Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00807/11.3BEPNF
Secção:
Data do Acordão:10/31/2019
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA, DESPACHO SANEADOR,PRINCÍPIO PRO ACTIONE
Sumário:I-Considere-se ou não que a decisão tabelar sobre a competência do tribunal faz caso julgado formal a solução, expressa e inequívoca, do artigo 87º/2, do CPTA, é a mesma;

I.1-em ambos os casos é expressamente vedado por esse normativo ao Juiz decidir, como decidiu, isto é, pela incompetência material do Tribunal;

I.2-ao contrário do que acontece em processo civil a (in)competência material, não pode ser conhecida a todo o tempo, apenas o podendo ser no Despacho Saneador, isso mesmo decorrendo da norma especial do falado artigo 87º/2;

I.3-os autos atestam que nada de novo aconteceu no processo entre o Despacho Saneador “menosprezado” e a decisão recorrida que pudesse levar a uma reapreciação ou a uma excepcional apreciação tardia da incompetência;

I.4-o princípio pro actione, consagrado em matéria de processo administrativo no artº 7º do CPTA que impede uma interpretação das normas processuais favorável a uma decisão de forma em detrimento de uma decisão de mérito, também desaconselha o expediente sob escrutínio;

I.5-é que não pode olvidar-se que a acção se iniciou em dezembro de 2011, que foi proferido Despacho Saneador considerando o Tribunal competente em maio de 2012, e que as Partes almejam, há muito, uma decisão sobre o fundo da causa.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:ZMF- I. de C., S.A
Recorrido 1:Instituto da Segurança Social I.P.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
Nos presentes autos em que é Autora ZMF- I. de C., S.A e Réu o Instituto da Segurança Social I.P., (ISS), ambos neles melhor identificados, foi proferida decisão pelo TAF de Penafiel que considerou o Tribunal Administrativo incompetente em razão da matéria e absolveu da instância a Entidade demandada.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:
1. Nos termos do art. 87º, nº 1, al. a), do CPTA aplicável, “findos os articulados, o processo é concluso ao juiz (…), que profere despacho saneador quando deva (…) conhecer obrigatoriamente (…) de todas as questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo”.
2. Nos termos do art. 96º, al. a), do CPC, aplicável por força do art. 1º do CPTA, a incompetência do tribunal em razão da matéria é incompetência absoluta.
3. Nos termos do art. 97º, nº 1, do CPC, aplicável por força do art. 1º do CPTA, a incompetência absoluta é de conhecimento oficioso, salvo os casos de violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição do tribunal arbitral voluntário.
4. Nos termos do art. 99º, nº 1, do CPC, aplicável por força do art. 1º do CPTA, a incompetência absoluta implica a absolvição do R. da instância.
5. E, nos termos do art. 87º, nº 2, do CPTA aplicável, “as questões prévias referidas na alínea a) do número anterior que não tenham sido apreciadas no despacho saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo e as que sejam decididas no saneador não podem vir a ser reapreciadas”.
6. Ou seja, haja ou não conhecimento no despacho saneador da competência ou incompetência material do tribunal, tabelar ou quanto a questão concreta, essa competência ou incompetência fica definitivamente resolvida, não podendo mais ser apreciada.
7. As questões, de conhecimento oficioso, que obstem ao conhecimento do objecto do processo, terão de ser necessariamente analisadas e decididas no despacho saneador, por força da proibição que decorre do nº 2 do art. 87º do CPTA.”.
8. O art. 87º, nº 2, do CPTA não só proíbe que sejam suscitadas e decididas em momento posterior do processo quaisquer outras questões ou excepções dilatórias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador, como impede que as questões já decididas nesse despacho venham a ser reapreciadas com base em novos elementos.
9. O disposto na primeira parte do art. 87º, nº 2, do CPTA não tem paralelo na lei processual civil.
10. O art. 87º, nº 2, do CPTA, é uma solução processual que se insere num princípio de promoção do acesso à justiça, visando evitar que o tribunal relegue para final a apreciação de questões prévias para só então pôr termo ao processo com uma decisão de mera forma.
11. O artigo 87º, nº 2, configura uma situação de caso julgado tácito, que deriva de as partes não terem suscitado nos articulados a excepção dilatória que poderia pôr termo ao processo e de o juiz não ter apreciado oficiosamente essa excepção dilatória, como lhe competia, na fase do saneador.
