Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02581/09.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/31/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:RESPONSABILIDADE PELO RISCO; PERSEGUIÇÃO POLICIAL; CULPA DO LESADO; DANOS.
Sumário:1-Nada impede o julgador, perante a dedução de um pedido indemnizatório com fundamento numa atuação ilícita e culposa, convolar tal pedido, perante a não verificação daqueles pressupostos necessários á afirmação da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, em responsabilidade pelo risco, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos legais: (i) a excecional perigosidade da atividade causadora dos danos e (ii) a especialidade e anormalidade dos danos ( art.º 8.º do D.L. 48.051).

2- Há responsabilidade civil extracontratual do Estado com fundamento em factos causais ou pelo risco quando se prove que os danos verificados na esfera jurídica da lesada foram provocados pela intervenção de um agente da GNR que, por força dos disparos que efetuou com arma de fogo, contra o veículo onde aquela seguia como acompanhante, no âmbito duma perseguição policial ao condutor, agiu sem culpa nem ilicitude de conduta.

3- Quem entra num veículo não aceita que desse facto lhe possam advir danos e muito menos que venha a ser encetada uma perseguição policial a essa viatura na sequência da qual venham a ser disparados tiros que atinjam a sua integridade física por se tratar de uma eventualidade, que dada a sua anormalidade, excecionalidade e imprevisibilidade é de todo impensável.

4- O exercício da atividade policial é expressão do iuris imperium do Estado em beneficio da coletividade, pelo que os danos, especiais e anormais, sofridos por quem seja atingido pelos disparos efetuados com arma de fogo por um agente da GNR no âmbito duma intervenção policial, enquanto vitima do risco de uma atividade perigosa, carecem de ser ressarcidos pelo Estado.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:C.S.C.S.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I-RELATÓRIO

1.1. C.S.C.S., residente na Rua (...), freguesia de (...), concelho de (...), intentou a presente a ação administrativa comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, e N.F.A.C., soldado da GNR nº. XXX/2030809, com domicílio profissional na GNR dos (...), freguesia de (...), concelho e comarca de (...), e MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, com sede institucional na Praça do Comércio pedindo a condenação dos Réus a “ pagar à Autora a quantia global de €45.791,48 (quarenta e cinco mil setecentos e noventa e um euros e quarenta e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais já liquidados, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, e, serem, ainda, condenados a pagar a título de indemnização a liquidar em execução de sentença os danos patrimoniais e não patrimoniais que venham a ser apurados e tudo o mais que legal for (…)”.
Alega, para tanto, em síntese, que no dia 08 de outubro de 2006, quando seguia como ocupante no veículo conduzido por H.A.G.R., em consequência da perseguição policial ao veículo conduzido por aquele, no âmbito da qual foram efetuados disparos pelo agente da Guarda Nacional Republicana, o aqui 2º R, que se encontrava destacado e ao serviço do posto territorial dos (...), sob a tutela do 3º R, foi atingida por tais disparos, na sequência do que deu entrada no Hospital de Santo António, vítima de traumatismo perfurante na região axilar esquerda com hemorragia ativa por lesão da artéria axilar esquerda, com lesão do tronco posterior do plexo braquial, sem orifício de saída de bala visível, de que lhe resultaram danos não patrimoniais e patrimoniais pelos quais pretende ser indemnizada.

1.1. Os Réus foram regularmente citados, tendo todos apresentado contestação.

1.1.2.1.O Réu Ministério da Administração Interna defendeu-se por exceção, arguindo a sua ilegitimidade passiva e requereu a sua absolvição da instância.

1.1.2.2.O Réu N.F.A.C. defendeu-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção invocou a incompetência em razão da matéria do TAF, a caducidade e a prescrição do direito da Autora, requerendo a sua absolvição da instância.
Na sua defesa por impugnação alegou, em síntese, que sempre respeitou escrupulosamente a vida do seu semelhante, tendo atuado em legitima defesa, ao ver a sua vida e a do seu camarada perigar, tendo sido o condutor do veículo, H.R quem, com a sua atuação, não só de resistência e desobediência à ação fiscalizadora do R., mas de coação, atentando contra a sua vida, ao avançar com toda a força com o Toyota Hiace, contra o mesmo, com o objetivo de o atropelar, esmagar ou até de causar-lhe a morte, o causador e responsável pelos danos sofridos pela Autora, requerendo a improcedência da ação.

1.1.2.3.O Réu estado Português, representado pelo Ministério Publico, defendeu-se por impugnação, sustentando que nenhuma responsabilidade cabe ao Estado na produção dos danos sofridos pela autora, cabendo essa responsabilidade por inteiro aos ocupantes da viatura Toyota Hiace, sobretudo ao condutor H.R, cuja conduta foi determinante do desencadear e desenrolar de todo o processo que culminou nas ofensas corporais sofridas pela autora, requerendo que a presente ação seja julgada improcedente.

1.1.3. Foi realizada a audiência prévia das partes e proferido despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as exceções da incompetência material do tribunal, da caducidade e da prescrição e procedente a exceção da ilegitimidade passiva do 2.º e do 3.º Réu (esta, suscitada oficiosamente), absolvendo-os da instância, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

1.1.4. Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.


1.1.5. Em 30.09.2015 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, lendo-se na mesma:
«Nesta conformidade, pelas razões aduzidas, julga-se a presente ação administrativa comum parcialmente procedente, e, em consequência, condena-se o Estado Português a pagar à Autora a quantia de € 20,121,48, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.
Custas a cargos da A. e R., na proporção do decaimento.
Registe e notifique-se.»

1.1.6. Inconformado com esta decisão, o Réu (Estado Português) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue a ação improcedente.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma:
« 1 - A Autora intentou a presente Ação Administrativa Comum contra o Réu – Estado português pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de €45.791,48 (quarenta e cinco mil setecentos e noventa e um euros e quarenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais já liquidados, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento e ainda indeminização a liquidar em execução de sentença referente aos danos patrimoniais que venham a ser apurados.
2 - A ora Autora fundamentou a sua pretensão na responsabilidade civil extracontratual, emergente do facto ilícito, por parte do Réu - Estado português consistente nos disparas efetuados contra si, porquanto no dia 08 de outubro de 2006, de madrugada, por várias artérias do concelho de (...), o Soldado da Guarda Nacional Republicana (GNR), N.F.A.C. que se encontrava ao serviço no Posto Territorial dos (...), (...) - e demais colegas da GNR - encetou uma perseguição ao veículo automóvel suspeito de furto, conduzido pelo terceiro H.A.G.R. [e depois de várias tentativas frustradas de fazer cessar a marcha do veículo o qual se dirigia em direção ao seu corpo] disparou vários tiros contra o sobredito veículo, os quais por infortúnio vieram a atingir a ora Autora, enquanto ocupante do sobredito veículo.
3 - Em 30 de setembro de 2015, foi proferida sentença parcialmente condenatória, a qual foi notificada ao Réu - Estado português em 12 de outubro de 2015, em que obrigou este último a pagar àquela, a quantia global de € 20.121,48 (vinte mil, cento e vinte um euros e quarenta e oito cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais (€ 121,48) e danos não patrimoniais (€ 20.000,00), respetivamente.
4 - A sentença a quo fundamentou a sua pretensão condenatória na motivação em responsabilidade civil extracontratual, pelo risco e já na parte dispositiva na responsabilidade civil extracontratual por facto lícito, o que consubstancia, só por si, uma contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, o que gera nulidade de sentença, nos termos do artigo 614º, nº 1, al. c) do CPC.
5 - Por outro lado, o Meritíssimo Juiz de Direito a quo não apreciou juridicamente os factos integrativos da culpa de terceiro (referente ao condutor do veículo furtado H.A.G.R.), excludentes da responsabilidade civil extracontratual por facto lícito do Estado, o que igualmente gera nulidade de sentença, nos termos do artigo 614º, nº 1, al. d)
do CPC.
6 - Destarte, na nossa modesta opinião, o Meritíssimo juiz de Direito a quo apreciou e decidiu sobre matéria inerente à responsabilidade civil extracontratual por facto lícito (pelo menos na parte dispositiva da sentença), que não estava alegada na PI e consequentemente não foi objeto de contraditório por parte do Réu - Estado português, o que constitui nulidade de sentença, nos termos do artigo 614°, n° 1, al. d) in fine e e) do CPC.
7 - Por último, a sentença a quo não deu como provado que o Soldado da GNR N.C. ao disparar a arma de fogo que lhe estava distribuída, sabia ou previu como tal e conformou-se com tal resultado que - para além do condutor - existiam outros ocupantes no veículo furtado em fuga, de modo que teria que concluir juridicamente o afastamento de qualquer responsabilidade civil por parte do Réu - Estado português, o que constitui erro na apreciação de direito.
O que,
8 - Constitui erro de direito, que deve ser declarado, revogada a sentença e alterada por outra em sentido contrário, ou seja, absolutória, de acordo com o acima exposto.
Ademais,
9 - Os danos não patrimoniais devem ser fixados no seu quantum em montante próximo dos € 10.000,00, de acordo com os critérios legais fixados no artigo 494° aplicável ex vi artigo 496°, n.° 3, 1ª parte ambos do CC.
Assim e em conclusão,
10 - Nos segmentos acima mencionados, o Réu - Estado português discorda da interpretação jurídica feita na sentença a quo e não se conforma com a opção condenatória da decisão judicial, pelo que dela interpõe o presente recurso, circunscrito às questões de direito acima indicadas.
11 - De modo que, não obstante a sentença a quo considerar que não existiu culpa da própria lesada, mas sim do condutor do veículo, acabou por não concluir - como devia que a culpa do terceiro H.R in casu é excludente da responsabilidade civil por facto lícito imputada ao Réu - Estado português.
Pelo que,
12 - Violou, desta maneira, a parte final do artigo 8° do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de novembro de 1967.
Por outro lado,
13 - Acresce referir que a ora Autora ao ter entrado no veículo conduzido pelo terceiro condutor assumiu o risco inerente a qualquer ocupante de um veículo automóvel em caso de acidente, não podendo agora querer responsabilizar o Réu - Estado português pelo infortúnio que lhe veio a suceder, em consequência duma conduta culposa do próprio condutor do veículo automóvel onde se encontrava aboletada.
Mais,
14 - No âmbito da matéria de facto dada por assente, não foi dado como provado que o agente policial soubesse que o veículo conduzido pelo H.R transportasse outros ocupantes, designadamente a ora Autora, pelo que não se pode assacar qualquer responsabilidade civil ao Réu - Estado português, quando o seu agente policial nem sequer previu como possível que no veículo estivessem outros ocupantes para além do próprio condutor [terceiro].
15 - Sendo certo que, o Soldado da GNR N.C. só disparou contra o condutor do veículo - e não contra quaisquer outros ocupantes que desconhecia existir no seu interior e nem previu possível existirem - para evitar um mal maior consistente no perigo iminente, atual e real que sua própria vida corria ao fazer cessar a investida do veículo contra si direcionada, após longa e aturada perseguição policial movida ao terceiro condutor.
Por último,
16 - Segundo as regras da experiência comum, não é crível ao agente policial médio suposto pela Ordem Jurídica, que naquelas circunstâncias de tempo (noite cerrada), lugar (local mal iluminado) e modo (rapidez da ação/frações de segundo) transcritas na matéria de facto dada por assente na sentença a quo, em fuga apeada do veículo contra si direcionado e conduzido pelo terceiro H., tivesse vislumbrado ou pudesse prever que no interior do veículo agressor existissem outros ocupantes para além do próprio condutor.
Por último,
17 - A sentença a quo exagerou na fixação do quantum dos danos não patrimoniais a favor da Autora, uma vez que, a esse título, a favor da mesma já tinha sido fixado a quantia de € 7.500,00, no âmbito da ação ordinária n° 9.374/09/ TBVNG da Ex-2ª Vara de Competência Mista do T.J. de Vila de Gaia (atual Instância Central Cível – 3ª Seção), que interpôs contra o ora terceiro condutor, H.A.G.R., o que constitui erro na apreciação de direito.
18 - Nas partes acima assinaladas, decidindo o contrário tal como fez a sentença a quo, o Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito a quo violou a lei. Designadamente,
19 - O artigo 614°, n.° 1, al. c) d), e e) do CPC, artigo 496° do CC e o artigo 8° in fine do Decreto-Lei n° 48051, de 21.11.67

Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser declarada a nulidade da sentença a quo, bem como na parte em que ocorreram os erros de direito na apreciação jurídica dos factos deve ser revogada a sentença condenatória e substituída por outra de cariz absolutório.
Assim, Vossas Excelências Venerandos Juízes Desembargadores declarando a nulidade da sentença, na parte acima assinalada, bem como a revogação da mesma por existir culpa de terceiro excludente da responsabilidade civil extracontratual, por fato licito imputado ao Réu - Estado português e no que concerne ao montante atribuído a título de danos não patrimoniais os quais ainda assim são exagerados no seu quantum concreto, tal como por nós acima proposto farão como sempre a
Sã e Habitual JUSTIÇA!»

1.1.7. A Apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e formulou as conclusões que se seguem:

« 1 - A douta Sentença proferida pelo Digno Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou com acerto e perfeita observância dos factos e da lei aplicável, não podendo o pleito, conscienciosamente, ser resolvido noutro sentido.

2- No essencial, salvo o devido respeito, as alegações do Réu Estado Português, aqui recorrente, destinam-se tão só a protelar a decisão final do presente processo e a adiar o pagamento da indemnização à Autora, ora recorrida, não consubstanciando razões bastantes que levem à revogação do decidido na Douta Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.


