comentada e Anotada, 3ª edição, 2003) «A questão da lesividade é distinta da sua imediata recorribilidade contenciosa: é que a lei, por razões de eficácia, celeridade e prestígio da administração, pode subordinar o recurso a juízo a pressupostos especiais (pressupostos ou condições especiais de recorribilidade ou relativos ao objecto), como o do prévio esgotamento dos meios administrativos de autocontrolo ou o da necessidade de prévia reclamação graciosa ou o de segunda avaliação, nada impedindo, por outro lado, que o recurso hierárquico possa ter até natureza necessária ao invés do que é assumido como regra pelo CPPT (art. 67°, nº 1) e a LGT (art. 80°). (…) 9 - São actos lesivos, por essência, os actos de liquidação (tributários, stricto sensu), quando praticados por autoridade fiscal competente, de acordo com o previsto no art. 60° do CPPT. (…) 13 - Só poderão estar abrangidos na cláusula aberta constante da al. h) os actos administrativos em matéria tributária que sejam lesivos. Excluída está, pois, a impugnação dos actos preparatórios, mesmo que prejudiciais ocorridos no procedimento de liquidação, a menos que a lei obrigue à sua impugnação autónoma».
E é também no sentido de que quando o acto final é um acto de liquidação, é apenas esse o acto contenciosamente impugnável, devendo os vícios de que enferme o procedimento inspectivo, ser arguidos na impugnação contenciosa do acto de liquidação, que tem vindo a pronunciar-se a jurisprudência do STA e do TCA.
Ora, tal acto não é imediatamente lesivo, por não ser susceptível de provocar, por si, efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica da Recorrente. A fixação de rendimentos referente a um determinado ano constitui o acto propulsor do procedimento tributário tendente à determinação da colecta e à liquidação do imposto, isto é, constitui o acto impulsionador e preparatório desse procedimento tributário, pelo que as suas vicissitudes não afectam, em princípio, de forma imediata, a esfera jurídica do contribuinte, a qual só será atingida com o acto final de liquidação do imposto.
Com efeito, o eventual vício ocorrido no acto que fixou os rendimentos só se cristaliza no acto de liquidação onde produzirá, então, a verificar-se, efeitos negativos sobre a esfera jurídica da Recorrente. E, por conseguinte, esta terá de esperar pelo acto final de liquidação para o impugnar, invocando os fundamentos que, no seu entender, a inquinam.
Por outro lado, esta solução legal em nada contende com os princípios constitucionais que a Recorrente invoca, maxime o que se refere ao direito à tutela jurisdicional efectiva, já que o artigo 54º do CPPT prevê, expressamente, a impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos dos direitos dos contribuintes e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, poderem ser invocados todos os vícios de que padeçam os actos interlocutórios. Ou seja, o acto em questão nos presentes autos é efectivamente impugnável, mas só mediatamente, através do acto de liquidação que vier a ser praticado, pelo que fica, desta forma, assegurada a possibilidade de controlo judicial da sua legalidade.
Por tal motivo, a inimpugnabilidade autónoma e directa de actos procedimentais não constitui uma restrição do direito de impugnação contenciosa. Trata-se de um mero condicionamento do direito à impugnação, que se traduz em permitir o controlo judicial da legalidade dos actos tributários apenas quando ele é necessário, e esse condicionamento não é proibido pela Constituição, como o não são outros como a sujeição a prazos ou a imposição de regras processuais, que em vez de restringirem o exercício do direito visam assegurá-lo eficazmente. [Sobre a distinção entre restrição e condicionamento de direitos, podem ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 74/84 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 351, página 172) e n.º 201/86 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 7, tomo II, página 93)] – cfr. Acórdão do STA, de 13/11/2013, proferido no âmbito do processo n.º 0897/13.
Logo, como bem refere a decisão recorrida, não se verifica a violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, prevista no n.º 4 do artigo 268.° da CRP, nem a inconstitucionalidade da norma, por a mesma estar em conformidade com o sistema fiscal. Salientando, ainda, que a tutela jurisdicional efectiva não fica prejudicada, pois a A. pode, após a notificação da liquidação do IVA, deduzir impugnação judicial e questionar todas as ilegalidades e preterições de formalidades essenciais que ocorrerem no processo, nos termos do artigo 99.° do CPPT.
Sustenta, ainda, a Recorrente, que, para não ter o seu património atacado por uma penhora alicerçada num procedimento em que houve flagrante violação de orientações genéricas – cfr. artº.55º, nº3, do CPPT e Circular nº13/99, de 8 de Julho da Direcção Geral dos Impostos – da lei – cfr. artºs.60º da LGT, 60º e 4º, alínea e) do RCPIT e 101º, nº2 do CPA – e também da Constituição – cfr. artº.268º -, terá que prestar uma caução de centenas de milhares de euros, pois os meios de reacção à sua disposição não têm efeito suspensivo.