12. O legislador do CPTA, ao estabelecer uma clara proibição de apreciação de questões prévias em momento ulterior à fase do saneador, não tem em consideração as finalidades prosseguidas com a exigência legal dos pressupostos processuais e desinteressa-se das consequências que poderão resultar para as partes do prosseguimento do processo, quando sobrevenha questão que devesse obstar ao conhecimento do mérito, excluindo, nesta sede, o funcionamento do regime do artigo 660º, nº1, do CPC.
13. O art. 87º, nº 2, do CPTA, reporta-se às questões que sejam detectáveis no momento em que o juiz se prepare para exercer a competência prevista nesse preceito, com exclusão, portanto, de quaisquer novas questões que se levantem posteriormente.
14. A incompetência material do tribunal é uma das questões que obrigatoriamente tem de ser conhecida no saneador sob pena de não o poder ser mais tarde.
15. No âmbito do CPTA, o despacho saneador, quando decide no sentido da inexistência de questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo, faz caso julgado formal, reconhecendo-se, assim, à chamada certificação tabelar positiva - ou seja, à proposição conclusiva de que o tribunal é competente, a acção tempestiva, as partes legítimas, o meio processual idóneo, com que os tribunais costumam resumir o seu juízo a propósito da verificação dos pressupostos processuais – o carácter de irrevogabilidade.
16. Sucede isso, nos termos do art. 87º, nº 2, do CPTA, em relação às questões prévias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador, porque já não podem ser suscitadas (ou decididas) mais tarde; e em relação às questões prévias aí julgadas improcedentes, porque já não podem ser reapreciadas pelo juiz.
17. O despacho saneador, além de outros, tem o mérito de centrar num único momento processual o saneamento das questões de índole adjectiva ou processual, devendo o juiz aí suscitar e resolver todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objecto do processo, sob pena de sua preclusão, formando-se caso julgado formal sobre a sua inexistência, se o tribunal não as apreciar ou não as considerar procedentes.
18. A segunda parte do nº 2 do art. 87º do CPTA não consagra a solução do, então, art. 510º, nº 3, do CPC, antes dela propositadamente se afastando ao substituir a expressão “concretamente apreciadas” pela expressão “decididas”.
19. Pretende-se, com isso – como decorre das regras de interpretação do art. 9º do CC - dizer que, em processo administrativo, tanto valendo que a decisão seja concreta, como tabelar, não pode nunca ser reapreciada.
20. É o que é coerente com a proibição de decisão posterior, mesmo que nenhuma se tenha proferido e é o que explica a diferença de texto.
21. No caso, em 4 de Maio de 2012, o Senhor Juiz proferiu Despacho Saneador em que, tabelarmente, decidiu ser o Tribunal competente em razão da matéria, dizendo, designadamente, em sede de “saneamento processual”: O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e território”.
22. Dessa decisão não foi interposto recurso.
23. Mais decidiu, na mesma ocasião, que, por não haver necessidade de produção de prova, fossem as partes notificadas para apresentar alegações escritas, nos termos do art. 91º, nº 4, do CPTA.
24. O que a A. entendeu não fazer e o que o R. entendeu fazer, por requerimento de 3 de Setembro de 2012.
25. Ficou, então, o processo pronto para decisão de mérito.
26. Mas, conclusos os autos para esse efeito, o Senhor Juiz a quo, ao invés, entendeu ouvir as partes sobre a possibilidade de entender pela incompetência material do Tribunal e, apesar de alertado pela A. de que o não poderia fazer, decidiu mesmo por essa incompetência, absolvendo o R. da instância.
27. Dizendo, para o fazer, que a decisão do Saneador tinha sido tabelar e que, por isso, não faz caso julgado, que a questão da incompetência material do tribunal é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida a qualquer tempo, e que essa, por envolver interesse público, escapa à restrição do art. “87º, nº 4, do CPTA”.
28. Não o podia ter feito.
29. Em primeiro lugar porque, considere-se ou não que a decisão tabelar sobre a competência do tribunal, faz caso julgado formal, a solução, expressa e inequívoca do art. 87º, nº 2, do CPTA, é a mesma.