3- Certo é que, vem o Réu Estado Português interpor recurso da Douta Sentença, que julgou parcialmente procedente a ação administrativa comum, e em consequência condenou-se o Estado Português a pagar à Autora a quantia de €20,121,48, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo – o do demais peticionado.

4- O recorrente alicerça o recurso interposto em vetores que, na sua opinião, geram a nulidade da sentença, tais como:

- a contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto no artº 614, nº 1 al.ª c) do CPC,
- a falta de apreciação, no que ao direito concerne, quanto aos factos integrativos da culpa de terceiro, excludentes da responsabilidade civil extracontratual por facto licito do Estado, o que também do ponto de vista do Ministério Público ora recorrente, gera a nulidade da sentença nos termos do artigo 614, nº1 al.d) do CPC,
- a apreciação e decisão sobre matéria inerente à responsabilidade civil extracontratual por facto lícito, que não estava alegada na PI e, consequentemente, não foi objeto de contraditório por parte do Réu Estado Português, o que, do ponto de vista do Ministério Público, constitui nulidade de sentença nos termos do artigo 614º, n.º 1, al.ª d) in fine e al.ª e) do CPC,
- e, ainda, noutros fundamentos que na sua opinião consubstanciam erro na apreciação do direito.

4- Mais afirma o Recorrente, no que diz respeito à indemnização por danos não patrimoniais que “
a sentença a quo exagerou na fixação do quantum dos danos não patrimoniais a favor da Autora, uma vez que a esse título, já tinha a sentença favorável no montante de €7500,00 atribuídos na acção ordinária nº 9374/09.7TBVNG da Ex. 2ª Vara de Competência do T.J de (...) (actual Instância Central Cível – 3ª Secção), que a mesma interpôs contra o ora terceiro condutor, H.A.G.R., o que constitui erro na apreciação do direito”.

5- Sendo ainda de referir que o Réu entende que o Meritíssimo Juiz a quo fez uma incorreta interpretação e aplicação do direito ao caso em concreto, com violação dos artigos 494º aplicável ex vi artigo 496º nº 3, 1ª parte ambos do CC, através da fixação do montante indemnizatório de forma excessiva, consubstanciando o mesmo em valor desproporcional e, desajustado face à factualidade dada como provada.

6- Porém, salvo o devido respeito por melhor opinião, não entendemos que assista ao recorrente qualquer razão, motivo pelo qual o recurso pelo mesmo interposto deve improceder na íntegra.


7- Numa primeira abordagem à questão da alegada nulidade da sentença consubstanciada numa contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, prevista no artigo 615º, nº 1 al- c) do CPC, cumpre-nos dizer que não vislumbramos a apontada nulidade da sentença por parte do Recorrente.


8 - Como sabemos, a Autora interpôs ação administrativa comum tendente a obter condenação do Réu, aqui recorrente, no pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais. E, para tanto, alegou factos, e formulou um pedido.

9 - Após ter sido produzida toda a prova, quer documental, quer testemunhal, o distinto Tribunal recorrido concluiu – numa interpretação que, face à factualidade doutamente julgada como provada, nos parece absolutamente correta – pela aplicação do direito que as exigências deste caso impõem, condenando o Réu em conformidade e justificando a douta decisão proferida com uma exposição exaustiva dos motivos de facto e de direito que a fundamentam, não negligenciando o exame crítico das provas.


10- Assim, porque a Douta Sentença recorrida indica os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse naquele sentido, não conduzindo a fundamentação a decisão contrária da que foi tomada, parece-nos que foi rigorosamente cumprido tudo quanto é exigível, razão pela qual é nosso modesto entendimento que não se vislumbra a contradição insanável a que o Recorrente se refere.


11- Paralelamente, o Ministério Público considera que “Por outro lado, verifica-se que na sentença a quo, o Meritíssimo Juiz de Direito apreciou e julgou procedente a responsabilidade civil extracontratual por facto lícito do ora Réu – Estado Português, quando tal nem sequer tinha sido peticionado pelo Autora, a qual estruturou todo o seu articulado da PI, com base na responsabilidade extracontratual por facto ilícito.”
Assim, em consequência, o tribunal a quo apreciou e julgou procedente responsabilidade civil por facto lícito, questão que não podia sequer apreciar, por nem sequer ter sido alegado pela parte que aproveitava e por conseguinte não foi sequer objeto de impugnação por parte do ora réu- Estado português em sede de contestação, o que viola manifestamente o principio do contraditório nos termos do artigo 3º do CPC”.

12- Ora, como é sabido, nos termos do disposto no art.º 5º nº 3 do NCPC o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

13- Por assim ser, o tribunal não está, segundo pensamos saber, impedido de julgar procedente a ação com um fundamento jurídico diverso daquele que foi invocado na petição inicial,


14-
In casu, como muito bem sustenta o Tribunal a quo “ não sendo possível convocar este regime de responsabilidade extracontratual, e sabendo-se que a qualificação dadas pelas partes não vincula o Tribunal, que assim é livre de o requalificar livremente.(..)”

15- O Tribunal não fez mais que utilizar legitimamente o poder que lhe é conferido pelo art. 5º, n.º 3 do CPC, segundo o qual o juiz não está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos provados, sendo, pois, livre na aplicação do direito.

16- Assim, sendo certo que é às partes que cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, em rigor, entendemos que tal aconteceu na situação que aqui nos ocupa, em que o Tribunal recorrido deu como provados apenas e tão-somente factos que foram devidamente alegados pelas partes, concretamente, pela aqui Autora.


17 - Ou seja, sublinhamos que, na nossa ótica, a aqui exponente alegou, em sede de petição inicial, grosso modo, a factualidade que acabou por ser doutamente julgada como provada. Naturalmente que, devidamente citado, o aqui recorrente teve possibilidade de a analisar e contraditar como muito bem entendeu.

18 - Paralelamente, quer a recorrida, quer o próprio recorrente fizeram juntar aos autos documentação que todos os intervenientes tiveram oportunidade de analisar e, caso o entendessem, impugnar e/ou procurar contraditar de qualquer forma.


19 - E, por último, foi realizado julgamento com observância de todas as formalidades legais, tendo qualquer das partes tido a possibilidade de questionar todas as testemunhas que prestaram depoimento.


20- Assim, parece-nos evidente que, contrariamente ao que o recorrente pretende fazer crer, quer este, quer a própria Autora tiveram oportunidade de exercer o contraditório, pelo que não consideramos que ao Réu assista qualquer razão, concluindo-se pela improcedência da nulidade de sentença por si vislumbrada também quanto a esta matéria.

21- O recorrente alega, ainda, que a douta sentença a quo não apreciou a culpa de terceiro em termos jurídicos (in casu, reportada à conduta do condutor do veículo furtado, H.A.G.R.), que, na opinião do mesmo, exclui qualquer responsabilidade do Réu Estado Português.

22- Ora, também quanto a este aspeto, no nosso modesto entendimento, não assiste razão ao recorrente, pelos motivos que se passam a expor: O Recorrente, nas suas alegações de recurso, para fundamentar esta sua opinião começa por transcrever alguns dos factos dados como provados na sentença
a quo.

23- E continua referindo que: “
Para além desses factos, temos ainda mais dois outros documentos relativos aos mesmos factos acima transcritos que corroboram a tese de que os danos provocados pelos disparos na ora Autora foram da exclusiva e única responsabilidade do condutor do veículo furtado, H.A.G.R., aqui terceiro culpado.”

24- Curiosamente, o recorrente sustenta a sua tese em duas decisões penais, uma delas, em que o condutor do veículo interveio na qualidade de arguido e foi condenado em autoria material e em concurso real, pela pratica de um crime de furto de uso de veículo na pena de dez meses de prisão, e de um crime de condução perigosa de veículo na pena de um ano e quatro meses de prisão e de um crime de resistência e coação a funcionário na pena de um ano e seis meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi lhe aplicada a pena única de 2 anos de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por tal período (proc. Nrº 913/06.6GBVNG da 1ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de (...)), e a outra na qual o mesmo H., intervinha na qualidade de assistente referente ao despacho de não pronuncia proferido em 19.11.2010, pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal do Porto no âmbito do Processo 1244/06.7JAPRT,


25- Porém, salvo o devido respeito, o ora recorrente negligenciou, nas suas alegações de recurso, quanto a tal matéria, a última das decisões juntas aos autos, que apreciou da responsabilidade civil do condutor.


26- Ou seja, salvo melhor opinião, o Meritíssimo Juiz faz uma clara e nítida distinção na douta sentença entre
os danos anteriores ao disparo e os danos posteriores ao disparo, vide a transcrição da sentença nesta parte feita supra.

27 - Com efeito, a responsabilidade civil do estado não pode, salvo melhor entendimento, ser excluída porquanto todos os danos sofridos pela Autora, posteriores ao disparo foram originados em virtude da atuação de um agente de autoridade.


28- Perfilhando do entendimento exposto, é nossa modesta opinião que a responsabilidade civil do condutor não se confunde nem, contrariamente ao que o recorrente, porventura, depreenderá, exclui a responsabilidade civil do Réu nos presentes autos, porquanto os momentos e condutas apreciadas são distintos.

29 - Por assim ser, também por aqui falecem, na nossa ótica, as alegações do recurso do recorrente quando este refere que não foi sequer apreciada juridicamente de modo a aferir-se a mesma em concreto – era excludente da responsabilidade civil extracontratual, por facto lícito.


30- Uma última palavra para o vertido pelo Réu em 13 das suas conclusões: é legítimo esperar e/ou supor que um qualquer cidadão, quando entra num veículo automóvel, está, com tal, a assumir o risco de ter um acidente, aqui entendido como vir a ser vítima de disparos?


31- Salvo melhor opinião e com o devido respeito, entendemos que esta hipótese
levantada pelo digníssimo Magistrado do Ministério Público é absurda e contrária aquela que consideramos ser a normalidade do acontecer, assim devendo também nesta parte, improceder o recurso em apreço.

32- Da alegada fixação excessiva do quantum indemnizatório relativamente aos danos não patrimoniais: Resulta, das alegações do recurso interposto pelo Ministério Público em representação do Estado Português, que é pelo mesmo considerado que o quantum indemnizatório a título de danos não patrimoniais fixado pelo Tribunal a quo no montante de €20,000,00 é excessivo, desajustado e desequilibrado.

33- Discordamos em absoluto do supra exposto.

34- Com relevância para a parte que ora nos ocupa, no que diz respeito aos danos não patrimoniais, foram dados como provados os factos constantes da douta sentença a quo que aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.


35- Temos, portanto, que foram extensos e, parece-nos, juridicamente relevantes, todos os danos que
supra se elencaram.

36- E por assim ser, parece-nos que também na matéria de indemnização pelos danos não patrimoniais, ao contrário do que é alegado pelo Recorrente, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, ponderou e aplicou, de modo que reputamos de correto, o disposto nos artigos 496º nº 1 e 3, artº 494º, do Código Civil.

Senão vejamos:

37- Como resulta da Sentença proferida, a convicção do tribunal quanto aos factos inseridos nas alíneas N) a NN) deriva da análise dos documentos que integram fls. 26 e seguintes, ademais e especialmente, dos relatórios periciais que fazem fls 105 e seguintes, 583 e seguintes e 787 e seguintes dos autos, tendo ainda o Tribunal associado à análise da referida documentação a ponderação dos depoimentos prestados neste domínio pelas testemunhas melhor ali identificadas e no que concerne à factualidade dada como provada sob as alíneas OO) a WW) a convicção do Tribunal resultou do depoimentos das testemunhas ali referidas, complementando-a com a análise dos relatórios periciais que integram os autos.


38- Desde logo o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ponderou o constante nos artigos 496º e 494º do CC, ou seja, que na aplicação de juízos de equidade se devem ter em conta o grau de culpabilidade, bem como ponderou a gravidade das lesões da sinistrada.


39- Com efeito, o Tribunal a quo refere na douta Sentença: “Por outro lado, a Autora sofreu também danos não patrimoniais, que, pela sua gravidade merecem a tutela direito(artº 496, nº 1 do Código Civil).”“ Esses danos são os emergiram como consequência de traumatismo de natureza perfuro . contundente . projéctil de arma de fogo (bala) foram significativos (Cf.- alíneas LL) e seguintes do probatório) dos quais se destacam o estado doloroso que ficou acometida a Autora, as perturbações de sono de que a mesma padeceu, as cicatrizes com que ficou, as alienações funcionais do membro superior esquerdo da Autora, e ainda os sentimentos de vergonha e insegurança associadas à deformação física provocada pelas apontadas cicatrizes.”

40- Por outro lado, foram ainda ponderadas as diversas componentes da expressão “quantum doloris”, mormente dores físicas e morais, o dano estético.

41-Assim, embora não totalmente coincidente com os valores pretendidos pela sinistrada (uma vez que eram superiores aos fixados), bem andou o Douto Tribunal recorrido, justificando e decidindo, quer o enquadramento jurídico, dando-se por integralmente reproduzidas aqui as doutas razões consignadas na sentença recorrida e que, logicamente, nos escusamos a repetir.


42- Como tal, ainda que admitamos que a valoração efectuada quanto aos danos sofridos foi inferior ao que consideramos como plenamente justo e adequado, é nossa convicção que, face à clareza do raciocínio doutamente desenvolvido pelo digníssimo Tribunal recorrido, a Autora não deve senão conformar-se e aplaudir a decisão proferida, que, como tal, não merece qualquer reparo.