Note-se que apesar de o tribunal entender que a acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos, aqui utilizada pela Recorrente, não estar à sua disposição, enquanto meio processual de reacção, também ela, através da impugnação do acto em crise, não suspende a eficácia desse acto, uma vez que tem efeito meramente devolutivo (cfr. artigo 50.º do CPTA). Não obstante a Recorrente se ter socorrido de outro meio processual, como evidenciam os autos: providência cautelar tendente à suspensão de eficácia (artigos 36.º, n.º 1, al. e), e 112.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPTA). Contudo, também a providência cautelar obedece a determinados requisitos (cfr. artigo 120.º do CPTA).
Insurge-se a Recorrente contra o entendimento de ter que prestar caução para obter o almejado efeito suspensivo. Defendendo verificar-se inconstitucionalidade, por violação do artigo 268.º da CRP e do princípio da proporcionalidade, do n.º 2 do artigo 66.º da LGT, quando interpretado no sentido de que, ainda que tenha sido feita atempadamente a reclamação ali referida, o contribuinte terá que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artigo 52.º da LGT e artigo 169.º do CPPT, sendo que tal inconstitucionalidade resulta do facto de nosso ordenamento jurídico-tributário não existir norma similar ao já revogado artigo 183.º-A do CPPT.
Ora, as pretensas inconstitucionalidades suscitadas pela Recorrente, respeitam a matéria não apreciada pelo tribunal a quo (inconstitucionalidade da interpretação dada ao nº 2 do artigo 66º da LGT) e a argumentos e factualidade não consentâneos com a realidade do sistema jurídico-tributário (na parte em que entende haver inconstitucionalidade do artigo 54º do CPPT quando interpretado no sentido em que “num procedimento tributário… a decisão que sanciona o Relatório e que dá origem ao nascimento da obrigação de imposto na esfera jurídica do contribuinte, não é passível de impugnação judicial”).
Relembra-se que, in casu, na apreciação da inconstitucionalidade, somente estará em causa o disposto no artigo 204.º da CRP: “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
O juízo de constitucionalidade está em princípio dependente de uma causa; não existe uma acção ou um recurso directo de inconstitucionalidade, pelo que a questão de constitucionalidade só pode surgir a título incidental – incidente de constitucionalidade – a propósito de uma outra questão submetida ao tribunal. É por isso que, geralmente, o juízo de inconstitucionalidade releva apenas para o caso concreto em juízo, não afectando a posição da norma na ordem jurídica.
Desde que considere que uma norma é inconstitucional, o tribunal não pode aplicá-la em nenhuma circunstância. Desaplicada a norma por motivo de inconstitucionalidade, o tribunal deve aplicar a norma que teria que aplicar na ausência da norma julgada inconstitucional.
Quanto ao juízo de constitucionalidade formulado pelo tribunal a quo, no que tange à norma constante do artigo 54.º do CPPT, com a interpretação que lhe foi dada, já referimos mostrar-se acertada a apreciação efectuada na primeira instância; não se vislumbrando que no caso concreto tenha sido aplicada norma inconstitucional.
O facto de ter sido chamada à colação (e, eventualmente, aplicada) a norma prevista no artigo 66.º, n.º 2 da LGT - a reclamação referida no número anterior não suspende o procedimento, mas os interessados podem recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade – só reforça o respeito pelo direito à tutela jurisdicional efectiva.
Apesar de não estar imediata e directamente em causa no caso concreto a necessidade de o contribuinte ter que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artº.52º da LGT e artº.169º do CPPT, sempre se dirá que, no caso de o tribunal vir a considerar o acto administrativo em crise inválido (por violação de lei – preterição do cabal exercício do direito de audição), aquando da impugnação da decisão final (como mencionámos, o acto final é a “liquidação” no caso concreto), a Recorrente terá direito a ser indemnizada por todos os custos incorridos com a prestação e manutenção de garantias, nos termos do disposto no artigo 171.º do CPPT. Este normativo refere-se a garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada, o que, para os seus efeitos, serão consideradas todas as formas de garantia que impliquem para o interessado suportar uma despesa cujo montante vai aumentando em função do período de tempo durante o qual aquela é mantida.
É nossa convicção, ainda, não violar o invocado princípio da proporcionalidade o facto de o contribuinte ter que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artº.52º da LGT e artº.169º do CPPT.
Na verdade, o dever de pagar impostos é um dever geral fundamental dos cidadãos cuja consagração se extrai com nitidez do recorte dos art.ºs 12º n.º 1, 103º e 104º da CRP. E como dever fundamental, ele constitui uma limitação estabelecida pela própria lei fundamental ao direito que entra em confronto negativo com ele, qual seja o direito de propriedade. Aonde chegar o dever fundamental de pagar os impostos que tenham sido criados nos termos da Constituição não existe o direito de salvaguarda do património amputado ao contribuinte. Ora, a prestação da caução não é, por natureza, uma obrigação que esteja a ser exigida ao contribuinte a título de imposto, pois não comparticipa de nenhum dos elementos que são supostos constitucionalmente como enformando tal obrigação – prestação pecuniária, unilateral, definitiva, coactiva, sem carácter sancionatório, exigida para a satisfação das necessidades públicas (Cfr., entre muitos, José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2000, págs. 34; Diogo Leite de Campos e Mónica Horta Neves Leite de Campos, Direito Tributário, 1996, págs. 22). Ela constitui um simples instrumento jurídico que é dado ao contribuinte de poder suspender o processo de cobrança do imposto que lhe foi liquidado em caso da existência de uma controvérsia sobre se esse imposto é ou não legalmente devido, mesmo em parâmetros constitucionais, sediada em juízo ou perante a administração, e enquanto esse litígio não for resolvido. Em vez de uma aplicação do princípio solve et repete, que conduziria a que o contribuinte houvesse de pagar o imposto e discuti-lo depois, recuperando o seu montante em caso de ganho da causa, o legislador ordinário contentou-se com a prestação de uma garantia de boa cobrança futura, procurando evitar que o contribuinte sofra a real amputação do seu património até que esteja definitivamente assente a legalidade da dívida cujo pagamento lhe é exigido e que é por si posta em causa.