30. Se se considera que faz, caímos na previsão da segunda parte desse normativo legal; se se considera que não faz, tudo se passa como se não tivesse sido proferida e, então, caímos na previsão da primeira parte desse normativo legal, ou seja, na situação de caso julgado tácito.
31. Num caso como no outro, é expressamente vedado pelo art. 87º, nº 2, do CPTA, ao Juiz decidir, como decidiu, na Sentença recorrida, pela incompetência material do Tribunal.
32. Em segundo lugar porque não colhe nenhum dos argumentos por si aduzidos.
33. É certo que a questão é de conhecimento oficioso, mas isso em nada colide com a previsão do art. 87º, nº 2, do CPTA.
34. Por outro lado, a questão, ao contrário do que acontece em processo civil, não pode ser conhecida a todo o tempo, apenas o podendo ser no Despacho Saneador, isso mesmo decorrendo, inelutavelmente, da norma especial do art. 87º, nº 2, do CPTA.
35. E, por outro lado, ainda, se é certo que a incompetência material envolve o interesse público, também o envolvem todas as questões que obstem ao conhecimento do mérito que possam ser conhecidas oficiosamente – e, exactamente por isso, é que o podem ser.
36. Sendo certo que aquela – como, aliás, qualquer outra - não foi excepcionada da previsão do art. 87º, nº 2, do CPTA e não tenhamos dúvida que o teria sido se essa fosse a intenção, vedando o art. 9º, nº 2 do CC, flagrantemente, uma interpretação como a feita pelo Senhor Juiz a quo.
37. Não fique por dizer que nada de novo aconteceu no processo entre o Despacho Saneador e a Sentença recorrida que pudesse levar a uma reapreciação ou a uma excepcional apreciação tardia da incompetência.
38. Os dados de facto são exaustiva e precisamente os mesmos que já existiam na altura da prolação do Despacho Saneador, nada se tendo suscitado ou ocorrido no processo, a propósito da incompetência, entre o fim dos articulados e a intervenção do Senhor Juiz a quo, no sentido de ouvir as partes sobre a intenção de declarar a incompetência material do tribunal que prosseguiu com a inerente decisão.
39. Em quarto lugar, nunca poderia ter-se decidido como se decidiu, pois isso sempre seria vedado pelo princípio pro actione, consagrado em matéria de processo administrativo no art. 7º do CPTA que impede sempre uma interpretação das normas processuais favorável a uma decisão de forma em detrimento de uma decisão de mérito.
40. E o que é particularmente chocante numa situação como a dos autos em que a acção se iniciou em Dezembro de 2011, em que foi proferido Despacho Saneador considerando o Tribunal competente em Maio de 2012, em que foram apresentadas alegações escritas nos termos do art. 91º, nº 4, do CPTA, em Setembro de 2012, e em que o processo, desde então – há 6 anos e meio, portanto – está pronto e a aguardar decisão de mérito.
41. Violou a Sentença recorrida o disposto no art. 9º do CC e o disposto nos arts. 7º e 87º, nº 2, do CPTA.
TERMOS EM QUE, NA PROCEDÊNCIA DO PRESENTE RECURSO, DEVE REVOGAR-SE A SENTENÇA PROFERIDA E ORDENAR-SE A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE CONHEÇA DO MÉRITO DA CAUSA, COMO O IMPÕE O DIREITO E A
JUSTIÇA.
O Réu não juntou contra-alegações.

O MP emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
É objecto de censura a decisão que julgou o Tribunal Administrativo incompetente em razão da matéria.
Atente-se no seu discurso fundamentador:
Foi suscitada oficiosamente a incompetência material do Tribunal.
As partes pronunciaram-se.
Vejamos.
Nos termos do art. 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer matéria.
A competência material dos tribunais administrativos trata-se de exceção dilatória de conhecimento oficioso, a todo o tempo, que determina a absolvição da instância, sem prejuízo da possibilidade de propor outra ação sobre o mesmo objeto (arts. 96.º, 97º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a), 279.º, 576.º, n.º 2, 577.º, al. a), 578.º do CPC ex vi art. 1.º do CPTA).
