Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 02307/22.7BEPRT |
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Secção: | 2ª Secção - Contencioso Tributário |
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Data do Acordão: | 04/27/2023 |
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Tribunal: | TAF do Porto |
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Relator: | Paulo Moura |
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Descritores: | PRINCÍPIO DA BOA-FÉ |
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Sumário: | A atuação, quer dos contribuintes, quer da Administração Tributária, presume-se de boa-fé, nos termos do n.º 2 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária. |
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Votação: | Unanimidade |
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Decisão: | Negar provimento ao recurso. |
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Aditamento: | ![]() |
Parecer Ministério Publico: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte: "X, Lda.", interpõe recurso da sentença que julgou improcedente a Reclamação dos Atos do Órgão de Execução Fiscal, deduzida contra o despacho que indeferiu o pedido de exercício de direito de preferência na venda de imóvel efetuada no Processo de Execução Fiscal, no qual o preferente era arrendatário. Formula nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem: I – A decisão recorrida desconsiderou factos fundamentais dos autos, com especial acuidade, o facto de a Recorrente ter exercido um direito de preferência que lhe foi expressamente conferido pela entidade reclamada por ofício que lhe foi notificado; II – Tal direito foi concedido tendo por fundamento factos que não tiverem qualquer alteração superveniente, e transitou, na medida em que não foi objecto de qualquer reclamação ou impugnação; III – A alteração de posição da reclamada ocorreu sem ter sido dado conhecimento prévio à Recorrente ou conferido direito de pronúncia sobre o mesmo, pelo que, salvo melhor opinião, padece do vício de nulidade; IV – Por outro lado, o despacho reclamado violou o princípio da boa-fé na relação com a Recorrente e com os cidadãos em geral, nos termos sobreditos; V – Como julgou o STA, 2.ª Secção, processo 0753/11, em 21.09.2011, “I – O princípio da boa fé, na sua vertente de tutela da confiança, visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem. II – No âmbito da actividade administrativa são pressupostos da tutela de confiança um comportamento gerador de confiança, a existência de uma situação de confiança, a efectivação de um investimento de confiança e a frustração da confiança por parte de quem a gerou. III – A violação pela administração tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de actuação segundo as regras da boa fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei.” VI – A decisão recorrida violou, entre outros comandos legais que Vossas Excelências suprirão, os artigos 266.º, n.º 2, da CRP, e 55.º da LGT. Termos em que, Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, e reconhecendo-se o direito de preferência à Recorrente, ou, assim não se entendendo, ser declarada a nulidade da venda e ordenada a sua repetição. Não foram apresentadas contra-alegações. O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo [cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA, aplicável ex vi artigo 2.º do CPPT, e artigo 278.º, n.º 3, do CPPT]. ** Delimitação do Objeto do Recurso – Questões a Decidir. As questões suscitadas pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respetivas conclusões [vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º CPC, ex vi alínea e) do artigo 2.º, e artigo 281.º do CPPT] são as de saber se a Sentença desconsiderou factos fundamentais, como o facto de a Reclamante ter exercido o direito de preferência e se ocorre violação do princípio da boa-fé. ** Relativamente à matéria de facto, o tribunal, deu por assente o seguinte: FUNDAMENTAÇÃO FACTOS PROVADOS 1- A Autoridade Tributária, em 4/7/2007, instaurou contra a sociedade comercial “Y, Lda.”, Contribuinte Fiscal nº ..., o Processo de Execução Fiscal nº ...83, com vista à cobrança de créditos de IVA referentes a 2002, 2003, 2004 e 2005, no montante de € 629.074,69. 