Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00425/06.8BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/13/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR ATO MÉDICO- VÍCIO DA DEFICIÊNCIA NO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO:
-“WRONGFULL BIRTH”- “FAUTE DE SERVICE”.
Sumário:I- Os factos essenciais apenas podem ser julgados provados ou não provados na sentença, desde que tenham sido alegados pelas partes nos respetivos articulados.

II- O conteúdo da decisão quanto ao julgamento de facto é excessivo sempre que envolva a consideração de factos essenciais para a integração da causa de pedir ou das exceções ( art.º 5.º, n.º1 do CPC) ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5.º, n.º2 do CPC, cumprindo, nesses casos, à 2.ª Instância, suprir esse excesso mediante a eliminação de tais factos do elenco dos factos provados ou não provados na sentença recorrida.

III-Caso se verifique que o Tribunal a quo, em relação a alguns dos factos essenciais integrativos da causa de pedir alegados pelos AA. na petição inicial incorreu no vício da omissão, no sentido de não os ter julgado como provados, nem sequer como não provados, conforme lhe era imposto pelos artigos 5.º e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, cuja relevância seja inegável face ao objeto do recurso, só poderá concluir-se que incorreu no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto.

IV- Em ação de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais assente em responsabilidade médica, por atos clínicos e/ou cirúrgicos praticados ou omitidos em estabelecimento do SNS, na vigência do DL n.º 48.051, de 21/11/1967, incumbe ao demandante/autor alegar e provar factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, ou seja: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.

V- Nas ações que a doutrina denomina como nascimento não desejado ou “wrongfull birth”, a causa de pedir pressupõe a existência de um erro de diagnóstico do médico/clínica o qual impediu a mãe de optar por uma decisão esclarecida sobre a eventual interrupção da gravidez e a existência de danos derivados causalmente dessa omissão.

VI- Na presente ação, para se aferir do requisito da ilicitude em relação ao 1.º Réu era necessário que, no caso, os AA. tivessem alegado e provado factos com poder persuasivo bastante para num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso verificado com o nascimento da sua filha com Síndrome de Down foi antecedido de comportamentos clínicos daquele praticados ou omitidos com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado, próprios da atividade médica, no momento em que foram prestados ou omitidos.

VII- Tendo os AA. na respetiva petição inicial alegado apenas como fundamento para o pedido indemnizatório a atuação individual, ilícita e culposa do 1.º Réu, que reputaram como violadora da legis artis, advogando que nas circunstâncias verificadas se impunha ao 1.º Réu que tivesse determinado a sujeição da A. ao exame de diagnóstico/ amniocentese, e não tendo alegado qualquer outro fundamento para a sua pretensão indemnizatória, designadamente, o mau funcionamento dos serviços que integram o 2.º Réu, o Tribunal a quo não podia ter condenado o 2.º Réu com fundamento na “faute de service”.

VIII- Ao conhecer do anormal funcionamento dos serviços com base em factos essenciais não alegados na p.i., e ao condenar o 2.º Réu com fundamento nessa causa de pedir (faute de service), o Tribunal a quo conheceu de questão - causa de pedir - não alegada pelos AA. e de que não lhe era permitido conhecer oficiosamente, com o que violou frontalmente os princípios do dispositivo e do contraditório, incorrendo, nessa parte, no vício da nulidade da sentença recorrida, nos termos da al. d), n.º1 do art.º 615.º, art.º 5.º, n.º1 e 609.º, n.º1 do CPC.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso subordinado e conceder provimento ao recurso principal.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:

I.RELATÓRIO

1.1. JA... e mulher CM..., por si e na qualidade de legais representantes de FM..., de 22 meses de idade, aqueles contribuintes n.º (…) e n.º (…), residentes no lugar dos (…), intentaram junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a presente ação administrativa comum, contra (i) AD..., médico de Medicina Geral e Familiar, com morada profissional no Centro de Saúde (...) (extensão de saúde de (...)) e (ii) CENTRO DE SAÚDE (…) (extensão de (...)) ,entretanto substituído pela ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO NORTE, pedindo condenação solidária dos Réus:
(i) a pagar à sua representada FM..., a quantia de 180.000,00€ pelos danos patrimoniais sofridos, presentes e futuros, decorrente da sua incapacidade total de 100% para toda a vida e para qualquer trabalho, em resultado do seu nascimento com síndrome de Down, e a quantia de 50.000,00€, a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação.
(ii) a pagar a cada um dos coautores marido e mulher, a quantia de 40.000,00€, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, presente e futuros, resultantes do nascimento da filha de ambos com síndrome de Down, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação;
(iii) a pagar aos autores marido e mulher, a quantia de 70.000,00€, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos alegados no artigo 37.º da p.i., presentes e futuros, resultantes do nascimento da filha de ambos com síndrome de Down, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação;
(iv) a pagar as custas, procuradoria e o mais legal.
Para tanto alegam, em síntese, que no dia 01 de maio de 2004, nasceu com vida FM..., do sexo feminino, filha de ambos, com síndrome de Down e cuja gravidez não foi voluntariamente interrompida, no prazo legal, devido à atuação negligente do 1.º Coreu, médico assistente no Centro de Saúde (...), extensão de (...), (...). Sustentam para tanto, que o médico assistente, perante o resultado da 1.ª ecografia realizada no Hospital de (...), em 2003/11/06, em cujo relatório a analista Dra. JD... escreveu que «Deve ser efetuado rastreio bioquímico do 1.º trimestre em centro credenciado para o efeito com doseamento de PAPP-A e l. (liquido) fetal proteico no ventre materno», em consequência de se ter verificado que há “ translucência da Nuca: 3,1mm”, e pese embora tenha sido indicada a realização do rastreio bioquímico, que o 1.º Réu providenciou, com resultado negativo, mas em cujo relatório se afirmava que «um rastreio negativo não exclui a possibilidade de Síndrome de Down», o referido médico assistente devia ter pedido a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnóstica, o que não fez, assim violando todas as regras de arte médica em ordem a prevenir efetivamente a doença Síndrome de Down e uma opção dos futuros pais.
Como tal, consideram que o direito à interrupção voluntária da gravidez foi-lhes vedado por culpa exclusiva do médico assistente, que violou gravemente os deveres de médico pelo desconhecimento das artes médicas aplicadas ao caso vertente, pois que, sabendo dos graves riscos de a nascitura vir a nascer com a doença de Síndrome de Down, conformou-se com esse resultado, nada fazendo para o contrariar. E tudo, não obstante os AA., na semana de 06 de novembro de 2003, isto é, com 12 semanas de gravidez, terem exposto ao médico assistente a vontade inequívoca de interrupção voluntaria da gravidez, tendo-se o mesmo negado a colaborar com os AA., recusando o internamento da A. mulher para que pudesse interromper voluntariamente a sua gravidez.
Em suma, perante o resultado dos exames realizados, o médico - assistente, no imediato, devia pedir a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnostica, o que não fez, violando todas as regras da arte médica, em ordem a prevenir efetivamente a doença Síndrome de Down e uma opção dos futuros pais.
Em consequência desta omissão dos deveres de cuidado médico, a FM... nunca será uma pessoa autónoma, mas a necessitar, durante toda a sua vida, de terceiras pessoas, (pais ou outrem) que a assistam médica, nutritiva, higiene, física, educativa ou socialmente, padecendo de dores incalculáveis que não podem ser contabilizadas, face à sua doença de malformação congénita, com necessidade de ser medicada durante toda a vida.
1.2. Citado, o Réu AD..., contestou defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção dilatória da ineptidão da petição inicial e a sua ilegitimidade.

Impugnou parte dos factos alegados pelos Autores, sustentando que a vigilância da parturiente e Autora iniciou-se em 02/10/2003, no Centro de Saúde (...), na extensão de (...) e o risco obstétrico foi avaliado às oito semanas de gestação, pela aplicação do critério de Goodwin, sendo o mesmo classificado de baixo risco.
Que era médico assistente não só da parturiente, como da família desta, desde 1985, tendo assistido clinicamente as três gravidezes normais de uma irmã e da co- A. mulher e os membros da família da A. continuam a depositar no Réu, confiança e não conhece no seio da família qualquer caso de malformação congénita e que não conhece o Autor.
Que nunca lhe foi referido qualquer problema congénito ou outro na família do cônjuge da parturiente e que foram por si solicitados os exames preconizados pela Direção Geral dos Cuidados de Saúde Primários para o 1º semestre de gravidez, análises e ecografia.
Os resultados analíticos foram normais e o exame ecográfico apresentou valores normais nos vários itens em consideração, seja na frequência cardíaca, seja no comprimento de Crânio-Caudal da placenta, não tendo sido observados sinais diretos de eventuais anomalias fetais.
Que, todavia, em resultado da translucência da nuca (espessura da quantidade de líquido acumulado, atrás da nuca do feto), a médica especialista do setor de ecografia do serviço de obstetrícia do Hospital de (...), sugeriu o rastreio bioquímico do 1º semestre, mas não sugeriu amniocentese.
Que tendo o resultado do Laboratório de Genética e Diagnóstico Pré-Natal, do prof. Doutor SC..., que reviu esse rastreio, sido negativo e não havendo no historial clínico da grávida qualquer outra razão ou risco como a idade gestacional e materna, a etnia e peso da mãe, a presença de diabetes, o consumo de tabaco, entre outros, não se justificaria, na altura e face ao caso, a amniocentese.
Quanto à possibilidade de a Autora vir a realizar a interrupção voluntária da gravidez, de tal nunca falaram os Autores nas consultas e nem existiam seguros motivos para prever a existência de malformações congénitas, nem os Autores clarificaram ainda haver sido essa a sua vontade, nem em 06 de novembro de 2003, os Autores expuseram essa vontade ao 1ª Réu, porquanto, nessa altura, ainda não havia elementos para o efeito e mesmo que fosse essa a sua vontade, tal não seria permitido à luz do disposto no artigo 142.º, n.º 1, al. c) do Código Penal.
Que em 10/01/2014, a grávida realizou ecografia que não juntou aos autos e na qual o nascituro tinha 22 semanas e não foram encontradas ou apontadas pelo especialista em causa quaisquer problemas nos vários itens em ponderação
E até às 24 semanas – momento até quando podia, legalmente, ocorrer a IVG, o Réu tinha em seu poder uma avaliação clínica de baixo risco, um rastreio bioquímico (englobando ecografia do 1º semestre) negativo e uma ecografia de 2º trimestre normal.
Em 10/03/2004, quando o nascituro tinha a idade ecográfica de 29 semanas e 5 dias, novo exame deste tipo foi realizado no Departamento de Imagiologia do Hospital da (...) de (...), cujos resultados foram normais – com “Gestação favorável e compatível com as semanas de amenorreia”.
E no item anatomia fetal (cabeça), há uma chamada de atenção para uma “certa deformidade da região anterior do ovoide”, o que não é indicativo ou conclusivo quanto ao Síndrome de Down.
E esse Síndrome apenas foi detetado após o nascimento da FM..., quando na unidade de Citogenética, onde deu entrada no dia 04/05/2004, foi realizado o exame a que se refere o documento n.º 4 junto com a petição inicial, o que também não foi verificável à nascença, mas sim à posteriori, no serviço de Neonatologia, onde deu entrada após o parto ocorrido em 01 de maio de 2014 por “Problemas de alimentação no recém-nascido” e foi “internado por dificuldades em mamar.”
E nesse serviço, as fácies com estigmas de síndrome de Down, com fendas palpebrais características, implantação baixa dos pavilhões auriculares, nariz pequeno e pescoço curto foram detetadas, mas não é associada à sintomatologia que define Trissomia 21.
Conclui que teve atuação com diligência e zelo a que estava obrigado, agindo segundo as regras da legis artis e os conhecimentos científicos e meios de diagnóstico ao seu alcance e então existentes.
Requereu a intervenção da AP---, SA, com quem celebrou contrato de seguro de responsabilidade civil, com a apólice de seguro n.º 0084.07.125800.
Conclui pela improcedência da presente ação.
1.3. Citado, o Réu Centro de Saúde (...), apresentou contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção, alega a falta de personalidade judiciária para ser demandado como Ré na presente ação, por se encontrar integrado na Administração Regional de Saúde do Norte, dependendo administrativa, financeira e juridicamente do Conselho de Administração Regional de Saúde do Norte.
Por impugnação, sustenta, em suma, que a IVG, a ser realizada no contexto legal do Serviço Nacional de Saúde, teria de observar os requisitos estabelecidos, designadamente na Portaria n.º 189/96, de 21/03, o que no caso não ocorreu, não tendo, assim, omitido o médico assistente e 1º Réu o “atestado médico” exigível e nem a Autora Mãe, emitiu o necessário consentimento por escrito.
O que não obsta a que os Autores tomassem a iniciativa de, por si próprios, munidos dos documentos que agora exibem, pudessem procurar ajuda médica hospitalar, ou clínica, que consumasse o que agora apresentam como dados tão firmes e consistentes quanto à agora diagnosticada malformação congénita da FM....
E quando os Autores souberam do teor do resultado da 1ª ecografia e do exame realizado pelo Prof. SC..., do Porto, podiam por si próprios e sem dependerem do médico do SNS, procurar realizar o “rastreio bioquímico” ali aconselhado, com a informação que detinham dos antecedentes genéticos da família e a tal deviam ser aconselhados os Autores pela médica Dr.ª JB... e se assim o entendessem, mesmo perante outros médicos declarar que desejavam interromper a gravidez.
Também a amniocentese teria que ser realizada em hospital de especialidade, mediante os respetivos pressupostos, o que no caso estava comprometido, porque os Autores não revelaram a verdadeira história genética familiar do lado paterno. Os próprios Autores admitem na sua petição, artigo 36.º, que a situação ocorreu, porque um dia, um médico radiologista não fez o seu serviço corretamente.
E os Autores insistem no facto de a ecografia de 2004/03/10 realizada pelo Dr. RM... ter alcançado o diagnóstico correto, mas tardio, por relação a um outro que não se mostra claro e ecografias são recomendadas pelos médicos do SNS, como foram, mas são realizadas, sob convenção, pelos médicos do setor privado e em face do que conclui não existir qualquer omissão do SNS e em particular o médico 1º Réu.
E o 1ª Réu pediu todos os exames estabelecidos pela Direção Geral dos Cuidados de Saúde Primários para o primeiro trimestre de gravidez, incluindo análises e ecografia, que nada indicam que devesse determinar outras indicações ou exames senão os que foram determinados e a amniocentese, como método de diagnóstico pré-natal invasivo, não deve determinar-se senão quando se verifiquem os pressupostos que no caso não ocorriam.
Que a Autora às 12 semanas de gestação não requereu a IVG como forma de evitar o nascimento da filha quando só às 30 semanas de gestação se detetou a malformação e não estava ao alcance dos Réus controlar o atingimento do limite legal máximo de realização de uma IVG e que poderia ter sido realizada se os Autores o desejassem, ainda que em violação das regras penais, em interrupção da sequência causal do facto “gravidez” por relação ao dano “nascimento com deficiência”.
E nenhum nexo causal existe entre a ação e ou omissão do 1º Réu e aquele desfecho danoso e a verificar-se, sempre seria provocado pela deficiente execução dos exames ecográficos e nunca pela deficiente avaliação dos exames pelo médico de clínica geral.
1.4. Os Autores replicaram, concluindo pela improcedência das exceções invocadas pelos Réus.
1.5. Em 22/09/2008, realizou-se audiência preliminar, na qual foi determinado que a presente ação passasse a seguir com o primeiro Réu, AD... e na posição do Centro de Saúde, passasse a estar a Administração Regional de Saúde do Norte, IP.
Admitiu-se a intervenção a título acessório da Companhia de Seguros AP---, SA, nos termos requeridos pelo primeiro Réu na sua contestação.
1.6. Citada, a AP---, Companhia de Seguros, SA, apresentou contestação, alegando, em suma, que celebrou com o primeiro Réu um contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0084.07.125800, pelo qual garantiu a responsabilidade civil do tomador do seguro inerente à profissão de médico de medicina geral e familiar até ao montante de € 150.000,00, com franquia de 10%.
Adere ao alegado pelo 1º Réu, e alegou que através da ação ordinária que corre termos pelo Tribunal Judicial de (...) sob o nº 1044/05.1TBVVD, os autores imputam ao Hospital da (...) de (...) e ao médico Radiologista Dr. RP..., a culpa pela ocorrência dos mesmos factos alegados na petição inicial dos presentes autos.
Pugna pela improcedência da presente ação.
1.7. Em face da notícia da existência de ação a correr termos no Tribunal Judicial de (...), e após obtenção e informação sobre o estado daqueles autos, foi determinada a suspensão da instância nos presentes autos.
1.8. Em 17/06/2015, foi junta aos autos certidão da sentença proferida no processo que correu termos no Tribunal Judicial de (...) e em 18/09/2015, certidão do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que decidiu o recurso interposto daquela sentença.
Por Despacho de 16/11/2015, foi ordenada a cessação da suspensão dos presentes autos.
1.9. Em 28/01/2016, realizou-se audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, julgaram-se improcedentes as exceções invocadas, e fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova.
1.10. Os AA. requereram a realização de exame médico legal colegial na pessoa da autora FM... – a realizar pelo IML Gabinete Médico Legal de Braga.
A Ré ARS requereu a realização de perícia colegial e indicou o seu perito.
1.11. Por Despacho de 11/10/2016, determinou-se a realização de perícia pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do (...) do Instituto Nacional de Medicina Legal, cujo relatório foi junto aos autos em 09/12/2016.
1.12. Em face das recomendações do relatório pericial que antecede, por Despacho de 21/02/2017, foi determinado que o Gabinete Médico Legal procedesse às diligências necessárias com vista à satisfação de tais recomendações.
1.13. Em 29/05/2017, foi junto aos autos o Parecer pericial do Gabinete Médico Legal de obstetrícia e ginecologia, no qual, para além do mais são solicitados elementos adicionais.
1.14. Por Despacho de 28/05/2018, foi ordenada a remessa dos elementos adicionais ao Gabinete Médico Legal e em 20/02/2019, foi junto o parecer final.
1.15. Em 10/08/2021, foi proferida sentença, contendo essa sentença o julgamento de facto e de direito, onde se julgou parcialmente procedente a presente ação, a qual consta da seguinte parte dispositiva:
«Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, em consequência:
1. Condeno a Ré ARS do Norte a pagar aos Autores as seguintes quantias:
a) A cada um dos Autores Pai e Mãe, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento;
b) À Autora filha, a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento;
c) À Autora filha, a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento;
d) A quantia a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais resultantes da perda de rendimento suportadas pelos Autores Pai e Mãe, nos termos do artigo 358.º, n.º 2 e ss. e 609.º, n.º 2 do Código do Processo Civil;
As custas são suportadas pelos Autores e pela Ré ARS do Norte, no respetivo decaimento, e no que aos Autores respeita, em face da diferença do peticionado a título de danos não patrimoniais e o efetivamente concedido – artigo 527.º do CPC e artigo 26.º, do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do Apoio Judiciário de que beneficia a Autora.
Registe e notifique.»
1.16. Inconformada com o assim decidido, a ARSN interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

«QUANTO À MATÉRIA DO FUNCIONAMENTO ANORMAL DOS SERVIÇOS

Estando judicialmente estabelecida a autoria dos atos médicos, os realizados, indicados, bem como determinadas as circunstâncias de lugar e de tempo, num Serviço de Cuidados de Saúde Primários, num centro de saúde, não pode operar-se a subsunção da matéria de facto e, por conseguinte, do respetivo objeto da instância ao fundamento de um «anormal funcionamento de serviço» de saúde;

E quando a ação se acha instaurada tendo como causa de pedir, complexa, inerente a este tipo de responsabilidade, com base em «grave negligência» médica imputável a médico agente identificado dos atos médicos, e, por consequência, à Administração não pode o Tribunal desviar-se da responsabilidade por imputação subjetiva, com apreciação dos vários pressupostos em que a mesma se decompõe, muito menos invadir outros campos de hipotética responsabilidade;

E extrai-se linearmente do teor dos artigos 24º e 33 da petição inicial a imputação que visa caracterizar a ação médica como de negligência grosseira e de má atuação por parte do réu médico, sem invocação de qualquer outro fundamento;

A doutrina e a jurisprudência analisam a ‘responsabilidade objetiva’ constituída pela denominada «faute du service» ou de “funcionamento anormal dos serviços” em termos que não consentem a verificação de tal fundamento quanto a um serviço que no ano de 2003 não tinha completamente implementada uma rede de articulação entre a ação hospitalar especializada e os cuidados de saúde primários;

Ao ter acolhido esta via de fundamentação do sentido decisório, desviou-se a douta sentença do sentido acolhido pelas normas dos artigos 265º/1 e 609º/1 do CPC que ficam assim frontal e diretamente violadas (a causa de pedir só pode ser alterada mediante regras precisas e a sentença não pode desviar-se do objeto da causa);