Acrescente-se que considerando, por um lado, que o despacho saneador que se limita a declarar por forma tabelar a competência do tribunal, não apreciando circunstanciadamente a mesma, não conduz a que se forme sobre o mesmo caso julgado, por outro a possibilidade de conhecimento a todo o tempo da competência material, e ainda que tendo a competência material (absoluta) subjacente a salvaguarda dos interesses públicos e privados em que a decisão seja proferida pelo Tribunal mais especializado na matéria subjacente aos autos, especialmente numa situação como a dos autos com repercussões na forma processual e, consequentemente, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal (distintos face ao contencioso de plena jurisdição em sede administrativa e a natureza meramente anulatória da impugnação judicial), é de afastar uma leitura restritiva do disposto no art. 87.º, n.º 4 do CPTA, entendemos que se impõe o conhecimento da competência material do tribunal.
De acordo com o art. 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e art. 1.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Sendo certo que, no seio da jurisdição, a competência dos tribunais administrativos e dos tribunais fiscais para o conhecimento das pretensões perante os mesmos deduzidas está repartida em função dos litígios serem emergentes, respetivamente, de relações jurídicas administrativas ou de relações jurídicas fiscais.
Na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, estabelece-se que compete aos tribunais (administrativos e/ou fiscais) a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto a «Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal […]»..
E, por fim, preceitua-se no art. 49.º, n.º 1, al. a) i) do ETAF que “Compete aos tribunais tributários conhecer: […] a) Das ações de impugnação […] i) Dos actos de liquidação de receitas ficais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais”.
A competência afere-se em função dos termos da ação, tal como definidos pelo autor, a saber os objetivos, pedido e causa de pedir, e os subjetivos, respeitantes à identidade das partes (cfr. Acs. do Tribunal de Conflitos de 28.9.2010, P. 023/09 e de 20.9. 2011, P. 03/11).
Nos presentes autos a A. peticiona, em síntese, a anulação da decisão do Instituto de Segurança Social, IP, que procedeu à liquidação oficiosa de contribuições para com a Segurança Social no valor de € 100.812,06, na sequência do processo de fiscalização PROAVE n.º 201000003906.
Considerando que a jurisdição comporta duas áreas – a administrativa e a fiscal -, entende-se que será cometida à jurisdição fiscal o julgamento das ações que tenham por objeto relações jurídicas fiscais. Por “questão fiscal” deverá entender-se, de harmonia com a jurisprudência firmada pelo STA, a que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração ou à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos.
Estamos, assim, perante questão de natureza fiscal quando se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas.
Ora, na situação dos autos está em causa a impugnação de um ato de liquidação de receitas fiscais, pois que é sabido as contribuições para a segurança social têm a natureza de tributo, pelo que estamos inequivocamente perante atos em matéria tributária, que se reportam ao exercício da função tributária da Administração, ou seja uma questão de natureza fiscal da competência da jurisdição tributária, mais precisamente, do Tribunal Tributário de Penafiel.
Não podemos, por isso, deixar de considerar verificar-se a incompetência material deste Tribunal Administrativo em razão da matéria para conhecer da presente ação, sendo para o efeito competente o Tribunal Tributário de Penafiel (área tributária deste Tribunal Administrativo e Fiscal), o que representa exceção dilatória, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa dando lugar à absolvição da instância, sem prejuízo do disposto no art. 14.º, n.º 2 do CPTA (cf. art. 13.º do CPTA e arts. 96.º a 98.º, 576.º, n.º 2, 577.º, al. a) e 578.º do CPC ex vi art.º 1.º do CPTA).
X
Vejamos:
Para dirimir a questão em análise importa, em 1º plano, saber se a matéria colocada como objecto da causa, maxime o pedido e a causa de pedir configuram alguma das situações em que a lei atribui a competência especificamente aos tribunais administrativos.
Vejamos, portanto, se a matéria se enquadra na previsão do artº 1º do ETAF, isto é, se deve qualificar-se como litígio emergente de relação jurídica administrativa.

Para ajudar a delimitar o conceito de relação jurídica administrativa o artigo 4º do mesmo diploma efectua uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos encontrar critérios ou efectuar uma delimitação de fronteiras, usando as técnicas de interpretação da lei.
A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.
Fazendo apelo ao preceituado no artº 13° do CPTA, é seguro que a competência do tribunal é de ordem pública e deve preceder o conhecimento de qualquer outra matéria.