43- De facto, perante todo este quadro circunstancial pensamos que o montante arbitrado na douta sentença recorrida [€ 20.000,00] se apresenta criterioso e bem fundamentados, sendo, por isso, de manter na íntegra, com a inerente improcedência, também nesta parte, da apelação do recorrente.


44- Permita-se-nos, porém e em jeito de desabafo, lamentar que o Recorrente diminua o sofrimento percecionado pela recorrida, reconduzindo as lesões que a mesma apresenta a tão diminuta significância. Oxalá fosse assim tão simples, pois se os danos da Autora fossem diminutos, não teria esta de olhar todos os dias da sua vida para as marcas de tão infeliz dia e deparar-se no seu quotidiano com dores e limitações físicas várias.


45- E por valorarmos tais danos, é nosso entendimento que existiria erro na apreciação e aplicação do direito se, no caso em análise, não fosse julgado atribuir uma indemnização à Autora, que sofreu e continua a sofrer incomensuráveis danos na sua integridade física e psicológica, na decorrência do tiro de que foi vitima que nada fez para o merecer, e que mudou para sempre e de forma definitiva toda a sua vida. Injustiça seria não indemnizar uma pessoa, neste caso, a Autora.


46-Referimos, ainda, que, contrariamente ao que o Ministério Público porventura supõe, a aqui exponente ainda não foi ressarcida por quem quer que seja, dado que o condutor do veículo não lhe pagou a indemnização. Porém, não se vislumbra que a responsabilidade deste conflitue com a responsabilidade do Réu.


47-Face a tudo quanto se expôs e ao muito mais que, atenta a clareza e assertividade da douta Sentença recorrida, cujo entendimento aqui sufragamos na íntegra, não referimos para não incorrer em redundância, concluímos pugnando pela total improcedência do recurso interposto pelo Réu, devendo manter-se a douta Sentença recorrida, que não merece qualquer reparo».


II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.

2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado em função do teor das conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do Código de Processo e de Procedimento Administrativo (CPTA) – e, por força do regime do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem no âmbito dos recursos de apelação não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
Nos presentes autos as questões que a este tribunal cumpre ajuizar, cifram-se em saber:
I – Se a decisão recorrida é nula por:
- (i) contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º, n.º1, al. c) do CPC);
- (ii) omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º1, al. d) do CPC);
- (iii) excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º1, al. d) in fine e e) do CPC);
II- Se a decisão recorrida padece de erro de julgamento de direito por:
- (i) não ter apreciado a culpa de terceiro- o condutor do veículo furtado- em termos jurídicos, excludente de qualquer responsabilidade do Réu Estado Português.
- (ii) por ter fixado de forma excessiva o quantum indemnizatório relativamente aos danos não patrimoniais, que não deve ultrapassar os 10.000,00 €;
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.A DE FACTO
3.1. O Tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos (não objeto de sindicância por parte do Apelante, que limitou o seu recurso à interpretação e aplicação do direito, como resulta nomeadamente da falta de qualquer referência - e cumprimento - ao ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, nº 1 do CPC):
A)No âmbito do processo comum coletivo n° 913/06.6GBVNG, da 1ª Vara Mista deste tribunal, em que foi arguido o aqui Réu, H., por acórdão transitado em julgado foram considerados provados, entre outros, os seguintes factos:
i)No dia 7 de Outubro de 2006, entre as 23 h e as 23h30m, o arguido H. Alexandre apoderou-se da viatura Toyota Hiace, com a matrícula XX-XX-BQ, de três lugares, pertencente a A.A.A.M., avaliada em cerca de 3740 Euros, que se encontrava estacionada e devidamente fechada na Rua (...), freguesia dos (...), concelho de (...).
ii) De seguida, deslocou-se até ao Centro Comercial (...), nesta cidade, onde foi encontrar-se com F.P.D.S. e C.S.C.S., que o esperavam e com quem durante a tarde tinha combinado encontrar-se para lhes dar boleia até á discoteca H., em (...), (...).
iii) A apropriação do Hiace visava, assim, a deslocação dos três até aquele destino e a regresso a casa, após o que seria abandonado pelo H.R em qualquer lugar.
iv) Por volta das 0h46m, já do dia seguinte, quando o dono da Hiace apresentava queixa no Posto da GNR dos (...) pelo seu desaparecimento, foi dada informação que a referida carrinha havia sido vista a circular nas imediações da Estrada Nacional nº. 1.
v) Na posse de tal informação, um carro patrulha da GNR do posto dos (...), devidamente identificado como tal, no qual seguiam os soldados da GNR J.B. e N.C., deslocou-se para o local; vindo a carrinha Toyota Hiace a ser localizada na Alameda (...), nos (...).
vi) Através dos sinais sonoros e luminosos (sirene/rotativos), assim como do altifalante com voz existente no carro patrulha, foi ordenado ao arguido H.R que imobilizasse a carrinha, tendo mesmo um dos soldados da GNR perseguidores chegado a gesticular para o condutor a informá-lo para parar.
vii) Não obstante se ler apercebido de que estava na presença de soldados da GNR e que estes lhe ordenavam que parasse, o arguido H.R iniciou uma fuga a velocidade não inferior a 60 km/h, por diversas artérias da comarca de (...), durante cerca de 13 km.
viii) Durante a fuga, para despistar o carro patrulha, o H. circulou por várias vezes com as luzes da Toyota Hiace desligadas, nomeadamente, entre a Rua da (…) e a Rua da (…), em (...); circulou em sentido proibido pela Rua (...), em (...); contornou a Rotunda do (...), em (…), em sentido contrário ao legal; contornou também cm sentido contrário ao legal a Rotunda de (…), em (...); não parou ao sinal vertical B2 (Stop) colocado na Rua (...), na Rua (…), na Rua da (…) e na Rua de (…), tudo em (...); passou por cima de passeios e bateu com a carrinha em muros, causando-lhe danos na chapa avaliados em mil euros.
ix) Neste percurso, parte dele sinuoso e estreito, por diversas ocasiões, o arguido esteve na iminência de se despistar, o que somente não aconteceu por manifesta felicidade, tendo, desse modo, colocado em perigo a vida e a integridade física das duas passageiras que com ele seguiam dentro da Hiace.
x) Dada a forma como o arguido conduzia, e o perigo de ocorrer um acidente, por várias vezes F.S., que seguia sentada no banco do meio, e C.S., que seguia no banco junto à porta do passageiro do lado direito, pediram-lhe que parasse, tendo o arguido H.R desatendido àqueles pedidos, alegando que se o fizesse seria preso por a viatura ter sido furtada e por conduzir ilegalmente e que, por via disso, se iria refugiar no Bairro dos Cigano dos (...), por ser um local de difícil intervenção por parte da polícia.
xi) Entretanto, após se inteirarem do percurso que o H.R efectuava, e antevendo a sua passagem pela Rua Dr. (…), também conhecida por Rua da (…), a patrulha da GNR que lhe movia perseguição, através de comunicação via rádio, estabeleceu contacto com uma outra patrulha da GNR, composta pelos soldados R.O. e N.C., que se faziam deslocar num veiculo caracterizado da corporação, com a matricula GNR-L-XXXX, marca Skoda, conduzida pelo primeiro e pediram-lhes que bloqueassem esta última via.
xii) Na sequência desse pedido, os soldados que compunham a segunda patrulha atravessaram a referida viatura policial Skoda de forma obliqua na Rua (…), entre o poste dos semáforos ali existentes e a habitação com o número de polícia 1737, em local bem iluminado e junto da intercepção da Rua Dr. (…) com a Rua (…), em (...). (...), concelho de (...), ficando a frente da viatura policial virada na direcção daqueles que se deslocavam pela primeira via em direcção a esta última, e a sua traseira a apontar para a Rua (…).
xiii) Após, os dois soldados da GNR, que se encontravam devidamente fardados e com coletes reflectores vestidos, colocaram-se em frente do Skoda, afastados entre si cerca de 2,5/3 metros, apresentando-se esta viatura com os faróis luzes rotativas e sirene ligados.
xiv) A cerca de 32 metros de distância da barreira montada na Rua (...) pela segunda patrulha e depois de desfazer uma curva para a direita que lhe retirava visibilidade para a frente, o arguido H.R, que imprimia à Hiace velocidade de sensivelmente 60 km/h, apercebeu-se da "barragem" que a patrulha da GNR lhe montou e da ordem de paragem que com as mãos levantadas os dois, soldados lhe dirigiam, o que o levou, por instantes, a reduzir a velocidade de que vinha animado.
xv) A barreira policial linha deixado ficar um espaço livre situado entre o carro patrulha e a parede da habitação com o nº.1737, que permitia fazer passar a Hiace e seguir em frente e que apenas se encontrava protegido pelo soldado N.C..
xvi) O H.R, que circulava pelo meio da Rua (...), a qual dispõe de dois sentidos de transito opostos, depois de constatar o acima referido xv), direccionou a Hiace para o seu lado esquerdo, invadindo desse modo a hemi-faixa de rodagem destinada aos veículos que fazem o percurso inverso, e prosseguiu a marcha com direcção ao espaço deixado livre pela barreira e à frente do qual se encontrava apeado o soldado N.C..
xvii) Este soldado, depois de se aperceber que, apesar do sinal de paragem que efectuara com as mãos e da "barragem" montada, o condutor da Toyota Hiace não parava e que avançava na sua direcção, a velocidade entre os 50/60 KM, sensivelmente a 9,80 metros de distância da carrinha, empunhou a pistola que lhe foi distribuída pela corporação a que pertence, marca Walther P38, com o nº. de série 012217 E, e efectuou um disparo na direcção do pneu frontal direito da viatura Toyota Hiace, furando-o, tendo o seu colega R.O.. que se encontrava da viatura a uma distância de aproximadamente 9 metros, efectuando também um disparo, com a arma da corporação, também da marca Walther P38, com o número de série 012209 E, que a atingiu na grelha da frente.
xviii) Não obstante os dois disparos, o arguido H.R não imobilizou a
Hiace e continuou a sua marcha em direcção ao soldado N.C., que recuou para se proteger do atropelamento iminente, correndo na direcção da esquina da Rua (...) com a Rua Dr. (…), efectuando neste percurso mais dois disparos na direcção daquela viatura com o propósito de a imobilizar que atingiram o condutor e a passageira C.S..
xix) Após o último disparo, o soldado N.C. protegeu-se na esquina da Rua de (...) com a Rua de (…), ficando a viatura Toyota Hiace imobilizada entre a viatura da GNR e a habitação com o nº. de polícia 1737.
xx) Em resultado destes dois últimos disparos sofreu o H.R entrada de bala através da órbita direita até à raiz cervical posterior do mesmo Iado, com a consequente perda do globo ocular direito e desfiguração grave e permanente da face, que demandaram 368 dias de doença, com igual período de incapacidade para o trabalho,
xxi) Por sua vez, C.S., em resultado dos referidos disparos, ficou com cicatriz no membro superior esquerdo com inicio no terço médio do esterno, dirigindo-se para cima e para trás para a região anterior do ombro e depois para baixo e para trás para o cavado axilar, com 24 cm de comprimento, que lhe demandou 227 dias de doença, com igual período de incapacidade para o trabalho, as quais não obstante serem facilmente visíveis não desfiguram de modo grave.
xxii) O arguido H.R apresentava uma TAS de 1.73 gl.
xxiii) O arguido H.R não tinha habilitação legal para conduzir veículos automóveis na via pública.
xxiv) O arguido sabia que a viatura Hiace de matrícula XX-XX-BQ não lhe pertencia e, sem autorização do dono, dela se apropriou com vista a utiliza-la na deslocação à discoteca de (...), após o que a abandonaria num qualquer local.
xxv) Sabia o arguido que só os titulares de carta de condução ou de outro documento válido é que podem conduzir veículos automóveis na via pública e quis conduzir sem que para tal estivesse devidamente habilitado.
xxvi) Não desconhecia que caso consumisse bebidas alcoólicas na quantidade por si ingerida não podia conduzir veículos na via publica e quis assim proceder,
xxvii) Sabia que, ao conduzir ao Iongo da perseguição policial da forma como o fez, podia provocar acidente, que somente não se verificou por manifesta sorte, e que caso este tivesse ocorrido poderia ter provocado nas duas passageiras que transportava lesões físicas graves ou mesmo a sua morte e agiu querendo conduzir desse modo.
xxviii) Sabia que os soldados R.O. e N.C., em efectividade de funções e devidamente identificados corno elementos da GNR, tinham montado uma barreira na estrada por onde circulava para o levar a parar e lhe tinham dado ordem para se imobilizar com vista a proceder à sua identificação e detenção pelos acontecimentos por si praticados e, com o propósito de se opor a que praticassem acto relativo ao exercício das suas funções e de desrespeitar a ordem de paragem que lhe foi dirigida, prosseguiu viagem dirigindo a Hiace contra o soldado N.C..
xxix) Não desconhecia o arguido que, ao assim proceder, o soldado da GNR poderia reagir mediante o uso de arma de fogo e que os disparos poderiam atingir as duas ocupantes da carrinha, e não se inibiu de prosseguir a sua marcha, pondo a vida e integridade física destas em perigo.
xxx) O arguido H.R actuou livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei,
xxxi) Em virtude de tais factos fui condenado pela prática em concurso real de um crime de furto de uso de veículo na pena de dez meses de prisão, um crime- de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 10 meses de prisão, um crime de condução perigosa de veículo na pena de 1 ano e 4 meses de prisão e um crime de resistência e coacção a funcionário na pena de 1 ano e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.
B) No dia 7 de Outubro de 2006, cerca das 23h00m, a Autora, conjuntamente com umas amigas, estava a tentar arranjar boleia para a discoteca.
C) Entretanto, uma amiga sua de nome P. recebeu um telefonema do H.
R. a perguntar se ela queria boleia para a discoteca, tendo ela respondido que sim e perguntou-lhe se podia levar a A., ao que aquele assentiu, tendo combinado encontrar-se na porta do (...), por forma a dar-lhes boleia para a discoteca H., em (...), (...).
D) O R. apareceu naquele local, cerca das 00h00, numa carrinha Toyota Hiace, com a matrícula XX-XX-BQ, de três lugares na companhia de um tal A., tendo elas entrado na referida carrinha, dirigindo-se para a referida discoteca.
E) No dia e hora referidos a GNR moveu perseguição ao veículo BQ, que se desenvolveu por diversas artérias da cidade de (...), até ao momento em que chegaram a um cruzamento, entre as Ruas (...) e (...), onde se encontrava um outro carro de patrulha da GNR parado de forma atravessada no meio da estrada, barrando a passagem.
F) Nesse momento, o Réu, condutor do veículo, ao ver aquele carro patrulha, de imediato tentou parar a carrinha puxando do travão de mão que atenta a velocidade empregue pelo mesmo, não se imobilizou de imediato, razão pela qual o agente da GNR, N.C., disparou contra a dita viatura.
G) Assim aquele agente da GNR atingiu primeiro o pneu dianteiro do lado esquerdo da carrinha, depois atingiu o R e finalmente atingiu a A. que se localizava no lugar oposto ao do condutor aqui.
H) A dada altura, a P. verifica que se encontravam a ser seguidos por uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, e de forma incrédula e preocupada avisou o R, sobre o que estava a acontecer,
I) Em acto seguido, o H.R começa a acelerar, tendo a Autora questionado a razão pela qual estava a fugir à polícia, ao que ele respondeu que não podia parar, caso contrário ia preso.
J) A Autora, desde logo ficou cada ver mais preocupada, uma vez que se havia iniciado uma perseguição policial e o Réu recusava-se a parar, e ou sequer abrandar.
K) A Autora, cheia de medo pedia insistentemente ao R. que obedecesse às ordens da polícia, que parasse a carrinha, ao que aquele se negava.
L) A Autora estava aterrorizada porquanto o R. não parava e os polícias que se encontravam no encalço deles, estavam a disparar tiros para o ar.
M) A Autora cheia de medo, com receio de morrer dizia ao R. "por favor pára, eles vão nos matar, não quero morrer.
N) Na sequência do disparo que atingiu a A., perpetrado pelo Agente N.C., esta deu entrada no serviço de urgência do Hospital de Santo António, vítima de traumatismo perfurante na região axilar esquerda (entrada na região infra – clavicular esquerda), com hemorragia activa por lesão da artéria axilar esquerda, com lesão do tronco posterior do plexo braquial, sem orifício de saída de bala visível, tendo sido submetida a intervenção cirúrgica de urgência – pontagem axilo – axilar com veia safena interna invertida, teve alta no dia 16.10.06, referenciada às consultas externas de Ortopedia e Cirurgia Vascular.
O) Em 19.10.08, a A. deu entrada no serviço de urgência do Hospital de Santo António, referindo dor no peito abaixo da sutura, que aumenta com os movimentos respiratórios, sensação de músculos presos do membro superior esquerdo e dor no dorso no local onde a bala se encontra instalada (ao nível da omoplata esquerda).
P) Após observação da A. nesse dia, constataram que havia sinais inflamatórios no dorso no local onde se apalpava a bala, pelo que foi feita a extracção da mesma com saída de pequena colecção de pus, após o que teve alta medicada com antibiótico, analgésico, anti-inflamatório e indicação de para fazer penso diário com instalação de água oxigenada, tendo sido submetida a nova cirurgia.
Q) Em 22.10.06 deu entrada no serviço de urgência do Centro Hospitalar de (...), com crise ansiosa, referindo picadelas e formigueiros no braço, no lado a que foi submetida a cirurgia, pelo que foi medicada com Valium e Serenelfi, após o que teve alta.
R) Voltou a entrar no mesmo Hospital em 24.10.06, transportada pelo INEM, devido a alterações do padrão do sono, apresentando-se muito ansiosa, chorosa com queixas de dor pré – cordial e nas costas, diminuição da força e parestesias do membro superior esquerdo.
S) Foi observada por Cirurgia Vascular, que não observou alterações circulatórias, pelo que foi referenciada ao Serviço de Cirurgia vascular onde tinha sido operada - Hospital de Santo António – onde deu entrada no mesmo dia.
T) Naquele local foi radiografada ao tórax, não apresentando alterações, pelo que teve alta com a medicação em curso.
U) Em 27.10.06, recorreu ao serviço de urgência do Hospital de Santo António, com muitas dores no braço esquerdo, foi observada por Cirurgia vascular que não observou alterações circulatórias, pelo que foi referenciada a Ortopedia por omalgia.
V) Realizou RX da omoplata e ombro que só revelaram sequelas de balas no ombro, pelo que teve alta para o domicílio.
W) Em 07.11.06, recorreu ao serviço de urgência do Hospital de Santo António, com queixas de dor no local da ferida do ombro e no membro superior esquerdo, assim como de perestesias e limitação de mobilidade de todas as articulações desse membro, pelo que lhe realizaram um exame objectivo tendo detectado que apresentava uma postura em flexão das articulações do punho e cotovelo com dificuldade à mobilização e diminuição da sensibilidade táctil.
X) Foi detectado que a ferida operatória do hemitórax esquerdo era dolorosa mas sem sinais inflamatórios, pelo que foi medicada com metroclopramida e Tramadol, após o que teve alta para o domicílio.
Y) Em 13.11.06, recorreu ao serviço de urgência do Hospital de Santo António, com queixas de dor moderada e parestesias no ombro, foi observada por Cirurgia Vascular, após o que teve alta desta especialidade.
Z) Foi reencaminhada e observada por Ortopedia, apresentada dor neuropática, após lesão do tronco posterior do plexo braquial, tratada como neurorrafia.
AA) Foi orientada para a Consulta da Dor, e aguardava recuperação neurológica,
teve alta após ter sido medicada.
BB) Em 18.12.2006, passou a ser seguida na Consulta de Fisiatria do Hospital de Santo António, onde apresentava limitação das amplitudes articulares e diminuição da força muscular do membro superior esquerdo com dificuldade na realização das actividades da vida diária.
CC) Em 18.01.2007, iniciou consulta da dor, em 22.01.2007, foi observada na consulta de ortopedia que solicitou tala.
DD) Em 20.03.2007, foi observada na consulta de fisiatria, não apresentando queixas álgicas e mantendo tratamento fisioterápico.
EE) Em 23.03.2007 foi observada na Consulta de Cirurgia Vascular apresentando pontagem axilo-axilar patente com pulso radial presente.
FF) Em 12.04.2007, fez electromiografia do membro superior esquerdo que revelou sinais de atrofia neurogénea do músculo flexor comum dos dedos, tricipete e deltóide com alterações da condução sensitiva periférica em relação com lesão do plexo raquial distal, abaixo da emergência dos nervos músculo cutâneo e tronco dorsal.
GG)Em 06.02.2007, teve alta da consulta da dor sem dores após ter iniciado fisioterapia.
HH) Em 22.02.2007, fez electromiografia do membro superior esquerdo que revelou sinais de atrofia neurogénea dos músculos.
II) Em 04.05.2007, mantinha-se na consulta externa de ortopedia do Hospital de Santo António por lesão do plexo braquial esquerdo.
JJ) Em 23.05.2007, a A. teve alta da consulta de Cirurgia Vascular por estar completamente recuperada desse foro.
KK) Em 26.10.2007 e 23.10.2009, a Autora frequentou consultas externas de especialidade de Cirurgia vascular no Hospital de Santo António no Porto.
LL) Como consequência de traumatismo de natureza perfuro-contundente - projéctil de arma de fogo [bala], a A. ficou com as lesões que a seguir se descrevem: Tórax: cicatriz de tipo operatório, horizontal, ao nível da região escapular esquerda com 1 cm”; Membro superior esquerdo: cicatriz rosada de tipo operatório, iniciando-se no terço médio do esterno, dirigindo-se para cima e para trás para a região anterior do ombro, e depois para baixo e para trás, para o cavado axilar, que após retilinizado mede 24 cm; Membro inferior direito: cicatrizes rosadas de tipo operatório hipertróficas, na região medial do terço medial da coxa, oblíqua para baixo e para trás com 16 cm; na região medial do terço inferior da perna e tornozelo, oblíqua para baixo e para diante com 14,5 cm;
MM) Para além das cicatrizes supra referidas, resultaram ainda para a Autora, como consequência traumatismo de natureza perfuro-contundente - projéctil de arma de fogo [bala], alienações funcionais do membro superior esquerdo correspondendo a um défice funcional permanente de 7 a 10 pontos, limitativas, designadamente no Inverno, da realização das tarefas de passar a ferro, fazer a cama e dobrar a roupa.
NN) As lesões supra descritas determinaram à Autora 227 dias de doença, com igual período de afectação da capacidade de trabalho geral, mas sem afectação da
capacidade de trabalho funcional.
OO) À data da perseguição policial descrita nos autos, a A. vestia umas calças, uma t-shirt, uma casaca de ganga, umas sapatilhas, roupa que ficou destruída.
PP) Em taxas moderadoras, medicamentos, cremes de protecção e tratamento despendeu a A. a quantia de €121,48.
QQ) Aquando da perseguição policial descrita nos autos, a A. tinha 17 anos de idade, era uma adolescente alegre, descontraída e divertida.
RR) Em consequência do evento descrito nos autos, e durante cerca de 8 meses, ficou privada de sair fazer saídas á noite para conviver com os seus amigos livremente, passear, por ter medo do que podia acontecer, o que lhe gerou muita tristeza e angústia.
SS) Os ferimentos e os tratamentos a que a Autora teve de se submeter causaram-lhe muitas dores, quantificáveis num grau de 4 de uma escala de 1 a 7, o que lhe originou tristeza e medo.
TT) A Autora padeceu, por força do evento descrito nos autos, de distúrbios ao nível do sono.
UU) A Autora prezava muito a sua imagem e era vaidosa da sua beleza.
VV) Desde a ocorrência do evento descrito nos autos, e por ter ficado com cicatrizes visíveis, a Autora tem vergonha de expor o corpo, dado que se sente inferiorizada relativamente aos demais.
WW) Em razão de tal, a A. sofreu e sofre de ansiedade e desgosto, e sente-se marginalizada.
XX) Dá-se por reproduzido todo o teor dos documentos que integram os autos.
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Não se provaram outros factos, senão os que antecedem, sendo a restante matéria alegada, ou uma intensificação de algo já anteriormente alegado [repetição], ou de direito ou conclusiva, pelo que não foi considerada.»
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III.I DO DIREITO