A condenação com fundamento no funcionamento anormal do serviço pretere o contraditório, impedindo a ré de questionar matérias como por exemplo «identificar essas regras da «rede de apoio» e de articulação entre as Unidades de cuidados de saúde primários (os Centros de Saúde e as suas extensões), impulsos, repartição de competências, referenciação (quem encaminha para que Serviço), tempos, atribuição da indicação para a observância das recomendações da Direção Geral de Saúde quanto ao acompanhamento das situações de gravidez)»

Está a douta sentença recorrida afetada da contradição intrínseca de seguir o fundamento da «faute du service» ou funcionamento anormal do serviço e a imputação subjetiva ao réu médico interveniente no encaminhamento da grávida;
QUANTO À MATÉRIA DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA

Inexiste, devidamente identificada na sua fonte, estabelecida validamente pelo Tribunal, de fonte colegial idónea, uma “lex artis” a que o médico de medicina geral estivesse obrigado de referenciar a grávida para a realização de um exame de diagnóstico pré-natal (DPN) de amniocentese, por tal não se achar estabelecido nem haver indicações para o efeito;

A amniocentese, enquanto exame de DPN, especializado, como se extrai do Despacho nº 5411/97 e se mostra razoável, obedece a um regime próprio e constitui um ato médico especializado a prescrever por médico especialista;

Ainda assim, nada impunha que o médico de medicina geral devesse suspeitar de um rastreio bioquímico que deu resultado negativo orientando a grávida como se fosse positivo, por se poder considerar que ocorrem «falsos negativos»
10ª
A articulação entre os sucessivos atos médicos de acompanhamento da grávida começa pela própria grávida quando escolhe realizar a 1ª ecografia, do 1º trimestre, a do 2º trimestre e a última, do 3º trimestre, todas sob indicação do réu médico, em locais e perante profissionais diferentes, especialistas, ecografistas,
11ª
Nem se mostra devidamente densificado a invocada violação do dever de cuidado, fora do dever de informar: a grávida realizou todos os exames ecográficos standard previstos pela D-GS como sejam as 3 ecografias de seguimento, nos tempos próprios, bem como o rastreio bioquímico indicado pela médica obstetra, que deu resultado negativo, não sendo à época exigível antecipar que pudesse ser um «falso negativo» e agir como se fosse positivo;
12ª
Quando por relação à fixação e estabelecimento das ““legis artis”” ocorra haver diferenças de intervenções de médicos e serviços, incluindo contradições entre «fontes» mostra-se exigível uma fundamentação judicial para a opção tomada;
13ª
A imputada preterição do dever de informar não constitui causa adequada do dano físico ocorrido, por apenas repercutir sobre a lesão do direito à autonomia do doente, à autodeterminação em cuidados de saúde; a que acresce não ocorrer um facto cuja prova sempre se exigiria, para uma causalidade indireta – entre a omissão da informação e o dano da vida com deficiência – que era a demonstração de uma vontade de interromper a gravidez, o que não ocorre, como o reconhece a douta sentença no passo relativo aos factos não provados (página 66 da sentença);
14º
A falta de informação ao doente nunca é causa adequada do dano físico, mas apenas da autodeterminação da doente em cuidados de saúde, mas entre a invocada falta de informação – estabelecida pela sentença entre a 1ª e a 2ª ecografia – e o nascimento da criança com trissomia 21 está a não ocorrência da vontade da grávida de interromper a gravidez, como resulta da prova estabelecida;
15ª
Sendo que, pelo contrário, ficou a grávida esperançada com o resultado da 2ª ecografia;
16ª
E, quanto aos factos, da prova testemunhal da presente instância, mostra-se adequado e necessário considerar também os seguintes:
1º O facto do número 22 dos factos provados, desconsiderado pela douta sentença recorrida; 2º o facto resultante, extraível do depoimento acima transcrito «O médico réu, de medicina geral e familiar, em linha com o facto exarado ao nº 22 dos factos provados, cumpriu integralmente com as exigências de intervenção típicas de um médico de família»; e 3º bem como «O réu médico atuou como o fariam os seus pares do Centro de Saúde (...), extensão de saúde de (...), não se verificando as indicações para a realização da amniocentese nem qualquer ilicitude com a sua não realização», idem;
17ª
Factos, devidamente atendidos porque resultantes de fontes probatórias diretas, produzidas em audiência de discussão e julgamento, conforme transcrições, para as adequadas ponderação e decisão da causa pelo Tribunal ad quem.
18ª
Ao decidir como o fez, sem embargo do seu mérito intrínseco, violou ou desviou-se a douta sentença recorrida da adequada observância das normas dos artigos 265º/1 e 609º/1 do CPC, das normas aplicáveis à responsabilidade civil extracontratual do Estado, abrangendo a Administração Pública da Saúde, vg as dos artigos 2º e 6º do Decreto nº 48.051 de 21 de novembro, interpretados à luz da CRP e do entendimento jurisprudencial, bem como as normas, não obstante a sua natureza, daquele Despacho nº 5411/97, de 8 de julho.
Termos em que, e nos melhores da douta ponderação de V. Exs., na atendibilidade das enunciadas conclusões, e no seu objeto, deve proferir-se acórdão que revogue a decisão recorrida, por falta dos pressupostos da ilicitude quanto à violação das ““legis artis”” ad hoc, e da culpa, julgando improcedente a ação;
Assim se fazendo JUSTIÇA!

1.17. Os Autores recorreram subordinadamente, formulando as seguintes conclusões:

«1. Violaram-se os artigos 562º, 483º e 496º n.º 1 e n.º 3 e 497º n.º 1 todos do Código Civil.
2. Houve violação das “legis artis” por parte do médico AD... consubstanciada na ausência de informação aos Autores nos termos sobreditos. Ou seja, os Autores viram-se privados da informação necessária à eventual realização de exame recomendado para o esclarecimento de dúvidas sobre a existência de síndrome de Down no feto, por forma a que, mediante circunstâncias a ponderar clinicamente, pudessem decidir pelo prosseguimento ou não da gravidez, sendo esta omissão, portanto, o facto ilícito.
3. O que traduz uma conduta culposa, atendendo às concretas circunstâncias do caso e aos conhecimentos médicos de que era suposto ao Réu AD..., enquanto funcionário do Centro de Saúde de (...) e consequentemente da Ré ARS Norte, possuir, porquanto, podia e devia, face à dúvida gerada pelos resultados contraditórios dos dois primeiros exames a que a Autora se submeteu, prever e antecipar a eventual ocorrência de síndrome de Down no feto, como veio a ocorrer, portanto, fazer melhor, designadamente, optar – em tempo – pela realização de exames complementares de diagnóstico.
4. E houve, quanto à violação do dever de cuidado: «De qualquer modo, sendo o médico e serviço disponibilizado pela ARS Norte, é no âmbito da prestação de cuidados de saúde públicos que tal atuação ocorre e, em primeira linha, a omissão em causa imputável ao Réu AD... como omissão ilícita e culposa que ocorreu neste caso como condição do dano. E a violação das “legis artis”, no presente caso era evitável, ou seja, os serviços do réu poderiam ter agido de outro modo (ter optado por esclarecer os Autores quanto às dúvidas geradas pelos exames realizados e do exame complementar que poderia a grávida realizar, a amniocentese, com os riscos daí advenientes e, perante tais esclarecimentos, em primeiro lugar, serem os Autores a decidir ou não pela realização do exame e, depois, decidir quanto ao prosseguimento da gravidez) e, portanto, o comportamento ilícito é, no presente caso, censurável. Com efeito, da circunstância de ter havido ilicitude decorre a violação do dever objetivo de cuidado sendo ainda claro que, nas apontadas circunstâncias, os serviços do réu podiam e deviam ter decidido, pelo menos e se não antes, pela possibilidade de realização do exame aquando do rastreio bioquímico, ou então antes, com a primeira ecografia».
5. Pelo que o médico AD... no exercício da atividade médica e atenta esta e sua relação profissional com a aqui recorrente estava obrigado a elidir a presunção de culpa que pesava sobre o mesmo, quer quanto à obrigação de meios quer quanto á obrigação de resultados, como a falta de informação não fornecida, ao médico radiologista RP..., aquando da realização da ecografia das 22 semanas.
6. Pelo que sempre deveria ter sido condenado, solidariamente com a recorrente, pela omissão dos deveres de cuidado que perpetrou, e que constituíram uma violação das legis artis médicas mostrando-se preenchidos, os requisitos da ilicitude, da culpa, do dano, (prejuízos morais para os pais e para a própria nascitura, como os decorrentes do nascimento do feto com malformações congénitas, nomeadamente o Síndrome de down.
7. Sem prejuízo, pois, da efetiva verificação «Nas circunstâncias como nas dos presentes autos, ocorre o manifesto anormal funcionamento do serviço do Réu globalmente considerado como sendo uma situação em que «atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos”. A faute du service pressupõe, portanto, a concorrência de dois elementos distintos: um elemento objetivo que se traduz num comportamento antijurídico de que resulte a violação de direitos ou interesses legalmente protegidos, quando tal comportamento seja imputável ao serviço globalmente considerado e não a um titular de órgão, funcionário ou agente individualizado; um elemento subjetivo que decorre de um juízo de censura que está naturalmente associado à conduta deficiente que é imputada à administração – ou porque existe um comportamento culposo de um titular de órgão, funcionário ou agente que não foi possível identificar; ou porque a produção do facto lesivo resultou de uma atuação culposa global, para que podem ter concorrido vários agentes do mesmo serviço ou agentes de serviços diferentes. A mera culpa caracteriza-se, essencialmente, por o agente não ter usado da diligência que lhe era exigível, cabendo aqui as situações em que o agente prevê a produção do facto ilícito como possível, mas, “por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar” – culpa consciente – bem como as situações em que o agente, “por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão” não chega, sequer, a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua ocorrência caso usasse da diligência devida – negligência consciente.
8. Em suma, a negligência ou mera culpa traduz-se na omissão da diligência ou do dever de cuidado que recai sobre o agente. E mostrando se provado que, pela via da impossibilidade de o Réu AD... poder dispor, como outros centros de saúde do distrito de Braga, de serviço complementar de avaliação e rastreio e, assim, decidir de forma esclarecida e inequívoca pelo melhor caminho, quanto à necessidade ou utilidade de realização de outros exames complementares de diagnóstico, é patente o anormal funcionamento de um serviço de acompanhamento de grávidas no centro de saúde de (...) a que a Autora recorreu, ao não disponibilizar o conjunto de meios absolutamente imprescindíveis ao seu funcionamento”.
9. Aos autores foi negado o direito à informação por comportamento omissivo ilícito e culposo do co- réu AD... que se traduziu na violação do dever objetivo de cuidado a que estava vinculado.
10. O médico AD... no exercício da sua profissão, integrado no Serviço Nacional de Saúde estava obrigado, ao dever de esclarecimento: “O médico deve procurar esclarecer ... a família, acerca dos métodos de diagnóstico ou de terapêutica que pretende realizar”, o que como se comprovou, ele não fez.
11. E como autor de “atos médicos “estava sujeito às “Legis artis ad hoc” consistem em regras, segundo as quais o profissional, neste caso, de saúde se deverá orientar no desenvolvimento da sua atividade e as quais conferem indícios: particularidades da atividade médica, múltiplos fatores que a influenciam; a complexidade de intervenções; a sua relevância em dado momento do tratamento do doente, etc. Entende-se por “legis artis ad hoc medicinae”, a aplicação de regras gerais médicas a casos iguais ou parecidos, com vista a assegurar uma atuação com o cuidado objetivamente devido. Podem ainda ser consideradas como o critério valorativo de correção de um determinado ato médico executado por um profissional de medicina (ciência ou arte médica) que tem em conta as particularidades do seu autor, profissão, complexidade da sua atividade e especialidade, assim como fatores exógenos, como nomeadamente, o estado do paciente, a intervenção potencial dos seus familiares, a organização hospitalar e sanitária, para qualificar, como conforme ou desconforme à técnica exigida, o ato médico em análise (atendendo aos requisitos de legitimação e atuação médica lícita; eficácia do serviço prestado; a eventual responsabilidade do seu autor-médico em resultado da sua intervenção)”.
12. A culpa pela respetiva omissão resultou das declarações de parte/depoimento de parte, do médico AD..., em sede de audiência de discussão e julgamento, ele, independentemente de protocolo, em vigor, entre o Centro de Saúde de (...) e o Serviço Nacional de Saúde, ele assumiu que não acuou, por entender, erradamente, que não o devia fazer, conformando o seu comportamento, em tudo, de que do mesmo adviesse um resultado danoso, o que veio a comprovar-se.
13. Porque entendeu, em novembro de 2003, ilícita e culposamente de que os resultados dos exames: “ecografia das 11 semanas e o resultado do rastreio bioquímico” que lhe foram presentes até àquela data, não o obrigavam a agir de modo diferente, tal como resulta do seu depoimento de parte, e consta na matéria de facto julgada como provada, no ponto 25 e ponto 26, que aqui se aceita e cuja irretratabilidade aqui se invoca para todo o sempre, e não mais poder ser retirada.
14. O médico AD... não é um médico de medicina geral, mas sim um médico da especialidade de medicina geral e familiar, o qual pelo acompanhamento que faz das suas pacientes grávidas tem a obrigação de conhecer e dominar cientificamente, não só todas as técnicas de diagnóstico, para as mesmas, sendo que lhe cabe em especial: Fazer o acompanhamento regular do estado de saúde; Realizar avaliações gerais periódicas da saúde; Recorrer nas situações de doença comuns; Recorrer para avaliação e certificação médica para prática de desporto de lazer; Aconselhar sobre cuidados preventivos, vigilância da saúde e exames a realizar; Aconselhar sobre planeamento familiar; Aconselhar e decidir sobre a necessidade de referenciar para médicos de outras especialidades, de que destacamos, em especial esta última.
15. Pelo que tinha a capacidade e o dever, para em caso de dúvida esclarecer, objetivamente, os pais, pedindo, nomeadamente exames de diagnóstico complementar compatíveis com a situação clínica da grávida.
16. Independentemente tal como a recorrente alega que o protocolo não definia normas ou resultados - padrão, o que aqui se não aceita, uma vez que o resultado padrão, de tais protocolos, existem sempre, na atuação concreta de cada médico e aqui nomeadamente existiam para o médico AD... que não os observou, por se aferirem, segundo as legis artis e determinadas, pela vinculação do agente/órgão administrativo ao princípio da discricionariedade técnica, isto é, há ser a melhor solução, em ordem a evitar o resultado danoso.
17. Assim, o tribunal a quo, decidiu e bem de acordo e numa interpretação atualista e conforme à Constituição da República de 1976, ao direito comunitário e à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, no que tange a aplicação e verificação da responsabilidade civil extracontratual e ao preenchimento dos respetivos pressupostos.
18. In casu, verifica-se uma efetiva faute de service, consubstanciada na violação das legis artis médicas porquanto resultou um prejuízo efetivo para os particulares/utentes do SNS.
19. Por aplicação da Diretiva da Comissão n.º 89/665/CEE2/3”, A jurisprudência do TJUE, determinou no acórdão Francovich as bases do regime da responsabilidade extracontratual do Estado por violação de direito comunitário. Indo ainda mais longe, o TJUE especificou quais os requisitos de que dependia a efetivação da mesma. Há responsabilidade quando:
vii. O resultado estabelecido pela diretiva implica a atribuição de direitos aos particulares;
viii. O conteúdo desses direitos pode ser identificado com base nas disposições da directiva; e
ix. Existe nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelos particulares em causa.
20. E a recorrente por si só, também não atuou, em ordem a responder em termos dos serviços de diagnóstico pré-natal, de modo efetivo, para evitar a ocorrência de prejuízos, para os utentes do serviço nacional de saúde., e consta na matéria de facto julgada como provada, no ponto 33, que aqui se aceita e cuja irretratabilidade aqui se invoca para todo o sempre, e não mais poder ser retirada. in fine do art. 465º n.º 2 do CPC “33. No âmbito da constituição da comissão de diagnóstico pré-natal e com vista a integração num centro de diagnóstico combinado, que funcionaria entre um serviço proposto pelo Hospital de (...), entre outros à Ré ARS Norte, foi proposto que tal serviço se estende a todos os centros de saúde do distrito de Braga, mas não foi implementado, entre outros, no Centro de Saúde de (...), onde a Autora Mãe era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM...”. Sendo que na ação são demandados em solidariedade passiva quer o médico AD... quer a ora recorrente, pelo que sempre a causa de pedir é abrangente ao comportamento omissivo/ativo da recorrente e dos seus agentes/órgãos administrativos.
21. A causa de pedir e o pedido de condenação feito pelos autores apresenta-se pois de modo dinâmico e enxertado nas relações funcionais existentes entre o médico e a ARSN. S.A.
22. O encaixe que os autores fizeram dos factos não impede a interpretação jurídica que o tribunal veio a prolatar, na sua decisão como é o vertente caso.
23. A decisão do tribunal a quo ao condenar a ARSN, S.A. tal como o fez, imputando-lhe a responsabilidade civil pelo risco adveniente da sua atividade, ao nível do SNS, não sofre de qualquer reparo a este nível, tanto mais que face ao pedido de condenação solidário a recorrente sempre poderá exercer um qualquer direito de regresso que entenda por bem acionar.
24. A recorrente é responsável, solidariamente, dado o pedido de condenação do médico AD....
25. Devem ser condenados a ARSN SA., e o recorrido AD... a pagar a cada um dos autores marido e esposa no montante de 40 000, 00 € e à autora Filipa Manuel deve ser pago o montante de €= 50 000, 00.
26. Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e condenar-se solidariamente a aqui recorrida Administração Regional de Saúde Norte, S. A. e o recorrido AD... de modo solidário, nos montantes e modos determinados na sentença e em função da respetiva culpa, e ainda condenarem-se solidariamente, no pagamento a cada um dos autores marido e esposa no montante de 40 000, 00 € e à autora Filipa Manuel deve ser pago o montante de €= 50 000, 00, mantendo-se tudo o mais conforme o já decidido.
Assim farão VOSSAS EXCLÊNCIAS A habitual Justiça
1.18. A interveniente AP---, S.A. contra-alegou no recurso subordinado interposto pelos autores, pugnando pela sua improcedência.
1.19. O Réu AD... contra-alegou no recurso subordinado apresentado pelos Autores, formulando as seguintes Conclusões:
«I- Desde logo, importa realçar que a douta decisão proferida nestes autos não foi objeto de recurso por parte dos AA., por razões que apenas a eles diz respeito mas que necessariamente terá a ver com o facto de se conformarem com o teor da mesma.

II- Acontece que a Ré ARS entendeu interpor recurso daquela douta decisão que lhe era desfavorável, tendo os AA. aproveitado essa situação para, em sede de recurso subordinado, colocar em causa não só, como referem em jeito de introito nas suas alegações, os montantes indemnizatórios atribuídos, mas também, estranhamente, atenta a sua posição inicial, reclamar que haja responsabilidade solidária do R. AD... no pagamento dessa indemnização.

III- Em todo o caso, as presentes (contra)alegações versam não só sobre esta responsabilidade solidária mas sobre toda a douta sentença, na sua globalidade, incidindo sobre a matéria de direito e sobre a matéria de facto e, dentro desta, reapreciando a prova gravada, aproveitando o disposto nos arts. 3 e 4 do art. 144º do CPTA.

IV- Assim sendo, e tendo sempre em consideração as doutas alegações feitas em sede de recurso pela ARS, cujo teor, com a devida vénia, subscrevemos,

V- O recurso subordinado apresentado é explanado sem grande convicção, rectius, sem qualquer convicção e com poucos ou nenhuns argumentos.

VI- Atente-se que os AA. - como poderiam(?!)– nunca falam em dolo, sequer em dolo eventual, sendo pacífico que a responsabilidade do médico R. AD... só podia ou pode ocorrer com base nesse mesmo dolo.

VII- Aliás, os AA. apenas falam expressamente, no que a esse médico R. AD... diz respeito, por diversas vezes, em mera culpa, negligência, concluindo no seu artigo 1º, referindo-se à douta sentença em crise “ … no que tange à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas como a identificada ARS, NORTE, S.A., não cabe da nossa parte qualquer reparo quer a nível da fundamentação de facto, quer a nível da fundamentação jurídica.”.

VIII- E mais referem no artigo 3º: “ Sendo certo que os fundamentos de facto e jurídicos, revelados ao nível da violação das legis artis por motivo da faute de service, estão corretamente ponderados e aplicados pelo Tribunal a quo, sem prejuízo do ora alegado, mostrando-se, igualmente preenchidos os demais pressupostos inerentes à responsabilidade civil extracontratual.”.