Acresce que a incompetência absoluta se configura como uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que conduz à absolvição da instância, sendo, de resto, do seu conhecimento oficioso, conforme resulta das disposições conjugadas dos artºs 576°/1 e 2, 577°/al. a), 578º/1ª parte e 278°/1, al. a), do novo CPC, (artºs 62º/2, 101º, 102º, 105º/1, 288º/1, al. a), 493º/1 e 2 e 494º/al. a), todos do antigo CPC ex vi artº 1º do CPTA).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo um dos elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida. Como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto da lide, tal como é configurado pelo autor.
Desta forma, o problema da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvido em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo. Dito de outra maneira, a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, constituindo uma questão que será decidida de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, não importando averiguar quais deviam ser as partes ou os termos dessa pretensão. É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência do tribunal - cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139.
Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram -Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, ob. cit./197.
Com efeito, o artº 212°/3 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Acresce que, em sintonia com o referido normativo, estatui o artº 1º/1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na arquitectura deste quadro legal, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente por objecto, além do mais, a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal - artº 4°/1/a), do ETAF.
Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. O que nos permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativas e sob a égide da realização do interesse público.
O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade em Justiça Administrativa, 9ª ed., pág. 103. Já Fernandes Cadilha, em Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118, afirma: por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
A competência do tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos Autores é determinante, sublinha o Acórdão do STA de 27/01/2010, no proc. 017/09.
Assim sendo, há que atentar na configuração que o Autor faz da acção, a saber, o pedido formulado e a concreta causa de pedir em que se baseia.
Voltando ao caso concreto, entendeu o Tribunal a quo:
Considerando que a jurisdição comporta duas áreas - a administrativa e a fiscal -, entende-se que será cometida à jurisdição fiscal o julgamento das ações que tenham por objeto relações jurídicas fiscais. Por “questão fiscal” deverá entender-se, de harmonia com a jurisprudência firmada pelo STA, a que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração ou à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos.
Estamos, assim, perante questão de natureza fiscal quando se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas.
E acrescentou:
Ora, na situação dos autos está em causa a impugnação de um ato de liquidação de receitas fiscais, pois que é sabido as contribuições para a segurança social têm a natureza de tributo, pelo que estamos inequivocamente perante atos em matéria tributária, que se reportam ao exercício da função tributária da Administração, ou seja uma questão de natureza fiscal da competência da jurisdição tributária, mais precisamente, do Tribunal Tributário de Penafiel.
Aqui chegados, importa analisar o cerne da questão trazida pela Recorrente.
Sustenta esta que, nos termos das disposições conjugadas do artigo 87º/1/a) e 2 do CPTA (versão anterior à actualmente em vigor, resultante da Lei 63/2011, de 14/12), as questões prévias que tenham sido abordadas no despacho saneador não podem ser reapreciadas pela mesma instância no processo.
Logo, considerando que no despacho saneador datado de 4 de maio de 2012 o Tribunal afirmou que é competente em razão da matéria da hierarquia e do território, a decisão recorrida é ilegal, porque apreciou matéria que já lhe estava vedada, por se ter formado caso julgado formal relativamente à mesma.
Secundamos esta leitura.
Efectivamente, nos termos do artº 87º/1/a), do CPTA aplicável, “findos os articulados, o processo é concluso ao juiz (…), que profere despacho saneador quando deva (…) conhecer obrigatoriamente (…) de todas as questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo”.
Segundo o artº 96º/a), do CPC, aplicável ex vi do artº 1º do CPTA, a incompetência do tribunal em razão da matéria é incompetência absoluta.
Já para o artº 97º/1, do CPC, a incompetência absoluta é de conhecimento oficioso, salvo os casos de violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição do tribunal arbitral voluntário. De acordo com o artº 99º/1, do CPC, a incompetência absoluta implica a absolvição do Réu da instância, sendo que o artº 87º/2, do CPTA diz: “as questões prévias referidas na alínea a) do número anterior que não tenham sido apreciadas no despacho saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo e as que sejam decididas no saneador não podem vir a ser reapreciadas”. Ou seja, haja ou não conhecimento no despacho saneador da competência ou incompetência material do tribunal, tabelar ou quanto a questão concreta, essa competência ou incompetência fica definitivamente resolvida, não podendo mais ser apreciada.
