Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01171/21.8BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/02/2024
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA; DIVÓRCIO;
UNIÃO DE FACTO; ARTIGO 6º DA LEI Nº 7/2001, DE 11.05;
ARTIGO 11º DO DECRETO-LEI Nº 322/90, DE 18.10.;
Sumário:
1. O regime legal de protecção à união de facto consignado no artigo 6º da Lei nº 7/2001, de 11.05, constitui uma excepção à norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 322/90, de 18.10.

2.Tendo-se verificado o reatamento da comunhão de cama, mesa e habitação muito mais de dois anos antes da morte do beneficiário, em casal separado judicialmente de pessoas e bens, a cônjuge sobreviva tem direito a receber uma pensão de sobrevivência, nos termos do artigo 6º da Lei nº 7/2001, de 11.05.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Instituto da Segurança Social, I.P., veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 13.10.2023, pela qual foi julgada (totalmente) procedente acção que «AA» intentou contra o ora Recorrente condenando o Réu à “prática de acto administrativo que confira direito à protecção por morte à Autora, nos termos ante expostos”.

Invocou para tanto, em síntese, que se deveria ter concluído na decisão recorrida que a alegada união de facto entre a Autor com o beneficiário de quem a mesma se encontrava judicialmente separada de pessoas e bens, não poderia ser-lhe reconhecida, porquanto não pode simultaneamente ser casada mas judicialmente separada de pessoas e bens, e viver em união de facto com a mesma pessoa; pelo que, ao julgar procedente a acção, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 11º de Decreto-Lei n.º 322/90, de 18.10; artigo 2º da Lei n.º 7/2001, de 11.05, na redacção dada pela Lei n.º 23/2010, de 30.08; e artigos 1795-A e 1795-B e 1795º-C, todos do Código Civil.

A Recorrida contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

C. Conclusões

1. A recorrida «AA», requereu as prestações por morte, sendo esse mesmo requerimento objecto de indeferimento por parte do ora recorrente, com fundamento na falta de verificação dos pressupostos constantes do art.º 11º do D.L. 322/90, de 18 de Outubro, ou seja, no facto de o cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens e o divorciado só terem direito às prestações se, à data da morte do beneficiário falecido, dele recebessem pensão de alimentos fixada por decisão judicial, ou se esta não lhes tivesse sido atribuída por falta de capacidade económica do falecido judicialmente reconhecida.

2. Não concordando a recorrida veio então, com a presente ação, peticionar a condenação do ora recorrente a praticar ato de deferimento do seu pedido de atribuição de prestações por morte devidas pelo falecimento de «BB», dado que, não obstante tal separação, a Autora terá vivido com o mesmo na ... nº 195, ..., ..., ... ..., desde junho de 2002 até a data de falecimento de «BB» em 20/02/2021.

3. O Tribunal “A quo” entendeu julgar a ação procedente, por provada e, em consequência condenou o Réu, ora recorrente, a praticar ato de deferimento do pedido da recorrida de atribuição das prestações por morte devidas pelo falecimento de «BB».

4. Com efeito, o Tribunal “A quo” considera que lhe é aplicável os normativos do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18/10 e artigos 3º, alínea e), 6.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, assistindo à recorrida o direito à proteção por morte, nos termos anteriormente explanados.

5. Fundamentou a sua decisão: (...) A tal não obstando o facto de estarem separados judicialmente de pessoas e bens à data do falecimento de «BB», em conformidade com o artigo 2.º, alínea c) da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio. Adicionalmente, refira-se que os normativos em causa não concedem espaço discricionário à Administração para aferir, no caso concreto, uma melhor solução. Tratando-se de uma norma vinculada, o benefício tem que ser concedido, cumpridos que estejam os requisitos legais. Em conclusão, assiste razão à Autora na sua argumentação, procedendo o invocado, e condenando-se a Ré à prática de novo ato administrativo nos termos ante expostos. (...)

6. Todavia, consideramos, salvo o devido respeito, que a fundamentação de do MM.º Juiz “A quo” de sua decisão, não se encontra correta.

7. Com efeito, a alegada união de facto da recorrida com o beneficiário falecido de quem a mesma se encontrava judicialmente separada de pessoas e bens, não poderá ser-lhe reconhecida, já que não pode simultaneamente ser casada, mas judicialmente separada de pessoas e bens, e viver em união de facto com a mesma pessoa.

8. Ora, as fundamentações em causa não tiveram assim em consideração que «[a] separação [...] de pessoas e bens não dissolve o vínculo conjugal» (cf. artigo 1795.º - A do Código Civil), pois a Autora e falecido beneficiário se encontravam-se casados apesar de se encontrarem separados de pessoas e bens.

9. Além do mais, também não tiveram em conta que impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto o casamento não dissolvido (artigo 2.º, alínea c), 1.ª parte, da Lei da União de Facto, aprovado pela Lei no 7/2001, de 11 de Maio, incluindo última alteração pela Lei no 23/2010, de 30 de Agosto.

10. Sendo que a separação de pessoas e bens só cessa com a reconvenção em divórcio ou com a reconciliação dos conjugues (artigo 1795 - B do Código Civil).

