Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01986/21.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/04/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:ERRO NA FORMA DE PROCESSO;
AÇÃO DE CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL;
PEDIDO INDEMNIZATÓRIO;
Sumário:
1-Ocorre o vício processual de erro na forma de processo quando a pretensão formulada pelo Autor na p.i. não seja deduzida segundo a forma geral ou especial de processo legalmente previstas. Tal vício só determinará a anulação de todo o processo, e a absolvição do réu da instância, nos casos em que a própria p.i. não possa ser aproveitada para a forma de processo adequada.

2- No contencioso administrativo, as formas de processo declarativo são as de natureza urgente a que se reporta o artigo 36.º do CPTA e a ação administrativa regulada nos artigos 37.º e ss. do CPTA.

3- O regime de contencioso pré-contratual é aplicável a todos os atos lesivos praticados em procedimentos administrativos tendentes à formação dos contratos taxativamente referidos no n.º 1, do artigo 100º do CPTA, excluindo a aplicação do regime comum de impugnação de atos administrativos, de acordo com a regra da especialidade e adequação dos meios adjetivos, não podendo os particulares optar entre ele e o regime geral previsto no artigo 37º do CPTA (cfr. alínea c), do n.º 1, do artigo 97º do CPTA).

4- Na presente ação, não tendo a Autora deduzido nenhum pedido impugnatório de um ato administrativo de não adjudicação, a que correspondesse a forma processual prevista no artigo 100.º do CPTA, antes tendo proposto uma ação com vista a obter a reparação dos prejuízos que alega ter sofrido em consequência do ato de não adjudicação, com fundamento em responsabilidade civil, inexiste erro na forma de processo.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:

I.RELATÓRIO
1.1. [SCom01...], LDA, pessoa coletiva ..., com sede no Lugar ... – ..., ... (...), moveu, a presente ação administrativa contra o MUNICÍPIO ..., pessoa coletiva ..., com sede no Largo ..., ... (...), o que fez ao abrigo do disposto no artigo 37.º, n.º 1, alínea k) e do artigo 4.º, n.º 3, ambos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, formulando o seguinte pedido:
«Deve julgar-se a presente ação procedente e em consequência:
I. Ser declarada ilícita a decisão de não adjudicação efetuada pela ré;
II. II. Ser a ré condenada no pagamento do montante de 25 419,15€ (VINTE E CINCO MIL QUATROCENTOS E DEZANOVE EUROS E QUINZE CÊNTIMOS) acrescido de juros de mora vencidos desde a prática do facto ilícito, nos termos do artigo 805.º, número 2, alínea b) do Código Civil, a título de lucros cessantes.»
Como fundamento da sua pretensão alega, em síntese, que concorreu ao concurso público, para a prestação de serviços no âmbito do contrato de empreitada «PAVIMENTAÇÃO DO CAMINHO DO PINHÃO, DA ESTRADA ..., DO CAMINHO ..., DA TRAVESSA ... E DA RUA ... EM ..., DA ESTRADA ..., ...», tendo a proposta que apresentou, pelo preço de 101 676,60€ sem IVA, sido ordenada em 1.º lugar;
Acontece que, no dia 17 de março de 2021, a Ré extinguiu o concurso público em causa, com fundamento na ocorrência de circunstâncias imprevistas e de circunstâncias supervenientes, nos termos do artigo 79.º, alíneas c) e d) do Código dos Contratos Públicos;
A referida decisão de extinção do procedimento é ilegal, viola expectativas legitimamente criadas pela autora e são, por isso, geradoras de responsabilidade pública extracontratual, nos termos do artigo 7.º, número 2 da Lei 67/2007;
Sustenta que se não houvesse incumprimento por parte do Réu, arrecadaria um proveito de 25 419,15€, pelo que deve o mesmo ser condenado no pagamento desse montante acrescido de juros de mora vencidos desde a prática do facto ilícito, nos termos do artigo 805.º, número 2, alínea b) do Código Civil, a título de lucros cessantes.