Como defendido, o sistema é absolutamente fechado e não consente margem para interpretações.
Segundo o artº 9º/2 do CC, relativo à interpretação da lei, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; assim, mesmo quando o intérprete se socorre de elementos externos, o sentido só poderá valer se for possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto que se pretende interpretar - ensina João Baptista Machado, em “Introdução ao Direito Legitimador”, 1983, pág.189.
No caso posto, a letra da lei é clara.
Deste modo, não se vê necessidade de recorrer ao seu espírito.
De qualquer modo, mesmo reconstituindo-se o pensamento legislativo, não podemos deixar de concluir pela lógica legislativa supra assinalada.
Também José Lebre de Freitas, em BMJ 333º-18, refere: “A “mens legislatoris” só deverá ser tida em conta como elemento determinante da interpretação da lei quando tenha o mínimo de correspondência no seu texto e no seu espírito”.
Como escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2005, Almedina, anotação 3 ao artº 87º, págs. 440/441:
“Ao impor ao juiz o dever de conhecer obrigatoriamente das questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo, o legislador pretende reafirmar, por um lado, que essas questões, correspondendo a excepções dilatórias, são de conhecimento oficioso, devendo ser apreciadas independentemente de terem sido suscitadas pelas partes nos articulados (…) e, por outro, que tais questões terão de ser necessariamente analisadas e decididas no despacho saneador, por força da proibição que decorre do nº 2 deste artigo 87º”.
E na anotação 7 ao artº 87º, pág. 443, acrescentam:
“O nº 2 pretende concentrar na fase do despacho saneador a apreciação de quaisquer questões que obstem ao conhecimento do processo. E nesse sentido, não só proíbe que sejam suscitadas e decididas em momento posterior do processo quaisquer outras questões ou excepções dilatórias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador, como impede que as questões já decididas nesse despacho venham a ser reapreciadas com base em novos elementos”, esclarecendo a seguir: “A segunda parte do nº 2 consagra a solução constante do artigo 510º, nº 3, do CPC, que confere ao despacho saneador a força de caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; mas o disposto na primeira parte não tem paralelo na lei processual civil”.
Já na pág. 444 ensinam:
“Esta solução processual insere-se num princípio de promoção do acesso à justiça, visando evitar que o tribunal relegue para final a apreciação de questões prévias para só então pôr termo ao processo com uma decisão de mera forma (…). E avançam: “Com efeito, o artigo 87º, nº 2, configura uma situação de caso julgado tácito, que deriva de as partes não terem suscitado nos articulados a excepção dilatória que poderia pôr termo ao processo e de o juiz não ter apreciado oficiosamente essa excepção dilatória, como lhe competia, na fase do saneador.”
“Assim, no âmbito da lei processual civil, (…), não fica afastada a possibilidade, conforme expressamente prevê o artigo 660º, nº 1, do CPC, de se conhecer na sentença, com precedência sobre a matéria de fundo, das “questões processuais que possam determinar a absolvição da instância”. No entanto, o legislador do CPTA, ao estabelecer uma clara proibição de apreciação de questões prévias em momento ulterior à fase do saneador, não tem em consideração as finalidades prosseguidas com a exigência legal dos pressupostos processuais e desinteressa-se das consequências que poderão resultar para as partes do prosseguimento do processo, quando sobrevenha questão que devesse obstar ao conhecimento do mérito, excluindo, nesta sede, o funcionamento do regime do artigo 660º, nº 1, do CPC.” “A norma do nº 2, na interpretação que acaba de ser exposta, não deve impedir, em todo o caso, o conhecimento, em momento posterior ao saneador, de questões processuais que apenas se suscitem após essa fase processual (…). O citado dispositivo deve, pois, ser entendido como reportando-se a questões prévias, ou seja, a excepções dilatórias ou nulidades processuais que tenham sido arguidas pelas partes nos articulados ou se tornem patentes ao juiz por força dos termos em que a acção é proposta, no momento em que o processo lhe é concluso para proferir o despacho saneador. O nº 2 terá, assim, que ser articulado com a alínea a) do nº 1, referindo-se às “questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo” que sejam detetáveis no momento em que o juiz se prepare para exercer a competência prevista nesse preceito, com exclusão, portanto, de quaisquer novas questões que se levantem posteriormente.