3.1. Conhecimento de nulidades - Momento
3.1.1. De acordo com o disposto no art.º 663.º, n.º 2 do CPC, o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º».
Mais se lê, no art. 608.º, n.º 2 do CPC, que o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
3.1.2. O Apelante começa por sustentar que a sentença recorrida padece de vícios geradores de nulidade, a saber: (i) a contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto no artº 615, nº 1 al.ª c) do CPC; (ii) omissão de pronúncia decorrente da falta de apreciação, no que ao direito concerne, quanto aos factos integrativos da culpa de terceiro, excludentes da responsabilidade civil extracontratual por facto licito do Estado (art.º 615, nº1 al.ª d) do CPC e (iii) de excesso de pronúncia ( art.º 615.º, n.º1, al.D9 in fine e al.ª e) do CPC), por decidido com fundamento na responsabilidade civil extracontratual por facto lícito, quando tal não vinha alegado na PI e, consequentemente, não foi objeto de contraditório por parte do Réu Estado Português, o que, do ponto de vista do Ministério Público, constitui nulidade de sentença.
3.1.2.1.Assim, tendo o Apelante invocado a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, deverá a mesma ser conhecida de imediato, e de forma prévia às restantes questões objeto aqui de sindicância, já que, sendo reconhecida, poderão impedir o conhecimento das demais. Cfr. Ac. da RL, de 29.10.2015, Olindo Geraldes, Processo n.º 161/09.3TCSNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt;

3.2. As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à eficácia ou à validade das ditas decisões): por ter-se errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e, como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo n.º 00858/14).
Não obstante se estar perante realidades bem distintas, é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objeto do recurso que se deve focar nos aspetos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades».
Sem prejuízo do exposto, e «ainda que nem sempre se consiga descortinar que interesses presidem à estratégia comum de introduzir as alegações de recurso com um rol de pretensas “nulidades” da sentença, sem qualquer consistência, quando tal ocorra (…), cumpre ao juiz pronunciar-se sobre tais questões (…)». Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 132 e 133.