IX- Mas também a douta sentença, quer em matéria de facto quer em sede de matéria de direito, não fala nunca em dolo ( mesmo dolo eventual), mas tão só em mera culpa ou mera negligência.

X- Portanto, nem a douta sentença nem os AA. no seu recurso subordinado falam em dolo mas apenas, repete-se, em mera negligência e, assim sendo, a responsabilidade solidária do médico R. AD... nunca por nunca poder-se-ia verificar.

XI- Mas, salvo melhor entendimento, não existe no caso vertente qualquer negligência ou mera culpa nem há qualquer violação das legis artis.

XII- Primeiro, porque para que possamos dizer que há violação das legis artis temos que definir que regra, que norma, que instrumentos, procedimentos comprovados pela ciência médica como os mais adequados foram violados, como muito bem refere a douta sentença quando, no cimo da sua página 72, refere: “A Jurisprudência dos nossos Tribunais tem adotado a doutrina segundo a qual a legis artis, são regras a seguir pelo corpo médico no exercício da medicina, plasmadas em normas escritas, em lei e/ou instrumentos de autorregulação, ou-inclusivamente- em regras são escritas, que correspondem a procedimentos comprovados pela ciência médica como os mais adequados.”.

XIII- Ora, parece pacifico que ao longo deste processo, nomeadamente dos articulados, audiências de julgamento e (contra) alegações, nunca se falou especificamente em normas, escritas ou em leis, muito menos violadas.

XIV- Aliás, só assim é ou seria possível fazer o contraditório, fazer uma análise critica à douta sentença.

XV- Mas compreende-se a dificuldade do Tribunal em verter para a douta sentença esses elementos cruciais, porque da prova junta, seja dos documentos, alguns considerados pelo Tribunal e transcritos para a douta sentença e outros pura e simplesmente por esta descurados, pelos depoimentos das partes ou das testemunhas - alguns dos quais se transcreve supra e se (re)aprecia -, dos depoimentos, dos relatórios periciais, não se vislumbra qualquer violação, como resulta da apreciação que se fez neste recurso, e cujo teor se reproduz integralmente, para os legais efeitos.

XVI- Antes pelo contrário, todo o comportamento do R. AD... foi condizente com as boas práticas médicas da altura ou, se quisermos, com as legis artis,

XVII- O que foi analisado e sindicalizado ao pormenor, por várias vezes ao longo de muitos anos por várias pessoas e entidades, todas convergentes nesse sentido, seja os superiores hierárquicos, IGAS, Colegas da mesma especialidade (médicos de medicina Geral e Familiar), 2 (dois) relatórios periciais e médicos obstetras do Hospital de (…) ( Dr.ª. JD... e Dr. MC...), que colmataram de certa forma algumas dúvidas que aquelas Perícias deixaram em aberto.

XVIII- Em qualquer dos casos, como já se disse, não foi alegado muito menos provado qualquer comportamento doloso por parte do R. médico AD..., pelo que a existir – e já vimos que não existe – apenas poderia haver responsabilidade da ARS Norte, nos termos do art. 2º, nº1 do DL nº 40051 de 21-12-2007,

XIX- e nunca o regime de solidariedade previsto nos arts. 3º nº 2 desse Diploma Legal.

XX- E, nesse particular, muito bem esteve a douta sentença ao decidir em conformidade.

XXI- Na verdade, e ao invés do que defendem os AA., tendo a parturiente recorrido aos serviços do Centro de Saúde de (...) em (...), que integrava o Serviço Nacional de Saúde e que tem por objeto a efetivação por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva previsto nos Estatutos do SNS, previsto no DL. Nº 11/93, o R. AD..., que nele exercia funções como médico de saúde familiar, estava sob a direção, instruções e fiscalização desse mesmo serviço, no exercício de um poder público e sob o domínio de normas de direito público.

XXII- Daí a competência do TAF de Braga a quo e deste Venerando Tribunal ad quem.

XXIII- Assim sendo, atento estes factos e considerações acabadas de referir e aqueloutras insertas no douto recurso interposto pela ARS, deve não só o recurso subordinado interposto pelos AA. ser julgado improcedente, por não provado, mas estas contra alegações e o recurso interposto pela Ré ARS ser julgados provados e procedentes, dando-se a presente ação por totalmente improcedente com os legais efeitos,

Com o que se fará a habitual JUSTIÇA! »