Estes autores não têm dúvidas em afirmar que, exactamente, a incompetência material do tribunal é uma das questões que obrigatoriamente tem de ser conhecida no saneador sob pena de não o poder ser mais tarde.
Como resulta inequivocamente do que escrevem, na obra citada, anotação 1 ao artº 89º, pág. 455: “O nº 1 enumera, apenas exemplificativamente, as questões que podem obstar ao conhecimento do objecto do processo, e que, nos termos do artigo 87º, nº 1, alínea a), o juiz deve apreciar no despacho saneador, independentemente de terem sido ou não suscitadas pelas partes”.
E, depois, na anotação 2, referem: “Para além das excepções dilatórias expressamente mencionadas no nº 1, devem considerar-se outras, como seja (…) a incompetência do tribunal (…).”
Sobre esta temática também se debruçaram Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, no seu “Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, Almedina, 2004, anotação XI ao artigo 87º, págs. 514/515:
“Ao contrário do que sucedia no direito anterior - em que isso apenas se verificava no caso de o tribunal se pronunciar pela existência de excepções dilatórias (decretando a absolvição da instância) - agora, também, quando decide no sentido da inexistência de questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo, o despacho saneador faz caso julgado formal, reconhecendo-se, assim, à chamada “certificação tabelar positiva” - ou seja, à proposição conclusiva de que “o tribunal é competente, a acção tempestiva, as partes legítimas, o meio processual idóneo”, com que os tribunais costumam resumir o seu juízo a propósito da verificação dos pressupostos processuais - o carácter de irrevogabilidade. Sem prejuízo, claro, do recurso de agravo a que houver lugar, se o valor ou a natureza do processo o consentirem.
Sucede isso, de facto, diz claramente este artº 87º/2, em relação:
-às questões prévias que não tenham sido apreciadas no despacho saneador, porque já não podem ser suscitadas (ou decididas) mais tarde;
-às questões prévias aí julgadas improcedentes, porque já não podem ser reapreciadas pelo juiz ou pelo colectivo, só em recurso.
E, depois:
“(…) hoje, o despacho saneador, além de outros, tem também o inegável mérito de centrar num “único momento processual o saneamento das questões de índole adjectiva ou processual”- citando Carlos Cadilha, Reflexões …”Justamente por isso o artº 88º/1 faz referência ao dever do juiz suscitar e resolver (no despacho saneador) todas as questões que possam obstar ao conhecimento do objecto do processo, sob pena de sua preclusão, formando-se caso julgado formal sobre a sua inexistência, se o tribunal não as apreciar ou não as considerar procedentes (…).
Munidos destes ensinamentos doutrinais, com total aplicação à situação em análise, não podemos deixar de corroborar a conclusão da Apelante, qual seja a de que a segunda parte do nº 2 do artº 87º do CPTA não consagra a solução do então artigo 510º/3, do CPC.
Cremos, antes, que dela propositadamente se afasta ao substituir a expressão “concretamente apreciadas” pela expressão “decididas”.
Pretende-se, com isso - como decorre das regras de interpretação do artº 9º do CC - dizer que, em processo administrativo, tanto valendo que a decisão seja concreta, como tabelar, não pode nunca ser reapreciada.
É o que é coerente com a proibição de decisão posterior, mesmo que nenhuma se tenha proferido e é o que explica a diferença de texto que, evidentemente, não é por acaso - lê-se nas alegações e aqui corrobora-se.
Como é sabido, na interpretação de uma norma jurídica, isto é, na tarefa de fixar o sentido e o alcance com que ela deve valer, intervêm, para além do elemento gramatical (o texto, a letra da lei), elementos lógicos, que a doutrina subdivide em elementos de ordem histórica, racional ou teleológica e sistemática.
O elemento teleológico consiste na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma, “o conhecimento deste fim sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a “decisão” legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a “valoração” ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime. Sem esquecer ainda que, pela descoberta daquela “racionalidade” que (por vezes inconscientemente) inspirou o legislador na fixação de certo regime jurídico particular, o intérprete se apodera de um ponto de referência que ao mesmo tempo o habilita a definir o exacto alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou com diferente recorte” - ensinava o Professor Baptista Machado, ob. cit., págs. 182/183. A ratio legis revela, portanto, a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma jurídica disciplina.