2- A Autoridade Tributária, no Processo de Execução Fiscal identificado em 1, remeteu à Conservatória do Registo Predial o ofício nº ...99 de 8/11/2007 com vista ao registo de hipoteca legal sobre o prédio urbano sito na Rua ..., ..., no ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...31º, que corresponde actualmente ao artigo ...84 da União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., conforme documentação de fls. 50 sitaf que se dá por reproduzida. 3- A hipoteca legal mencionada em 2 foi registada pela Ap. ...4 de 12/11/2007, e convertida em penhora pela Ap. ...6 de 23/11/2007, conforme documento de fls. 20 sitaf que se dá por reproduzido. 4- No Processo de Execução Fiscal nº ...83, por despacho de 26/5/2022, foi determinada a venda do imóvel identificado em 2, na modalidade de leilão electrónico, com data de encerramento e abertura de propostas em 7/7/2022, nos termos exarados no documento de fls. 190 sitaf que se dá por reproduzido. 5- A Autoridade Tributária remeteu à Reclamante, pelo ofício nº ...........35, de 30/5/2022, a notificação para exercer o direito de preferência na aquisição do prédio identificado em 2, na qualidade de arrendatária, nos termos do artigo 1091º do Código Civil, nos termos exarados no documento de fls. 31 sitaf que se dá por reproduzido. 6- A Autoridade Tributária remeteu ao “Banco 1... S.A.”, o ofício nº .........41, com vista à notificação, na qualidade de credor, para reclamar créditos na venda do prédio identificado em 2, nos termos exarados no documento de fls. 34 sitaf que se dá por reproduzido. 7- No Processo de Execução Fiscal nº ...83, em 7/7/2022, foi encerrado o leilão electrónico, e apurou-se que a proposta de valor mais elevado, no valor de € 89.300,00, foi a nº ...73, apresentada pela sociedade comercial "Z, Unipessoal, Lda.”, Contribuinte Fiscal nº ... nos termos exarados no documento de fls. 57 sitaf que se dá por reproduzido. 8- A Reclamante, em 7/7/2022, no Processo de Execução Fiscal nº ...83, declarou “pretender o direito de preferência” na venda do imóvel identificado em 2, nos termos e com os fundamentos exarados no documento de fls. 42 sitaf que se dá por reproduzido. 9- O Município ... foi notificado, pelo ofício nº ..., de 26/8/2022, para exercer o direito de preferência previsto no artigo 224º da Lei do Orçamento de Estado para 2022, na venda do imóvel identificado em 2, nos termos exarados no documento de fls. 48 sitaf que se dá por reproduzido. 10- O Município ..., em 12/9/2022, por correio electrónico, declarou não pretender exercer o direito de preferência referido em 9, nos termos exarados no documento de fls. 139 sitaf que se dá por reproduzido. 11- No Processo de Execução Fiscal nº ...83, por despacho de 15/9/2022, foi indeferida a pretensão mencionada em 8, despacho do qual se extracta, “Face à pretensão do exercício do direito de preferência, na venda 3352.2022.2 verifica-se que o contrato, em que o executado dá de arrendamento o imóvel sito na Rua ..., no ... a "X, Lda.", é celebrado em 2019, com início em 01/10/2019, sendo a penhora registada sobre o imóvel, a favor Autoridade Tributária pela apresentação 66 de 23/11/2007. Assim, sendo o arrendamento celebrado após a penhora é inoponível à execução, cf o artigo 819º do Código Civil, pelo que indeferido o pedido. Notifique”, conforme documento de fls. 134 que se dá por reproduzido. 12- O despacho mencionado em 11 foi notificado à Reclamante e ao seu ilustre mandatário pelos ofícios nº ..........830, de 15/9/2022, e nº .............865, de 16/9/2022 nos termos exarados no documento de fls. 57 sitaf que se dá por reproduzido. 13- A Autoridade Tributária, no Processo de Execução Fiscal nº ...83, remeteu à sociedade comercial "Z, Unipessoal, Lda.”, Contribuinte Fiscal nº ..., o ofício nº .............330, de 16/9/2022, com vista à notificação da adjudicação do imóvel identificado em 2, e para proceder ao pagamento do preço correspondente nos termos exarados no documento de fls. 113 sitaf que se dá por reproduzido. 14- A sociedade comercial "Z, Unipessoal, Lda.”, Contribuinte Fiscal nº ..., em 22/9/2022 e 27/9/2022, comprovou o pagamento do preço mencionado em 7 e 13, e do correspondente imposto de selo, nos termos exarados no documento de fls. 57 sitaf que se dá por reproduzido. 15- Dá-se por reproduzido o “print” de fls. 30 sitaf relativo à obrigação declarativa do contrato de arrendamento outorgado entre a sociedade comercial “Y, Lda.”, Contribuinte Fiscal nº ..., na qualidade de locadora, e a ora Reclamante, na qualidade de locatária, relativo ao imóvel sito na Rua ..., ..., no ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...31º, que corresponde actualmente ao artigo ...84 da União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., pelo montante mensal de € 200,00, declaração submetida em 1/10/2019, nos termos exarados no documento de fls. 30 sitaf que se dá por reproduzido. 