1.2. Citado, o Réu contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção invocou, entre o mais, a exceção do erro na forma de processo, sustentando, em termos sumários, que a Autora devia ter impugnado o ato administrativo que extinguiu o procedimento que considera ilegal em sede de contencioso pré-contratual, pelo que, não o tendo feito, ocorre evidente erro na forma do processo, que determina a absolvição da instância (artigos 573º, 576º, nº 1 e 2, 577º alínea b) e 578º do CPC ex vi artigo 1º e 89º nº4 al. b) do CPTA quando conjugado com o artigo 186. 2 n. 2 1 e 2 al. a) do CPC).
Mais alega que o erro na forma processo é na situação em causa insuscetível de convolação, porquanto, ocorre caducidade do direito de ação uma vez que, nos termos do nº 1 do artigo 101º do CPTA, “os processos do contencioso pré-contratual devem ser intentados no prazo de um mês (...)”, sendo que, a A. foi notificada da extinção do concurso público em 30 de março de 2021, e os presentes autos apenas entraram em juízo em setembro de 2021.
Na defesa por impugnação, contrariou a argumentação expendida pela Autora, tendo pugnado pela improcedência da presente ação.
1.3. A Autora replicou, pugnando pela improcedência de todas as exceções invocadas pelo Réu.
No que concerne à exceção do erro na forma de processo, aduziu que o contencioso pré-contratual é um processo especial, pelo que só são dedutíveis a título principal através deste processo as pretensões tipicamente previstas: impugnação e atos e condenação à prática de ato devido;
No caso, afirma que peticionou, a título principal, uma indemnização a título de lucros cessantes, não tendo pedido a anulação de qualquer ato, nos termos do disposto no artigo 165.º, número 2 do Código de Procedimento Administrativo, pelo que, não sendo esse o seu pedido, designadamente a título principal, terá de se concluir que estava obrigada a socorrer-se da ação administrativa comum – já que a especial não lhe é aqui aplicável.
1.4. Em 27/09/2022, a 1.ª Instância, após dispensar a realização da audiência prévia e fixar o valor da causa em € 25 419,15 (vinte e cinco mil quatrocentos e dezanove euros e quinze cêntimos), proferiu despacho saneador-sentença no qual conheceu das exceções invocadas pelo Réu, tendo julgado procedente a exceção do erro na forma de processo, constando da decisão recorrida o seguinte segmento dispositivo:
« Em face do exposto, julgo verificada a exceção de erro na forma de processo e inadmissível a convolação dos presentes autos na forma processual adequada (contencioso dos procedimentos de massa), em virtude da caducidade do direito de ação e, consequentemente, absolvo o R. da presente instância.
Custas a cargo da Autora.
Registe e Notifique.»
1.5. Inconformada com a decisão assim proferida que absolveu o Réu da instância, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, que culmina com a formulação das seguintes Conclusões:
«1.º A douta sentença recorrida julgou, grosso modo, que houve erro na forma do processo, aplicando-se as normas relativas ao contencioso pré-contratual, em virtude de a autora ter impugnado a decisão de extinção do procedimento concursal.
2.º A autora não impugnou qualquer decisão de conteúdo pré-contratual.
3.º A recorrente apenas pretende responsabilizar civilmente a ré, nos precisos termos do artigo 37.º, número 1, alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
4.º A autora enquadrou o facto ilícito gerador de responsabilidade civil da ré, através da alegação da ilicitude da decisão de não adjudicação.
5.º Assim, a declaração de ilicitude da decisão de não adjudicação serve de ponto de partida, de base, para um dos pressupostos de efetivação de responsabilidade civil – é um mero pedido secundário.
6.º Consequentemente, os autos em causa não têm uma natureza impugnatória, mas, pelo contrário, ressarcitória.
7.º Tendo em conta esta natureza não-impugnatória, a ação foi proposta nos termos da regra prevista no artigo 38.º, número 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos; pelo que não há lugar à aplicação das normas do contencioso pré-contratual.
TERMOS EM QUE,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, proferindo-se douto Acórdão que decida pela revogação da, aliás douta, sentença recorrida.
NESTES TERMOS, Farão V.as Ex.as , Colendos Conselheiros, a habitual e sempre esperada
J U S T I Ç A .»
1.6.A Apelada não contra-alegou.
1.7. O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º1, do artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.