1.20.Os Autores contra-alegaram, formulando as seguintes Conclusões:
«1- Não se violaram os seguintes preceitos os artigos 265º n.º 1 e 609º n.º 1 do CPC, art. 2º n.º 1 do D.L. n.º 48051 de 21/11/1967, por se encontrar tacitamente revogado; violou-se o Art. 493º e o Art. 799º n.º 1 do CC.
2- No que tange à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, como a identificada ARS, NORTE, S.A., não cabe da nossa parte qualquer reparo quer a nível da fundamentação de facto, quer a nível da fundamentação jurídica.
3- Os fundamentos de facto e jurídicos, relevados ao nível da violação das legis artis por motivo da faute de service, estão corretamente ponderados e aplicados pelo tribunal a quo.
4- Houve violação das “legis artis” por parte do médico AD... consubstanciada na ausência de informação aos Autores nos termos sobreditos. Ou seja, os Autores viram-se privados da informação necessária à eventual realização de exame recomendado para o esclarecimento de dúvidas sobre a existência de síndrome de Down no feto, por forma a que, mediante circunstâncias a ponderar clinicamente, pudessem decidir pelo prosseguimento ou não da gravidez, sendo esta omissão, portanto, o facto ilícito.
5- O que traduz uma conduta culposa, atendendo às concretas circunstâncias do caso e aos conhecimentos médicos de que era suposto ao Réu AD..., enquanto funcionário do Centro de Saúde de (...) e consequentemente da Ré ARS Norte, possuir, porquanto, podia e devia, face à dúvida gerada pelos resultados contraditórios dos dois primeiros exames a que a Autora se submeteu, prever e antecipar a eventual ocorrência de síndrome de Down no feto, como veio a ocorrer, portanto, fazer melhor, designadamente, optar – em tempo – pela realização de exames complementares de diagnóstico.
6- E houve, quanto à violação do dever de cuidado: «De qualquer modo, sendo o médico e serviço disponibilizado pela ARS Norte, é no âmbito da prestação de cuidados de saúde públicos que tal atuação ocorre e, em primeira linha, a omissão em causa imputável ao Réu AD... como omissão ilícita e culposa que ocorreu neste caso como condição do dano. E a violação das “legis artis”, no presente caso era evitável, ou seja, os serviços do réu poderiam ter agido de outro modo (ter optado por esclarecer os Autores quanto às dúvidas geradas pelos exames realizados e do exame complementar que poderia a grávida realizar, a amniocentese, com os riscos daí advenientes e, perante tais esclarecimentos, em primeiro lugar, serem os Autores a decidir ou não pela realização do exame e, depois, decidir quanto ao prosseguimento da gravidez) e, portanto, o comportamento ilícito é, no presente caso, censurável. Com efeito, da circunstância de ter havido ilicitude decorre a violação do dever objetivo de cuidado sendo ainda claro que, nas apontadas circunstâncias, os serviços do réu podiam e deviam ter decidido, pelo menos e se não antes, pela possibilidade de realização do exame aquando do rastreio bioquímico, ou então antes, com a primeira ecografia».
7- Pelo que o médico AD... no exercício da atividade médica e atenta esta e sua relação profissional com a aqui recorrente estava obrigado a elidir a presunção de culpa que pesava sobre o mesmo, quer quanto à obrigação de meios quer quanto á obrigação de resultados, como a falta de informação não fornecida, ao médico radiologista RP..., aquando da realização da ecografia das 22 semanas.
8- Pelo que sempre deveria ter sido condenado, solidariamente com a recorrente, pela omissão dos deveres de cuidado que perpetrou, e que constituíram uma violação das legis artis médicas mostrando-se preenchidos, os requisitos da ilicitude, da culpa, do dano, (prejuízos morais para os pais e para a própria nascitura, como os decorrentes do nascimento do feto com malformações congénitas, nomeadamente o Síndrome de Down.
9- Sem prejuízo, pois, da efetiva verificação «Nas circunstâncias como nas dos presentes autos, ocorre o manifesto anormal funcionamento do serviço do Réu globalmente considerado como sendo uma situação em que «atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos”. A faute du service pressupõe, portanto, a concorrência de dois elementos distintos: um elemento objetivo que se traduz num comportamento antijurídico de que resulte a violação de direitos ou interesses legalmente protegidos, quando tal comportamento seja imputável ao serviço globalmente considerado e não a um titular de órgão, funcionário ou agente individualizado; um elemento subjetivo que decorre de um juízo de censura que está naturalmente associado à conduta deficiente que é imputada à administração – ou porque existe um comportamento culposo de um titular de órgão, funcionário ou agente que não foi possível identificar; ou porque a produção do facto lesivo resultou de uma atuação culposa global, para que podem ter concorrido vários agentes do mesmo serviço ou agentes de serviços diferentes. A mera culpa caracteriza-se, essencialmente, por o agente não ter usado da diligência que lhe era exigível, cabendo aqui as situações em que o agente prevê a produção do facto ilícito como possível, mas, “por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar” – culpa consciente – bem como as situações em que o agente, “por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão” não chega, sequer, a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua ocorrência caso usasse da diligência devida - negligência consciente.
10- Em suma, a negligência ou mera culpa traduz-se na omissão da diligência ou do dever de cuidado que recai sobre o agente. E mostrando se provado que, pela via da impossibilidade de o Réu AD... poder dispor, como outros centros de saúde do distrito de Braga, de serviço complementar de avaliação e rastreio e, assim, decidir de forma esclarecida e inequívoca pelo melhor caminho, quanto à necessidade ou utilidade de realização de outros exames complementares de diagnóstico, é patente o anormal funcionamento de um serviço de acompanhamento de grávidas no centro de saúde de (...) a que a Autora recorreu, ao não disponibilizar o conjunto de meios absolutamente imprescindíveis ao seu funcionamento”.
11- Aos autores foi negado o direito à informação por comportamento omissivo ilícito e culposo do corréu AD... que se traduziu na violação do dever objetivo de cuidado a que estava vinculado.
12- O médico AD... no exercício da sua profissão, integrado no Serviço Nacional de Saúde estava obrigado, ao dever de esclarecimento: “O médico deve procurar esclarecer ... a família, acerca dos métodos de diagnóstico ou de terapêutica que pretende realizar”, o que como se comprovou, ele não fez.
13- E como autor de “atos médicos” estava sujeito às “Legis artis ad hoc” consistem em regras, segundo as quais o profissional, neste caso, de saúde se deverá orientar no desenvolvimento da sua atividade e as quais conferem indícios: particularidades da atividade médica, múltiplos fatores que a influenciam; a complexidade de intervenções; a sua relevância em dado momento do tratamento do doente, etc. Entende-se por “legis artis ad hoc medicinae”, a aplicação de regras gerais médicas a casos iguais ou parecidos, com vista a assegurar uma atuação com o cuidado objetivamente devido. Podem ainda ser consideradas como o critério valorativo de correção de um determinado ato médico executado por um profissional de medicina (ciência ou arte médica) que tem em conta as particularidades do seu autor, profissão, complexidade da sua atividade e especialidade, assim como fatores exógenos, como nomeadamente, o estado do paciente, a intervenção potencial dos seus familiares, a organização hospitalar e sanitária, para qualificar, como conforme ou desconforme à técnica exigida, o ato médico em análise (atendendo aos requisitos de legitimação e atuação médica lícita; eficácia do serviço prestado; a eventual responsabilidade do seu autor-médico em resultado da sua intervenção)”.
14- A culpa pela respetiva omissão resultou das declarações de parte/depoimento de parte, do médico AD..., em sede de audiência de discussão e julgamento, ele, independentemente de protocolo, em vigor, entre o Centro de Saúde de (...) e o Serviço Nacional de Saúde, ele assumiu que não atuou, por entender, erradamente, que não o devia fazer, conformando o seu comportamento, em tudo, de que do mesmo adviesse um resultado danoso, o que veio a comprovar-se.
15- Porque entendeu, em Novembro de 2003, ilícita e culposamente de que os resultados dos exames: “ecografia das 11 semanas e o resultado do rastreio bioquímico” que lhe foram presentes até àquela data, não o obrigavam a agir de modo diferente, tal como resulta do seu depoimento de parte, e consta na matéria de facto julgada como provada, no ponto 25 e ponto 26, que aqui se aceita e cuja irretratabilidade aqui se invoca para todo o sempre, e não mais poder ser retirada, in fine do art. 465º n.º 2 do CPC .
16- O médico AD... não é um médico de medicina geral, mas sim um médico da especialidade de medicina geral e familiar, o qual pelo acompanhamento que faz das suas pacientes grávidas tem a obrigação de conhecer e dominar cientificamente, não só todas as técnicas de diagnóstico, para as mesmas, sendo que lhe cabe em especial: Fazer o acompanhamento regular do estado de saúde; Realizar avaliações gerais periódicas da saúde; Recorrer nas situações de doença comuns; Recorrer para avaliação e certificação médica para prática de desporto de lazer; Aconselhar sobre cuidados preventivos, vigilância da saúde e exames a realizar; Aconselhar sobre planeamento familiar; Aconselhar e decidir sobre a necessidade de referenciar para médicos de outras especialidades, de que destacamos, em especial esta última.
17- Pelo que tinha a capacidade e o dever, para em caso de dúvida esclarecer, objetivamente, os pais, pedindo, nomeadamente exames de diagnóstico complementar compatíveis com a situação clínica da grávida.
18- Independentemente tal como a recorrente alega que o protocolo não definia normas ou resultados - padrão, o que aqui se não aceita, uma vez que o resultado padrão, de tais protocolos, existem sempre, na atuação concreta de cada médico e aqui nomeadamente existiam para o médico AD... que não os observou, por se aferirem, segundo as legis artis e determinadas, pela vinculação do agente/órgão administrativo ao princípio da discricionariedade técnica, isto é, há ser a melhor solução, em ordem a evitar o resultado danoso.
19- Assim, o tribunal a quo, decidiu e bem de acordo e numa interpretação atualista e conforme à Constituição da República de 1976, ao direito comunitário e à jurisprudência do Tribunal de justiça da União Europeia, no que tange a aplicação e verificação da responsabilidade civil extracontratual e ao preenchimento dos respetivos pressupostos.
20- In caso, verifica-se uma efetiva faute de service, consubstanciada na violação das legis artis médicas porquanto resultou um prejuízo efetivo para os particulares/utentes do SNS.
21- Por aplicação da Directiva da Comissão n.º 89/665/CEE2/3”, A jurisprudência do TJUE, determinou no acórdão Francovich as bases do regime da responsabilidade extracontratual do Estado por violação de direito comunitário. Indo ainda mais longe, o TJUE especificou quais os requisitos de que dependia a efetivação da mesma. Há responsabilidade quando:
iv.) O resultado estabelecido pela directiva implica a atribuição de direitos aos particulares;
v. O conteúdo desses direitos pode ser identificado com base nas disposições da directiva; e
vi. Existe nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelos particulares em causa.
22- E a recorrente por si só, também não atuou, em ordem a responder em termos dos serviços de diagnóstico pré-natal, de modo efetivo, para evitar a ocorrência de prejuízos, para os utentes do serviço nacional de saúde., e consta na matéria de facto julgada como provada, no ponto 33, que aqui se aceita e cuja irretratabilidade aqui se invoca para todo o sempre, e não mais poder ser retirada. in fine do art. 465º n.º 2 do CPC “33. No âmbito da constituição da comissão de diagnóstico pré-natal e com vista a integração num centro de diagnóstico combinado, que funcionaria entre um serviço proposto pelo Hospital de (...), entre outros à Ré ARS Norte, foi proposto que tal serviço se estende a todos os centros de saúde do distrito de Braga, mas não foi implementado, entre outros, no Centro de Saúde de (...), onde a Autora Mãe era seguida na sua gravidez – c.f.r. depoimento da testemunha JM...”.
23- Inexiste qualquer alteração do objeto do processo e inexiste uma qualquer eventual violação ou nulidade e da alteração da causa de pedir, pois como bem reconhece a recorrente a causa de pedir na ação de responsabilidade civil extracontratual é complexa, por estarmos tão só perante uma interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis.
24- Sendo que na ação são demandados em solidariedade passiva quer o médico AD... quer a ora recorrente, pelo que sempre a causa de pedir é abrangente ao comportamento omissivo/ativo da recorrente e dos seus agentes/órgãos administrativos.
25- A causa de pedir e o pedido de condenação feito pelos autores apresenta-se pois de modo dinâmico e enxertado nas relações funcionais existentes entre o médico e a ARSN. S.A.
26- O encaixe que os autores fizeram dos factos não impede a interpretação jurídica que o tribunal venha a prolatar, na sua decisão como é o vertente caso.
27- A decisão do tribunal a quo ao condenar a ARSN, S.A. tal como o fez, imputando-lhe a responsabilidade civil pelo risco adveniente da sua atividade, ao nível do SNS, não sofre de qualquer reparo a este nível, tanto mais que a recorrente sempre poderá exercer um qualquer direito de regresso que entenda por bem acionar.
28- A recorrente é solidariamente responsável, dado o pedido de condenação do médico AD....
Termos em que e sempre com o mui douto suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS se pede se dignem manter a sentença revidenda, tal como ela foi julgada provada e procedente pelo tribunal a quo, sem prejuízo de, face ao pedido de condenação solidário, condenar o réu AD..., por se mostrarem verificados e preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, por violação, por este, do dever geral de cuidado e do dever especial de cuidado, por parte do médico AD... que se consubstanciou, por si só na violação das legis artis e face ao prejuízo que daí resultou para os particulares/utentes recorridos.
Assim farão VOSSAS EXCLÊNCIAS A habitual Justiça»
1.21. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não se pronunciou sobre o mérito do recurso.
1.22.
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se ao seguinte:
Recurso principal interposto pela apelante ARS:
a- se a sentença recorrida, na parte em que condenou a apelante a satisfazer a indemnização aos apelados, por funcionamento anormal dos serviços é nula, por excesso de pronúncia, ao conhecer de causa de pedir não alegada pelos apelados na petição inicial;
b- se essa sentença padece de erro de julgamento da matéria de facto ao não ter julgado como provado que:
«O médico réu, de medicina geral e familiar, em linha com o facto exarado ao nº 22 dos factos provados, cumpriu integralmente com as exigências de intervenção típicas de um médico de família»; e
«O réu médico atuou como o fariam os seus pares do Centro de Saúde (...), extensão de saúde de (...), não se verificando as indicações para a realização da amniocentese nem qualquer ilicitude com a sua não realização»;
c- se a sentença recorrida padece de erro de direito, impondo-se a sua revogação e absolver a apelante do pedido.
Recurso subordinado dos apelados:
d- se ao absolver o Réu AD... do pedido, a sentença recorrida padece de erro de direito, impondo-se a sua alteração e condenar este Réu e a Ré ARS no pedido indemnizatório arbitrado aos apelados na sentença recorrida.
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III. FUNDAMENTAÇÃOA. DE FACTO
3.1.Com interesse para a apreciação da causa, o Tribunal a quo julgou provada a seguinte facticidade:
«1. No dia 06/11/2003, a Autora Mãe, foi submetida a consulta por gravidez no Centro de Saúde (...) e apresentava 23 anos de idade, nada havendo sido registado quanto a antecedentes pessoais – cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial.
2. A Autora menor, nasceu no dia 01 de maio de 2004 – cfr. doc. n.º 1 junto com a petição inicial.
3. Ao longo do acompanhamento da gravidez da Autora Mãe, foram efetuados os seguintes registos clínicos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. doc. n.º 2, junto com a petição inicial e docs. juntos em 04/02/2016.
4. Em 10/11/2003, submeteu-se a colheita de sangue para análise, da qual resultou o seguinte relatório:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. docs. juntos em 26/06/2020.
5. No ano de 2003, na Maternidade (...), encontrava-se estabelecido o seguinte protocolo para rastreio bioquímico materno de anomalias congénitas:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- Cfr. Docs. juntos pelo 1º Réu em 04/02/2016.
6. No ano de 2005, entre o Hospital de (…) e nos Centros de Saúde da circunscrição, encontrava-se estabelecido o seguinte protocolo de saúde materno e obstetrícia:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- Cfr. docs. juntos em 04/02/2016
7. Em 06/11/2003, a Autora Mãe foi submetida a ecografia de controlo da sua gravidez relativa ao primeiro trimestre, da qual resultou o seguinte relatório:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- Cfr. Doc. n.º 5, junto com a petição inicial
8. Em 18 de novembro de 2003, a Autora Mãe, no âmbito do controlo da sua gravidez, foi submetida a exame de rastreio de síndrome de Down, do qual resultou o seguinte relatório:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Doc. n.º 6 junto com a petição inicial.
9. Em 10 de janeiro de 2004, a Autora Mãe foi submetida a ecografia obstétrica, da qual resultou o seguinte relatório:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Doc. n.º 1 junto com a contestação do 1º Réu.
10. Em 10 de março de 2004, a Autora Mãe foi submetida a ecografia obstétrica, da qual resultou o seguinte relatório:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Docs. juntos em 09/03/2016.
11. A Autora menor foi internada no Hospital de (...), após o seu nascimento, em 01 de maio de 2004, com a alta em 07 de maio de 2004, por hipotonia – problemas de alimentação no recém-nascido e do que resultou o seguinte relatório de alta
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. doc. n.º 3, junto com a petição inicial.
12. Em 04 de maio de 2004, à Autora menor foi realizado estudo de culturas sincronizadas de linfócitos, da qual resultou o seguinte relatório:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Doc. n.º 4, junto com a petição inicial.
13. Com data de 09 de outubro de 2008, o Hospital de (...) emitiu o seguinte relatório relativo ao nascimento da Autora menor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Docs. juntos em 18/04/2016.
14. Entre a AP---, SA e o 1.º Réu, AD... , foi celebrado acordo, que denominaram de contrato de seguro, com a apólice n.º 0084.07.125800, pela qual o primeiro Réu transferiu para a Axa, SA, responsabilidade civil resultante da sua atividade de medicina geral e familiar, nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Doc. junto com a contestação do 1º Réu.
15. A Inspeção Geral das Atividades em Saúde, instaurou contra o primeiro Réu AD..., processo disciplinar cujo arquivamento foi determinado por Despacho de 31 de dezembro de 2010 e de cujo relatório resulta, entre o mais, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Docs. juntos em 03/04/2012.
16. Em 04/10/2012, foi proferida sentença no processo que os Autores marido e mulher, haviam instaurado no Tribunal Judicial de (...) e pela qual pretendiam a efetivação de responsabilidade civil extracontratual contra a (...) de (...) e Dr. RM..., em virtude de este último ao realizar ecografia à Autora Mãe com 22 semanas de gestação e não detetou má formação congénita do feto da menor FM... e na qual foi decidida a sua improcedência – cfr. Docs. juntos em 17/06/2015.
17. Da decisão que antecede foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que por seu acórdão de 17 de setembro de 2013, manteve a decisão recorrida – cfr. Docs. juntos em 30/09/2015.
18. As Autoras Mãe e filha são assistidas medicamente no Centro de Saúde (...), tendo a Autora Mãe apresentado gravidez em consulta realizada em 01/04/2015 – cfr. Docs. juntos em 31/03/2016.
19. Em 02 de dezembro de 2016, o Gabinete Médico-Legal e Forense do (...) emitiu o seguinte relatório da perícia realizada à Autora menor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. fls. 1115 e ss. (SITAF).
20. Em 17 de maio de 2017, o Hospital de São João, emitiu o seguinte parecer pericial no âmbito da especialidade de Obstetrícia e Ginecologia:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. fls. 1201 e ss. (SITAF).
21. Com data de 08 de novembro de 2017, o Conselho Técnico Científico do Instituto Nacional de Medicina Legal emitiu o seguinte relatório de consulta técnico científica:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. Doc. de fls. 1215 e ss. (SITAF).
22. Na sequência do relatório que antecede, foram remetidos ao Conselho Médico Legal, o boletim de saúde de grávida, ficha clínica de grávida e avaliação de risco pré-natal e em face do que, aquele Conselho complementou o seu relatório nos seguintes termos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cfr. fls. 1269 (SITAF).
23. O cálculo de risco de síndrome de Down em sede de rastreio bioquímico a que a Autora Mãe foi submetida, não levou em consideração a deteção de translucência da nuca do feto com 3.1, detetado na primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu – cfr. depoimento de SM....
24. A deteção de translucência da nuca de 3.1 detetada na primeira ecografia de gravidez a que a Autora se submeteu, era motivo de alerta, e com o resultado negativo do rastreio bioquímico, ficaram mais ou menos sossegados e para remoção de dúvidas a amniocentese seria o indicado, mas o resultado do rastreio não deu essa indicação, mas a amniocentese era um risco muito grande e daí não optarem muitas vezes pela amniocentese – cfr. depoimento das testemunhas MJ...e SM....
25. Com o pedido de realização da segunda ecografia à Autora Mãe referente às 20 semanas de gravidez, o Réu AD..., não forneceu os elementos resultantes da primeira ecografia, bem assim, do resultado negativo do rastreio bioquímico – cfr. declarações de parte do Réu AD... e depoimento da testemunha Roberto Pedro Toirac Ramirez.
26. O Réu AD..., em face do resultado da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu, que apresentou translucência da nuca do feto de 3.1 e perante o resultado negativo para síndrome de Down do feto, resultante do rastreio bioquímico, não equacionou a possibilidade de realização de amniocentese, nem informou os Autores Pai e Mãe de tal possibilidade, informando-os dos respetivos riscos – cfr. declarações de parte dos Autores Pai e Mãe e depoimento de parte do Réu AD....
27. Em data não concretamente apurada, o Autor Pai, deslocou-se ao Centro de Saúde de (...) a fim de falar com o Réu AD... – cfr. declarações de parte dos Autores Pai e Mãe e depoimento das testemunhas JM.... e FP....
28. O Réu AD... desempenhou a função de médico de família da Autora Mãe e demais família com ela relacionada – cfr. declarações de partes dos Autores Pai e Mãe.
29. Em face da patologia de que a Autora Menor padece (Síndrome de Down), necessidade de apoio de terceiros para as suas necessidades básicas, nomeadamente acompanhamento quer em casa, quer em saídas para a escola ou outras – cfr. declarações de partes dos Autores pai e Mãe e depoimento das testemunhas AC..., FP..., SM.....
30. A Autora menor frequenta o ensino público, em regime de ensino especial – cfr. declarações de partes dos Autores Pai e Mãe e depoimento das testemunhas AC..., FP..., SM.....
31. Perante a deteção de síndrome de Down com o nascimento da Autora menor, os Autores Pai e Mãe ficaram muito revoltados, tristes e amargurados, com necessidade de adaptar a sua vida a tais circunstâncias – cfr. declarações de partes dos Autores pai e Mãe e depoimento das testemunhas AC..., FP..., SM.....
32. A Autora menor é apontada pelas demais crianças e colegas de escola como pessoa diferente, o que deixa os Pais e demais família angustiados, preocupados e tristes – cfr. declarações de partes dos Autores pai e Mãe e depoimento das testemunhas AC..., FP..., SM.....
33. No âmbito da constituição da comissão de diagnóstico pré-natal e com vista a integração num centro de diagnóstico combinado, que funcionaria entre um serviço proposto pelo Hospital de (...), entre outros à Ré ARS Norte, foi proposto que tal serviço se estende a todos os centros de saúde do distrito de Braga, mas não foi implementado, entre outros, no Centro de Saúde de (...), onde a Autora Mãe era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM....
34. Por falta de resposta atempada da ARS Norte, o serviço identificado no ponto anterior não foi implementado no Centro de Saúde de (...), onde a Autora era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM...
35. O serviço de rastreio pré-natal combinado foi implementado em alguns centros de saúde do distrito de Braga e permitia a realização de diagnósticos e avaliação de exames de forma mais especializada, em ligação com centros de saúde do distrito de Braga – cfr. depoimento da testemunha JM....
Factos não provados:
a) Que em face da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu durante a gravidez, bem assim do resultado negativo do rastreio bioquímico, estivesse, desde logo, na disposição de se submeter a interrupção voluntária da gravidez.
b) Que os Autores Pai e Mãe houvessem manifestado ao Réu AD... vontade expressa e inequívoca de procederem à interrupção voluntária da gravidez, bem assim, a vontade expressa e inequívoca de a Autora Mãe se submeter a exame de amniocentese.
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III.B.DE DIREITO
(i) Do Recurso Principal Interposto pela ARS Norte
b.1. Do Erro de Julgamento sobre a Matéria de Facto
A Apelante impugna o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, imputando-lhe o vício da deficiência por, na sua perspetiva, perante a prova produzida, se impor concluir pela prova da seguinte facticidade
1.º “O facto do número 22 dos factos provados, desconsiderado pela douta sentença recorrida”; 2.º “o facto resultante, extraível do depoimento acima transcrito «O médico réu, de medicina geral e familiar, em linha com o facto exarado ao n.º 22 dos factos provados, cumpriu integralmente com as exigências de intervenção típicas de um médico de família»; e,
3.º “ O réu médico atuou como o fariam os seus pares do Centro de Saúde (...), extensão de saúde de (...), não se verificando as indicações para a realização da amniocentese nem qualquer ilicitude com a sua não realização”.
Alega, para tanto, que se trata de factos “resultantes de fontes probatórias diretas, produzidas em audiência de discussão e julgamento, conforme transcrições, para as adequadas ponderação e decisão da causa pelo Tribunal ad quem”.
Precise-se que, em sede de sentença, o Tribunal não tem que julgar como provada ou não provada toda a facticidade alegada pelas partes nos respetivos articulados, mas apenas, conforme decorre do disposto nos artigos 5.º, n.º1 e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, os factos essenciais constitutivos da causa de pedir invocada pelos autores e os factos essenciais em que se baseiam as exceções invocadas pelas partes.
Na sentença, o juiz deverá ainda julgar como provados os factos complementares, ainda que não alegados pelas partes, contanto que os mesmos resultem da instrução da causa e observe quanto aos mesmos o princípio do contraditório (al. b), n.º1, art.º 5.º do CPC); os factos instrumentais, ainda que não alegados, desde que resultem da instrução da causa ( al. a) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC); e, finalmente, deverá julgar como provados os factos notórios e aqueles de que o Tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções (al. c), n.º2 do art.º 5.º do CPC).
Quanto aos factos essenciais integrativos da causa de pedir e das exceções invocadas pelas partes, conforme decorre do que se vem dizendo, sobre as partes impende o ónus da respetiva alegação.
Daí que, os factos essenciais apenas possam ser julgados provados ou não provados na sentença, desde que tenham sido alegados pelas partes nos respetivos articulados, isto é, pelo autor, na petição inicial, no que respeita aos factos essenciais integrativos da causa de pedir em que alicerça o pedido que deduz contra o réu; os factos essenciais constitutivos das exceções deduzidas pelo réu na contestação, tendo em vista impedir, modificar ou extinguir o direito que o autor exercer contra aquele na petição inicial; e os factos essenciais integrativos das contra exceções deduzidas pelo autor na réplica às exceções deduzidas contra aquele na contestação, com vista a impedir, modificar ou extinguir essas exceções.
Por sua vez, impende sobre o tribunal o ónus de julgar como provados e não provados, na sentença, os factos essenciais que tenham sido alegados pelas partes nos respetivos articulados nos termos acabados de enunciar, sob pena de, não o fazendo, incorrer no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto.
No caso presente, os Autores intentaram, por si e em representação da sua filha menor, ação administrativa comum contra o médico de medicina geral e familiar AD... e o Centro de Saúde (...) - Extensão de (...), posteriormente substituído nos autos pela ARSN, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito decorrente de ato médico, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento: (i) à sua representada FM..., da quantia de 180.000,00€ pelos danos patrimoniais sofridos, presentes e futuros, decorrente da sua incapacidade total de 100% para toda a vida e para qualquer trabalho, em resultado do seu nascimento com síndrome de Down e (ii) da quantia de 50.000,00€ a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação; (iii) a cada um dos coautores marido e mulher, da quantia de 40.000,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, presente e futuros, resultantes do nascimento da filha de ambos com síndrome de Down, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação e (iv) da quantia de 70.000,00€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos alegados no artigo 37.º da p.i., presentes e futuros, resultantes do nascimento da filha de ambos com síndrome de Down, acrescidas de juros de mora, a contar desde a data da citação dos Réus para os termos da presente ação;
Para tanto alegam, em síntese que, no dia 01 de maio de 2004, nasceu com vida FM..., de sexo feminino, filha dos autores. A vigilância da parturiente foi iniciada a 02 de outubro de 2003, no Centro de Saúde (...), extensão de (...), (...) pelo médico - assistente Dr. AD..., tendo a autora mulher cumprido todas as formalidades médico-legais que lhe foram solicitadas, durante a sua gravidez, conforme resulta das fotocópias de boletim de saúde da grávida.
Sucede que, após o nascimento da FM... no Hospital Distrital de (...), veio a demonstrar-se que a mesma apresentava “Fácies com estigmas de Síndrome de Down (fendas palpebrais características, implantação baixa dos pavilhões auriculares, nariz pequeno”, tudo conforme melhor consta de fotocópias certificadas de Relatório de alta, emitido pelo serviço de Neonatologia/ Neonat. Geral do Hospital Distrital de (...).
Mais alegaram que a FM... está afetada de uma doença com malformação congénita para toda a vida, que deveria ter sido evitada, face às artes médicas e face ao tempo de gestação, se o médico assistente (o 1.º Réu) não tivesse violado gravemente os deveres de médico pelo desconhecimento das artes médicas aplicadas ao caso vertente, pois sabendo dos graves riscos de a nascitura vir a nascer com a doença de Síndrome de Down, conformou-se com esse resultado, nada fazendo para o contrariar.
Sustentam, para tanto, que a avaliação dos riscos de Síndrome de Down, de acordo com os conhecimentos médicos, técnicos e científicos, deve ser feito no 1.º trimestre da gravidez, entre as 11 e as 13 semanas.
No caso, a primeira ecografia, foi realizada no Hospital Distrital de (...), em 2003/11/06, tendo-se escrito no respetivo relatório que: «Deve ser efetuado rastreio bioquímico do 1.º trimestre em centro credenciado para o efeito com doseamento de PAPP-A e I. (liquido) fetal proteico no ventre materno». Essa observação resulta de na rúbrica achados do dito relatório, se referir que há: “translucência da Nuca: 3,1 mm”, tendo em conta que perante esta situação de “transludência na nuca (TN) superior a 3mm” é de real perigo de malformação congénita da nascitura, e afetação de síndrome de Down.
Nessa sequência, e dado que na família dos AA. existia já um caso deste Síndrome, com uma sobrinha, filha de uma irmã do A. marido, os AA. alegam que expuseram, na semana de 06 de novembro de 2003, isto é, com 12 semanas de gravidez, ao médico assistente (1.º Réu) a vontade inequívoca de interrupção voluntária da gravidez, mas este negou-se a colaborar com os AA., recusando o internamento da A. mulher para que pudesse interromper voluntariamente a sua gravidez.
Asseveram que, pese embora o 1.º Réu tenha ordenado a realização do referido rastreio bioquímico, considerando que o resultado negativo do rastreio bioquímico como se referia no próprio exame “não exclui a possibilidade de Síndrome de Down”, o médico – assistente (1.º Réu), no imediato, devia ter pedido a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnóstica, o que não fez, violando todas as regras da arte médica, em ordem a prevenir efetivamente a doença Síndrome de Down e uma opção dos futuros pais, tanto mais que, nas 12 semanas, e verificados que fossem o diagnóstico positivo da doença ora em causa, aos AA. era dada a possibilidade de em consciência, decidirem pela continuação ou interrupção da gravidez da mãe, no que foram impedidos, tanto mais que, eles se encontravam conscientes do risco, face a outros casos na família do A. Marido, de o nascituro poder nascer, com malformação congénita, sofrendo da síndrome de Down.
E se logo, no primeiro exame ecográfico realizado, a Dr.ª JD... detetara “translucência da nuca”, aconselhando a realização do teste de “rastreio bioquímico “, também a amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação do diagnóstico ou não deveria ter sido inequivocamente mandada realizar.
Alegam ainda que só no exame ecográfico de 2004/03/10, realizada pelo Dr. RM..., no Departamento de Imagiologia do Hospital da Misericórdia de (...), e com a nascitura com idade cronológica de 30 semanas e quatro dias e idade ecográfica: 29 semanas e cinco dias é que o aludido médico produziu o relatório pelo qual concluiu “gestação favorável e compatível com as semanas de amenorreia” e na rúbrica de anatomia fetal assinalou “cabeça: chama a atenção certe deformidade da região anterior ovoide”.
E embora só neste último exame ecográfico, o médico radiologista tivesse detetado a má formação da região anterior do ovoide, a verdade é que tal deveria ter sido detetado muito antes de acordo com as artes médicas, isto é, poderia e deveria tê-lo sido ainda em 2004/01/10, porquanto em tal data, já se observa a implantação baixa dos pavilhões auriculares, que são características físicas e estruturais do nascituro, perfeitamente detetáveis, mensuráveis e localizáveis, no organismo em observação ecográfica.
Os AA., em consciência, poderiam ter optado, por uma interrupção voluntaria da gravidez, que a lei então lhes permitia e tal direito foi-lhes vedado, por culpa exclusiva do médico assistente AD... que violou gravemente os deveres de médico pelo desconhecimento das artes medicas aplicadas ao caso vertente, pois que sabendo dos graves riscos da nascitura vir a nascer, com a doença de Síndrome de Down, conformou-se com esse resultado, nada fazendo, para o contrariar, quando devia ter sujeito a A. a uma amniocentese.
Como consequência direta, necessária e adequada do comportamento de grave negligência médica adotado pelo 1.º Réu, a FM... sofreu danos morais e danos materiais cuja indemnização os AA. reclamam do primeiro e segundo RR., em solidariedade. Reclamam também indemnização pelos danos morais e materiais sofridos por cada um dos autores.
Os Réus impugnaram a versão dos factos apresentada pelos Autores, advogando que não houve nenhuma atuação ilícita e culposa do 1.º Réu, o qual cumpriu a legis artis, tendo adotado a conduta que, em face das concretas circunstâncias do caso, era a esperada que adotasse, não se lhe impondo que tivesse submetido a A. mulher a uma amniocentese, pugnando pela improcedência da ação e pela absolvição dos pedidos formulados contra os mesmos
Decorre do exposto que, a causa de pedir em que os Autores fundamentam o seu pedido indemnizatório contra os Réus alicerça-se na alegação, pelos mesmos, do incumprimento das legis artis por parte do 1.º Réu, médico assistente da A. mulher, traduzidas no facto de, perante o resultado da 1.ª ecografia, em que se detetou uma “TN de 3,1mm”, a circunstância de terem comunicado a esse médico a existência de uma sobrinha do Autor marido que padecia de Síndrome de Down, não só negou aos Autores o pedido que lhe fizeram de interrupção voluntária da gravidez, como perante o resultado negativo do rastreio bioquímico, mas em cujo exame se referia que esse resultado “não exclui a possibilidade de Síndrome de Down”, devia ter imediatamente pedido a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnóstica.
E sendo estes os factos essenciais que os Autores alegam como constitutivos da causa de pedir em que alicerçam os pedidos indemnizatórios, são estes os únicos factos que aqueles terão de provar, como vista a obterem a procedência da sua pretensão indemnizatória (art. 342º, n.º 1 do CC) e são os únicos que o tribunal terá de julgar como provados ou não provados na sentença e não os que a apelante pretende ver aditados aos factos provados naquela, dado que estes são factos meramente impugnatórios.
Assim, ao não julgar como provada ou não provada a facticidade que a apelante pretende ver aditada ao elenco dos factos provados na sentença, a 1ª Instância não incorreu no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto, improcedendo este fundamento de recurso.
b.1.2. Do Vício da Deficiência da Matéria de Facto
Nos termos do artigo 662.º, n.º1 do CPC «A Relação deve alterar a decisão sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Conforme assinala Abrantes Geraldes «A decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.
O conteúdo da decisão pode revelar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais para a integração da causa de pedir ou das exceções (art.º 5.º, n.1), ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5.º, n.º2, al. b).
(…) Outras decisões podem revelar-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.
Verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação.
(…) Pode ainda revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo.
Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes.
Todavia, considerando que a reavaliação da pertinência é feita agora pela Relação, a possibilidade de anulação do julgamento para ampliação da decisão da matéria de facto deve ser encarada com rigor acrescido e reservada para os casos em que se revele indispensável.
Não basta que os factos tenham conexão com algumas das “soluções plausíveis da questão de direito”. Considerando a fase em que agora nos encontramos, a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico em face do objeto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender (…).
Por outro lado, (…) a anulação da decisão da 1.ª instância apenas deve ser decretada se não constarem do processo todos os elementos probatórios relevantes.» - cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, Almedina, págs.291 a 295. (sublinhados e destacados da nossa autoria).
Partindo destes considerandos, caso se verifique que o Tribunal a quo, em relação a alguns dos factos essenciais integrativos da causa de pedir alegados pelos Autores na petição inicial incorreu no vício da omissão, no sentido de não os ter julgado como provados, nem sequer como não provados, conforme lhe era imposto pelo art.º 5.º e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, cuja relevância seja inegável face ao objeto do recurso, só poderá concluir-se que incorreu no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto, vício esse que, como vimos, é do conhecimento oficioso do Tribunal ad quem.
No caso, constitui objeto do recurso principal interposto pela ARS Norte, não só a condenação da mesma, com fundamento no funcionamento anormal do serviço, no pagamento da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo aos Autores, como o segmento dessa sentença na parte em que considera verificada a atuação ilícita e culposa do 1.º Réu, enquanto médico assistente de medicina geral e familiar que acompanhou a Autora durante a sua gravidez.
Ora, perante o objeto do recurso principal e tendo em consideração os factos essenciais alegados pelos Autores na petição inicial integrativos da causa de pedir em que fazem ancorar os seus pedidos indemnizatórios, a circunstância dos Réus, na contestação, se terem defendido por impugnação, lida a sentença sob sindicância prefigura-se-nos que: (i) por um lado, nela, a 1ª Instância deu como provados factos essenciais para a condenação da Recorrente ARS Norte com fundamento em “faute de service” que não foram alegados pelos Autores na petição inicial, onde apenas individualizaram como responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos o 1.º Réu, assentando a causa de pedir que alegaram apenas em factos que imputam individual e exclusivamente ao 1.º Réu; e (ii) por outro lado, omitiu o julgamento em relação a factos essenciais constitutivos da causa de pedir que foram alegados pelos Autores na petição inicial, com o que incorreu no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto.
Vejamos.
Os Autores, na petição inicial, alegaram como factos essenciais da causa de pedir em que ancoram a pretensão indemnizatória, os seguintes factos: (i)o rastreio para a deteção do Síndrome de Down é feito nos primeiros três meses; (ii)perante o resultado da 1.ª ecografia em que se detetou uma “TN de 3,1mm”, os Autores, tendo ainda em conta que existia um caso de Síndrome de Down numa sobrinha do A. marido, pediram ao Réu que interrompesse a gravidez, o que lhes foi negado pelo mesmo; (iii) perante o teor dessa 1.ª ecografia onde se detetou uma “TN de 3,1mm” e considerando que o resultado negativo do rastreio bioquímico como se referia no próprio exame “não exclui a possibilidade de Síndrome de Down”, o 1.º Réu devia imediatamente ter pedido a realização do teste da amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnóstica, o que não fez; (iv) só no exame ecográfico de 2004/03/10, realizado pelo Dr. RM..., no Departamento de Imagiologia do Hospital da Misericórdia de (...), e com a nascitura com idade cronológica de 30 semanas e quatro dias e idade ecográfica: 29 semanas e cinco dias é que o aludido médico produziu o relatório pelo qual concluiu “gestação favorável e compatível com as semanas de amenorreia” e na rúbrica de anatomia fetal assinalou “cabeça: chama a atenção certe deformidade da região anterior ovoide”; (v) a má formação poderia e deveria ter sido detetada ainda em 2004/01/10, porquanto em tal data, já se observa a implantação baixa dos pavilhões auriculares, que são características físicas e estruturais do nascituro, perfeitamente detetáveis, mensuráveis e localizáveis, no organismo em observação ecográfica.
Na fundamentação de facto da sentença recorrida, o Tribunal a quo levou aos factos assentes a seguinte matéria:
«33.No âmbito da constituição da comissão de diagnóstico pré-natal e com vista a integração num centro de diagnóstico combinado, que funcionaria entre um serviço proposto pelo Hospital de (...), entre outros à Ré ARS Norte, foi proposto que tal serviço se estendesse a todos os centros de saúde do distrito de Braga, mas não foi implementado, entre outros, no Centro de Saúde de (...), onde a Autora Mãe era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM....
34.Por falta de resposta atempada da ARS Norte, o serviço identificado no ponto anterior não foi implementado no Centro de Saúde de (...), onde a Autora era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM...