Retomando o caso posto, temos, além do mais, que:
-em 4 de maio de 2012, o Senhor Juiz proferiu Despacho Saneador em que, tabelarmente decidiu ser o Tribunal competente em razão da matéria, dizendo, designadamente, em sede de “saneamento processual”: O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e território”;
-dessa decisão não foi interposto recurso;
-posteriormente, o Senhor Juiz, ao invés de apreciar o fundo da causa, ouviu as partes sobre a possibilidade de entender pela incompetência material do Tribunal, o que acabou por fazer com o desfecho que se viu: decidiu por essa incompetência, absolvendo o Réu da instância, argumentando que a decisão do Saneador tinha sido tabelar e que, por isso, não faz caso julgado, que a questão da incompetência material do tribunal é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida a qualquer tempo, e que essa, por envolver interesse público, escapa à restrição do artº 87º/4, do CPTA.
Sucede que o contexto legal e doutrinal que se deixou descrito, já não permitia o que fez.
Em suma:
-considere-se ou não que a decisão tabelar sobre a competência do tribunal, faz caso julgado formal, a solução, expressa e inequívoca do artigo 87º/2, do CPTA, é a mesma;
-com efeito, se se considerar que faz, cai-se na previsão da segunda parte desse normativo legal;
-se se entender que não faz tudo se passa como se não tivesse sido proferida e, então, cai-se na previsão da primeira parte desse preceito, isto é, na situação de caso julgado tácito, ao contrário da solução encontrada pelo Tribunal a quo;
-em ambos os casos é expressamente vedado por esse normativo legal ao Juiz decidir, como decidiu, isto é, pela incompetência material do Tribunal;
-é certo que a questão é de conhecimento oficioso, mas isso, como se vê do que se deixou dito, em nada colide com a previsão do artigo 87º/2, do CPTA;
-acresce que a questão, ao contrário do que acontece em processo civil, não pode ser conhecida a todo o tempo, apenas o podendo ser no Despacho Saneador, isso mesmo decorrendo, inelutavelmente, da norma especial do falado artigo 87º/2;
-ademais, se é certo que a incompetência material envolve o interesse público, também o envolvem todas as questões que obstem ao conhecimento do mérito que possam ser conhecidas oficiosamente - e, exactamente por isso, é que o podem ser, sendo certo que aquela - como, aliás, qualquer outra - não foi excepcionada da previsão daquele artº 87º/2;
-o artigo 9º/2 do CC impede a interpretação levada a cabo pelo Senhor Juiz;
-os autos atestam que nada de novo aconteceu no processo entre o Despacho Saneador “menosprezado” e a decisão recorrida que pudesse levar a uma reapreciação ou a uma excepcional apreciação tardia da incompetência;
-como bem apontado pela Recorrente, os dados factuais são precisamente os mesmos que já existiam na altura da prolação do Despacho Saneador, nada se tendo suscitado ou ocorrido no processo, a propósito da incompetência, entre o fim dos articulados e a anómala intervenção do Senhor Juiz, no sentido de ouvir as partes sobre a intenção de declarar a incompetência material do tribunal que, também anomalamente, prosseguiu com a inerente decisão;
-o princípio pro actione, consagrado em matéria de processo administrativo no artº 7º do CPTA que impede uma interpretação das normas processuais favorável a uma decisão de forma em detrimento de uma decisão de mérito, também desaconselha o expediente sob escrutínio;
-é que não pode olvidar-se que a acção se iniciou em dezembro de 2011, que foi proferido Despacho Saneador considerando o Tribunal competente em maio de 2012, e que as Partes almejam, há muito, uma decisão sobre o fundo da causa.
Procedem, pois, todas as conclusões da, aliás, muito bem estruturada peça processual da Apelante, o que faz destronar da ordem jurídica a decisão em apreço.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão sub judice e ordena-se a remessa dos autos ao TAF a fim de, logo que possível, proferir outra que enfrente o mérito da causa.
Sem custas.
Notifique e DN.
Porto, 31/10/2019

Fernanda Brandão
Frederico Branco
Nuno Coutinho