1.8.Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber se a dita decisão padece de erro quanto ao julgamento da matéria de direito nela realizado pela 1ª instância, o que passa por saber se no caso o presente meio processual era o adequado, contrariamente ao que foi decidido.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. A 1.ª Instância não fixou factos, sendo os factos que constam do relatório acima elaborado os necessários para habilitar este Tribunal a conhecer do objeto do recurso.
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III.B.DE DIREITO
3.2.O presente recurso de apelação vem interposto do saneador- sentença proferido pelo Tribunal a quo que absolveu o Réu da instância, dando como verificada a exceção de erro na forma de processo, e a impossibilidade de convolação na forma processual adequada.
3.3.A Senhora juiz a quo considerou para o efeito que da análise conjugada do disposto nos artigos 37.º, 97.º e 100.º a 103.º-B do CPTA, e do pedido formulado pela Autora, se verifica a exceção do erro na forma de processo, uma vez que o meio processual adequado à sua pretensão era a ação administrativa urgente de contencioso pré-contratual, e não a ação administrativa de que lançou mão, partindo do pressuposto de que na presente ação estava em causa a impugnação de um ato administrativo incluído nos atos impugnáveis por via de ação urgente de contencioso pré-contratual.
Ajuizou também não ser possível a convolação da presente ação para a forma processual adequada, uma vez que, tendo a autora sido notificada do « ato impugnado e que se prende com a extinção do procedimento pré-contratual» em 17/3/2021, «e sendo o prazo de impugnação contenciosa desse ato, de um mês, por força do estatuído no artº 101º do CPTA, e configurando-se este como um prazo substantivo que se conta nos termos do art.° 279° do Código Civil (CC), o prazo de propositura da ação de contencioso pré-contratual terminou no dia 18/4/2021», pelo que, tendo a presente ação sido instaurada em 01/09/2021, já tinha decorrido o prazo de um mês previsto no artigo 101.º do CPTA para a instauração de um processo do contencioso pré-contratual.
3.4.A Apelante não se conforma com a decisão assim proferida, assacando-lhe erro de julgamento, sustentando que não impugnou qualquer decisão de conteúdo pré-contratual, pretendendo apenas responsabilizar civilmente o Réu nos precisos termos do artigo 37.º, número 1, alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Alaga que enquadrou o facto ilícito gerador de responsabilidade civil do Réu, através da invocação da ilicitude da decisão de não adjudicação, sendo que a declaração de ilicitude da decisão de não adjudicação serve de ponto de partida/de base, para um dos pressupostos de efetivação de responsabilidade civil, tratando-se de um “mero pedido secundário”.
Como tal, advoga que os autos em causa não têm uma natureza impugnatória, mas, pelo contrário, a sua natureza é ressarcitória, e que a presente ação foi proposta nos termos da regra prevista no artigo 38.º, n.º1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não havendo lugar à aplicação das normas do contencioso pré-contratual.
E assiste-lhe razão. Vejamos.
3.5. Nos termos do n.º1 do artigo 78.º do CPTA « A Instância constitui-se com a propositura da ação e esta considera-se proposta logo que a petição inicial seja recebida na secretaria do tribunal ao qual é dirigida».
A entrada da petição inicial em juízo marca o início do processo, e daí que se diga que a petição inicial é « o articulado-base ( necessário) de todo e qualquer processo, o qual, sem a petição, não chega sequer a existir». Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Volume II, 2015, Almedina, pág.64.
Por força do disposto no n.º2 do artigo 78.º do CPTA, na petição com que propõe a ação, deve o autor:
«a) Designar o tribunal em que a ação é proposta;
b)Identificar as partes, incluindo eventuais contrainteressados, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e, sempre que possível, números de identificação civil, de identificação fiscal ou de pessoa coletiva, profissões e locais de trabalho, sendo a indicação desta informação obrigatória quando referente ao autor;
c) Indicar o domicilio profissional do mandatário judicial;
d) Indicar a forma do processo;
e) Identificar o ato jurídico impugnado, quando seja o caso;
f) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação;
g) Formular o pedido;
h) Declarar o valor da causa».
Na situação em analise, recorde-se, está em causa saber se a forma da ação escolhida pela Autora é ou não a forma correta.
3.6.Como bem se refere em acórdão do TRL “perante a invocação de um determinado direito subjetivo e livremente escolhida pelo autor a pretensão que contra o réu pretende deduzir, deve aquele, de seguida, ajustar a sua estratégia aos instrumentos processuais criados e, de entre eles, escolher aquele que for legalmente o mais adequado, e, desde logo, a forma de processo”. Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 22.02.2007, Relatora – Isabel Canadas;
Ora, a forma de processo, como recorrentemente se refere, afere-se em função do tipo de pretensão deduzida em juízo pelo autor, sendo que esta pretensão deve ser entendida como um certo pedido enraizado em certa causa de pedir. Vide Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., págs. 288 e segs. e Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ª ed., pág. 79. – neste sentido, cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 31/01/2008, proferido no processo 00620/04.BEBRG.
3.7. Assim, haverá erro na forma de processo sempre que a forma processual escolhida pelo Autor não corresponde à natureza ou valor da ação, e constitui nulidade de conhecimento oficioso – cfr. artigos 193º e 196º do CPC. Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 09/06/2017, processo n.º 03005/15..BEBRG, disponível in base de dados da DGSI.
Dir-se-á que, “O erro na forma de processo é um vício que se encontra definido e regulado na secção das nulidades processuais. Enquanto nulidade possui um regime próprio consagrado no artigo 193.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
Trata-se, portanto, em primeiro lugar de um vício sanável através da prática dos atos necessários à recondução do processo à forma adequada, sanação essa que só será inviável nos casos em que face às especificidades da forma adequada e da forma até aí seguida não seja possível aproveitar os atos já praticados.
Depois, trata-se de um vício que, exceto quando for insanável, não determina a nulidade de todo o processo uma vez que nos termos expressos do n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil esta só ocorre quando for inepta a petição inicial. Por conseguinte, o erro na forma de processo também não é uma exceção dilatória, em cujo elenco se inclui de facto a nulidade de todo o processo (artigo 577.º, alínea b) do Código de Processo Civil) mas no que, como vimos, não está compreendido o erro na forma de processo.” Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 8 de março de 2019, Relator – Aristides Rodrigues de Almeida.
3.8. Como vem dito, o erro na forma de processo afere-se em função do pedido, que mais não é do que o efeito jurídico, a finalidade ou resultado que o autor visa alcançar com a ação, e constitui vinculação temática para o tribunal. Com efeito, o pedido não só conforma ou molda o objeto do processo, como condiciona o conteúdo da decisão de mérito a emitir pelo tribunal competente.
Neste sentido, veja-se também o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13/05/2021, proferido no processo 01424/11.3BEBRG, onde se escreveu que: «o erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido.».
Assim, ocorre o vício processual de erro na forma de processo quando a pretensão formulada pelo Autor na p.i. não seja deduzida segundo a forma geral ou especial de processo legalmente previstas. Tal vício só determinará a anulação de todo o processo, (como exceção dilatória) e a absolvição do réu da instância, nos casos em que a própria petição inicial não possa ser aproveitada para a forma de processo adequada.
O erro na forma do processo constitui, portanto, uma nulidade, de conhecimento oficioso que, no entanto, só em casos excecionais, quando a forma processual utilizada for completamente inidónea para a obtenção da pretensão do autor, pode conduzir à extinção da instância com base na nulidade de todo o processado. Cfr.Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, pág. 248 e 249.
Em suma, “o que caracteriza o erro na forma do processo é que ao pedido formulado corresponda forma de processo diversa do empregue e não se mostre possível, através da adequação formal, fazer com que, pela forma de processo efetivamente adotada, se venha a conseguir o efeito jurídico pretendido pelo autor.” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado I, pág. 232)
3.9.No contencioso administrativo, as formas de processo declarativo são as de natureza urgente a que se reporta o artigo 36.º e a ação administrativa regulada nos artigos 37.º e ss. do CPTA. O campo de aplicação de cada forma de processo – a ação administrativa e processos urgentes- é estabelecido por referência aos diferentes tipos de pretensões que podem ser deduzidos em juízo ( cfr. artigos 37.º e 97.º a 111.º). Cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha, in “Comentário ao Código Processo nos Tribunais Administrativos», 5.ª Ed., Almedina, pág.601.
4.Dispõe o artigo 37.º do CPTA, no seu n.º1 que: «Seguem a forma da ação administrativa, com a tramitação regulada no capítulo III do presente título, os processos que tenham por objeto litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da competência dos tribunais administrativos e que nem neste Código nem em legislação avulsa, sejam objeto de regulação especial, designadamente:
a) Impugnação de atos administrativos;
(…)
k)Responsabilidade civil das pessoas coletivas, bem como dos titulares dos seus órgãos ou respetivos trabalhadores em funções públicas, incluindo ações de regresso;
(…)».
4.1.É consabido que após a revisão do CPTA, operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/15, a ação administrativa comum passou a ser a forma processual a que têm de sujeitar-se as mais diversas pretensões quando não exista um modelo especifico de tramitação previsto no CPTA que lhes corresponda, como é o caso das pretensões cuja tutela apenas pode ser exercitada através dos processos urgentes regulados nos artigos 97.º e seguintes do CPTA.
Observam esta forma de tramitação todas as pretensões que no regime anterior á revisão do CPTA de 2015, seguiam a forma de ação administrativa especial e da ação administrativa comum, engobando, assim, as pretensões relativas à prática ou omissão de atos administrativos e as relativas à omissão ou emissão de normas regulamentares, mas também as pretensões que respeitam a atuações da Administração que não envolvem o exercício de poderes de autoridade, onde se incluem as pretensões indemnizatórias.
Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha in Comentário ao Código de Processo Nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 5.ª Edição, Almedina, pag. 263;, em anotação a este preceito- artigo 37.º do CPTA-, a ação administrativa «« é a forma do processo comum do contencioso administrativo, no sentido de que se trata da forma de processo que «recebe no seu âmbito todos os litígios jurídico-administrativos excluídos pela incidência típica dos restantes meios processuais»». ( sublinhado nosso).
4.2.Estando em causa a tutela judicial de uma pretensão indemnizatória, é incontestável que o meio processual adequado é a ação administrativa, tratando-se de uma situação como tal expressamente prevista na alínea k) do n.º1 do artigo 37.º do CPTA.
4.3.Importa também atentar no que dispõe o artigo 38.º do CPTA, normativo que sob a epígrafe “Ato administrativo inimpugnável”, prescreve a seguinte disciplina:
«1- Nos casos em que a lei substantiva o admita, designadamente no domínio da responsabilidade civil da Administração por atos administrativos ilegais, o tribunal pode conhecer, a título incidental, da ilegalidade de um ato administrativo que já não possa ser impugnado.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, não pode ser obtido por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação do ato impugnável».
Resulta deste normativo a possibilidade de o interessado invocar a ilegalidade de uma decisão administrativa inimpugnável, ou seja, em relação à qual se mostrem já decorridos os prazos legais dentro dos quais era possível pedir a sua anulação, desde que, com tal essa invocação não se vise obter efeitos jurídicos coincidentes com os que resultariam da procedência de uma ação de impugnação.
Este preceito prevê a hipótese de o tribunal conhecer, a título incidental, da ilegalidade de uma decisão administrativa, para o efeito de apreciar a responsabilidade civil, nos casos em que a impugnação dessa decisão já não seja permitida por terem decorrido os prazos legais de impugnação contenciosa. «Esse preceito esclarece que a impugnação do ato administrativo lesivo não constitui pressuposto processual da ação de indemnização, embora o seu efeito prático continue fortemente limitado pelo atual artigo 4.º do RRCEE, que continua a permitir que o tribunal reduza ou exclua a indemnização com fundamento em conduta processual negligente do interessado, quando esta possa ter contribuído para a produção ou agravamento dos danos»- cfr. ob. cit., pág.281.
4.4.Para além da ação administrativa a que se reporta o artigo 37.º, o CPTA prevê, no Título III- artigos 97.º e seguintes- três formas de processo especiais, sendo a primeira dessas formas, a ação administrativa urgente que abrange as situações que têm por objeto: (i) questões de contencioso eleitoral ( artigo 98.º); (ii) o contencioso dos atos administrativos praticados no âmbito dos procedimentos de massa ( artigo 99.º) e o contencioso pré-contratual dos contratos abrangidos pelas Diretivas europeias da contratação pública ( artigos 100.º a 103.º-B).
4.5.Para o que releva para o objeto do presente recurso, importa ponderar no disposto no artigo 100.º, n.º1 do CPTA, que reza assim:
«1- Para efeitos do disposto na presente secção, o contencioso pré-contratual compreende as ações de impugnação ou de condenação à prática de atos administrativos relativos à formação de contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços.
2-Para os efeitos do disposto na presente secção, são considerados atos administrativos os atos praticados por quaisquer entidades adjudicantes ao abrigo de regras de contratação pública».
Ora, decorre deste preceito legal, em conjugação com os artigos 100.º a 103.º-B do CPTA, que o regime de contencioso pré-contratual é aplicável a todos os atos lesivos praticados em procedimentos administrativos tendentes à formação de contratos de empreitada e concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens, ou seja, aos contratos taxativamente referidos no n.º 1, do artigo 100º do CPTA, excluindo a aplicação do regime comum de impugnação de atos administrativos, de acordo com a regra da especialidade e adequação dos meios adjetivos, não podendo pois os particulares optar entre ele e o regime geral previsto no artigo 37º do CPTA (cfr. alínea c), do n.º 1, do artigo 97º do CPTA).
Trata-se, na verdade, de um regime imperativo e não de utilização facultativa, impondo-se o seu regime de tramitação a todos os atos que se incluam no âmbito de previsão do artigo 100º do CPTA.
Sabe-se também que o contencioso pré-contratual urgente compreende, quer as ações de impugnação de atos administrativos, quer as de condenação à prática de ao devido.
4.6.Importa ainda atender ao artigo 269.º do Código dos Contratos Públicos onde se prevê que são « suscetíveis de impugnação administrativa quaisquer decisões administrativas ou outras àquelas equiparadas proferidas no âmbito de um procedimento de formação de um contrato público”, ou seja, são impugnáveis os tipos legais de atos expressamente previstos no CCP por referência ao âmbito do procedimento de formação do contrato, tais como: «a decisão de contratar ( artigo 367.º), a decisão de escolha do procedimento ( artigo 38.º), a decisão sobre os erros e omissões identificados pelos interessados relativamente ao caderno de encargos( artigo 61.º, n.º5), a decisão relativa à classificação de documentos da proposta para efeitos de restrição ou limitação de acesso (artigo 66.º, n.º2), a decisão de exclusão de propostas ou de candidatos( artigos 70.º, n.º2, 138.º, n.º3, e 177.º, n.º3), a decisão de adjudicação ( artigos 73.º e 76.º), a decisão de não adjudicação ( artigo 79.º), a revogação da decisão de contratar ( artigo 80.º, n.º2), a decisão que estabeleça a prestação de garantias (artigos 88.º a 90.º), a decisão de caducidade da adjudicação por não prestação de caução (artigo 91.º) e por facto imputável ao adjudicatário (artigos 86.º, , 93.º e 105.º), a decisão de aprovação da minuta do contrato e a decisão sobre a reclamação da minuta do contrato ( artigos 98.º a 102.º)- cfr. ob. cit. pág.845 a 847.
4.7.Estando-se perante a impugnação de um ato a que corresponda este tipo de processo, a sua tramitação está sujeita a um formalismo especifico, assumindo o legislador que esta é a forma de processo através da qual se deve proceder à impugnação dos atos procedimentais praticados no âmbito dos procedimentos de formação dos contratos enumerados no n.º1.
4.8.Na sequência deste enquadramento e considerando a p.i. apresentada pela Apelante, não podemos senão dissentir da decisão recorrida quando nela se considera que na presente ação estava em causa um ato coberto pelo campo de previsão deste normativo, a saber, a impugnação da decisão de não adjudicação.
Como sustenta a Apelante, a mesma não deduziu nenhum pedido de impugnação da decisão de não adjudicação, mas apenas um pedido indemnizatório.
Afigura-se-nos que o Tribunal de 1.ª instância para decidir nos termos em que o fez, se deixou sugestionar pelo pedido de declaração de ilegalidade do ato de não adjudicação, fazendo-o mentalmente coincidir com um pedido de anulação, ao invés de considerar, como era de considerar, que esse pedido de ilegalidade foi formulado como mero pressuposto de ilicitude para a efetivação da pretensão indemnizatória da autora, como objetivamente resulta do seu teor literal.
Note-se que, como supra tivemos ensejo de referir, no artigo 38.º do CPTA, o próprio legislador previu de forma categórica a possibilidade de o interessado invocar a ilegalidade de uma decisão administrativa inimpugnável, ou seja, em relação à qual se mostrem já decorridos os prazos legais dentro dos quais seria possível pedir a sua anulação, e de o tribunal conhecer dessa ilegalidade a título incidental, desde que, não se vise obter efeitos jurídicos coincidentes com os que resultariam da procedência de uma ação de impugnação.
Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha - in Comentário ao Código de Processo Nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 5.ª Edição, Almedina, pp. 290- : « O artigo em presença coloca-se, pois, num plano estritamente processual, para o efeito de reconhecer que nada impede que num processo não-impugnatório o tribunal verifique, a título incidental, a ilegalidade de atos administrativos que já não possam ser impugnados, nem, portanto, contenciosamente anulados. Ponto é que, do ponto de vista substantivo, algum efeito útil se possa extrair de uma tal verificação, o que depende, como resulta do artigo aqui em análise, de uma opção da lei substantiva, que tem de reconhecer relevância, para qualquer efeito, ao reconhecimento judicial, a título incidental, da ilegalidade de atos administrativos inimpugnáveis.
Um dos casos em que tal sucede é o da responsabilidade civil extracontratual pelos danos decorrentes do ato ilegal.»
Na hipótese do n.º1 do artigo 38.º do CPTA, a procedência do pedido indemnizatório depende da verificação da ilegalidade do ato administrativo em que o mesmo se funda, pelo que a mesma «carece de ser analisada incidentalmente sempre que o pedido seja deduzido em processo autónomo, e não em cumulação com um pedido impugnatório»
4.9.No caso, estamos precisamente perante umas das situações a que se refere o artigo 38.º do CPTA, na medida em que está em causa uma pretensão indemnizatória decorrente da pratica de um ato administrativo alegadamente ilegal, mas inimpugnável, em que se pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito decorrente dos prejuízos alegadamente sofridos em consequência de uma decisão de não adjudicação, mas não se visando com a mesma o restabelecimento dos direitos ou interesses postos em causa por um ato administrativo ilegal, «que pressupõe necessariamente a prévia anulação do ato, na medida em que se dirige à reconstituição da situação que existiria se ele não tivesse sido praticado, sendo este, pois, um efeito que já não pode ser obtido por via da declaração incidental da ilegalidade»- cfr. ob. cit., pág.290/291.
5.Em suma, na presente ação, a Apelante não deduziu nenhum pedido impugnatório de um ato administrativo de não adjudicação, a que correspondesse a forma processual prevista no artigo 100.º do CPTA, antes propôs uma ação com vista a obter a reparação dos prejuízos que alega ter sofrido em consequência do ato de não adjudicação, com fundamento em responsabilidade civil.
Ante o expendido, impera concluir que o meio processual mobilizado pela Autora para efetivar a sua pretensão indemnizatória é o adequado, não se verificando a exceção dilatória do erro na forma de processo que o Tribunal recorrido julgou procedente.
Assim sendo, impõe-se revogar a decisão sob sindicância, e ordenar que a presente ação prossiga os seus legais termos.
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IV-DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte em conceder provimento ao recurso interposto pela apelante e, em consequência, revogam a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória do erro na forma de processo, e ordenam o prosseguimento dos autos.
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Custas pela apelada, na medida em que tendo suscitado a exceção dilatória do erro na forma do processo na contestação que apresentou, viu essa exceção ser julgada improcedente e nesta medida, é vencida (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 04 de outubro de 2023

Helena Ribeiro
Antero Pires Salvador
Ricardo de Oliveira e Sousa

i Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Volume II, 2015, Almedina, pág.64.
ii Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 22.02.2007, Relatora – Isabel Canadas;

iii Vide Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., págs. 288 e segs. e Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ª ed., pág. 79.

iv Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 09/06/2017, processo n.º 03005/15..BEBRG, disponível in base de dados da DGSI.
v Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 8 de março de 2019, Relator – Aristides Rodrigues de Almeida.
vi Cfr.Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, pág. 248 e 249.

vii Cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha, in “Comentário ao Código Processo nos Tribunais Administrativos», 5.ª Ed., Almedina, pág.601.
viii in Comentário ao Código de Processo Nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 5.ª Edição, Almedina, pag. 263;