35.O serviço de rastreio pré-natal combinado foi implementado em alguns centros de saúde do distrito de Braga e permitia a realização de diagnósticos e avaliação de exames de forma mais especializada, em ligação com centros de saúde do distrito de Braga – cfr. depoimento da testemunha JM....»
Os Autores, como vimos, na petição inicial limitaram-se a invocar como causa de pedir os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos exclusivamente por referência à atuação do 1.º Réu, que consideram como tendo sido o único responsável pela não interrupção voluntária da gravidez, que veio a culminar no nascimento da filha de ambos com Síndrome de Down, sendo que os mesmos tinham, logo na petição inicial, de expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à ação.
Logo, tendo os Autores identificado a atuação de um único médico como a causa de pedir dos pedidos que formularam, e não tendo alegado outros factos essenciais dos quais resultasse que imputavam os danos sofridos a um anormal funcionamento do serviço, sendo que, tais factos, essenciais integrativos dessa causa de pedir teriam imperativamente de ser alegados na petição inicial, conforme é decorrência dos princípios do dispositivo e do contraditório - artigo 5.º, n.º1, 552.º, n.º1, al. d) e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC - é indiscutível que a facticidade julgada provada nos pontos 33 a 35 integra factos essenciais constitutivos da causa de pedir (funcionamento anormal dos serviços) que não foi alegada pelos Autores na p.i., onde não alegaram a mencionada facticidade julgada provada nos pontos 33º a 35º.
E não tendo os Autores alegado como causa de pedir o “anormal funcionamento dos serviços da apelante ARS”, e sendo aqueles factos dos pontos 33º a 35º essenciais dessa causa de pedir não alegada, é apodítico que o Tribunal a quo ao julgar essa facticidade como provada na sentença sob sindicância incorreu em violação dos enunciados princípios do dispositivo e do contraditório, violando frontalmente o disposto nos arts. 5º, n.º 1, al. a) e 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC, o que determina que se imponha ao Tribunal ad quem, eliminar, ainda que oficiosamente, essa matéria do elenco dos factos provados.
Na verdade, o conteúdo da decisão quanto ao julgamento de facto é excessivo sempre que envolva a consideração de factos essenciais para a integração da causa de pedir ou das exceções ( art.º 5.º, n.º1) ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5.º, n.º2, cumprindo nesses casos à 2.ª Instância suprir esse excesso mediante a eliminação de tais factos do elenco dos factos provados ou não provados na sentença recorrida ( cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código Processo , 2017, IV edição, pág. 291 a 294).
Decorre do que se vem dizendo, que se impõe determinar a eliminação do elenco dos factos provados na sentença da materialidade fática nela julgada como provada nos pontos 33 a 35 do elenco dos factos provados, porquanto se trata de factos essenciais não alegados na petição inicial, pelos Autores e que integram causa de pedir – anormal funcionamento dos serviços - em que os mesmos não sustentaram o pedido indemnizatório que formulam, o que se determina.
Outrossim, coligido o julgamento de facto realizado pelo Tribunal a quo verifica-se que este julgou como provados, em relação á atuação do 1.º Réu, os seguintes factos:
«23. O cálculo de risco de síndrome de Down em sede de rastreio bioquímico a que a Autora Mãe foi submetida, não levou em consideração a deteção de translucência da nuca do feto com 3.1, detetado na primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu – cfr. depoimento de SM....
24. A deteção de translucência da nuca de 3.1 detetada na primeira ecografia de gravidez a que a Autora se submeteu, era motivo de alerta, e com o resultado negativo do rastreio bioquímico, ficaram mais ou menos sossegados e para remoção de dúvidas a amniocentese seria o indicado, mas o resultado do rastreio não deu essa indicação, mas a amniocentese era um risco muito grande e daí não optarem muitas vezes pela amniocentese – cfr. depoimento das testemunhas MJ...e SM....
25. Com o pedido de realização da segunda ecografia à Autora Mãe referente às 20 semanas de gravidez, o Réu AD..., não forneceu os elementos resultantes da primeira ecografia, bem assim, do resultado negativo do rastreio bioquímico – cfr. declarações de parte do Réu AD... e depoimento da testemunha Roberto Pedro Toirac Ramirez.
26. O Réu AD..., em face do resultado da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu, que apresentou translucência da nuca do feto de 3.1 e perante o resultado negativo para síndrome de Down do feto, resultante do rastreio bioquímico, não equacionou a possibilidade de realização de amniocentese, nem informou os Autores Pai e Mãe de tal possibilidade, informando-os dos respetivos riscos – cfr. declarações de parte dos Autores Pai e Mãe e depoimento de parte do Réu AD....
27. Em data não concretamente apurada, o Autor Pai, deslocou-se ao Centro de Saúde de (...) a fim de falar com o Réu AD... – cfr. declarações de parte dos Autores Pai e Mãe e depoimento das testemunhas JM.... e FP....
28. O Réu AD... desempenhou a função de médico de família da Autora Mãe e demais família com ela relacionada – cfr. declarações de partes dos Autores Pai e Mãe.»
E julgou como «Factos não provados:
a) Que em face da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu durante a gravidez, bem assim do resultado negativo do rastreio bioquímico, estivesse, desde logo, na disposição de se submeter a interrupção voluntária da gravidez.
b) Que os Autores Pai e Mãe houvessem manifestado ao Réu AD... vontade expressa e inequívoca de procederem à interrupção voluntária da gravidez, bem assim, a vontade expressa e inequívoca de a Autora Mãe se submeter a exame de amniocentese.»
Justapondo os factos provados com os factos alegados pelos Autores na petição inicial conclui-se que o Tribunal a quo, não julgou como provados, ou como não provados alguns factos essenciais que foram alegados pelos Autores na petição inicial e cuja atendibilidade, atendendo ao objeto do recurso principal, é imprescindível.
Concretizando, conforme resulta dos factos assentes, o Tribunal a quo deu designadamente como provado, no ponto 26 do elenco dos factos assentes que «O Réu AD..., em face do resultado da primeira ecografia a que a Autora Mãe se submeteu, que apresentou translucência da nuca do feto de 3.1 e perante o resultado negativo para síndrome de Down do feto, resultante do rastreio bioquímico, não equacionou a possibilidade de realização de amniocentese, nem informou os Autores Pai e Mãe de tal possibilidade, informando-os dos respetivos riscos». Porém, tendo em conta os factos alegados pelos Autores na petição inicial, impunha-se ao Tribunal a quo que tivesse respondido à questão de saber se nas concretas circunstâncias em que o 1.º Réu atuou, ou seja, perante aquele resultado da ecografia do 1.º trimestre e o resultado negativo do rastreio bioquímico, o mesmo estava obrigado a remeter a Autora para a realização de uma amniocentese, perante o que eram então as legis artis, o que não resulta provado, sequer como não provado, da fundamentação de facto da sentença recorrida.
Outrossim, o Tribunal a quo também não deu como provado, ou como não provado, que existisse na família do A. marido um caso de Síndrome de Down.
Com tais omissões, o Tribunal a quo incorreu no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto.
Ademais o Tribunal a quo, na sentença, quedou-se, no essencial, por dar por reproduzidos, entre outros, o teor das perícias realizadas no âmbito dos autos e os depoimentos de algumas testemunhas, sem extrair desses meios de prova os factos que os mesmos provavam ou não provavam, à luz da sua livre convicção e do valor probatório desses meios de prova.
Sabemos que as perícias não são factos, mas antes meios de prova, isto é, meios através dos quais se chega ou não à demonstração da realidade dos factos- art.º 341.º do CC.
Dito por outras palavras, é pela análise e ponderação da prova pericial, documental, testemunhal e os demais meios de prova legalmente consentidos que o Tribunal concluirá (ou não) pela prova dos factos essenciais alegados pelos Autores na p.i. e que constituem a causa de pedir em que os mesmos alicerçam o pedido indemnizatório que deduzem em relação aos Réus.
Ora, verificando-se que o Tribunal a quo em relação aos supra identificados factos essenciais alegados pelos Autores incorreu no vício da omissão, no sentido de não os ter julgado como provados nem sequer como não provados, conforme lhe era imposto pelo art.º 5.º e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, só pode concluir-se que incorreu no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto, que é do conhecimento oficioso do Tribunal ad quem, traduzindo-se em erro de julgamento que cabe a este Tribunal suprimir a partir dos elementos que constam do processo, tanto assim que a matéria em causa foi levada aos temas da prova, nos termos do disposto no n.º1 do artigo 662.º do CPC e 149.º do CPTA, isto, naturalmente, caso a prova produzida ou constante do processo, ou da gravação, permita suprimir, com a necessária segurança o enunciado vício do julgamento da matéria de facto.
De contrário, terá este Tribunal, nos termos do disposto na al. c), n.º2 do art.º 662.º do CPC , de anular a sentença proferida e determinar a ampliação do julgamento da matéria de facto em relação a essa concreta facticidade relativamente à qual se verifica o vício da deficiência.
Assim sendo, depois de analisados os elementos de prova documentais e de ponderada toda a demais prova, designadamente, de termos procedido à audição de todos os depoimentos testemunhais, adita-se ao elenco dos factos não provados na sentença a seguinte facticidade:
(c) que se impusesse ao médico de família, de acordo com a legis artis, que na posse dos elementos de que dispunha o 1.º Réu, ou seja, com uma ecografia do 1.º semestre onde se referia a existência de uma “TN de 3,1mm” e onde se recomendava a sujeição da grávida à realização de rastreio bioquímico a realizar por entidade credenciada para o efeito, e perante o resultado negativo desse rastreio, a imediata sujeição da gravida à realização de exame de amniocentese.
(d) que na família do A. marido existisse um caso de Síndrome de Down – sua sobrinha- e que essa informação tivesse sido dada ao médico assistente.
Motivação:
A não prova em como na família do A. marido existisse um caso de Síndrome de Down – sua sobrinha - e que essa informação tivesse sido dada ao médico assistente- o 1.º R.- resulta de nenhuma prova ter sido produzida a esse respeito, seja documental, seja testemunhal.
Com efeito, tendo-se procedido à audição de toda a prova pessoal produzida em audiência final, constata-se que ninguém, mas absolutamente ninguém, se pronunciou quanto a esta concreta facticidade, nomeadamente, que o Autor –marido tenha uma sobrinha que padeça de Síndrome de Down e que este, a Autora-mulher, ou quem quer que seja que tivessem comunicado esse facto ao Réu AD..., ou que este tivesse conhecimento do mesmo por outra via.
De resto, nada consta nesse sentido no boletim de saúde da grávida, como seria esperável que acontecesse caso essa informação tivesse sido efetivamente prestada ao Réu AD... ou este dela tivesse conhecimento.
Destarte, em face do que se vem dizendo, resta ao tribunal concluir pela não prova desta concreta facticidade.
Quanto à não prova de que a legis artis, ao tempo, impusesse ao 1.º Réu, nas condições em que atuou, que tivesse sujeitado a A. mulher à realização de uma amniocentese, a nossa convicção decorreu essencialmente da consideração dos relatórios periciais que foram solicitados e que se encontram junto aos autos, concatenados com a prova testemunhal produzida, particularmente a consideração dos depoimentos prestados pelos vários médicos, quer especialistas, quer de medicina geral e familiar que prestaram depoimento em audiência de julgamento.
Vejamos:
Conforme resulta do boletim de grávida, e está assente, a A. mulher foi acompanhada no Centro de Saúde de (...) (...), desde 02 de outubro de 2003, pelo médico assistente AD.... Está igualmente assente que no âmbito da assistência prestada à A. mulher na sua gravidez, o 1.º Réu prescreveu à Autora mulher a realização da ecografia do 1.º trimestre, que foi efetuada no Hospital Distrital de (...), em 06/11/2003, pela médica obstetra JD....
Nessa ecografia, no item “achados”, assinala-se que há “Translucência da nuca: 3,1mm”, e na rúbrica referente ao “Risco calculado para trissomia 21 às 12 semanas de gestação”, refere-se que considerando a idade materna na data provável do parto, de 23 anos de idade, o risco prévio é de 1/1035 e que o risco corrigido é de 1/288.
Escreveu-se também nesse relatório, que “deve ser efetuado rastreio bioquímico do 1.º trimestre em centro credenciado para o efeito com doseamento de PAPP-A e 1. (liquido) fetal proteico no ventre materno”.
Na sequência da indicação constante do relatório da 1.ª ecografia realizada no HSM o médico assistente AD... determinou a sujeição da Autora à realização do rastreio bioquímico para a deteção da probabilidade de ocorrência de Síndrome de Down.
O resultado desse exame bioquímico, realizado em 03/11/2003, na Clínica de Genética Médica e Diagnóstico Pré-Natal do Prof. Doutor SC..., foi negativo, embora no mesmo se escrevesse, em sede de comentário, que “Este teste não rastreia para defeitos do tubo neural, devido a idade gestacional precoce” e nele se advertisse que “um rastreio negativo não exclui a possibilidade de Síndrome de Down”.
Está provado que, nessa sequência, o médico assistente da Autora prescreveu a realização de ecografia do segundo trimestre, e que a Autora realizou a ecografia obstétrica do segundo trimestre no Hospital da Misericórdia de (...), em 10/01/2004, a qual foi executada pelo médico radiologista R. Roberto Ramirez.
No relatório dessa ecografia resulta como idade gestacional a de 22 semanas e um dia e a conclusão foi de “gestação com evolução favorável e compatível com as semanas de amenorreia. Nesta ecografia não se detetou qualquer anomalia fetal, pese o facto de ali se indicar “cabeça, coluna e membros visualizados”.
Mais se provou que em 10/03/2004, a A. realizou novo exame de ecografia obstétrica no Departamento de Imagiologia do Hospital da Misericórdia de (...), efetuado por Roberto Ramirez, agora com a nascitura com a idade cronológica de 30 semanas e 4 dias e idade ecográfica: 29 semanas e 5 dias, tendo mantido, em conclusão: “gestação favorável e compatível com as semanas de amenorreia”.
Na rúbrica “anatomia fetal” assinalou: “cabeça: chama a atenção para certa deformidade da região anterior do ovoide”.
Estes factos, são extraíveis dos relatórios inerentes a cada uma das ecografias realizadas e relatório do rastreio bioquímico junto aos autos e dados por reproduzidos na fundamentação de facto da sentença recorrida, pelo que, se têm de haver como factos provados e em relação aos quais nenhuma impugnação foi apresentada pelas partes.
Feito este enquadramento, que foi também considerado pelas testemunhas médicas que prestaram depoimento, não é despiciendo ter em conta que se estava perante uma futura mãe, jovem, com apenas 23 anos de idade à data provável do parto, e que, conforme resulta do seu boletim de grávida, não padecia de nenhuma co morbilidade, pelo que era, á partida, considerada uma grávida de baixo risco.
Essa conclusão foi atestada pelos depoimentos prestados por várias testemunhas médicas ouvidas em audiência de julgamento, e resulta também confirmado na perícia de fls. 1059 dos autos (processo físico), realizada pelo Senhor Professor Doutor NM…, do Hospital de S. João.
Nesta perícia de fls. 1059, subscrita pelo Prof. Doutor NM..., consta que, à data dos factos, os modelos de rastreio pré-natal de aneuploidias (e nomeadamente de trissomia 21) eram utilizados na prática clínica como concorrentes, isto é, poderiam ser utilizados ou o rastreio ecográfico ou o rastreio bioquímico, sendo que mesmo que utilizados os dois modelos, o cálculo do risco não era feito de modo integrado, pelo que, haveria então, dois resultados eventualmente conflituantes.
Lê-se ainda nessa perícia, em relação ao rastreio bioquímico, que o seu resultado podia ser positivo ou negativo, sendo que a taxa de deteção do rastreio bioquímico seria de 65% a 70% para uma percentagem de falsos positivos de 5%.
Na opinião do Prof. Doutor NM..., tendo em conta os conhecimentos científicos e as orientações em vigor à data, o facto de a 1.ª ecografia ter detetado uma “TN de 3,1mm”, ou seja, uma TN aumentada, impunha que fosse prescrita a amniocentese.
Note-se, contudo, que se trata da posição veiculada por um médico especialista na área da obstetrícia e ginecologia, diretor de serviços no Hospital de S. João, e como tal, de um profissional portador de uma ampla formação nesta área de especialização, naturalmente não equiparável à formação nessa área que é detida pelos médicos de saúde familiar que prestam serviço nos Centros de Saúde, como era o caso do 1.º Réu.
Isto para significar que, na situação em análise, para se aferir corretamente, de forma conscienciosa, se o 1.º Réu agiu de forma ilícita e culposa, violando a legis artis, não releva propriamente como atuaria um serviço ou médico especialista em obstetrícia ginecologia do Hospital de São João ou do Hospital de (...), mas qual era o procedimento que em situações como a verificada estava concretamente instituído para os médicos de medicina geral e familiar que como o 1.º Réu prestavam serviço em centros de saúde abrangidos pela circunscrição do HSM, e como é que os demais médicos dos centros de saúde agiam em situações como aquela que sucedeu com a Autora mãe e, bem assim, como funcionava a integração entre os cuidados de saúde primários e os cuidados diferenciados na área de circunscrição do Centro de Saúde onde o Réu exercia as suas funções de médico de família com o Hospital de (...), como hospital de referência que era.
Nesse desiderato, tem uma relevância fulcral a consideração do teor do relatório pericial de fls. 1072 e seguintes do processo físico, denominado “Consulta técnico - cientifica”, de que foi relator o Senhor Professor Doutor PM...., e onde se assinalou, que: a «informação do rastreio bioquímico (RB) não se pode entender como uma anulação da informação ecográfica, mas apenas como uma informação complementar: ou era integrada numa fórmula matemática conjunta de modo a recalcular um risco global ou, considerada em separado, é uma informação contraditória e não privilegiada. Assim, nesta última hipótese que é a do caso em concreto, não torna o caso mais simples, mas antes mais complexo. A grávida deveria ser esclarecida acerca do significado dos exames.» Contudo, afirma-se nesse relatório que esse «esclarecimento na opinião deste Conselho deveria ter lugar numa consulta especifica de âmbito Hospitalar (HSM), dada a complexidade da situação. Uma razão adicional para isto é que, embora formalmente fosse o médico do CSPRVV a requisitar o RB, de facto quem o solicitou (e tinha a noção clara de porquê e para o quê o fazia) foi um especialista do HSM e, portanto, deveria ser um especialista desta instituição a lidar com os resultados.
Contudo, este Conselho desconhece quais eram as orientações técnicas, à data, do HSM face a situações semelhantes.
Assim, do não envio a consulta especializada no HSM só resultou prejuízo objetivo para a grávida no caso das orientações técnicas do HSM, à data, preverem a hipótese de técnica invasiva naquelas circunstâncias, isto é, de serem diferentes da orientação seguida no CSPRVV.
Em caso afirmativo (as orientações técnicas, à data, no HSM previam naquelas circunstâncias em concreto orientação diferente), terá que se identificar a razão pela qual a grávida não foi referenciada para o HSM após a realização do RB:
. Hipótese a): Houve quebra de protocolo escrito, de procedimento habitual ou de informações especificas (não constantes no processo) por parte do médico de Medicina Geral e Familiar;
. Hipótese b): Não havia protocolo escrito, nem procedimentos estabelecidos, nem instruções especificas e o médico de Medicina Geral e Familiar atuou de boa-fé, entendendo que a informação do RB era final e definitiva.
Na hipótese b) estaremos perante uma evidente desarticulação e má circulação de informação entre as instituições HSM e CSPRVV, dado que a existência de uma rede de referenciação pressupõe não apenas um desenho de estrutura, mas também e sobretudo uma definição funcional com clara distribuição de responsabilidades e o estabelecimento de canais e formas de comunicação claros e seguros» (negrito e sublinhado da nossa autoria).
Como bem assinalou o senhor perito neste relatório, para se aferir da violação da legis artis por parte do 1.º Réu, tem de se apurar se ao tempo existia ou não um protocolo escrito, ou procedimentos estabelecidos, ou instruções especificas, das quais decorresse que o médico de medicina geral e familiar naquelas concretas circunstâncias devia referenciar a grávida para uma consulta de Diagnóstico Pré-Natal. E à concreta questão de saber se o procedimento seguido na sequência do rastreio bioquímico foi o adequado, atendendo aos concretos resultados obtidos e aos conhecimentos científicos e orientações em vigor à data (quesito 10 do objeto da perícia) respondeu aquele senhor perito, no seguimento das considerações prévias que supra se enunciaram, o seguinte: «Como comentámos anteriormente, se o HSM não deu outras instruções e não havia protocolo ou procedimentos habituais, à data, que implicassem a referenciação posterior da grávida a uma consulta de Diagnóstico Pré-Natal ( DPN), é natural e compreensível que o médico de Medicina Geral e Familiar entendesse, de boa-fé, que este era o procedimento que de si se esperava.
E, também, não se pode excluir que fosse essa a expectativa ou intenção, à data, do HSM.
Só as duas partes envolvidas poderão esclarecer se, à data, o não envio da grávida a consulta de DPN no HSM se deveu a desarticulação e má troca de informação entre instituições ou, pelo contrário, do procedimento pretendido».
Tendo em conta o melindre da situação em causa, que culminou no nascimento de uma bebé com Síndrome de Down, com todas as consequências terríveis que o nascimento de uma pessoa com tal deficiência acarreta para a própria e para a vida dos seus familiares, particularmente para os respetivos pais e considerando a possibilidade que o ordenamento jurídico já então conferia aos progenitores, ao tempo, de perante um diagnóstico de feto com Síndrome de Down recorrerem à interrupção voluntária de gravidez, o que no caso não sucedeu, alegadamente, por negligência do médico de medicina geral e familiar que acompanhou a gravidez da A. mulher, que, na tese dos Autores, não cuidou de sujeitar a mesma a uma amniocentese, tivemos o cuidado de ouvir atentamente toda a prova testemunhal que foi produzida na audiência de julgamento realizada pelo tribunal de 1.ª Instância, e bem assim, de ler e analisar cuidadosamente todos os elementos de prova documentais juntos aos autos, designadamente, os relatórios periciais.
Nesse desiderato, começamos por salientar que o depoimento da testemunha José Manuel Cruz, médico com especialização na área da obstetrícia e ginecologia e que foi diretor desse serviço no HSM - trata-se do hospital de referência para o centro de saúde onde o 1.º Réu exercia as suas funções de médico de medicina geral e familiar - funções que já exercia na data dos factos em questão nestes autos.
A referida testemunha, de cuja razão de ciência se não olvida, atentas as funções que exercia e a especialidade médica de que era portador e que prestou um depoimento seguro, esclarecedor e credível, começou por afirmar que, na altura, a legis artis entre especialistas dizia que perante uma “TN aumentada” devia fazer-se o rastreio bioquímico e calcular o risco para o Síndrome de Down, o chamado “risco combinado”.
Precisou, contudo, que os médicos de família não estavam em condições de calcular esse “risco combinado”, e que na área de abrangência do HSM, que era o hospital de referência, não estava implementado em todos os centros de saúde o procedimento que permitia referenciar as situações em que se reclamava que fosse calculado o risco combinado, não havendo, como se recomendava, uma adequada integração dos cuidados primários com os cuidados hospitalares ou diferenciados, e que essa foi a razão para que a situação em causa tivesse ocorrido.
Enfatizou que, na altura dos factos em julgamento, o rastreio bioquímico era tido pelos médicos como um exame de alta sensibilidade, embora falhasse em cerca de 40% dos casos.
Questionado sobre como teria sido a sua atuação ao tempo perante este caso se o mesmo se lhe tivesse deparado, disse que com os conhecimentos especializados que já então detinha, numa situação como a descrita, teria calculado o risco combinado e teria reunido com o casal e ter-lhes-ia dito que havia o risco de o nascituro nascer com Síndrome de Down e que tinham duas opções: fazer a amniocentese, com o risco de perda do bebé, ou não fazer nada e aguardar.
Porém, esclareceu que um médico de família, como era o caso do 1.º Réu, não estava preparado, sem margem para qualquer dúvida, para calcular o risco combinado. E que, na altura dos factos em causa, nem sequer um protocolo existia que previsse e discriminasse os procedimentos a seguir nestas situações pelos médicos de família, pese embora houvesse uma prática, a qual não impunha, no caso, a um médico de família que se visse confrontado com os elementos de que dispunha o Dr. AD..., que tivesse encaminhado a A. para a realização da amniocentese ou para o serviço de urgência do HSM.
Deixou bem claro no seu depoimento que, na data dos factos, a convicção generalizada no seio dos médicos era a de que um rastreio bioquímico tinha uma importância fulcral, quando o que devia existir era o rastreio combinado.
Mais referiu que, tendo a 1.ª ecografia sido efetuada no HSM e tendo sido detetada uma TN de 3,1 mm, se a situação se tivesse passado consigo, teria tomado conta do caso e não teria encaminhado a A. para o médico de família, mas essa era, contudo, a prática instituída.
Confrontado com o protocolo de 2005, disse que se bateu muito pela sua elaboração e pela implementação dos procedimentos nele previstos em todos os centros de saúde, afirmando que, na altura dos factos, já devia estar implementada uma articulação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados diferenciados que permitisse em situações como esta o encaminhamento das grávidas para o HSM a fim de aí ser determinado o risco combinado e a sujeição da grávida a testes de diagnóstico, como a amniocentese, realidade pela qual se bateu, mas que não foi devidamente acautelada pelas entidades com responsabilidade no SNS, dando azo a que se verificassem situações como a que está em causa nos autos e que poderiam ter sido evitadas.
Realça-se também o depoimento da testemunha JD..., médica que realizou a ecografia do 1.º trimestre que, perante este caso, confirmou que, à data dos factos, o procedimento instituído era fazer a ecografia do 1.º trimestre, o rastreio bioquímico e sendo o mesmo negativo, fazer a ecografia do 2.º trimestre, sabendo-se que uma TN aumentada, na maior parte dos casos, não dava em cromossopatias.
Por seu turno, a testemunha JC..., médico, professor, que realizou o rastreio bioquímico à Autora, precisou que, à data, não integrava os valores indicados da TN, porque esses valores em regra e na maior parte dos casos não eram fiáveis, fazendo com que o resultado do rastreio bioquímico fosse falseado, aumentando ou diminuindo o risco da existência ou não existência do Síndrome de Down. Por essa razão e porque era sujeito a auditorias, apenas atendia aos valores dos marcadores bioquímicos, dizendo não se recordar se a informação quanto à TN constante da ecografia realizada no 1.º trimestre à A. lhe foi ou não enviada.
Esclareceu que, um rastreio divide a população em risco elevado e risco baixo e que, nem todos os que estão no grupo de risco elevado têm uma gestação afetada, assim como nem todos os que estão num grupo de baixo risco, têm uma gestação normal. É uma questão de probabilidades, sendo seguro que um rastreio tem sempre falsos positivos e falsos negativos. O que supostamente não tem falsos positivos, nem falsos negativos é o diagnóstico que divide a população em dois grupos, os afetados e os não afetados. Disse também que se fazia o rastreio bioquímico para não se fazer a amniocentese a todas as grávidas, mas somente às que ofereciam maior risco, dado que picar a barriga tem o risco de perda do bebé.
A testemunha MF...., médico de família, foi perentório em afirmar que o 1.º Réu fez tudo o que era esperado e exigível que fizesse à data. Frisou que se o imagiologista que fez a ecografia detetou “qualquer coisa” o mesmo é que devia encaminhar a grávida para o passo seguinte, e que, no caso, não indicou a realização de amniocentese, mas apenas recomendou que se fizesse o rastreio bioquímico, o que foi cumprido pelo Dr. AD....
Assim, considera que tendo o resultado desse exame sido negativo, o procedimento a seguir pelo médico de família era ir acompanhando a grávida e ordenar, no devido momento, a realização da ecografia do segundo trimestre, o que foi cumprido pelo seu colega.
Sublinhou que só perante um resultado positivo do rastreio bioquímico é que se impunha ao médico de família o encaminhamento da grávida para o Hospital de (...).
A seu ver, tendo em conta que se estava perante uma gravidez de baixo risco, com um rastreio bioquímico negativo, não havia indicação para que a gravida fosse encaminhada para a realização de amniocentese, mas apenas para que fosse acompanhada, assegurando-se a realização das demais ecografias, designadamente, a ecografia do 2.º trimestre, o que foi assegurado pelo seu colega.
Dos depoimentos testemunhais que referimos, resulta a conclusão de que o Réu AD... teve um padrão de conduta profissional correspondente ao que teria um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais que os detidos pelo mesmo, ou seja, que o mesmo agiu como teriam agido os seus colegas, médicos de família em centro de saúde daquela circunscrição, em circunstâncias semelhantes, não existindo qualquer instrução ou procedimento que tivesse sido violado pelo mesmo, ao não ter encaminhado a A. para a realização de uma amniocentese.
Dir-se-á ainda que, se dúvidas houvesse, em como naquelas concretas circunstâncias não se impunha ao médico de medicina geral e familiar que acompanhava a gravidez da A. a sua sujeição à realização da amniocentese, veja-se o que, posteriormente, se consignou no protocolo de 2005, que supostamente reduziu a escrito o que era a praxis adotada até então naquela circunscrição, nas relações entre Centros de Saúde e HSM.
Na verdade, extrai-se desse protocolo que, perante um rastreio bioquímico positivo, impendia sobre o médico de família a obrigação de encaminhamento da grávida para o Serviço de Urgência do HSM, não lhe competindo prescrever a realização de uma amniocentese.
Note-se que nada se dispõe nesse protocolo sobre o procedimento a seguir pelo médico de família nos casos em que o rastreio bioquímico fosse negativo e em que existisse uma ecografia prévia a esse exame com indicador de “TN” aumentada.
Em tais casos, tendo em conta o estado da ciência médica à data, em que era já possível aos médicos especialistas calcular o denominado risco combinado, essa situação devia ter ficado prevista nesse protocolo, mas nem em 2005 essa indicação foi aí prevista/acautelada.
Ora, resulta deste documento, elaborado posteriormente, que nem em 2005, perante uma situação como a verificada com a A., se impunha ao médico de família o encaminhamento da grávida para o Serviço de Urgência do hospital de referência, muito menos a indicação da mesma para amniocentese.
À mesma conclusão se chega quando atentamos no protocolo da maternidade (...), vigente à data em que a A. estava grávida e foi acompanhada pelo 1.º Réu, no qual se lê que quando “o rastreio é positivo, isto é, revela um risco elevado, são disponibilizados outros estudos, chamados testes diagnósticos (exemplos: a ecografia e a amniocentese).
Estes testes identificam os indivíduos que têm a doença”.
Mais se refere que “os casos de rastreio positivo são contactados por telefone e convocados para consulta de Diagnóstico Pré-Natal. Os casos de rastreio negativo não são contactados”.
Quanto ao significado de um rastreio negativo lê-se no mencionado protocolo que “Significa que o valor do risco encontrado se situa abaixo de determinado nível estabelecido (chamado out-off) e que, estatisticamente não são recomendados testes diagnósticos.
Um rastreio negativo não garante que o feto não tem a doença: informa-nos que a probabilidade de a ter é inferior ao “out-off” estabelecido».
As consideração destes elementos de prova documentais, fortalecem a conclusão de que, na data em que o 1.º Réu assistiu, como médico de família, a A. mulher na sua gravidez, perante um rastreio bioquímico negativo e pese embora a existência de uma ecografia do 1.º trimestre onde se indicava a existência de uma TN de 3,1mm, não se lhe impunha que sujeita-se a grávida a uma amniocentese e que, ao não ter determinado a realização desse exame, tivesse agido em desconformidade com a legis artis que ao tempo enquadrava a atuação dos médicos de medicina geral e familiar naquela circunscrição.
Em conclusão, resulta da prova produzida que, aquando do acompanhamento da gravidez da Autora pelo médico assistente (1.º Réu), não existia nenhum protocolo escrito que estabelecesse o procedimento a seguir pelos médicos de família na assistência a prestar à gravida, o qual apenas foi elaborado em 2005 e que, nesse período, era prática médica estabelecida que só perante um rastreio bioquímico positivo é que o médico de família encaminhava a parturiente para o serviço de urgência do HSM.
Por fim, nenhuma prova foi produzida quanto ao facto alegado pelos Autores na p.i., nos termos do qual existia um caso de Síndrome de Down na família do A. marido, na pessoa de uma sobrinha do mesmo, conforme já antes mencionado.
Destarte, perante o que se vem dizendo e a consideração que nos termos do disposto no art. 414º do CPC, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, isto é, contra os Autores, impõe-se concluir pela não prova em como se impusesse ao médico de família, de acordo com a legis artis, que na posse dos elementos de que dispunha o 1.º Réu, ou seja, com uma ecografia do 1.º semestre onde se referia a existência de uma “TN de 3,1mm” e onde se recomendava a sujeição da grávida à realização de rastreio bioquímico a realizar por entidade credenciada para o efeito, e perante o resultado negativo desse rastreio, a imediata sujeição da gravida à realização de exame de amniocentese.
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B.2- Do mérito
A responsabilidade médica, na falta de regime especial, tem sido enquadrada pela doutrina e pela jurisprudência, quer no âmbito da responsabilidade contratual, quando estejam em causa atos médicos ocorridos no seio do exercício da medicina privada, quer no domínio da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública, quando estejam em causa atos médicos praticados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
É firme e pacifica a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no sentido da responsabilidade civil decorrente da prática de atos médicos em estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde, ser de natureza extracontratual ou aquiliana.
Nesse sentido, veja-se o Acórdão do STA de 09.06.2011, proferido no processo n.º 0762/09 no qual se aponta que «A responsabilidade por atos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos tem natureza extracontratual, incumbindo ao lesado o ónus de alegar e provar os factos integradores dos pressupostos dessa responsabilidade, regulada, fundamentalmente, no Decreto-Lei 48 051, de 21 de novembro de 1967».
Em igual sentido tome-se também em consideração o Acórdão do STA, de 16.01.2014, proferido no processo nº 0445/13 no qual igualmente se veicula que «A responsabilidade civil decorrente de factos ilícitos imputados a um Hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde não tem natureza contratual, sendo-lhe aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos».
Esta jurisprudência filia-se no entendimento de que nas relações entre o utente e o SNS se aplica o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, e isso porque, os cuidados de saúde que são prestados aos pacientes por estabelecimentos ou profissionais SNS emergem da obrigação constitucional e legal do Estado de assegurar a todos os cidadãos que careçam de cuidados médico-cirúrgicos essa prestação de serviço público, não estando na disponibilidade dos profissionais/estabelecimentos hospitalares que integrem a rede do SNS a possibilidade de recusarem a prestação dos cuidados de saúde a quem deles necessite e se socorra desses serviços.
Nesse sentido, cita-se o
Acórdão do STJ de 25/02/2015, proferido no processo nº 804/03.2TAALM.L.S1, no qual aquela alta instância, acompanhando a jurisprudência já expressa, reiterou uma vez mais tal entendimento, ao expender que «O ato médico praticado em hospital público integrado no SNS representa um ato técnico no exercício de uma dada profissão de acordo com certas prescrições, naturalmente que da ciência médica, constituindo uma função pública, integrada na denominada “função técnica do Estado”, qualquer que seja a natureza de que se revista o hospital, com ou sem autonomia patrimonial, empresarial ou sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, segundo a classificação adotada na Lei de Gestão Hospitalar n.º 27/2002, de 08-11.
É, pois maioritária a posição - excluindo-se, ainda a conceção da natureza atípica - que perfilha o entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos se não enquadra no contrato de prestação de serviços previsto no CC, no art. 1154.º e ss., antes assumindo uma simples prestação de serviço público, em que, como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente, e este da pessoa do médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, melhor dizendo, total independência» - .cfr. Acs. do STJ, de 24/5/2011, Processo nº 1347/04.2TBPNF.P1.S1; de 29/10/2015,Processo nº 2198/05.2TBFIG.C1.S1.
Em suma, podemos afirmar que os hospitais públicos, em sentido amplo, sejam os que estão enquadrados no setor público administrativo, como os que apenas fazem parte do setor empresarial do Estado e as Parcerias Público-Privadas, todos eles, atuam no exercício de prerrogativas de poder público e/ou exercem atividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que os atos médicos (sejam eles ações ou omissões) neles praticados correspondem, inequivocamente, ao exercício da função administrativa.
Foi também este o entendimento subscrito pela 1.ª Instância na sentença recorrida, em que se considera que a efetivação da responsabilidade médica por ato médico realizado no estabelecimento hospitalar demandado, integrado no SNS, é de natureza extracontratual ou aquiliana, o que conforme resulta do que se acaba de expender se mostra conforme à jurisprudência largamente maioritária da jurisdição administrativa, a qual se subscreve.
Por outro lado, é igualmente pacífico que os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública decorrente de atos ilícitos praticados pelos seus agentes são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista e regulada no artigo 483º do Código Civil.
Nesse sentido, veja-se exemplificativamente a jurisprudência promanada no Acórdão do STA, de 3/07/2007, proferido no processo nº 0443/07, no qual se expendeu que «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto».
Cingindo-se especificamente à responsabilidade médica, no Acórdão do STA de 20/04/2004, proferido no processo 982/05, asseverou-se que “Nas ações de responsabilidade médica tem aplicação o regime geral do nosso ordenamento jurídico – art. 342º, n.º 1 do CC -, de acordo com o qual cabe à Autora fazer a prova dos factos constitutivos do direito à indemnização, salvo nos casos de presunção legal – art. 344º, n.º 1 do CC – ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado – art. 344º, n.º 2 do CC”.
Deriva do que se vem dizendo que ancorando-se a pretensão indemnizatória a que os Autores se arrogam perante os Réus, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito praticado no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, cabe àqueles o ónus da alegação e da prova da verificação dos requisitos gerais cumulativos da responsabilidade civil aquiliana, os quais se reconduzem ao facto, à ilicitude, à culpa, ao dano e ao nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano – neste sentido veja-se ainda os Acs. do STA, de 20/05/1999, Rec. 39535; 2/12/2009, Processo nº 0763/09; 10/05/2001, Proc. 47173; e de 14/04/2005, Proc. 0677/03.
Os factos de que os autores fazem decorrer o seu direito indemnizatório ocorreram nos anos de 2003 e 2004, altura em que se encontrava em vigor o Decreto Lei n.º 48.051, de 21/11/1967, pelo que, nos termos do artigo 12.º do CC, é à luz deste diploma que se terá de aferir do preenchimento ou não dos enunciados pressupostos legais constitutivos do direito indemnizatório a que aqueles se arrogam titulares perante os Réus.
Nos termos do artigo 2º do DL 48051 “O Estado e demais pessoas coletivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
Por sua vez, dispõe o artº 6º do DL 48.051 a propósito do conceito de ilicitude que: “é ilícito o ato que viole normas legais e regulamentares ou princípios gerais aplicáveis, bem como aquele que viole as regras de ordem técnica e de prudência comum”.
Na responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos, conforme decorre do disposto neste preceito, relativamente aos atos e operações materiais, a ilicitude emerge da violação das normas legais ou regulamentares ou ainda de infração às regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.
Dito por outras palavras, a ilicitude não decorre imediatamente da verificação do dano (lesão de um direito subjetivo) e da sua decorrência em termos de causalidade adequada da ação imputada ao réu.
Conforme se pondera no acórdão do STA, proferido no Processo 0982/03: “(…) A lei não se basta com a produção causalmente adequada da ofensa dos direitos de terceiros ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses (art.3º do DL 48 051, de 1967.11.21). Exige a infração de regras técnicas e/ou do dever geral de cuidado, como dimensão ineliminável de um comportamento ilícito, significando que a ilicitude não está centrada exclusivamente no resultado danoso - ilicitude de resultado – e que, igualmente, está sempre na dependência do desvalor de um determinado comportamento – ilicitude de conduta (vide, neste sentido, na doutrina GOMES CANOTILHO, RLJ, Ano 125º, p. 84, MARCELO REBELO DE SOUSA, “ Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização? “, in “Direito da Saúde e Bioética”, ed, AAFDL, 1996, p. 172 e MARGARIDA CORTEZ, “Responsabilidade Civil da Administração por Atos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado”, pp. 50/53 e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, por exemplo, o acórdão de 1998.03.17 – recº nº 42 505). Posto isto, podemos concluir que na responsabilidade civil extracontratual, por ato cirúrgico ilícito, o desvalor da ação do agente - a violação das legis artis ou do dever geral de cuidado – é um dos pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar. (…)”.
Como bem observa VERA LÚCIA RAPOSO in “Do ato médico ao problema jurídico. Breves Notas sobre o Acolhimento da Responsabilidade Médica Civil e Criminal na Jurisprudência Nacional”, Coimbra, 2015, pág. 17: «A ilicitude da atividade médica não resulta necessariamente de violação da lei, do contrato, e nem mesmo do interesse de outrem, mas sim da violação das regras próprias da prática médica, consagradas nos mais diversos locais». Note-se que no domínio da responsabilidade civil médica, «só existe falta médica quando o médico viola, cumulativamente, uma lei da arte e o dever de cuidado que lhe cabe, e assim se afasta daquilo que dele é esperado naquele caso (o que, no mundo anglo-saxónico, é conhecido como common practises”)».«Noutros casos a falta médica não radica no ato praticado – aquele resultado nefasto pode até ser considerado um dos riscos possíveis e inevitáveis do ato médico, ou uma consequência que no caso concreto não se ficou a dever a uma falta do agente – mas sim na ausência do subsequente ato que corrigiria o resultado lesivo».