Essa é, diga-se contra o defendido pela Recorrente, uma solução que se posta precisamente numa linha de inteiro respeito pelo princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º n.º 2 da CRP. Em vez da exigência do pagamento imediato da dívida apurada concretamente por uma administração executiva, dotada constitucionalmente de poderes constitutivos e de autotutela dos seus actos, mesmo que controvertidos, como decorreria de tal sistema de administração constitucionalmente adoptado, o legislador ordinário procurou restringir ao necessário a possível ofensa ao direito de propriedade, também constitucionalmente reconhecido, cuja existência não é, porém, de presumir em face do sistema de administração, mesmo que dos impostos, constitucional perfilhado. Nesta perspectiva, a exigência por banda administração da prestação de caução pelo contribuinte não é, ao fim e ao cabo, mais do que um instrumento, cuja utilização se mostra cingida apenas ao necessário, da realização, no processo de execução fiscal, do princípio da efectividade da tutela judicial do direito do credor do imposto, pois que por ela este poderá aspirar à efectiva cobrança da dívida, independentemente da qualidade do seu prestador.
A ratio da exigência da caução reside exactamente na obtenção de uma garantia que seja exterior ao próprio património que por constituir a garantia comum dos credores - Cfr. art.º 817º do C. Civil - está afecta ao cumprimento da dívida tributária exequenda. Só a exterioridade da garantia relativamente ao património que está juridicamente afectado ao pagamento da dívida tributária é susceptível de colocar, na perspectiva da efectividade da tutela judicial demandada pelo credor do imposto, os devedores do imposto coercivamente exigido na mesma posição. – Cfr. Acórdão do STA, de 09/10/2002, proferido no âmbito do recurso n.º 896/02.
Conclui-se, assim, que o sistema fiscal acautela cuidadosamente os direitos do contribuinte “com razão”, nas circunstâncias previstas no artigo 53.º da LGT (nomeadamente quando existe erro imputável à Administração Tributária), não havendo desproporcionalidade no facto de o devedor do imposto poder incorrer em elevadas despesas com a prestação de garantia/caução (mesmo muito prolongada no tempo), atento o objectivo de salvaguarda do efectivo pagamento, a final, da dívida tributária e/ou a previsão legal de indemnização (cfr. artigo 171.º do CPPT e artigo 53.º da LGT); não se vislumbrando que a sentença recorrida tenha procedido à aplicação de qualquer norma ferida de inconstitucionalidade.
Assim, a sentença recorrida não padece dos erros que a Recorrente lhe imputa, tendo julgado como é de direito a questão que, na circunstância, se impunha solucionar.
Pelos motivos expostos, improcedem todas as conclusões das alegações do recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Conclusões/Sumário

I - Por força do princípio da impugnação unitária, plasmado no artigo 54.º do CPPT, só é possível, em princípio, impugnar o acto final do procedimento tributário, dado que só esse acto atinge ou lesa, de forma imediata, a esfera jurídica do contribuinte.
II - O acto de fixação do rendimento tributável, com recurso a correcções aritméticas, não representa a prática de um acto imediatamente lesivo, por não ser susceptível de provocar efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica do contribuinte.
III – A norma ínsita no artigo 54.º do CPPT, quando interpretada no sentido de obstar à impugnabilidade do acto de fixação do rendimento tributável, não contende com os princípios constitucionais constantes do artigo 18.º conjugado com o disposto no artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, maxime no que se refere ao direito à tutela jurisdicional efectiva, já que o artigo 54º do CPPT prevê expressamente a impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos interlocutórios.
IV – A norma ínsita no artigo 66.º, n.º 2 da LGT, quando interpretada no sentido de que, ainda que tenha sido feita atempadamente a reclamação ali referida, o contribuinte terá que prestar caução nos termos e para os efeitos previstos no artigo.52.º da LGT e artigo 169.º do CPPT, não enferma de inconstitucionalidade resultante do facto de no nosso ordenamento jurídico-tributário não existir norma similar ao já revogado artigo 183.º-A do CPPT, nem contende com os princípios constitucionais vertidos no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente, com o princípio da proporcionalidade, já que se mantém a previsão legal constante dos artigos 53.º da LGT e 171.º do CPPT.

IV - Decisão

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.

Porto, 16 de Outubro de 2014
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Fernanda Esteves