11. Ora, se a Autora e o beneficiário falecido pretendessem «restabelecer a vida em comum e o exercício pleno dos direitos e deveres conjugais» teriam de reconciliar-se (artigo 1795 – C do Código Civil).

12. No caso concreto resulta que nunca houve reconciliação entre a Autora e o falecido beneficiário. Por outras palavras, para efeitos da Lei a Autora e falecido estavam separados entre si (pessoas) e nunca restabeleceram «a vida em comum e o exercício pleno dos direitos e deveres conjugais» (cf. artigo 1795 – C do Código Civil).

13. E se estavam separados entre si (separação de pessoas) e nunca restabeleceram a vida em comum como exigia a Lei também não lhes poderia ser reconhecida a união de facto.

14. Não podemos deixar de transcrever o recente Acórdão, num caso semelhante ao presente, proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, sob o n.º 2260/15.3BEPNF da UO 1, que diz o seguinte:

15. “(...) Assumindo, por princípio, que não deve ser concedida a protecção dada por lei à união de facto quando um dos unidos permaneça com vínculo de casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens entre o unido de facto e o seu cônjuge, terceiro à união de facto, abrindo porta a essa protecção. Fenómeno impossível de acontecer...entre duas pessoas casadas entre si (como acontece, já que a separação judicial de pessoas e bens entre a autora e o falecido não dissolveu o vínculo conjugal – art.º 1795-A do CC). No caso em mãos não pode buscar-se solução trazendo à colação discussão assente no que seja excepção de princípio ao aludido impedimento, quando ausente da equação terceiro, suposto na tutela da relação e nessa previsão, advindo de todo o estéril e infrutuoso perscrutar se o impedimento existe ou surte afastado pela separação E antes o que há que reconhecer é uma união pelo vínculo matrimonial, importando uma relação de estado (civil) inconciliável com a adopção concorrencial ou pretensão de beneficiário doutro diferendo estatuto, como é aquele conferido por lei à união de facto (e não se trata aqui de uma sucessão – para tal hipótese, com lógica de paralelismo, simplesmente recordando, lembramo-nos do Ac. da RC, de 07/06/2005, proc. n.° 772/05) À qual, perante o que é de pretensão substantiva da autora, dá resposta o DL n.° 322/90, de 18/10, no seu art.° 11° (situação de separação ou divórcio): “O cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens e o divorciado só têm direito às prestações se, à data da morte do beneficiário, dele recebessem pensão de alimentos decretada ou homologada pelo tribunal ou se esta não lhes tivesse sido atribuída por falta de capacidade económica do falecido judicialmente reconhecida”. Pressupostos que não se encontram reunidos.

16. Com efeito, a união de facto acontece entre pessoas não unidas, entre si, através do casamento, o que não sucede entre a recorrida e o beneficiário falecido, uma vez que os mesmos eram casados, estando, porém, separados de pessoas e bens.

17. E, constitui impedimento à atribuição de efeitos jurídicos à união de facto a circunstância de haver casamento não dissolvido, já que a separação de pessoas e bens não dissolve o casamento, apenas faz cessar alguns deveres, nomeadamente o dever de coabitação.

18. Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/04/2003, proferido no processo n.º 03ª926, disponível para consulta in www.dgsi.pt/jstj.nsf, do que se transcreve o seguinte texto:
“(...) Na separação judicial de pessoas e bens os cônjuges não querem pôr termo ao vínculo conjugal, mas antes pôr termo ao seu dever de coabitar. Nos termos do Artigo 1795° A e 1795° D do Código Civil a separação não elimina os deveres de respeito, de cooperação e de alimentos nem o dever de recíproca fidelidade entre os cônjuges separados de pessoas e bens. Os separados continuam a ser marido e mulher. Pelo que, apesar da união de facto ter passado a ter proteção legal, a situação jurídica existente – casamento – terá que prevalecer”.

19. Por isso, entendemos que para que a recorrida afastasse os efeitos decorrentes de uma situação consagrada em registo, por ato voluntário devidamente exteriorizado (separação de pessoas e bens) sempre teria que praticar ato de igual força probatória (mediante reconciliação – artigo 1795º C do Código de Processo Civil).

20. Deste modo, deveria o MM.º Juiz “A quo” ter concluído que a alegada união de facto entre a requerente (Aqui Autora) com o beneficiário de quem a mesma se encontrava judicialmente separada de pessoas e bens, não poderia ser-lhe reconhecida, porquanto não pode simultaneamente ser casada mas judicialmente separada de pessoas e bens, e viver em união de facto com a mesma pessoa.

21. Não o fazendo violou os artigos 11º de Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro; artigo 2º da Lei n.º 7/2001, de 11/05, na redacção dada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto; artigos 1795-A e 1795-B e 1795º-C, todos do Código Civil.

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II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1) A Autora casou com «BB» em 07-03-1976 – cfr. assento de casamento, junto como documento n.º ... com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2) «BB» era dono de uma empresa de confeções, denominada “[SCom01...]”, que atravessou dificuldades financeiras, aproximadamente no ano de 1995 – prova por declarações de parte e prova testemunhal.

3) Em 30-10-1995, por sentença do Tribunal Judicial de Guimarães, transitada em julgado em 23-11-1995, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens relativamente ao casamento indicado no ponto antecedente – cfr. assento de nascimento e respetivo averbamento, a fls. 8 e 9 do processo administrativo – p. 246 e seguintes do SITAF e cfr. documento n.° ... junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

4) Durante o ano de 2020, «BB» sofreu de doença oncológica, período no qual foi apoiado pela Autora – cfr. conjugação de actos médicos, juntos como documentos n.° ...4 e ...5 com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido com prova por declarações de parte e prova testemunhal.

5) «BB» faleceu em 20-02-2021 – cfr. assento de óbito, junto como documento n.° ... junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

6) No período compreendido entre 1995 e a morte de «BB», este e a Autora moraram na mesma casa, dormiam na mesma cama, tomavam juntos as refeições, dividiam as despesas do dia-a-dia, passeavam em conjunto e compareciam às festas de família – prova por declarações de parte e prova testemunhal.

7) Em 01-03-2021, a Autora apresentou requerimento, junto do Réu, com referência a “prestações por morte”, indicando como beneficiário falecido «BB» – cfr. fls. 4 a 7 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

8) O requerimento identificado em no ponto antecedente foi indeferido pelo Réu em 08-06-2021 – cfr. fls. 18 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


9) O indeferimento mencionado no ponto antecedente teve como fundamento o seguinte:

Art.º 11.º, por à data do óbito não receber(em) pensão de alimentos, decretada ou homologada pelo tribunal ou, na situação de falta de capacidade económica do falecido, não ter sido judicialmente reconhecido o direito à mesma.
– Cfr. fls. 1 do processo administrativo, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

10) O indeferimento referido nos pontos precedentes foi comunicado à Autora, por ofício de 08-06-2021, entre o mais, com o teor seguinte:

“(...) De acordo com a informação já prestada por este Centro no ofício anteriormente enviado, V. Exa. não reúne as condições previstas no D.L. n. 322/90, de 18 de Outubro, para efeito de atribuição das prestações requeridas por morte do beneficiário acima mencionado.
Por tal motivo, o requerimento de Prestações por Morte foi INDEFERIDO em 2021/06/08. (...)”
.
– Cfr. fls. 18 do processo administrativo.

11) Em 04-08-2021, a Autora apresentou requerimento, junto do Réu, com referência a “prestações por morte”, indicando como beneficiário falecido «BB» – cfr. fls. 4 a 7 do processo administrativo – p. 140 e ss. do SITAF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

12) O requerimento identificado no ponto anterior foi indeferido pelo Réu em 12-10¬2021 – cfr. fls. 1 a 3 do processo administrativo 2, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

13) O indeferimento mencionado no ponto antecedente teve como fundamento o seguinte:

“não reconhecimento da União de Facto (sem necessidade de acção judicial), por não se verificarem os pressupostos objectivos da União de Facto
(...)
Verificar-se uma das causas de exclusão do artigo 2.º
(...)
- Verificação de causa(s) de exclusão (Art.º 2.º):
(...)
c) Casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens; (...).”
– cfr. fls. 1 a 3 do processo administrativo 2.

14) Em 23-07-2021, a Junta de Freguesia ..., concelho ..., emitiu atestado, entre o mais, nos seguintes termos:

“(...)
A Junta de Freguesia ..., concelho ..., distrito ..., no uso da competência que lhe confere a alínea 1) do n.º 1 do artigo 18.º do Anexo I da lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, e para cumprimento da alínea rr) do n.º 1 do artigo 16.º do Anexo I da mesma Lei, atesta para os devidos efeitos que, «AA», nascida a ../../1953, identificada pelo Cartão de Cidadão n.º ..., residente na Rua ..., ..., ... ..., viveu em união de facto com «BB», desde junho de 2002, até à data do seu falecimento, 20-02-2021. (...)
– Cfr. atestado junto a fls. 13 do processo administrativo 2, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

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III - Enquadramento jurídico.

Sobre este tema pronunciou-se este Tribunal Central Administrativo Norte, no seu acórdão de 14.07.2023, no processo 2288/18.1 BRG, que aqui se dá por reproduzido e do qual se extrai o seguinte sumário:

“(…)

3. O regime legal de protecção à união de facto consignado no artigo 6º da Lei nº 7/2001, de 11.05, constitui uma excepção à norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 322/90, de 18.10.

4.Tendo-se verificado o reatamento da comunhão de cama, mesa e habitação muito mais de dois anos antes da morte do beneficiário, em casal separado judicialmente de pessoas e bens, a cônjuge sobreviva tem direito a receber uma pensão de sobrevivência, nos termos do artigo 6º da Lei nº 7/2001, de 11.05.

(…)”.

No mesmo sentido da decisão recorrida que, assim, se impõe manter por as alegações de recurso não terem a consistência suficiente para afastarem tal entendimento.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pelo Recorrente.

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Porto, 02.02.2024


Rogério Martins
Fernanda Brandão
Isabel Costa