De resto, o entendimento que tem sido seguido pela doutrina e pela jurisprudência administrativa que acabamos de enunciar, nos termos do qual, a ilicitude terá de radicar na violação pelo médico da
legis artis própria da sua atividade e/ou na violação do dever geral de cuidado, não deixa de se mostrar conforme com a circunstância de, no ato médico, o prestador do ato não se obrigar a curar o doente da patologia de saúde que o afeta, mas sim a prestar-lhe tratamento adequado para essa patologia, mediante observância diligente e cuidada das regras da ciência e da arte médicas (legis artis), porquanto a prática da medicina envolve, em regra, uma natureza complexa e aleatória derivada da própria complexidade dos sistemas psicossomáticos humanos, a par do estado e desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis e, nessa medida, a obrigação de prestar o ato médico configura-se, não como uma obrigação de resultado, mas de meios, em que o médico se obriga tão só a diligentemente, atento o conhecimento científico e o desenvolvimento da arte médica, a prestar o tratamento médico adequado ao doente- Ac. STJ. de 23/03/2017, Proc. 296/07.7TBMCN.P1.S1, in base de dados da DGSI..
Como ensina Almeida Costa, “as obrigações de meios” são aquelas em que o devedor se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa atividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza” Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., Almedina, pág. 1039., pelo que sendo assim, a ilicitude nunca poderia resultar do ato médico praticado ou omitido ter tido como resultado a ofensa dos direitos subjetivos do doente ou de disposições legais destinadas a proteger os interesses destes, mas apenas pode derivar da circunstância do médico não ter agido de acordo com a legis artis próprios da sua arte (profissão) e do estado de desenvolvimento desta ou ter infringido o dever geral de cuidado.
No caso, estamos perante uma ação que a doutrina denomina como de nascimento não desejado ou “wrongfull birth”, «em que o interesse protegido é a liberdade de decisão sobre o direito de procriação, que inclui, a faculdade, nas condições legais, de interromper voluntariamente a gravidez». Neste tipo de ações, a causa de pedir pressupõe a existência de um erro de diagnóstico do médico/clínica o qual impediu a mãe de optar por uma decisão esclarecida sobre a eventual interrupção da gravidez e a existência de danos derivados causalmente dessa omissão. Lê-se no Acórdão do TRP, de 01/07/2021, proferido no processo n.º 5397/16.8T8PRT.P1 que «a nossa doutrina tem sido abundante na análise deste tipo de ações que qualifica, como aquelas nas quais “os pais pedem uma indemnização aos médicos pelos danos próprios causados pela má praxis profissional num período pós-concecional, a qual, se não tivesse existido, poderia ter motivado uma interrupção voluntária da gravidez (IVG) lícita”.
Isto, porque as técnicas médicas permitem cada vez maiores, melhores e mais antecipadas deteções de informação e por isso a possibilidade de intervir no embrião ou feto.
A causa de pedir é a violação do direito à autodeterminação da mãe quanto ao seu direito ao planeamento familiar.
Os nossos tribunais também já decidiram, casos semelhantes, sendo o primeiro a decisão do Ac. do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19 de junho de 2001 (Relator: Pinto Monteiro), o qual apesar de negar a indemnização pelo nos casos de «wrongful life»[5], legitimou a indemnização no caso de violação do dever de diagnóstico de mal formações do feto.
Situações semelhantes foram também decididas pelos Ac. da RL de 10.1 2012 (Rui Vouga); Ac. da RP de 1.3.2012 (Filipe Caroço); Ac. da RG de 19.6.21 (Rosa Tching); Ac. STJ de 13.1. 2013 (Ana Paula Boularot)[6]; Ac. da RL de 29.4. 2014 (Roque Nogueira); e Ac. STJ de 12.3.2015, nº 1212/08.4TBBCL.G2.S1 (Hélder Roque).[7]
Neste último aresto foi decido que “Nas wrongful birth actions, são ressarcíveis os danos não patrimoniais e patrimoniais, não se incluindo, nestes últimos, todos os custos derivados da educação e sustento de uma criança, mas, tão-só, os relacionados com a sua deficiência, estabelecendo-se uma relação comparativa entre os custos de criar uma criança, nestas condições, e as despesas inerentes a uma criança normal, pois que os pais aceitaram, voluntariamente, a gravidez, conformando-se com os encargos do primeiro tipo, que derivam do preceituado pelo art. 1878.°, n.° 1, do CC”.
Diga-se por fim, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no caso Costa e Pavan c. Itália, de 11 de fevereiro de 2013[8], considerou que os pais possuem o direito de “trazer ao mundo uma criança que não seja afetada pela doença”, apesar de no caso concreto concluir que não podia impor ao Estado Italiano uma determinada técnica de diagnóstico.»
Logo, deriva do que se vem dizendo que para se aferir do requisito da ilicitude é necessário que, no caso, os Autores tenham alegado e provado factos com poder persuasivo bastante para num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso verificado com o nascimento da sua filha com Síndrome de Down foi antecedido de comportamentos clínicos do 1.º Réu praticados ou omitidos com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado, próprios da atividade médica- cfr. Ac. STA de 16/01/2014, Proc. 0445/13, in base de dados da DGSI. Ou seja, se aquele médico, na sua atuação, se desviou do padrão de conduta que de acordo com a legis artis era exigível.
Os Tribunais têm vindo a entender por legis artis o conjunto de regras a seguir pelo corpo médico no exercício da medicina, plasmadas em normas escritas, em lei e/ou instrumentos de autorregulação (protocolos) ou, mesmo em regras não escritas, mas que correspondem a procedimentos institucionalizados pela ciência médica na sua atuação como sendo os que correspondem à resposta mais adequada em face do problema de saúde.
No que respeita ao requisito da culpa, podemos afirmar que agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, pág. 531.
Quanto ao nexo de causalidade é de aplicar o disposto no artº 563º do CC, norma esta que consagra a vertente mais ampla da teoria da causalidade adequada, ou seja, na formulação negativa de ENNECERUS-LEHMANN - o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada quando, segundo a sua natureza geral, é indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias.
Ou seja, em concreto, o facto tem de ser condição do dano e em abstrato, isto é, segundo as regras da experiência de vida, o facto tem de constituir causa adequada ou apropriada à ocorrência do dano verificado.