16- A presente reclamação foi apresentada em 20/10/2022. FACTOS NÃO PROVADOS Nada mais se provou com interesse para o conhecimento do mérito. * A matéria de facto provada, suficiente, quer para conhecimento da questão prévia suscitada, quer para conhecimento do mérito, resultou da matéria alegada e não contestada, comprovada pela prova documental junta aos autos referida no probatório em relação a cada facto, e outra de conhecimento oficioso do Tribunal, dispensando a respectiva alegação, nos termos do artigo 412º Código de Processo Civil. ** Apreciação jurídica do recurso. Em primeiro lugar, alega a Recorrente que a Sentença desconsiderou factos fundamentais, como o facto de ter exercido o direito de preferência, que lhe foi expressamente conferido pela entidade reclamada, tendo esta alterado a sua posição sem dar conhecimento prévio à Recorrente ou conferido direito de pronúncia, sobre o mesmo, pelo que o despacho reclamado padece de nulidade. Apreciando. Conforme refere a Recorrente, o facto em apreço encontra-se assinalado no item 5. da matéria de facto e, ao invés do agora alegado, foi analisado na Sentença. Assim, a Sentença teve em consideração o facto de a ali Reclamante, ora Recorrente, ter sido notificada para exercer o direito de preferência, mas entendeu que tal era juridicamente irrelevante, pois não era a notificação realizada pelo órgão de execução fiscal, que lhe concedia o direito de preferência, mas antes o quadro legal ao caso aplicável. A Sentença analisou o regime jurídico aplicável, sustentando-se não só num Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas também nos preceitos legais que considerou aplicáveis, em especial o artigo 819.º do Código Civil, o qual determina que, os bens penhorados não podem ser objeto de atos de disposição, oneração ou arrendamento, assim como num Acórdão da Relação de Lisboa. Portanto, a Sentença não desconsiderou o facto de a Recorrente ter sido notificada para exercer o direito de preferência, mas entendeu que, em face das disposições legais aplicáveis, a notificação em si não conferia o direito à adjudicação do bem imóvel em apreço. E a alegada truncagem do Acórdão do STJ, só por si não é suficiente para invalidar a demais fundamentação exarada na Sentença, pois a mesma também cita um Acórdão da Relação de Lisboa e remete expressamente para o artigo 819.º do Código Civil. Estes fundamentos jurídicos da Sentença não foram sindicados no recurso, ou seja, que ao caso era aplicável o artigo 819.º do Código Civil e a sustentação recolhida no Acórdão da Relação de Lisboa. Assim, estes fundamentos da Sentença transitaram em julgado. E tendo transitado em julgado, não podem ser apreciados pelo Tribunal de recurso. Em resumo, não tendo a Sentença recorrida deixado de levar ao probatório o pertinente facto relativo à notificação para exercer o direito de preferência e tendo enquadrado essa situação juridicamente, não padece de omissão de pronúncia. Desta forma, a alegação em apreço tem de improceder. De seguida, alega a Recorrente que o despacho reclamado violou o princípio da boa-fé, na medida em que o despacho reclamado contradiz o anterior despacho que notificou a Reclamante de que podia exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel penhorado, na qualidade de arrendatária. Na Petição Inicial, a Recorrente não invoca, pelo menos expressamente, a violação do princípio da boa-fé, uma vez que se limita a dizer que lhe foi constituída a expectativa de que poderia exercer o direito de preferência (16.º PI) e que foi induzida em erro pela entidade reclamada (19.º PI). Nessa medida, a Sentença recorrida, depois de analisada a causa, já na parte final (vide antepenúltimo parágrafo da sua pág. 16), também se limita a dizer que o desconhecimento ou má interpretação da lei não cria qualquer expectativa. Não obstante a Recorrente não rebater os fundamentos jurídicos exarados na sentença, também quanto a esta questão, sempre se dirá algo sobre o assunto. Em primeiro lugar, compete referir que a atuação, quer dos contribuintes, quer da Administração Tributária, presume-se de boa-fé, nos termos do n.