3.3. Das Concretas Nulidades Assacadas á Decisão Recorrida.
3.3.1. Da Nulidade por Oposição Entre os Fundamentos da Decisão e a Decisão.
3.3.1.2. Prescreve o art.º 615º, n.º 1, al. c), do CPC, que a sentença é nula, entre o mais, quando «Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Esta nulidade está relacionada com a obrigação imposta pelos artigos 154º e 607º, n.ºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Civil, do juiz fundamentar as suas decisões e com o facto de se exigir que a decisão judicial constitua um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão seja a consequência ou conclusão lógica da aplicação da norma legal aos factos.
Por outras palavras, “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a sentença, como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário”, pelo que “constituirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença que os fundamentos da mesma conduzam logicamente a conclusão diferente da que na mesma resulta enunciada”. Cfr. Ac. TRG, de 14/05/2015, Processo nº 414/13.6TBVVD.G;
No mesmo sentido, Acórdão da Relação de Coimbra, de 11/01/1994, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, pg. 633, onde se lê que “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição” e ainda, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/02/1997, e de 22/06/1999, BMJ nº 464, página 524 e CJ, 1999, Tomo II, página 160, respetivamente).
Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e a causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial, posto que em ambos os casos falta um nexo lógico entre as premissas e a conclusão (art. 186º, nºs 1 e 2, al. b) do CPC).

3.3.2.3. Com vista a fundamentar a aludida nulidade da sentença recorrida ( art.º 615.º, n.º1, al. a) do0 CPC), o Apelante sustenta que a sentença a quo fundamentou a sua pretensão condenatória, na motivação, em responsabilidade civil extracontratual, pelo risco e já na parte dispositiva na responsabilidade civil extracontratual por facto lícito, o que, só por si consubstancia uma contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, geradora da sua nulidade.
3.3.2.4. Numa primeira abordagem à questão da alegada nulidade da sentença consubstanciada numa contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, prevista no artigo 615º, nº 1 al- c) do CPC, cumpre-nos dizer que não vislumbramos a apontada nulidade da sentença por parte do Recorrente.
Como sabemos, a Autora interpôs ação administrativa comum tendente a obter condenação do Réu, aqui recorrente, no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito imputável ao Réu. E, para tanto, alegou factos, e formulou um pedido.
Após ter sido produzida toda a prova, quer documental, quer testemunhal, o Tribunal a quo julgou a presente ação parcialmente procedente, condenado o Réu ora Apelante com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos causais (ou pelo risco).
Da leitura da decisão resulta inequivocamente que o Tribunal assentou a condenação do Réu no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos causais ou pelo risco, consagrada no artigo 8.º do D.L. 48.051 e não como alega o Apelante com fundamento em responsabilidade por facto licito.
A decisão recorrida não padece de nenhuma quebra do silogismo lógico que deve interceder entre as suas premissas e as respetivas conclusões, tendo condenado o Réu em conformidade com os factos apurados e com o instituto da responsabilidade civil extracontratual fundada no risco.
Os fundamentos de facto não apresentam qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, além de que a decisão alcançada na sentença recorrida está em perfeita sintonia lógica com os fundamentos que lhe servem de suporte, inexistindo qualquer oposição entre o segmento decisório e a respetiva fundamentação.
Lida a fundamentação de facto e direito da sentença, percebe-se que o dispositivo seja aquele que efetivamente ficou consignado, tendo o Réu, ora Apelante, sido condenado com fundamento na responsabilidade civil extracontratual por factos causais ou pelo risco.
Em face da delimitação da nulidade invocada, manifestamente o Apelante carece de razão no vício que aponta à sentença impugnada.
*
3.4. Da Nulidade Por Omissão de Pronuncia.
3.4.1. A sentença é nula quando «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar».
Em coerência, e de forma prévia, estabelece o art.º 608.º, n.º 2 do CPC, que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Há, porém, que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes (para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver): «São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». Cfr.Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Limitada, pág.143, com bold apócrifo;.
As questões postas, a resolver, «suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)». Cfr. Alberto dos Reis, op. cit., pág. 54. Logo, «as “questões” a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões»; (Ac. do STJ, de 16.04.2013, António Joaquim Piçarra, Processo n.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1);e não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (a estes não tem o Tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que diretamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido).
Por outras palavras, as «partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a «questão» da procedência ou improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa. Se se exige, por exemplo, o cumprimento de uma obrigação, e o devedor invoca a nulidade do título, ou a prescrição da dívida, ou o pagamento, qualquer destas questões tem necessariamente de ser apreciada e decidida porque a procedência do pedido dependa da solução que lhes for dada; mas já não terá o juiz de, em relação a cada uma delas, apreciar todos os argumentos ou razões aduzidas pelos litigantes, na defesa dos seus pontos de vista, embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes, como se dizia na antiga prática forense». Cfr. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Almedina, Lisboa, pág. 228, com bold apócrifo.
Logo, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado. Cfr. Ac. do STJ, de 07.07.1994, Miranda Gusmão, BMJ, n.º 439, pág. 526, Ac. do STJ, de 22.06.1999, Ferreira Ramos, CJ, 1999, Tomo II, pág. 161, Ac. da RL, de 10.02.2004, Ana Grácio, CJ, 2004, Tomo I, pág. 105, e Ac. da RL, de 04.10.2007, Fernanda Isabel Pereira).
Cfr.Ac. do STJ, de 21.12.2005, Pereira da Silva, Processo n.º 05B2287, com bold apócrifo.
Esta nulidade só ocorrerá, então, quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções, e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das «razões» ou dos «argumentos» invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas, deixando o juiz de os apreciar, conhecendo contudo da questão.
Já, porém, não ocorrerá a dita nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra. Cfr. Ac. do STJ, de 03.10.2002, Araújo de Barros, Processo n.º 02B1844).
Compreende-se que assim seja, uma vez que o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui.
Igualmente «não se verifica a nulidade de uma decisão judicial – que se afere pelo disposto nos arts. 615.º (sentença) e 666.º (acórdãos) – quando esta não aprecia uma questão de conhecimento oficioso que lhe não foi colocada e que o tribunal, por sua iniciativa, não suscitou». Cfr. Ac. do STJ, de 20.03.2014, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 1052/08.0TVPRT.P1.S1.