Os Autores pedem a condenação solidária dos Réus no pagamento da indemnização que peticionam e daí que tenham intentado a ação também contra o 1.º Réu.
No caso em análise, como vimos, a responsabilidade civil por atos ilícitos é regulada pela lei em vigor no momento do ato gerador da responsabilidade (artigo 12º, do Código Civil), ou seja, pelo D.L. 48051, que fixava o regime da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas públicas, no domínio dos atos de gestão pública.
Ora, considerando o disposto no artigo 2º, nº 1 daquele diploma, importa desde já precisar que apenas a ARS Norte responde pelos eventuais danos causados pelos serviços prestados naquele centro de saúde, conquanto, os Autores não alegaram, nem provaram, que o médico assistente atuou de forma dolosa, razão pela qual não existe justificação para a aplicação do regime de solidariedade previsto no nº 2, do artigo 3º daquele decreto-lei, como melhor se cuidará de explicitar na apreciação do recurso subordinado.
(i) Do erro de julgamento decorrente da condenação da Recorrente com fundamento em anormal funcionamento do serviço
O Tribunal a quo considerou que o Réu AD... violou a legis artis que estava adstrito a observar na sua prática clínica, posto que, perante o resultado da 1.ª ecografia realizada no HSM onde se detetou uma “TN de 3,1 mm” e não obstante o resultado negativo do rastreio bioquímico, que, contudo, não exclui em absoluto a possibilidade de a nascitura padecer de Síndrome de Down, devia ter esclarecido os Autores, pai e mãe, « da dúvida gerada pelos resultados contraditórios dos primeiros exames e assim, colocar à consideração a possibilidade de realização de exame designado por amniocentese, exame este que seria o adequado à determinação da existência de deformações do feto e, acima de tudo de síndrome de Down, criando, assim, a possibilidade de os Autores decidirem, depois de devidamente informados sobre os riscos que tal exame comportava para o feto, pela sua realização ou não». Considerou ainda o senhor juiz a quo que « não competia, pois, ao Réu AD...…decidir pela não realização da amniocentese com base no fator idade da Autora Mãe», e concluiu que « o Réu AD... ao omitir um dever de informar os Autores da possibilidade de existência de síndrome de Down e de esclarecer, acima de tudo, a possibilidade da realização de amniocentese, com os riscos a tal exame inerentes, coartou aos Autores o direito de decidirem de forma esclarecida e inequívoca o destino da gravidez em causa». Nesse enquadramento, entendeu que a que atuação do Réu AD... foi uma atuação culposa, conquanto « atendendo às concretas circunstâncias do caso e aos conhecimentos médicos de que era suposto ao Réu…, enquanto funcionário da ARS Norte, possuir, porquanto, podia e devia, face à dúvida gerada pelos resultados contraditórios dos dois primeiros exames a que a Autora se submeteu, prever e antecipar a eventual ocorrência de síndrome de Down no feto, como veio a ocorrer, portanto, fazendo melhor, designadamente, optar- em tempo-pela realização de exames complementares de diagnóstico».
Porém, considerou que era exigível que o sistema de saúde estivesse «devidamente organizado de modo a permitir que em caso de dúvida como nos presentes, um profissional de saúde de medicina geral e familiar, em funções de planeamento familiar e acompanhamento de grávidas se pudesse socorrer de um serviço integrado de rastreio combinado e complementar de fácil e rápido acesso de modo a esbater as dúvidas que surgissem.
Só que no centro de saúde onde o Réu AD... exercia as suas funções, tal serviço não estava disponibilizado, à semelhança de outros existentes no distrito de Braga».
E nesse seguimento, acabou por decidir que «sopesando as limitações de um médico de clínica geral no exercício de funções de planeamento familiar e acompanhamento de grávidas e a ausência de um serviço estruturado como o que existia em outros centros de saúde do distrito de Braga, é, por certo limitador da ação e decisão do Réu AD...» e, pese embora, considere existir, em primeira linha, uma atuação ilícita e culposa do Réu AD..., conclui que nas «circunstâncias como nas dos presentes autos, ocorre o manifesto anormal funcionamento do serviço do Réu globalmente considerado como sendo uma situação em que «atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos». E entendeu que « mostrando-se provado que, pela via da impossibilidade de o Réu AD... poder dispor, como outros centros de saúde do distrito de Braga, de serviço complementar de avaliação e rastreio e, assim, decidir de forma esclarecida e inequívoca pelo melhor caminho, quanto à necessidade ou utilidade de realização de outros exames complementares de diagnóstico, é patente o anormal funcionamento de um serviço de acompanhamento de grávidas no centro de saúde de (...) a que a Autora recorreu, ao não disponibilizar o conjunto de meios absolutamente imprescindíveis ao seu funcionamento.
Assim, é a ARS Norte responsável pelo pagamento dos danos, com exclusão de tal responsabilidade dos Intervenientes».
Desta decisão foi interposto recurso pela ARS Norte, imputando-lhe erro de julgamento, entendendo que, ao contrário do decidido, a ação devia ter sido julgada improcedente. A primeira discordância prende-se com a condenação da mesma com fundamento no funcionamento anormal dos serviços e o segundo fundamento com o facto de o Tribunal a quo ter considerado a atuação do 1.º Réu como ilícita e culposa. Subordinadamente, também os Autores recorreram da sentença proferida pela 1.ª Instância, advogando que o 1.º Réu devia ter sido condenado solidariamente com a ARS Norte no pagamento da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo.
Nas conclusões 1.ª a 6.ª das alegações de recurso, a Apelante sustenta que estando judicialmente estabelecida a autoria dos atos médicos realizados, bem como determinadas as circunstâncias de lugar e de tempo, num Serviço de Cuidados de Saúde Primários, num centro de saúde, não pode operar-se a subsunção da matéria de facto e, por conseguinte, do respetivo objeto da instância ao fundamento de um «anormal funcionamento de serviço» de saúde. Invoca que a presente ação foi instaurada tendo como causa de pedir, complexa, inerente a este tipo de responsabilidade, apenas a «grave negligência» médica imputável a médico, agente identificado dos atos médicos, pelo que, não podia o Tribunal a quo desviar-se da responsabilidade por imputação subjetiva, com apreciação dos vários pressupostos em que a mesma se decompõe, muito menos invadir outros campos de hipotética responsabilidade, condenando a apelante com fundamento numa causa de pedir que não foi invocada pelos Autores. Expõe, para o efeito, que do teor dos artigos 24.º e 33.º da p.i. se extrai linearmente que a imputação feita visa caracterizar a ação médica como de negligência grosseira e de má atuação por parte do réu médico, sem invocação de qualquer outro fundamento, sendo que em tais casos, a doutrina e a jurisprudência analisam a ‘responsabilidade objetiva’ constituída pela denominada «faute du service» ou de “funcionamento anormal dos serviços” em termos que não consentem a verificação de tal fundamento quanto a um serviço que no ano de 2003 não tinha completamente implementada uma rede de articulação entre a ação hospitalar especializada e os cuidados de saúde primários.
Daí que, ao ter acolhido esta via de fundamentação do sentido decisório, a sentença desviou-se do sentido acolhido pelas normas dos artigos 265º/1 e 609º/1 do CPC que ficam assim frontal e diretamente violadas (a causa de pedir só pode ser alterada mediante regras precisas e a sentença não pode desviar-se do objeto da causa).
Em suma, a Apelante argumenta que a condenação com fundamento no funcionamento anormal do serviço pretere o contraditório, impedindo a ré de questionar matérias como por exemplo «identificar essas regras da «rede de apoio» e de articulação entre as Unidades de cuidados de saúde primários (os Centros de Saúde e as suas extensões), impulsos, repartição de competências, referenciação (quem encaminha para que Serviço), tempos, atribuição da indicação para a observância das recomendações da Direção Geral de Saúde quanto ao acompanhamento das situações de gravidez)», estando a mesma afetada da contradição intrínseca de seguir o fundamento da «faute du service» ou funcionamento anormal do serviço e a imputação subjetiva ao réu médico interveniente no encaminhamento da grávida.
Vejamos.
Afigura-se-nos que assiste inteira razão à Apelante. A respeito da “faute de service”, o STA, em acórdão de 04/02/2021, proferido no processo n.º 022/09.6BEPNF, escreveu que: «A denominada “faute du service”, consiste na teoria que se traduz numa criação jurisprudencial do Conselho de Estado Francês, sendo que, por meio dela, se abandonou a distinção entre atos de gestão e atos de império e a averiguação da culpa do agente, para se indagar a culpa do Estado.
Ou seja, a culpa pessoal, individual do agente é substituída, na falta do serviço, pela culpa do próprio Estado, pela "culpa administrativa", peculiar do serviço público, quase sempre "anónima".
Trata-se de um juízo de censura decorrente de culpa anónima ou culpa coletiva, derivada da insusceptibilidade de imputação subjetiva dos danos produzidos à atuação danosa ilícita de autoria material identificada de agentes do Estado, quando não é possível individualizar o responsável ou porque a responsabilidade se diluiu na atividade operativa e organizacional do serviço considerado no seu conjunto «faute du service».
Estamos perante um instituto que fundamenta o dever da Administração Pública na indemnização do lesado, mesmo que não seja possível o apuramento concreto e individual do agente causador do dano.
Considera-se que ocorreu um funcionamento anormal do serviço e o “culpado” é o serviço público demandado dado que a culpa do serviço existe também nas situações em que o serviço público assume a falha de um funcionário, ou conjunto de funcionários, que não foi ou é possível identificar.
Ou seja, a operacionalidade da teoria da “falta do serviço” coloca-se sempre que não é possível individualizar como fonte de obrigação de indemnizar, uma ação ou omissão concretas causadoras do dano sofrido – os danos verificados não são suscetíveis de serem imputados a este ou àquele comportamento em concreto de qualquer agente administrativo, antes são consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo em causa
O funcionamento anormal do serviço abrange os casos em que os danos não possam ser diretamente imputados a um comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente, antes resultando de uma atuação global que envolva uma responsabilidade dispersa por diversos sectores ou intervenientes.
A culpa do serviço envolve a lesão resultante de falhas imputáveis ao serviço globalmente considerado em que a responsabilidade se dilui na atividade operativa do serviço considerado no seu conjunto. Neste sentido, cfr. Cons. Carlos Alberto Fernandes Cadilha in “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado”, anotado, 2.ª edição, pág. 164 aplicável ao caso dos autos por ser um regime que já decorria do anterior.
Pese embora a teoria da “faute de service”, seja há muito tempo aceite pela doutrina e pela jurisprudência da mais alta instância desta jurisdição, para caracterizar o ato ilícito e a culpa, a verdade é que a sua aplicação apenas pode colocar-se quando na ação não é indicada, como causa de pedir, ou seja, como fonte da obrigação de indemnizar, uma ação ou omissão concretas causadoras do dano sofrido.
Como se refere no Acórdão do STA, de 12/03/2009, processo n.º 067/09 «a operacionalidade dessa teoria coloca-se quando não é individualizada, como fonte da obrigação de indemnizar, uma ação ou omissão concretas causadoras do dano sofrido».
Conforme se escreveu no sumário do Acórdão do STA, de 07/12/99, proferido no recurso 44836: "A responsabilização da Administração por factos ilícitos (ações ou omissões) no âmbito da gestão pública não depende necessariamente da individualização, pelo lesado, dos representantes ou agentes da Administração a quem sejam imputáveis factos ilícitos concretos, podendo também resultar da chamada falta do serviço, naquelas situações em que os danos verificados não são suscetíveis de serem imputados a este ou àquele comportamento em concreto de um qualquer agente administrativo, antes são consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo em causa".
No presente recurso, é suscitada a questão de saber se tendo os Autores na respetiva petição inicial alegado apenas como fundamento para o pedido indemnizatório a atuação individual, ilícita e culposa do 1.º Réu, que reputaram como violadora da legis artis, advogando que nas circunstâncias verificadas se impunha ao 1.º Réu que tivesse determinado a sujeição da Autora ao exame de diagnóstico/ amniocentese, e não tendo alegado qualquer outro fundamento para a sua pretensão indemnizatória, designadamente, o mau funcionamento dos serviços que integram o 2.º Réu, o Tribunal a quo podia ter condenado a Recorrente com fundamento na “faute de service” , entendendo a Recorrente que essa condenação traduz uma condenação que viola o objeto do processo, por assentar numa causa de pedir que não foi alegada, proferida com clara violação do princípio do contraditório.
Como já vimos, na fundamentação de facto da sentença recorrida, o Tribunal a quo levou aos factos assentes a seguinte matéria:
«33.No âmbito da constituição da comissão de diagnóstico pré-natal e com vista a integração num centro de diagnóstico combinado, que funcionaria entre um serviço proposto pelo Hospital de (...), entre outros à Ré ARS Norte, foi proposto que tal serviço se estendesse a todos os centros de saúde do distrito de Braga, mas não foi implementado, entre outros, no Centro de Saúde de (...), onde a Autora Mãe era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM....
34.Por falta de resposta atempada da ARS Norte, o serviço identificado no ponto anterior não foi implementado no Centro de Saúde de (...), onde a Autora era seguida na sua gravidez – cfr. depoimento da testemunha JM...
35.O serviço de rastreio pré-natal combinado foi implementado em alguns centros de saúde do distrito de Braga e permitia a realização de diagnósticos e avaliação de exames de forma mais especializada, em ligação com centros de saúde do distrito de Braga – cfr. depoimento da testemunha JM....»
Porém, como é consabido, a causa de pedir consiste no facto ou conjunto de factos alegados, de que os autores pretendem fazer emergir o direito que invocam- Cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STA, de 28/02/89, recurso 26054; 30/04/96, recurso 34726, de 15/05/03, processo 212/03.
Por outro lado, neste tipo de ações, a causa de pedir é complexa, na medida em que nela se incluem os já referenciados pressupostos da obrigação de indemnizar, sendo que a causa de pedir não consiste no enunciação de um facto jurídico em abstrato, antes se devendo traduzir no facto jurídico concreto de onde nasce o direito de que se arroga o autor.
Ademais, cumpre não esquecer que, como bem realça Antunes Varela, in RLJ nº 121º - 147 e ss.- no plano funcional ou operacional, a causa de pedir é o elemento que, com o pedido, identifica a pretensão da parte e que, por isso, ajuda a decidir da procedência desta, designadamente, mediante a prévia averiguação da sua existência.
A nossa legislação processual consagra a teoria de substanciação, segundo a qual o objeto da ação é o pedido, definido através de certa causa de pedir. Por força dos princípios do dispositivo e do contraditório, os Autores tinham, logo na petição inicial, de expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à ação. Ora, coligida a petição inicial, verifica-se que os Autores se limitaram a invocar como causa de pedir os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos exclusivamente por referência à atuação do 1.º Réu, que consideram como tendo sido o único responsável pela não interrupção voluntária da gravidez, que veio a culminar no nascimento da filha de ambos com Síndrome de Down.
Os autores não fundamentaram, pois, a sua pretensão indemnizatória contra os Réus no anormal funcionamento do serviço, tanto assim que não alegaram os factos constitutivos da causa de pedir destinada a suportar um pedido indemnizatório contra a Recorrente ARSN com fundamento no anormal funcionamento do serviço e, tais factos, essenciais integrativos dessa causa de pedir tinham imperativamente de terem sido alegados na petição inicial conforme é decorrência dos princípios do dispositivo e do contraditório- artigo 5.º, n.º1, 552.º, n.º1, al. d) e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC.
Ora, não tendo os Autores fundamentado o seu pedido indemnizatório no anormal funcionamento dos serviços, não alegando na p.i. como causa de pedir esse anormal funcionamento da Recorrente ARSN e sendo indiscutivelmente a facticidade julgada provada nos pontos 33 a 35 do elenco dos factos provados ( que já supra, cuidamos de eliminar) factos essenciais integrativos dessa causa de pedir que incumbia aos Autores alegar na p.i., é apodítico que o Tribunal a quo ao julgar esses factos como provados incorreu em violação dos enunciados princípios do dispositivo e do contraditório, o que determina que se imponha ao Tribunal ad quem, eliminar, ainda que oficiosamente, como fez, essa matéria do elenco dos factos provados, conforme supra já se determinou.
Na verdade, o conteúdo da decisão quanto ao julgamento de facto é excessivo sempre que envolva a consideração de factos essenciais para a integração da causa de pedir ou das exceções ( art.º 5.º, n.º1) ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5.º, n.º2 cumprindo nesses casos à 2.ª Instância suprir esse excesso mediante a eliminação de tais factos do elenco dos factos provados ou não provados na sentença recorrida ( cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código Processo , 2017, IV edição, pág. 291 a 294).
Avançando, ao fundar o pedido condenatório da Recorrente em “faute de service” quando essa causa de pedir não foi alegada pelos Autores na p.i. como fundamento da sua pretensão indemnizatória/pedido é indiscutível que a sentença recorrida nos termos da qual condenou a ARS Norte a pagar a cada um dos Autores Pai e Mãe, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento; à Autora filha, a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento e a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento; e a quantia a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais resultantes da perda de rendimento suportadas pelos Autores Pai e Mãe, nos termos do artigo 358.º, n.º 2 e ss. e 609.º, n.º 2 do Código do Processo Civil, tal como acusa a apelante acontecer, neste conspecto, essa sentença padece do vício da nulidade por excesso de pronuncia - art.º 615.º, n.º1 al. d) do CPC.
Com efeito, conforme antedito, cremos que amplamente, os AA. fundaram única e exclusivamente a sua pretensão indemnizatória na responsabilidade individual do 1.º Réu/ médico, por via do comportamento ativo e omissivo que lhe imputam e descrevem na p.i., não fundando esse pedido indemnizatório num anormal funcionamento dos serviços em geral da Recorrente, tanto assim, que não alegaram qualquer facticidade em sede de p.i. suscetível de ancorar esse anormal funcionamento dos serviços, o qual não constitui assim causa de pedir do pedido indemnizatório deduzido pelos Autores.
Logo, ao conhecer do anormal funcionamento dos serviços com base em factos essenciais não alegados na p.i., e que, por isso, já se determinou a respetiva eliminação do elenco dos factos provados na sentença, e ao condenar a Recorrente com fundamento nessa causa de pedir (faute de service), o Tribunal a quo conheceu de questão - causa de pedir - não alegada pelos AA. e de que não lhe era permitido conhecer oficiosamente, com o que violou frontalmente os princípios do dispositivo e do contraditório, incorrendo, nessa parte, no vício da nulidade da sentença recorrida, nos termos da al. d), n.º1 do art.º 615.º, art.º 5.º, n.º1 e 609.º, n.º1 do CPC.
Na verdade, nos termos do artigo 609.º, n. º1 do CPC «A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido».
Conforme ensina Alberto dos Reis, in CPC Anotado, 3.º-353, não basta que haja coincidência entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, que haja identidade entre a causa de pedir ( causa pretendi) e a causa de julgar ( causa judicandi).
Nesta conformidade, declara-se nula a parte da sentença em que a 1.ª Instância nela conhece da responsabilidade civil da Recorrente ARSN por anormal funcionamento dos serviços e com base nesta causa de pedir não alegada pelos Autores na petição inicial para suportar os pedidos condena a Recorrente a pagar aos Autores as importâncias supra referidas, por condenação em objeto diverso (artigo 609.º, n.º1 do CPC) e excesso de pronúncia nos termos da al. d), n.º1, art.º 615.º do CPC.
b.2. Do erro de julgamento decorrente da consideração da atuação clínica do 1.º Réu como ilícita e culposa.
O segundo fundamento de recurso invocado pela Apelante, refere-se à responsabilidade subjetiva do Réu AD..., que pese não tenha sido condenado solidariamente com a ARS Norte no pagamento da indemnização aos Autores decidida pelo Tribunal a quo, na fundamentação da sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou a sua atuação ilícita e culposa, não correspondendo ao padrão de comportamento que lhe era exigível em face da legis artis.
Nas conclusões 7.ª a 18.ª, a Apelante insurge-se contra as considerações efetuadas na sentença recorrida em relação ao Réu AD..., quando se afirma que o mesmo agiu de forma ilícita e culposa.
Segundo a Apelante, o Tribunal a quo errou nessa decisão, uma vez que não identificou a existência de uma “lex artis” a que o médico de medicina geral estivesse obrigado de referenciar a grávida para a realização de um exame de diagnóstico pré-natal (DPN) de amniocentese, por tal não se achar estabelecido nem haver indicações para o efeito.
Concretiza que a amniocentese, enquanto exame de DPN, especializado, como se extrai do Despacho nº 5411/97 e se mostra razoável, obedece a um regime próprio e constitui um ato médico especializado a prescrever por médico especialista.
Ademais, nada impunha que o médico de medicina geral devesse suspeitar de um rastreio bioquímico que deu resultado negativo orientando a grávida como se fosse positivo, por se poder considerar que ocorrem «falsos negativos».
A articulação entre os sucessivos atos médicos de acompanhamento da grávida começa pela própria grávida quando escolhe realizar a 1ª ecografia, do 1º trimestre, a do 2º trimestre e a última, do 3º trimestre, todas sob indicação do réu médico, em locais e perante profissionais diferentes, especialistas, ecografistas.
Nem se mostra devidamente densificado a invocada violação do dever de cuidado, fora do dever de informar: a grávida realizou todos os exames ecográficos standard previstos pela D-GS como sejam as 3 ecografias de seguimento, nos tempos próprios, bem como o rastreio bioquímico indicado pela médica obstetra, que deu resultado negativo, não sendo à época exigível antecipar que pudesse ser um «falso negativo» e agir como se fosse positivo;
Quando por relação à fixação e estabelecimento das ““legis artis”” ocorra haver diferenças de intervenções de médicos e serviços, incluindo contradições entre «fontes» mostra-se exigível uma fundamentação judicial para a opção tomada. A imputada preterição do dever de informar não constitui causa adequada do dano físico ocorrido, por apenas repercutir sobre a lesão do direito à autonomia do doente, à autodeterminação em cuidados de saúde; a que acresce não ocorrer um facto cuja prova sempre se exigiria, para uma causalidade indireta – entre a omissão da informação e o dano da vida com deficiência – que era a demonstração de uma vontade de interromper a gravidez, o que não ocorre, como o reconhece a douta sentença no passo relativo aos factos não provados (página 66 da sentença). A falta de informação ao doente nunca é causa adequada do dano físico, mas apenas da autodeterminação da doente em cuidados de saúde, mas entre a invocada falta de informação – estabelecida pela sentença entre a 1ª e a 2ª ecografia – e o nascimento da criança com trissomia 21 está a não ocorrência da vontade da grávida de interromper a gravidez, como resulta da prova estabelecida. Sendo que, pelo contrário, ficou a grávida esperançada com o resultado da 2ª ecografia.
Assiste inteira razão à Recorrente, impondo-se revogar a sentença recorrida quando assim julgou.
Como já vimos, para se aferir do requisito da ilicitude é necessário que, no caso, os Autores tivessem alegado e provado factos com poder persuasivo bastante para num juízo corrente de probabilidade firmar o convencimento de que o resultado danoso verificado traduzido no nascimento da sua filha com Síndrome de Down foi antecedido de gestos clínicos do Réu praticados ou omitidos com desrespeito das regras de ordem técnica e/ou do dever geral de cuidado, próprios da atividade médica ( cfr. Ac. STA de 16/01/2014, Proc. 0445/13, in base de dados da DGSI.).
No caso dos autos, os Autores fundam a pretensa ilicitude da atuação do médico assistente AD..., nos seguintes factos: (i) perante o resultado da 1.º ecografia que indicou a existência na nascitura de uma “TN de 3,1mm” terem manifestado ao 1.º Réu, na semana de 06/11/2003, ou seja, com 12 semanas de gravidez, a vontade inequívoca de interrupção voluntária da gravidez, o mesmo se ter negado a colaborar, negando-lhe o internamento para esse efeito, quando existia já um caso com Síndrome de Down na família- sobrinha, filha de uma irmã do Autor marido- ( cfr. artigos 15.º a 18.º da p.i.); (ii) perante o resultado negativo do rastreio bioquímico, que contudo «não exclui a possibilidade de Síndrome de Down», o 1.º Réu não ter pedido imediatamente a realização do teste de amniocentese e/ou colheita de vilosidades da placenta para confirmação diagnóstica ( artigo 19.º e 20.º da p.i.); (iii) que esse comportamento violou todas as regras da arte médica ( artigo 21.º da p.i.).
E como vimos, não se provou que impendesse sobre o 1.º Réu, que perante aquelas circunstâncias, determinasse a sujeição da Autora a uma amniocentese. E ao agir como agiu, não se provou que o mesmo tivesse violado a legis artis que ao tempo enquadrava a sua atuação enquanto médico de família em centro de saúde com intervenção na área do planeamento familiar e acompanhamento de grávidas.
Não se provou que fosse exigível/imposto/ esperado do Réu que perante a existência de uma 1.º ecografia onde se detetou a existência, no feto, de uma “TN de 3,1mm”, em cujo relatório se recomendou a realização de um rastreio bioquímico, e que tendo o mesmo ordenado a realização desse exame, cujo resultado foi negativo, embora nesse mesmo exame se referisse que tal não exclui a existência, em absoluto, de Síndrome de Down, aquele tivesse de requerer a realização de um exame de amniocentese ou de remeter a Autora para uma consulta de diagnóstico pré-natal no HSM.
Recorde-se que conforme se refere no Ac. do STA de 13/03/2012, proferido no rec. 477/11 “As legis artis são regras a seguir pelo corpo médico no exercício da medicina. Umas são normas escritas, contidas em lei do Estado (Vide, por ex. o, o art. 13º do DL nº 282/77, de 5/07 (Estatuto do Médico)) e/ou em instrumentos de autorregulação (vejam-se as prescrições do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e as que estão vertidas em guias de boas práticas ou protocolos de atuação). Outras, na sua maioria, são regras não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes. (Cfr., a propósito, Sónia Fidalgo, “Responsabilidade Penal Por Negligência No Exercício da Medicina Em Equipa”, p. 74 e segs.)”.
No caso, conforme resulta dos factos não provados, não se provou que o 1.º Réu tivesse a obrigação de prescrever a sujeição da Autora a uma amniocentese, por não se ter provado que essa obrigação fizesse parte da legis artis. Não se provou que a prescrição desse exame à Autora, nas concretas circunstâncias em o 1.º Réu atuou, fizesse parte do padrão de atuação que o mesmo podia e devia ter seguido.
Não se provou que na data em que o 1.º Réu interveio como médico assistente da Autora existisse algum procedimento escrito que enquadrasse a atuação do médico de família em situações como a verificada. Esse protocolo escrito apenas foi elaborado e disponibilizado em 2005. Havia, sim, um conjunto de procedimentos não escritos que faziam parte da praxis médica que eram seguidos, mas que, em situações como a verificada, não determinavam ao médico assistente que tivesse agido de outro modo.
Note-se que no protocolo escrito datado de 2005, apenas se prevê o encaminhamento da grávida para uma consulta de diagnóstico pré-natal quando o rastreio bioquímico dê um resultado positivo, nada se determinando quando esse resultado seja negativo, como ocorreu no caso em analise.
E não se tendo apurado que o Réu AD... tivesse incorrido na violação de qualquer legis artis, claudica o pressuposto da ilicitude e com ele os pressupostos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito, o que determina a improcedência do pedido.
Termos em que procede o invocado fundamento de recurso.
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DO RECURSO SUBORDINADO INTERPOSTO PELOS AUTORES
Os Autores recorreram subordinadamente, pretendendo que este Tribunal ad quem condene a Administração Regional de Saúde Norte, S. A. e o recorrido AD... de modo solidário, nos montantes e modos determinados na sentença e em função da respetiva culpa, e ainda se condene solidariamente aqueles, no pagamento a cada um dos autores marido e esposa no montante de 40 000, 00 € e à autora Filipa Manuel deve ser pago o montante de €= 50 000, 00, mantendo-se tudo o mais conforme o já decidido.
Para tanto alegam que houve violação das “legis artis” por parte do médico AD..., uma vez que, por sua do seu comportamento, viram-se privados da informação necessária à eventual realização de exame recomendado para o esclarecimento de dúvidas sobre a existência de Síndrome de Down no feto, por forma a que, mediante circunstâncias a ponderar clinicamente, pudessem decidir pelo prosseguimento ou não da gravidez, sendo esta omissão, portanto, o facto ilícito, o que traduz uma conduta culposa, atendendo às concretas circunstâncias do caso e aos conhecimentos médicos de que era suposto ao Réu AD..., enquanto funcionário do Centro de Saúde de (...) e consequentemente da Ré ARS Norte, possuir.
Assim, entendem que sempre o mesmo deveria ter sido condenado, solidariamente com a recorrente, pela omissão dos deveres de cuidado que perpetrou, e que constituíram uma violação das legis artis médicas mostrando-se preenchidos, os requisitos da ilicitude, da culpa, do dano, (prejuízos morais para os pais e para a própria nascitura, como os decorrentes do nascimento do feto com malformações congénitas, nomeadamente o Síndrome de Down.
A sorte deste recurso está fatalmente votada ao insucesso, tendo em consideração a decisão que acima prolatamos, em que se conclui claudicar o requisito de ilicitude, o que necessariamente leva à improcedência do pedido.
Ademais, sempre se dirá que, ainda que este Tribunal ad quem considerasse que, em face dos factos provados e não provados, o 1.º Réu agiu de forma ilícita e culposa, no domínio do DL n.º 48 051, de 21/11/67- vide artigos 2.º e 3.º-, a responsabilidade seria exclusiva da Administração, no caso da ARS, apenas tendo a mesmo direito de regresso, caso se concluísse que os atos praticados pelo funcionário, no caso, o médico, o foram com negligência grave. Na vigência deste diploma, apenas havia lugar à responsabilidade solidária da Administração no caso de atos praticados com dolo.
Não tendo o réu AD... agido de forma ilícita e culposa, nem sendo a sua ação causal ao surgimento dos danos ocorridos, não se verificam em relação a si os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que não pode ser responsabilizado pelos danos reclamados pelos autores.