º 2 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária. Resulta, ainda, que a Administração, para além de estar vinculada ao princípio da boa-fé, também está obrigada a observar o princípio da legalidade, conforme prescreve o artigo 55.º da Lei Geral Tributária. Portanto, tem de se analisar em cada caso concreto qual o princípio de deve sair valorado. Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28/01/2009, proferido no processo n.º 0699/08 (disponível na íntegra em www.dgsi.pt): «Princípio este da boa fé que determina que a administração deve relacionar-se com os particulares de acordo com as regras da boa fé, ponderando os valores fundamentais do direito, designadamente, a confiança suscitada pela sua actuação e o objectivo a alcançar (artigo 6.-A do CPA), o qual encontra também reconhecimento na actual LGT nos seus artigos 59.º n.º 1 e 68.º- cfr. LGT, anotada e comentada, 2.ª edição, de Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, anotação 6 ao artigo 55.º. Embora tenha o seu domínio primacial de aplicação no que toca aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, a verdade é que tem vindo a ser colocada a possibilidade, nomeadamente, do princípio da boa fé ser aplicado no caso de actos praticados no exercício de poderes vinculados, já que o texto do artigo 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa – ver anotação 7 à obra acima citada. Todavia, no confronto entre os princípios da legalidade e da boa fé deve ser ponderada cada situação em concreto por forma a poder concluir-se se da prevalência do primeiro, em sentido estrito, resulta uma flagrante injustiça para o contribuinte, acarretando-lhe um desproporcionado e intolerável prejuízo. Só neste último caso, a violação do princípio da boa fé, na sua dimensão de protecção da confiança dos particulares e enquanto integrante do bloco de legalidade, em sentido lato, deve revestir efeitos invalidantes do acto tributário praticado.». Deste mesmo Acórdão, destaca-se a seguinte parte do sumário: III - Todavia, no confronto entre os princípios da legalidade e da boa fé deve ser ponderada cada situação em concreto por forma a poder concluir-se se da prevalência do primeiro, em sentido estrito, resulta uma flagrante injustiça para o contribuinte, acarretando-lhe um desproporcionado e intolerável prejuízo. IV - Só, neste último caso, a violação do princípio da boa fé, na sua dimensão de protecção de confiança dos particulares e enquanto integrante do bloco de legalidade, em sentido lato, deve revestir efeitos invalidantes do acto tributário praticado. Ora, a Recorrente limitou-se a dizer que a notificação para exercer o direito de preferência lhe suscitou uma expectativa de poder adquirir o imóvel, enquanto inquilino do mesmo. Em face desta alegação, deve-se entender que não se pode considerar ocorrer uma flagrante injustiça, desproporcionado ou intolerável prejuízo para a Recorrente, na medida em que também não faz essa alegação. É que uma expectativa, é uma mera possibilidade, uma mera hipótese de algo que ainda está incerto. Resulta, ainda, que não obstante a inversão de posições da Administração Tributária, tal não significa que o tenha feito para prejudicar concretamente a Recorrente, mas para corrigir uma informação incorreta e cumprir a legalidade a que está obrigada, pois foi assim que a Sentença decidiu e a Recorrente não logra sindicar a análise jurídica realizada na Sentença. Assim, a Sentença decidiu que, à face do regime legal aplicável, a Recorrente não tinha qualquer direito de preferência na aquisição do imóvel, decisão esta que a Recorrente não sindica no recurso, pelo que também por aqui, não resulta demonstrada a eventual grave injustiça que pudesse ter autonomia em face do despacho impugnado e que pudesse se passível de o anular. Portanto, a Recorrente não logra ilidir a presunção de atuação de boa-fé da Administração. Em face do exposto, não assiste razão à Recorrente. * No concerne a custas, atenta a improcedência do recurso, é a Recorrente a responsável pelas custas do mesmo – vide artigo 527.º, nos. 1 e 2 do e 529.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. ** Nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário: A atuação, quer dos contribuintes, quer da Administração Tributária, presume-se de boa-fé, nos termos do n.º 2 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária. * * Decisão Termos em que, acordam em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida. * * Custas a cargo da Recorrente. * * Porto, 27 de abril de 2023. Paulo Moura Vítor Salazar Unas) Ana Patrocínio |