3.4.1.2. O Apelante sustenta a verificação do vício da omissão de pronúncia no facto da decisão recorrida não ter apreciado a culpa de terceiro em termos jurídicos, ou seja, a culpa do condutor da Toyota Hiace, quanto aos factos integrativos da culpa de terceiro, excludentes da responsabilidade civil extracontratual por facto lícito do Estado (art.º 615, nº1 al.ª d) do CPC.
Mas sem razão.
No caso, conforme resulta dos autos, o condutor do veículo Toyota Hiace já tinha sido condenado no âmbito da ação ordinária n.º 9374/09.7TBVNG da ex- 2.ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de (...) (atual Instância Central Cível – 3.ª Secção) a pagar á autora a quantia de € 7.500,00 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos anteriormente ao disparo efetuado pelo agente N.C..
Assim, no caso, a decisão proferida pelo tribunal a quo apenas responsabilizou o Estado pelas consequências decorrentes do disparo na esfera jurídica da Autora, pelo que, a ser assim, como é, nenhuma omissão de pronúncia se verifica.
O que pode acontecer, é quando muito, a verificação de erro de julgamento, que a seu tempo analisaremos uma vez que vem suscitada essa questão pelo Apelante.
Termos em que soçobra a apontada nulidade.
3.5. Da Nulidade Por Excesso de Pronúncia
3.5.1.O excesso de pronúncia gerador de nulidade prevista na al.d) in fine do n.º1 do art.º 615.º do CPC só tem lugar quando o juiz conhece de pedidos, causas de pedir ou exceções de que não podia tomar conhecimento.
De acordo com o princípio do dispositivo "há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido" (cfr., Ac. STJ de 6.2.92, Bol. 414.º - 413).
3.5.1.2. No caso em juízo, o Apelante funda a ocorrência do vício de excesso de pronúncia na seguinte motivação: “Por outro lado, verifica-se que na sentença a quo, o Meritíssimo Juiz de Direito apreciou e julgou procedente a responsabilidade civil extracontratual por facto lícito do ora Réu – Estado Português, quando tal nem sequer tinha sido peticionado pelo Autora, a qual estruturou todo o seu articulado da PI, com base na responsabilidade extracontratual por facto ilícito.”
Assim, em consequência, o tribunal a quo apreciou e julgou procedente responsabilidade civil por facto licito, questão que não podia sequer apreciar, por nem sequer ter sido alegado pela parte que aproveitava e por conseguinte não foi sequer objeto de impugnação por parte do ora réu- Estado português em sede de contestação, o que viola manifestamente o principio do contraditório nos termos do artigo 3º do CPC”.
Mas sem razão.
3.5.1.3. De acordo com o disposto no art.º 5º nº 3 do NCPC o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, não estando o Tribunal impedido de julgar procedente a ação com um fundamento jurídico diverso daquele que foi invocado na petição inicial.
O princípio do conhecimento oficioso do direito dá ao juiz inteira liberdade na qualificação jurídica dos factos, desde que não altere a causa de pedir, podendo sustentar-se em regras diferentes daquelas que as partes invocaram, atribuir às regras invocadas pelas partes sentido diferente do que estas lhe deram e fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram.
Conforme obtempera o STJ, no seu aresto proferido no processo nº 842/10.9.P2.S1 TBPNF, de 07.04.2016: “[o] que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado”.
Na situação em juízo, conforme bem sustenta o Tribunal a quo “ não sendo possível convocar este regime de responsabilidade extracontratual, e sabendo-se que a qualificação dadas pelas partes não vincula o Tribunal, que assim é livre de o requalificar livremente.(..)”. O Tribunal não fez mais que utilizar legitimamente o poder que lhe é conferido pelo art.º 5º, n.º 3 do CPC, segundo o qual o juiz não está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos provados, sendo, pois, livre na aplicação do direito.
Termos em que improcede a assacada nulidade.
*
3.6. Do Erro de Julgamento de Direito Traduzido na Condenação do Réu Decorrente da Não Consideração da Culpa de Terceiro, Excludente de Qualquer Responsabilidade do Réu Estado Português.
3.6.1. A Autora, na ação intentada contra o Estado português pediu a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €45.791,48 (quarenta e cinco mil setecentos e noventa e um euros e quarenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais já liquidados, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento e ainda em indeminização a liquidar em execução de sentença quanto aos danos patrimoniais que venham a ser apurados, fundamentando a sua pretensão no instituto da responsabilidade civil extracontratual emergente de facto ilícito, por parte do Réu.
Para tanto alegou, que no dia 08 de outubro de 2006, de madrugada, o Soldado da Guarda Nacional Republicana (GNR), N.F.A.C. que se encontrava ao serviço no Posto Territorial dos (...), (...) - e demais colegas da GNR - encetou uma perseguição ao veículo automóvel conduzido pelo H.A.G.R., tendo disparado vários tiros contra o sobredito veículo, os quais a vieram a atingir, enquanto ocupante do sobredito veículo.
3.5.1.1.Na p.i., e como questão prévia, veio a Autora informar o Tribunal a quo que «um particular concorreu para a produção dos danos, com a sua conduta» mas porque considera «que o mesmo deve ser julgado nos Tribunais Comuns…dará entrada na presente data no Tribunal da Comarca de (...), da competente ação para aferir da responsabilidade daquele no evento ocorrido, na proporção da culpa que lhe venha a ser adstrita, protestando-se informar os presentes autos do número de processo da referida ação após a distribuição da mesma».
Essa ação é a que foi instaurada contra o condutor da Toyota Hiace H.A.G.R., no Tribunal Judicial de (...), onde correu termos com o processo n.º 9374/09.7TBVNG, pretendendo a autora obter a condenação daquele a pagar-lhe a quantia de €45.791,48, acrescida de juros desde a citação até integral e efetivo pagamento e bem assim, na quantia que se vier liquidar em execução de sentença relativamente aos danos que a autora venha a padecer no futuro.
3.5.1.1. Em 13.02.2015, a Autora juntou aos presentes autos cópia da sentença transitada em julgado proferida naqueles autos, que condenou o referido H. Alexandre a pagar-lhe a quantia de € 7.500,00, acrescida de juros de mora, pelos danos não patrimoniais sofridos, em momento anterior aos disparos.
Quanto aos danos sofridos em consequência dos disparos, aquele julgador considerou que os mesmos não são imputáveis ao condutor do veículo em fuga, sendo antes, em termos de causalidade adequada, exclusivamente imputáveis ao autor dos disparos.
3.5.1.2.O TAF do Porto, como vimos, julgou a presente ação parcialmente procedente e nessa conformidade, condenou o Apelante ( Estado português) a pagar à Autora a título de indemnização civil, fundada na responsabilidade civil extracontratual, por factos causais ( ou pelo risco ), prevista no artigo 8º do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de novembro de 1967, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos e a quantia de €121,48 (cento e vinte um euros e quarenta e oito cêntimos), por conta dos danos patrimoniais infligidos.
3.5.1.3.A Autora, por sua vez, assentou o seu pedido indemnizatório no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos decorrente de uma alegada violação das regras e deveres de cuidado impostos no âmbito dos disparos efetuados pelo agente da GNR, funcionário do Estado, aquando da perseguição policial que encetou ao veículo conduzido por H. A., que a acabaram por lesionar, enquanto ocupante do dito veículo.
3.5.1.4.O Tribunal de 1.ª instância, depois de elencar os pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por fatos ilícitos, concluiu que na situação em juízo não se verificavam os pressupostos da culpa e da ilicitude relativamente à atuação do agente da GNR, autor dos disparos que atingiram a Apelada, uma vez que, o que resultou evidenciado foi que aquele atuou em legitima defesa, nos termos previstos no art.º 3.º do D.L. n.º 457/99, de 05/11 e/ou no âmbito do estado de necessidade desculpante, previsto no art.º 35.º do C. Penal.
3.5.1.5. A este respeito, lê-se na sentença recorrida que «(…) as particularidades do caso concreto não permitem fundar um juízo da prática de um ato ilícito e culposo quanto á R.
Neste contexto, assume particular relevância, como núcleo central do debate realizado nestes autos, a questão do estado de necessidade desculpante previsto no artigo 35º do Código Penal, e/ou a figura da legitima defesa prevista no artigo 3º do Decreto-Lei nº. 457/99, de 05, de 05/11, diploma que regulamenta o recurso a armas de fogo pelas forças de segurança.
Nos termos do citado artigo 35º do Código Penal “age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”.
A exclusão da culpa decorre de, nas circunstâncias concretas do facto, não ser razoável exigir do agente um comportamento diferente.
Como refere Figueiredo Dias, o afastamento da punibilidade fica a dever-se “a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que in casu não seja razoável exigir dele outro comportamento”; apesar do ilicito-típico praticado demonstra-se “a persistência no agente de uma atitude de fidelidade do direito que aponta a fundamentação do facto numa atitude pessoal juridicamente desvaliosa ou em qualidades juridicamente desvaliosas da sua personalidade”[cfr. Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime, 2ª parte, Sobre a construção do tipo-de-culpa e os restantes pressupostos da punibilidade, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 1º, pág. 28.]).
O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, ao princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma.
São pressupostos do estado de necessidade desculpante a verificação de uma situação de perigo atual para bens jurídicos de natureza pessoal [vida, integridade física, honra e liberdade] do agente ou de terceiro.
O facto ilícito praticado tem de ser “adequado”, ou seja, idóneo a afastar o perigo que não seria remível por outro modo.
Para além destes elementos objetivos relacionados com o perigo, o bem jurídico ameaçado e a adequação do facto é necessário que o juiz verifique que não era razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
Torna-se ainda indispensável que o agente pratique a ação para determinar com ela a preservação do bem jurídico ameaçado, isto é, o animus salvandi, o que bem se compreende pois está em causa a prática de um facto ilícito e, por conseguinte, juridicamente desaprovado.
Como decorre dos factos provados, não obstante as várias tentativas de imobilização, o H.R continuou a marcha da carrinha Hiace em direção ao soldado N.C., que recuou para se proteger do atropelamento iminente, correndo na direção da esquina da Rua (...) com a Rua Dr. Jorge Fonseca Jorge, efetuando neste percurso mais dois disparos na direção daquela viatura com o propósito de a imobilizar que atingiram aquele condutor e a passageira C.S..
Conforme emerge grandemente do exposto, o soldado N.C. utilizou a arma de fogo com o intuito de obstar a uma tentativa de atropelamento iminente de que ele era alvo, sem que para essa situação tivesse minimamente concorrido, caucionando qualquer possibilidade do mesmo repelir essa agressão pelos meios normais, pelo que, no contexto dado, haverá de entender que tal reação se revelava adequada e proporcionada.
Por conseguinte, os factos provados permitem ter por verificada uma situação de estado de necessidade desculpante nos termos previstos no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal e/ou de legitima defesa prevista no artigo 3º do Decreto-Lei nº. 457/99, de 05, de 05/11, que estabelece que é legítimo o recurso a arma de fogo para repelir agressão atual e ilícita dirigida contra o próprio agente de autoridade ou contra terceiros.
Quer tanto significar que falece a imputação ao R. da prática de qualquer ato ilícito culposo no que concerne à atuação policial visada nos autos.
Assim sendo, e considerando que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado [art.º 342º, n.º 1 do Código Civil], não resta outra alternativa que não a de concluir, sem necessidade mais discussão, que não está evidenciada nos autos a tese da A. no plano do requisito da ilicitude e da culpa, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em matéria de efetivação de responsabilidade extracontratual emergente facto ilícito e culposo.
Não sendo possível convocar este regime da responsabilidade extracontratual, e sabendo-se que a qualificação dada pelas partes não vincula o Tribunal, que assim é livre de o requalificar livremente, sempre se poderá invocar, para o mesmo efeito, o regime da responsabilidade pelo risco».
3.5.1.6. É pacifico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que nada impede o julgador, perante a dedução de um pedido indemnizatório com fundamento numa atuação ilícita e culposa, convolar tal pedido, ante a não verificação daqueles pressupostos necessários á afirmação da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, em responsabilidade pelo risco, desde que se verifiquem os respetivos pressupostos legais.
No caso vertente, o Senhor Juiz a quo, perante a improcedência do pedido indemnizatório formulado pela autora com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, nos termos sobreditos, decidiu convolar aquele pedido em responsabilidade pelo risco e com fundamento nesse instituto, julgar a presente ação parcialmente procedente.
Lê-se, na decisão recorrida, a este respeito, que «Não sendo possível convocar este regime da responsabilidade extracontratual, e sabendo-se que a qualificação dada pelas partes não vincula o Tribunal, que assim é livre de o requalificar livremente, sempre se poderá invocar, para o mesmo efeito, o regime da responsabilidade pelo risco.
Na verdade, na factualidade apurada encontram-se reunidos todos os requisitos legais justificativos da sua aplicação, nada obstando ao seu uso, para legitimar o ressarcimento dos prejuízos que a Autora sofreu por força dos disparos visados nos autos.
Explicitemos pormenorizadamente este nosso juízo.
(…) é entendimento deste Tribunal que a atuação policial com recurso a armas de fogo não pode deixar de ser considerada como especialmente perigosa, atendendo aos danos que dela pode resultar em matéria de violação do direito à vida e à integridade física das pessoas.
Assente tal realidade, abre-se caminho à verificação se os danos sofridos pela Autora podem ser qualificados como especiais e anormais.
(…) o prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas sim a pessoa certa e individualizada, em virtude de um determinado acontecimento e, que prejuízo anormal, aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, mas sim aquele que supera os limites impostos pelo dever de suportar a atividade lícita da administração e demais entes públicos.
Neste tipo de responsabilidade civil é assim, certo, que a mesma não só não decorrerá da ilicitude e da culpa do agente, como a mesma só operará se os prejuízos causados pelo ato lícito forem especiais e anormais. Se assim não for, os danos causados não poderão ser ressarcidos.
Estamos, pois, perante um dever de indemnizar que se alicerça no facto de ter sido imposto ao administrado, em nome do interesse geral/público, um sacrifício que ultrapassa os encargos normais que decorrem da vida em sociedade ou de um sacrifício que seja considerado grave e especial, sem preocupações de apurar qualquer da intencionalidade do facto gerador do sacrifício, ou seja, da censura jurídica, como seja a culpa na atuação da Administração.
Fazendo apelo a estes princípios, e tendo presente que a atuação policial com recurso a armas de fogo consubstancia uma atividade especialmente perigosa, e que a Autora é uma das pessoas, dentro de um universo de três, que foi atingida pelos disparos efetuados pelo soldado N.C., atuação essa considerada legítima à luz dos princípios que regem a atuação das forças policiais, e ainda que os danos que a mesma sofreu como consequência de traumatismo de natureza perfuro-contundente - projétil de arma de fogo [bala] foram significativos [cfr. alíneas LL) e seguintes do probatório], temos para nós que o Réu Estado Português está constituído na obrigação de ressarcir dos prejuízos que a Autora sofreu à luz do regime da responsabilidade pelo risco.
Só assim não seria se se provasse que tinha sido a Autora a dar causa a tais disparos.
Essa, porém, não é a situação dos autos.
Na verdade, como já vimos, a Autora é alheia à infração, o que equivale a dizer que não deu causa aos ditos disparos.
Desta feita, impera concluir que, por se mostrar como especial e anormal, e se verificarem os restantes requisitos da responsabilidade extracontratual estadual por atos lícitos, os prejuízos sofridos pela Autora são indemnizáveis nos termos do artigo 8º, n.º 1, do DL 48051, de 21.11.67.»
3.5.1.7. Entende o Apelante que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento na subsunção jurídica por:
(i) não ter concluído que no caso a culpa do condutor do veículo H.R, atentos os factos dados como assentes, é excludente da responsabilidade imputada ao Réu;
(ii) por não ter considerado que a autora ao ter entrado no veículo conduzido pelo terceiro condutor assumiu o risco inerente a qualquer ocupante de um veículo automóvel em caso de acidente, não podendo depois querer responsabilizar o Estado pelo infortúnio que lhe veio a suceder em consequência duma conduta culposa do próprio condutor do veículo automóvel;
(iii) por, não obstante não ter sido dado como provado que o agente policial soubesse que o veículo conduzido pelo H.R transportasse outros ocupantes, designadamente, a Autora, o que impedia que se pudesse assacar qualquer responsabilidade civil ao Réu, uma vez que o seu agente policial nem sequer previu como possível que no veículo estivessem outros ocupantes para além do próprio condutor, condenou o Réu;
(iv) por não ter atendido devidamente ao facto do agente policial só ter disparado contra o condutor do veículo- e não contra quaisquer outros ocupantes que desconhecia existir- para evitar um mal maior ao consistente no perigo iminente, atual e real que a sua própria vida corria ao fazer cessar a investida do veículo contra si direcionada;
(v) e por não ter considerado que segundo as regras da experiência comum, não é crível que ao agente policial médio suposto pela Ordem Jurídica, que naquelas circunstâncias de tempo (noite), lugar ( loca mal iluminado) e modo ( rapidez da ação) transcritas na matéria de facto dada por assente, em fuga apedada do veículo contra si direcionado e conduzido pelo H., tivesse vislumbrado ou pudesse prever que no interior do veículo agressor existissem outros ocupantes para além do próprio condutor.
Vejamos.
3.5.1.8. “A responsabilidade civil dos poderes públicos, independentemente da natureza ou da função ou atividade que desenvolvem, é um princípio estruturante de um Estado de juridicidade e, em termos simultâneos, um direito fundamental dos cidadãos: todo aquele que sofre um prejuízo, por efeito de uma conduta ativa ou omissiva dos poderes públicos, deve ser ressarcido”. Cfr. Paulo Otero in “ O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das Demais Entidades Públicas: Comentários á Luz da Jurisprudência”, de Carla Amado Gomes, Ricardo Pedro e Tiago Serrão. AAFDL Editora, 2017, pág. 13
Há, aliás, uma significativa jurisprudência constitucional que afirma a existência no nosso ordenamento jurídico de um direito fundamental à reparação de danos. Nesse sentido vide o Ac. n.º 385/05, de 13 de julho do TC no qual se escreve que «a Constituição consagra, para além dos casos em que especificamente admite o direito de indemnização por danos, como acontece nos artigos 22.º, 60.º, n.º1, 62.º, n.º2, e 271.º, n.º1, um direito geral à reparação de danos. A existência de um tal direito impor-se-á como um postulado intrínseco da efetividade da tutela jurídica condensada no direito do respetivo titular naqueles casos, pelo menos, em que se verifica a violação de um direito absoluto constitucionalmente reconhecido. O dever de indemnizar, nestas hipóteses, surge como elemento necessário do conteúdo da tutela constitucionalmente dispensada ao direito».
O instituto da responsabilidade visa forçar o responsável pela lesão violadora dos direitos ou interesses legítimos de outrem a reparar os danos que lhe causou e, dessa forma, evitar que o lesado sofra prejuízos em razão de uma conduta para a qual não concorreu.
3.5.1.9. De acordo com o princípio geral da aplicação da lei no tempo (tempus regit actum), segundo o qual a lei só dispõe para o futuro (art.º 2º da Constituição da República Portuguesa e art.º 12º do Código Civil), a lei reguladora do regime da responsabilidade civil extracontratual é a que vigorar à data em que tiver ocorrido o facto gerador de responsabilidade, pelo que, à presente situação, como bem decidiu o Tribunal de 1.ª instância, aplica-se o regime da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas no domínio dos atos de gestão pública, previsto no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967.
O DL nº48051, de 21.11.67, prevê e regula três tipos de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos de gestão pública: a responsabilidade por atos ilícitos e culposos [artigos 2º e 3º], na qual se exige, além do mais, o requisito culpa (sob a forma de dolo ou de negligência) dos órgãos ou agentes da pessoa coletiva pública; a responsabilidade por factos causais ou pelo risco (artigo 8º), onde se prescinde da culpa mas se exige que os prejuízos sejam qualificados de “especiais e anormais” e resultem de serviços “excecionalmente perigosos”; e a responsabilidade por atos lícitos (artigo 9º), onde se prescinde da culpa e da própria ilicitude, mas se exige também que os prejuízos causados possam ser qualificados de “especiais e anormais”.
Nas situações mais recorrentes, a responsabilidade civil extracontratual tem por fundamento uma atuação ilícita e culposa do órgão ou agente do Estado. Porém, situações há em que tal assim não é, e em que o Estado se vê obrigado a ressarcir os danos sofridos pelos particulares em consequência da atuação não culposa nem ilícita dos seus órgãos ou agentes.
3.5.1.10.Tal é o caso da responsabilidade pelo risco, que no âmbito do D.L. 48.051 foi consagrada no art.º 8.º, onde se prescreve que: «O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza, salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou culpa das vítimas ou de terceiro, sendo neste caso a responsabilidade determinada segundo o grau de culpa de cada um”.
A responsabilidade pelo risco assume particular relevo numa sociedade desenvolvida em que a satisfação das necessidades de bem estar e de segurança dos cidadãos exigem, por vezes, a realização de tarefas perigosas mas cuja concretização constitui um risco não só necessário como conveniente à sociedade.
3.5.1.11.Se como afirma Freitas do Amaral " (...) não parece acertado construir uma sociedade livre e pluralista na base da transferência de todos os riscos da vida social dos indivíduos e das empresas para o Estado (...) " Cfr. Direito Administrativo, vol. III, pág. 511; a verdade é que, quando a prossecução de certas atividades provoquem danos que excedam os normais riscos inerentes à própria vida em sociedade, os mesmos, filiando-se no princípio da justa repartição dos encargos públicos, devem ser ressarcidos.
Trata-se de uma espécie de “responsabilidade-prémio”, constituindo um instituto essencial á atuação da administração pública em situações em que a mesma poderia ficar paralisada ante a possibilidade de ocorrerem danos para os particulares por força, veja-se, da intervenção de forças policiais com uso de armas de fogo, como no caso vertente. Cfr. ob. cit., pág.634.
3.6.O legislador consagrou, assim, a possibilidade do Estado e demais pessoas coletivas públicas serem acionadas para ressarcimento dos danos provocados a terceiros em razão da atuação não culposa nem ilícita dos seus órgãos ou agentes no âmbito da prossecução duma atividade perigosa, embora tenha imposto a verificação de certos requisitos.
3.6.1. Como se afirma em Aresto do STA, o legislador «fez depender a operatividade desse ressarcimento da reunião de certos requisitos que a doutrina e a jurisprudência têm chamado de elementos travão. Os quais, por força do disposto na transcrita norma, são (1) a excepcional perigosidade da atividade causadora dos danos e (2) a especialidade e anormalidade dos mesmos», podendo «no entanto, libertar-se dessa obrigação indemnizatória desde que demonstrem que a ocorrência de tais danos foi devida a força maior estranha ao funcionamento do serviço ou a culpa das vítimas ou de terceiro.».
Perante o enunciado legal do dito art.º 8.º coloca-se prima facie a questão de saber o que se deve entender por serviços ou atividades excecionalmente perigosas e bem assim por prejuízos especiais e anormais.
3.6.1.1.Entre nós, de acordo com a jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais tem-se entendido estar perante atividades excecionalmente perigosas em áreas como as relativas a operações policiais ou de segurança com utilização de armas de fogo Cfr. Ac.s do STA: de 04.11.1982, in Apêndice ao DR de 29.04.1986, pp.3889 e sgts; de 08.02.1989, in Apêndice ao DR de 14.11.1994, pp.890 e sgts; de 24.10.1991, in Apêndice ao DR de 31.10.1995, pp.5864 e sgts; de 26.05.1992, in Apêndice ao DR de 16.04.1996, pp.3367 e sgts;, as relativas à realização de obras públicas Cfr. Ac. STA, de 13.01.2004, processo 040581;, as relativas à utilização de explosivos Cfr. Ac. do STA, 11.11.2010, processo n.º 0441/09 e de 12.02.2015, processo 01075/14; e as relativas à realização de manobras e exercícios militares Cfr.Ac. do STA, de 20.01.1977, in Ac. Doutrinais 183, pp. 54 e segts..
Uma definição de atividade especialmente perigosa encontramo-la no Acórdão do STA, de 25/02/2010, processo 1250/09, citado na decisão recorrida, no qual se escreveu que “… uma atividade só pode qualificar-se como perigosa quando o perigo acompanhar o seu bom exercício – mesmo que se saiba que o perigo não se converterá em dano enquanto a conduta for boa. - Portanto, atividade perigosa é aquela que merece o qualificativo enquanto tudo corre bem, e não a que somente o recebe quando as coisas correm mal e os danos acontecem – pois a perigosidade há- de estar no processo, e não no resultado. Não fora assim, toda a actividade susceptível de causar prejuízos seria sempre perigosa, o que constituiria uma conclusão absurda por alargar demasiadamente o conceito em análise, desajustando-o dos limitados fins que o legislador teve em vista ao concebê-lo.”
Também no Ac. do STA, de 12.02.2015, processo 0175/14, se avançou com uma definição considerando-se que «uma atividade será perigosa quando for razoável esperar que dela possam resultar danos gravosos independentemente de ter sido realizada com observância das regras de prudência e de cuidado exigíveis. E porque assim só pode qualificar-se como especialmente perigosa uma actividade quando o perigo lhe for constitucional, isto é, quando, como se afirmou no citado Aresto, o perigo acompanhar o seu bom exercício pelo que a mesma não deixará de ser assim qualificada se, por ventura, a sua boa prática evitou que dela resultasse a produção de quaisquer danos. Não é, pois, como se disse, o resultado que determina a qualificação de uma atividade como perigosa visto esse qualificativo depender unicamente do perigo que objetivamente a sua prática encerra independentemente dele se materializar, ou não.».
A jurisprudência do STA, conforme refere Carla Amado Gomes, Ob. cit. Pág.642 e sgts; tem oscilado entre « a qualificação da perigosidade da atividade em função do processo e/ou em função do resultado» defendendo aquela autora que, a excecional perigosidade «deve desenhar-se a partir de uma combinação i) da aptidão típica da atividade para provocar danos, e da ii) probabilidade de esses danos serem significativos em pessoas ou bens».
3.6.1.2. Na situação em juízo, a atuação dos agentes da GNR envolvendo o uso de armas de fogo tem de se considerar como enquadrada no âmbito da prossecução de uma atividade especialmente perigosa, tal como foi entendimento do Senhor Juiz a quo, uma vez que, da utilização de armas de fogo podem derivar lesões graves, designadamente, para os particulares atingidos, ou mesmo, a morte.
3.6.1.3. No que concerne aos danos causados á Autora os mesmos foram considerados pela sentença recorrida como especiais e anormais.
Em relação ao que deva entender-se por danos especiais e anormais, o STA, no seu acórdão de 05.11.2003, processo n.º 1100/02 sustentou que Por prejuízo anormal deve entender-se aquele que se revista de certo peso ou gravidade, em termos de ultrapassar os limites daquilo que o cidadão tem de suportar enquanto membro da comunidade, isto é, que extravase dos encargos sociais normais, exigíveis como contrapartida da existência e funcionamento dos serviços públicos. Prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas que incide desigualmente sobre um indivíduo ou grupo determinado.” Cfr. No mesmo sentido, vide Acórdãos do STA: de 10/10/2002, rec. 48404; de 30/04/2008, rec. 913/07; de 17/12/2008, rec. 348/08; de 14/12/2005, rec. 351/05;, de 16/01/2014, rec. 445/13 e de 15/05/2014 ,rec. 1504/13.