Termos em que improcede o invocado fundamento de recurso.
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IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte em julgar a apelação procedente, no que tange ao recurso principal e improcedente no que respeita ao recurso subordinado e, em consequência:

a- ordenam a eliminação do elenco dos factos julgados provados na sentença dos pontos 33 a 35, por consubstanciarem factos essenciais de causa de pedir (“faute de service”) não alegados pelos autores na petição inicial;

b- aditam ao elenco dos factos não provados a facticidade supra descrita;

c-declaram nula a sentença recorrida no segmento em que conhece de causa de pedir – faute de service - não invocada pelos Autores na petição inicial, incluindo, o segmento decisório em que com fundamento nessa causa de pedir (não alegada) se condena a Ré ARSN a pagar a cada um dos Autores Pai e Mãe, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento; à Autora filha, a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento e a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento; e a quantia a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais resultantes da perda de rendimento suportadas pelos Autores Pai e Mãe, nos termos do artigo 358.º, n.º 2 e ss. e 609.º, n.º 2 do Código do Processo Civil;

d- no mais, com a presente fundamentação, confirmam a sentença recorrida na parte em que absolve o 1.º Réu dos pedidos e absolvem ambos os Réus de todos os pedidos;

Custas do recurso principal e subordinado pelos autores (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*

Porto, 13 de maio de 2022

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa