Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00553/17.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/12/2019
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA; FALTA DE ESPECIFICAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO; ALÍNEA B) DO Nº1 DO ARTº. 615º DO CPC.
Sumário:
I- Preceitua-se na al. b) do nº1 do artº. 615º do CPC que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e direito que justifiquem a decisão”.
II- Porém, esse vício só ocorre quando houver falta absoluta ou total de fundamentos ou de motivação [de facto ou de direito em que assenta a decisão], e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada.
III- Padecendo a sentença recorrida, proferida em despacho saneador, de total ausência de fundamentação de facto, ou seja, omitindo-se nessa sentença por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final, deve oficiosamente o Tribunal ad quem, à luz das disposições conjugadas dos artigos 615º, nº1, al. b), e 662º, nº2, al. c), do CPC, anular tal sentença e determinar que, na 1ª. instância, seja proferida nova sentença com a colmatação tal vício/deficiência. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:VMSP
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Anular a decisão recorrida, determinando a baixa dos autos
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I – RELATÓRIO
VMSP, devidamente identificado nos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [doravante T.A.F. do Porto], de 18.02.2019, proferido no âmbito da Ação Administrativa que o Recorrente intentou contra o MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO e o ESTADO PORTUGUÊS, que julgou verificadas as exceções de ilegitimidade passiva, por falta de identificação de contrainteressados, e de falta de identificação dos atos impugnados, e, consequentemente, absolveu os Réus da instância.
Em alegações, o Recorrente formula as conclusões que ora se reproduzem, que delimitam o objeto do recurso:
(…)
a) Vem o presente Recurso interposto do Despacho Saneador/sentença proferido pela Mma. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datado de 18.02.2019, nos termos do qual se decidiu absolver os RR. da instância, considerando que foram “... verificadas as exceções de ilegitimidade passiva por falta de identificação dos contrainteressados e de falta de identificação dos atos impugnados, não supridas, o que determina a absolvição dos RR da instância (artigos 89. n.°s 2 e 4, al. e) do CPTA e 87.° n.° 7 do CPTA)”.
b) O Recorrente não se conforma com o teor e a decisão do dito Despacho por considerar que o mesmo não cumpre os requisitos formais de fundamentação a que estava obrigado, nos termos do art. 615.°/1, b), nomeadamente ao não especificar as concretas razões de facto que poderiam fundamentar a decisão em causa, razão pela qual, nos termos do dito artigo, deve ser declarada a nulidade do dito Despacho.
c) O Recorrente não se conforma com o teor e a decisão do dito Despacho por considerar que o mesmo labora em manifesto erro de julgamento quando considera que o Autor não procedeu à devida identificação dos atos impugnados, quando, pelo contrário, aquilo que deve ser concluído dos autos é que o Autor deu cabal cumprimento às suas obrigações legais nessa matéria, razão pela qual, nos termos do art. 615.°/1, c), do CPC, deve ser declarada a nulidade do dito Despacho.
d) O Recorrente não se conforma com o teor e a decisão do dito Despacho por considerar que o mesmo labora em manifesto erro de julgamento quando considera que o Autor não procedeu à devida identificação dos contrainteressados, quando, pelo contrário, aquilo que deve ser concluído dos autos é que o Autor deu cabal cumprimento às suas obrigações legais nessa matéria, razão pela qual, nos termos do art. 615.°/1, c), do CPC, deve ser declarada a nulidade do dito Despacho.
e) Sem prejuízo do ponto anterior, o Recorrente entende igualmente que, neste momento, por falta de legitimidade passiva, já não há quaisquer contrainteressados que, nos termos do art. 57.° do CPTA, devam ser chamados ao processo, devendo ser proferida decisão em conformidade.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso proceder e, consequentemente, ser o douto Despacho Saneador/Sentença recorrido declarado nulo, dando-se continuidade ao julgamento da causa, assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Ministério da Educação apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:
“(…)
A) A decisão recorrida não padece dos vícios que lhe são apontados, cumprindo os requisitos formais de fundamentação, quando decidiu pela verificação da exceção dilatória de ilegitimidade passiva por falta de identificação dos contrainteressados e de falta de identificação dos atos impugnados não supridas, o que determinou a absolvição dos RR. da instância (artigos 89° n.°s 2 e 4, alínea e) do CPTA e 87° n° 7 do CPTA).
B) O artigo 57° do CPTA é muito claro, ao exigir que são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar, pelo que nunca poderia a presente ação prosseguir, sem os contrainteressados serem identificados e demandados na mesma.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá o recurso deduzido ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por assim ser de JUSTIÇA (…)”.
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O recorrido Estado Português também contra-alegou, que rematou nos seguintes termos:
“(…)
A- A douta decisão recorrida, cumpre os requisitos formais de fundamentação, que levaram a julgar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por falta de identificação dos atos impugnados não supridos, o que determinou a absolvição dos RR. da instância ( art°s 89° n.°s 2 e 4, al° e) do CPTA e 87° n° 7 do CPTA )
B- A douta decisão recorrida, não labora em erro de julgamento, quando considera que o Apresente não procedeu á devida identificação dos atos impugnados
C- A douta decisão recorrida, não labora em qualquer erro de julgamento ao considerar que o A. não procedeu à devida identificação dos contrainteressados, pelo que bem decidiu a Sra Juiz “ a quo “ ao julgar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por falta de identificação dos contrainteressados, o que determinou igualmente a absolvição dos RR. da instância ( art°s 89° n.°s 2 e 4, al° e) do CPTA e 87° n° 7 do CPTA )
D- O art° 57 do CPTA é muito claro, ao exigir que são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar, pelo que nunca poderia a presente ação prosseguir, como pretende o Apresente, sem os contrainteressados serem demandados na mesma.
Vossas Excelências, apreciando e mantendo a douta decisão a quo ora posta em crise pelo Autor/Recorrente negando provimento integral ao recurso, farão dessa forma a habitual Justiça! (…)”
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O Tribunal a quo proferiu despacho de sustentação, a negar a existência de qualquer nulidade da decisão recorrida.
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O Ministério Público neste Tribunal não emitiu o parecer a que alude o artigo 146º, nº.1 do CPTA.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir resumem-se a saber se o despacho saneador-sentença recorrido, ao determinar a procedência das exceções dilatórias de ilegitimidade passiva, por falta de falta de identificação de contrainteressados, e de falta de identificação dos atos impugnados, (i) enferma de nulidade, por não “(…) especificar as concretas razões de facto que poderiam fundamentar a decisão em causa (…)”, bem como se (ii) incorre em erro de julgamento, por errada interpretação do direito.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
Na decisão recorrida não foi efetuado julgamento da matéria de facto.
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III.2 - DO DIREITO
Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas no recurso jurisdicionais em análise.
I- Da nulidade imputada à decisão recorrida
O Recorrente começa por arguir a nulidade da sentença recorrida, com fundamento na alínea b) do artigo 615º do CPC ex vi artigo 1º do CPTA.
Sustenta, para tanto, brevitatis causae, que o Tribunal a quo não especificou “(…) as concretas razões de facto que poderiam fundamentar a decisão de facto, razão pela qual deve ser declarada a nulidade do dito despacho (…)”.
Vejamos.
Como é consabido, existem duas causas de nulidade da sentença com base em vícios de fundamentação.
A primeira, prevista na alínea b) do nº. 1 do artigo 615º do C.P.C., consiste na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A segunda, prevista na alínea c) do nº. 1 do artigo 615º do C.P.C, consiste na oposição entre os factos fixados e a decisão, seja por inconcludência seja por radical antagonismo, mas sempre no sentido de que a decisão tomada seria incompatível com a fundamentação de facto relevada.
No caso versado, sendo insofismável que vem invocada a falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, constitui convicção deste Tribunal que a sentença, objeto do presente recurso jurisdicional, padece, efetivamente da arguida nulidade.
Com efeito, e como ressalta do probatório coligido nos autos, a Sra. Juíza a quo, depois de dispensar a audiência prévia, passou logo no despacho saneador a conhecer da matéria excetiva suscitada nos autos.
E, examinando o teor do despacho saneador-sentença recorrido que de imediato proferiu, verifica-se que entrou logo na fundamentação de direito, fazendo tábua rasa da fundamentação de facto, ou seja, fê-lo omitindo por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final.
Quer isto tanto significar que a sentença recorrida padece de uma total ausência da fundamentação de facto.
Ora, preceitua-se na al. b) do nº 1 do artº. 615º do CPC, que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e direito que justifiquem a decisão”.
Normativo esse que constitui o reflexo do dever de fundamentação das decisões imposto pelos artºs. 205º da CRP e 154º do CPC, e pelo próprio artigo 6º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem.
Vem sendo dominantemente entendido pela jurisprudência do Tribunal Cúpula da nossa Jurisdição, aliás, em sintonia com a nossa doutrina, que esse vício só ocorre quando houver falta absoluta ou total de fundamentos ou de motivação [de facto ou de direito em que assenta a decisão], e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada [Neste sentido, vide, entre outros, Ac. do S.T.A. de 06-05-2015, Proc. nº 1340/14, www.dgsi.pt e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 140].
Na situação recursiva, estando-se perante uma sentença que não concretiza de forma cabal os factos considerados provados, com a especificação dos elementos probatórios em baseou a convicção do Tribunal, logo haverá de se entender que a fundamentação de direito feita ao longo da sentença recorrida assenta numa realidade factual virtual, em total desrespeito do comando estatuído no artº. 607º, nºs. 3 e 4, do CPC, impedindo [de todo] este Tribunal Superior de exercer, no âmbito das competências legais que lhe estão atribuídas, de exercer qualquer controle [vg. em termos de poder censório] sobre a bondade da decisão, o mesmo sucedendo, aliás, em relação às próprias partes.
O que fulmina a sentença com o vício de nulidade previsto no artº. 615º, nº 1. al. b), do CPC.
Por outra banda, vimos já que, com o presente Recurso, o Recorrente pretende que o Tribunal, além do mais, aprecie e decida os eventuais erros de julgamento respeitantes à falta de identificação dos (i) atos impugnados e dos (ii) possíveis contrainteressados nos autos.
Porém, no caso, tal não se afigura possível.
Na verdade, como se decidiu no aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 18.01.2012, tirado no processo nº 191/04 - posição que aqui se acompanha in totum - “A fundamentação da matéria de facto provada e não provada em primeira instância, a explicação crítica por parte do julgador de tal matéria, é essencial para que o Tribunal de recurso se possa pronunciar sobre a mesma, caso venha a ser posta em causa em sede de recurso. Inexistindo nesta decisão recorrida tais razões, fica, de modo inexorável, este Tribunal de recurso coartado e impedido de exercer plenamente os seus poderes, não podendo decidir, de facto e de direito, como lhe compete”.
Neste domínio, cabe notar que não se ignora que o artigo 662º do C.P.C. fixa parâmetros e orientações para o julgamento, em sede de recurso, da decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, podendo, com vista à sua alteração, reapreciar ou reexaminar a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.
Tal, porém, não pode suceder sem que primeiro tenha tido lugar o julgamento da matéria na 1ª instância [Neste sentido, vd. aresto do T.C.A.N., de 09.11.06, tirado no processo nº 00345/06].
Por conseguinte, perante aquilo que se deixou exposto, impõe-se anular o despacho saneador/sentença recorrido, determinando-se que seja proferida nova sentença da qual conste decisão sofre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados como assentes/provados que justificam a decisão, ficando, assim, prejudicado conhecimento das questões objeto do presente recurso acima elencadas.
Ao que se provirá no dispositivo.
***
IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em decidir anular o despacho saneador-sentença recorrido, determinando-se que seja proferida nova sentença da qual conste decisão sofre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados como assentes/provados que justificam/suportam a decisão.
Sem custas.
Registe e Notifique-se.
Porto, 12 de junho de 2019
Ass. Ricardo de Oliveira e Sousa
Ass. Fernanda Brandão
Ass. Frederico de Frias Macedo Branco