Ou como se afirma no Ac. do STA, de 14.12.2005, processo n.º 01810/03 « …os prejuízos são anormais ou especiais quando ultrapassam os pequenos transtornos e prejuízos que são inerentes à atividade administrativa e que decorrem da natureza da própria atividade e se configuram como o custo a suportar pela integração social, ou seja, são os danos que vão onerar pesada e especialmente apenas algum ou alguns cidadãos, sobrecarregando-os de forma desigual em relação a todos os demais…o que qualifica a anormalidade ou a especialidade do prejuízo é o facto deste, pelo seu caráter e volume, exceder aquilo que é razoável fazer suportar ao cidadão normalmente integrado».
Veja-se ainda o acórdão deste TCAN, de 15.03.2012, processo 01290/06.0, no qual se sustenta que a anormalidade do dano tem vindo a ser concretizada com base na teoria do gozo standard, segundo a qual deve ser garantido um gozo médio ou standard dos bens dos particulares, sendo anormal o dano que implicar a ablação total ou parcial desse gozo standard.
Ainda no citado Ac. do STA de 12.02.2015, processo 0175/14, afirma-se que «perigo anormal e especial é o que excede o que normalmente decorre da atividade administrativa e que recai sobre um único cidadão ou um grupo restrito de cidadãos e que pela sua intensidade ou volume se distingue dos que são suportados pelos restantes cidadãos. Porque assim, só devem merecer tutela os prejuízos decorrentes da atividade administrativa que, pela sua natureza, volume e dimensão se afastem dos suportados pela generalidade dos cidadãos, devendo eliminar-se desse universo os sacrifícios ligeiros que, sendo custos próprios da vivência em sociedade, são compensados por outras vantagens proporcionadas por aquela atividade.»
3.6.1.4. Pode, pois, concluir-se, que a jurisprudência, quanto á concretização dos danos anormais e especiais dos artigos 8.º e 9.º do D.L. 48.051, de 21.11.1967, apoiava-se na “teoria da intervenção individual com enfoque na especialidade do resultado e na teoria do gozo standard”.
De notar que, o que não deve fazer-se é aferir da especialidade do dano em função da sua anormalidade, devendo proceder-se a uma ponderação individualizada da especialidade e da anormalidade do dano e, só após, ponderar-se conjuntamente.
3.6.1.5. Na situação em juízo, não é posta em crise a especialidade e a anormalidade dos danos sofridos pela autora em consequência de ter sido atingida pela bala disparada pelo agente da GNR Nuno Santos quando encetava uma perseguição policial ao veículo onde aquela se fazia transportar e perante a iminência de ser atropelado pelo referido veículo cujo condutor, desobedecendo às ordens dos agentes da GNR, prosseguia a sua marcha em direção àquele agente mas apenas o montante que foi arbitrado para ressarcimento do danos não patrimoniais, tido pelo Apelante, que o Apelante considera excessivo.
Não se ignorando que "O Estado de Direito social, porque indefecti­­­­­­­velmente também Estado de Direito, não poderá transfor­mar-se numa gigantesca empresa de seguros ou dispensa­dor amoral de benefícios de uma gratuidade sem dor, sem deveres nem responsabilidade (...)" Vide(Castanheira Neves, "Nótula" a propósito do Es­tudo sobre a responsabilidade Civil de Guilherme Mo­reira, obra cit..,pág.77 )., no caso, os danos suportados pela autora são diferentes dos impostos à generalidade das pessoas e não constituem um risco normal decorrente da vida em sociedade.
3.6.1.6.O Tribunal de 1.ª instância, considerando as concretas circunstâncias em que o agente policial Nuno Santos se viu constrangido a disparar contra o veículo conduzido pelo H. Alexandre, considerou não estarem verificados os pressupostos de imputação de responsabilidade civil ao Réu com fundamento em conduta ilícita e culposa dos seus agentes. Na verdade, o Tribunal a quo, atendendo ao facto do condutor da viatura Toyota Hiace (i) ter desobedecido á ordem de imobilização da viatura que conduzia, pondo-se em fuga com a mesma; (ii) ao facto de, após a GNR ter bloqueado uma das artérias por onde circulava aquela viatura, o mesmo ter invadido a hemi-faixa de rodagem contrária e prosseguir a respetiva marcha em direção ao espaço deixado livre pela barreira e à frente da qual se encontrava apeado o agente N.C.; (iii ) avançando na sua direção, a velocidade entre os 50/60 Km/hora, considerou que o facto do agente N.C., quando se encontrava sensivelmente a 9,80 m de distância da carrinha, e depois de já ter efetuado um disparo na direção do pneu frontal direito daquela carrinha que seguia na sua direção, furando-o, e do seu colega ter efetuado outro disparo e, ainda assim, o H. A. não ter imobilizado carrinha, antes tendo continuado a sua marcha em direção ao agente N.C., que recuou para se proteger do atropelamento iminente, correndo na direção da esquina da Rua (...) com a Rua (…), tendo sido neste percurso que efetuou os dois disparos na direção da carrinha com o propósito de a imobilizar mas que vieram a atingir quer o condutor quer a autora, julgou a conduta do último como não permitindo fundar um juízo de culpabilidade e de ilicitude da sua atuação.
Assim, não é rigoroso que o Tribunal de 1.ª instância não tenha considerado e valorado devidamente o comportamento do agente N.C., que considerou justificado em face das referidas circunstâncias, tendo por isso mesmo, julgado não lhe ser exigível que procedesse de outro modo, dando como verificado o estado de necessidade desculpante previsto no artigo 35.º do C. Penal e a situação de legítima defesa prevista no art.º 3.º do D.L. n.º 457/99, de 05.11. Porém, daí não decorre que o Estado não seja responsabilizado com fundamento em factos causais ou pelo risco, uma vez que a atividade desenvolvida pelo agente N.C. enquanto agente policial empunhando uma arma de fogo, é suscetível, como foi, de ainda que sem culpa ou atuação ilícita da sua parte, provocar danos a particulares que nada têm a ver com a situação que originou a intervenção dos agentes do Estado.
3.6.1.7. Por outro lado, também não assiste razão ao Apelante quando pretende que houve culpa da Autora/lesada nos danos que sofreu, por, ao ter entrado no veículo conduzido pelo terceiro condutor, ter assumido o risco inerente a qualquer ocupante de um veículo automóvel em caso de acidente, não podendo depois querer responsabilizar o Estado pelo infortúnio que lhe veio a suceder em consequência duma conduta culposa do próprio condutor do veículo automóvel.
No caso, a Autora, como bem decidiu a 1.ª instância, não teve qualquer atuação da qual resulte poder ser-lhe imputável total ou parcialmente a responsabilidade pelos danos que sofreu na sua esfera jurídica.
Adiante-se que, no âmbito da exclusão da responsabilidade pelo risco do Estado previsto no art.º 8.º do D.L. 48.051, a jurisprudência dos Tribunais Administrativos tem sublinhado que a expressão comportamento culposo do lesado “ não é usada em sentido próprio, pois não está em causa a transgressão de qualquer dever jurídico, dado que não existe um dever de evitar a ocorrência de danos para si próprio, significando a culpa simplesmente que o prejudicado omitiu a diligência com que poderia ter impedido o dano” Cfr. Ac. TCAS, de 02.07.2016, processo 08408/12; Ac. TCAN, de 18.03.2016, processo n.º 01960/09.1BEPRT.
Diferentemente, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, sustentam que ao lesado incumbe “ Cfr. Direito Administrativo Geral, Tomo III, pág. 500; um ónus de proteção diligente da sua esfera jurídica”, posição que não subscrevemos, não se aceitando que exista uma culpa perante nós próprios, «sendo impensável encontrar um dever jurídico que pendesse sobre cada um no sentido de devermos acautelar-nos contra os danos que possamos causar a nós próprios”. Cfr. Sara Geraldes, in “ A Culpa do lesado”, in O Direito, Ano 141.º, II, 2009, pags.341 e 342.
No entanto sempre se dirá que quem entra num veículo não aceita que desse facto lhe possam advir danos e muito menos que venha a ser encetada uma perseguição a essa viatura na sequência da qual venham a ser disparados tiros que atinjam a sua integridade física.
Tal eventualidade, dada a sua anormalidade, excecionalidade e imprevisibilidade é de todo impensável para quem entra num veículo e, por isso mesmo, ainda que esse facto venha a acontecer, e ainda que o agente policial que dispare os tiros atue em legitima defesa e, por isso, sem culpa e não lhe seja previsível que naquele concreto veículo sigam outros ocupantes que eventualmente sejam atingidos compreende-se que sendo a atividade do agente que assim procede em legitima defesa e que atinja terceiros, um risco próprio da atividade policial, que a esse terceiro lesado na sua esfera jurídica assista o direito de ser indemnizado pelos danos sofridos em consequência do seu atingimento pelo tiro.
É que, reafirma-se, excluída a culpa do agente que dispara os tiros em legitima defesa, o terceiro que segue no veículo e que é atingido na sua integridade física, em nada contribuiu para os danos que sofreu e que lhe eram de todo imprevisíveis não obstante o risco daquele ser atingido ser um risco próprio da atividade policial e consequentemente, do exercício das funções do agente policial que dispara contra um veiculo em movimento.
3.1.6.8. No que concerne à culpa de terceiro, a questão de sabermos se a culpa de terceiro também releva no âmbito da responsabilidade pelo risco tem sido respondida afirmativamente. O artigo 8.º, embora não de forma tão expressa quanto hoje sucede com o art.º 11.º da Lei n.º 67/2007, prevê a possibilidade do concurso do risco com a culpa do terceiro.
Neste sentido, veja-se o Ac. do TCAN, de 18.11.2016, processo n.º 2430/09.3 BEPRT em que se decidiu pela exclusão da responsabilidade da Administração pelo risco, num caso em que se verificou culpa do lesado e de um terceiro.
No caso, a atuação do condutor da viatura Toyota Hiace, tal como foi entendido pelo juiz do processo n° 9.374/09/ TBVNG da Ex-2ª Vara de Competência Mista do T.J. de Vila de Gaia (atual Instância Central Cível – 3ª Seção), não pode justificar a imputação ao próprio das consequências suportadas pela Autora/lesada na sua esfera jurídica decorrentes dos tiros disparados pelo agente N.C..
O condutor da viatura Toyota Hiace já foi condenado por sentença transitada em julgado, no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela Autora, mas relativos apenas aos danos sofridos antes de ter sido atingida pelos disparos do agente N.C., na quantia de € 7.500,00. Este montante não abrangeu qualquer compensação pelos danos sofridos pela Autora em consequência dos disparos efetuados pelo agente N.C., como expressamente consta da decisão proferida pelo Tribunal comum, que entendeu não poderem tais danos ser assacados ao condutor da viatura H. Alexandre.
3.1.6.9. No caso, importa termos bem presente que um dos pressupostos da responsabilidade civil é o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Segundo a chamada teoria da equivalência das condições ou da condição sine qua non, a causa do dano é todo o conjunto de circunstâncias que concretamente interferem no respetivo processo causal (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., p. 881). Consagrando-se normativamente o nexo de causalidade em termos de causalidade adequada – “considera-se causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostre adequada a produzi-lo” – os disparos do agente N.C. serão causa adequada das lesões sofridas pela autora.
Quer dizer: de acordo com a teoria da causalidade adequada, nem todos os acontecimentos que precedem um dano (sendo, por assim dizer, as causas da sua produção) têm a mesma relevância.
O dano tem que ser associado ao facto antecedente que, segundo o curso normal dos acontecimentos, foi a sua causa; todos os demais são periféricos e, portanto, irrelevantes para efeitos de responsabilidade civil. Por isso, uma pessoa só responde pelo dano produzido no caso de a sua conduta culposa ter esse carácter de causa adequada ou normalmente geradora do resultado (cfr. Ricardo Angel Yaguez, La Responsabilidade Civil, 1989, p. 244).
Significa isto que os factos que integram o processo causal e de que depende a realização do dano não são, social e juridicamente, equivalentes.
É necessário proceder, em prognose póstuma, a uma seleção entre esses factos e reter, de entre eles, aquele(s) que, virtualmente, poderia(m) desencadear o dano segundo o curso habitual das coisas e eliminar da causalidade os antecedentes que normalmente não conduzem ao dano e só o produzem em condições excecionais.
Isto supõe uma operação mental de reconstituição post factum dos antecedentes do processo causal para apurar a causalidade essencial do dano, ou seja, para escolher, retrospectivamente, de entre todos os antecedentes, o antecedente normalmente apto (adequado) a “causar” o dano, segundo a ordem natural das coisas e a experiência da vida.
Escreve, a este propósito, o Prof. Almeida Costa: “É necessário, portanto, não só que o facto tenha sido, em concreto, condição «sine qua non» do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção” (cfr. Direito das Obrigações, 8ª ed., p. 698).
Este princípio geral da causalidade adequada concretiza-se em duas formulações, tendo em vista a delimitação dos danos indemnizáveis “causados” por determinado facto. Segundo uma dessas formulações – a positiva - um facto é causa de um efeito danoso quando é previsível que ele o provoque, atendendo às circunstâncias concretas em que o agente actuou, quer às conhecidas deste, quer às cognoscíveis, à data da produção do facto, por uma pessoa normal.
Esta formulação positiva da causa adequada baseada na previsibilidade do resultado pelo agente aproxima o juízo sobre o nexo de causalidade do conceito ético de culpa e restringe o âmbito dos danos ressarcíveis, uma vez que assenta a indemnização na previsibilidade do facto.
Por isso, se propôs um alargamento da noção de causalidade, através do que se designou formulação negativa do nexo de causalidade e que prescinde da noção de previsibilidade: segundo esta, um facto que atua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais.
Como se vê, a formulação negativa da causa adequada aproxima-se da teoria da equivalência das condições, na medida em que um facto é causal de um dano sempre que é uma das várias condições da sua produção, sem a qual o dano não teria ocorrido.
E, segundo ela, por um lado, o agente é sempre responsável quando previu ou devia prever o facto, mas já não os seus efeitos (que ficam de fora do âmbito de previsibilidade) e, por outro, o facto-condição só não é causa do dano se era totalmente indiferente para a sua produção segundo as regras de experiência comum ou se só o produziu mercê de circunstâncias anómalas e excepcionais (que, por isso, escapavam à previsibilidade do agente).
A ordem jurídica portuguesa consagra a teoria da causalidade adequada no art. 563º CC ao prescrever que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
A ideia de probabilidade do dano vive, paredes-meias, com a de adequação, segundo o curso normal das coisas e a experiência da vida: o dano é provável sempre que a sua ocorrência, segundo a ordem das coisas e a experiência da vida se apresente como normal e típica (adequada); como escreve Menezes Leitão, “a introdução do advérbio “provavelmente” faz supor que não está em causa apenas a imprescindibilidade da condição para o desencadear do processo causal, exigindo-se ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzir um dano,…” (cfr. Direito das Obrigações, vol. I, 2000, p. 305-306).
O problema do nexo de causalidade resolve-se, à luz da formulação negativa do art. 563º citado, através da resposta à questão da probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão. Por isso se afirma que o art. 563º citado consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa.
Nos termos da própria formulação negativa da teoria da causalidade adequada, ela não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta haja só por si determinado o dano, podendo o mesmo resultar da colaboração na sua produção de outros factos ou condições, concomitantes ou posteriores; o nexo causal não deixa de existir se, no processo de realização do resultado danoso concorrerem outros factos “causais”.
De igual modo, o nexo causal entre o facto e o dano não tem necessariamente que ser directo e imediato, podendo ser indirecto e mediato; a relação jurídica de causalidade não deixa de existir se “o facto, embora não tenha ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, contanto que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada da primeira. A solução justifica-se, porque o dano, muitas vezes, apenas se torna possível pela intermediação de factores de diversa ordem (factos naturais, ações ou omissões do próprio lesado ou de terceiro) sendo razoável que o agente responda por esses factos posteriores, desde que especialmente favorecidos pela sua conduta ou tão só prováveis segundo o curso normal das coisas” (cfr. Almeida Costa, ob cit, p. 700).
Aqui chegados, podemos afirmar, como, de resto, o fez o TAF, que os disparos efetuados pelo agente N.C. foram causa adequada das lesões sofridas pela autora. A causa não deixa de ser adequada se não for exclusiva.
3.7.1.É certo que na base dos disparos está a conduta do condutor que forçou o agente N.C. a disparar contra o veículo em movimento quando nele seguia a autora que veio a ser atingida na sua integridade física. No entanto, uma vez disparados esses tiros, porque a autora é alheia a esse comportamento do condutor e veio a ser atingida na sua integridade física por via da atividade policial desenvolvida pelo agente N.C. , atividade essa que é perigosa e em que o risco inerente a serem atingidos terceiros em consequência desse disparo efetuado em legitima defesa é um risco próprio dessa atividade perigosa, impõe-se ao Estado ressarcir a Autora por via dos danos que sofreu em consequência do risco próprio dessa atividade policial.
Na verdade, não oferece dúvida que os danos sofridos pela Autora na sua integridade física tiveram como causa os tiros disparados pelo agente N.C.. Como supra se expendeu, um facto é causal de um dano sempre que é uma das várias condições da sua produção, sem a qual o dano não teria ocorrido, pelo que, não pode o Estado deixar de ser responsabilizado pela atividade perigosa que foi desenvolvida pelo seu agente ao usar a arma de fogo com que disparou as balas que acabaram por atingir a autora, não obstante a sua intervenção ter sido justificada perante as circunstâncias. Mas é exatamente para isso que o existe o instituto da responsabilidade pelo risco: para assegurar a ressarcibilidade dos prejuízos sofridos por quem venha a ser lesado no âmbito de atividades perigosas desenvolvidas pelos órgãos ou agentes do Estado, quando atuem prudentemente, portanto sem culpa ou ilicitude de conduta.
A Autora foi vítima de um risco decorrente do exercício duma atividade de policia por parte de um agente da Guarda Nacional Republicana – foi baleada! - quando o Estado, através do seu agente da GNR, estava a exercer a função policial que é eminentemente expressão do iuris imperium, em beneficio da coletividade, sujeitando e concretizando na pessoa da Apelada, um risco excecional decorrente dessa concreta atividade perigosa. Logo, cabe-lhe o direito a ser ressarcida pelo Estado.
Assim, improcedem os apontados fundamentos de recurso, devendo manter-se a decisão recorrida.
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Do Erro de Julgamento na Fixação do Quantum Indemnizatório Relativo aos Danos Não patrimoniais.
3.8. O Apelante alega ainda que a sentença a quo exagerou na fixação do quantum dos danos não patrimoniais a favor da Autora, uma vez que, a esse título, a favor da mesma já tinha sido fixado a quantia de € 7.500,00, no âmbito da ação ordinária n° 9.374/09/ TBVNG da Ex-2ª Vara de Competência Mista do T.J. de Vila de Gaia (atual Instância Central Cível – 3ª Seção), que interpôs contra o ora terceiro condutor, H.A.G.R., o que constitui erro na apreciação de direito.
3.8.1.No âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo risco, há lugar à compensação dos danos não patrimoniais desde que os mesmos se apresentem como especiais e anormais.
A este respeito, pode ler-se o seguinte na decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância: «Por outro lado, a Autora sofreu também danos não patrimoniais, que, pela sua gravidade merecem a tutela direito [art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil].
Esses danos são os emergiram como consequência de traumatismo de natureza
perfuro-contundente - projéctil de arma de fogo [bala] foram significativos [cfr. alíneas LL) e seguintes do probatório], dos quais se destacam o estado doloroso que ficou acometida a Autora, as perturbações de sono de que a mesma padeceu, as cicatrizes com que ficou, as alienações funcionais do membro superior esquerdo da Autora, e ainda os sentimentos de vergonha e insegurança associadas à deformação física provocada pelas apontadas cicatrizes»
3.8.1.1.No caso, atenta a gravidade dos danos não patrimoniais que vêm evidenciados na matéria das alíneas LL, MM, NN, RR, SS, TT,UU,VV e WW, a idade da autora que contava escassos 17 anos (vide alínea QQ), e que sofreu, num período de diversão, em que a doença e o sofrimento são algo longínquo como é próprio da juventude, para além de ver o seu corpo marcado com cicatrizes que indelevelmente a desfeiam e a fazem relembrar o evento vivido, necessariamente doloroso e traumático, e para o qual em nada contribuiu, é indiscutível que o montante compensatório arbitrado ainda que a título de responsabilidade pelo risco se peca é por defeito.
Termos em que improcede o alegado fundamento de recurso.

IV-DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Apelante e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo Apelante - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Registe e notifique.
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Porto, 31 de janeiro de 2020.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro