Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00375/22.0BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/26/2023
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Margarida Reis
Descritores:AÇÃO ADMINISTRATIVA; BENEFÍCIO FISCAL;
REAVALIAÇÃO DE GRAU DE INCAPACIDADE DE CIDADÃO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA; PRINCÍPIO DO TRATAMENTO MAIS FAVORÁVEL;
NORMA INTERPRETATIVA; ART. 4.º-A DO DECRETO-LEI N.º 202/96; LEI N.º 80/2021;
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RElatório
A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a decisão proferida em 2023-01-30 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou procedente a ação administrativa interposta por «AA», tendo por objeto o despacho proferido em 3 de maio de 2022 pela Chefe de Finanças ... que indeferiu o pedido de averbamento do atestado médico de incapacidade multiusos emitido em 3 de junho de 2019 em sede de revisão/reavaliação de grau de incapacidade, vem interpor o presente recurso.
A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
CONCLUSÕES
a) Andou mal a decisão recorrida ao ter determinado a anulação do despacho impugnado e ao ter condenado a Recorrente a proceder ao averbamento no cadastro do Recorrido de uma incapacidade de 60%, quando na reavaliação lhe foi fixada uma incapacidade de 44%, percentagem fiscalmente irrelevante.
b) A decisão recorrida padece de erro de julgamento, por erro manifesto sobre os pressupostos de direito e de facto, por notória interpretação deficiente do disposto nos números 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, e no artigo 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021.
c) A decisão recorrida igualmente viola o disposto nos artigos 13.º e 103.º da CRP, por evidente violação dos princípios da igualdade, em todas as suas vertentes, e do princípio da legalidade tributária, em particular no que respeita à excecionalidade dos benefícios fiscais, mas também o princípio da unicidade do ordenamento jurídico.
d) O Tribunal a quo escudou-se unicamente na norma interpretativa que aditou os n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, e nas exposições de motivos que tiveram na base da aprovação da Lei n.º 80/2021, descorando, sem qualquer justificação, do elemento histórico e, do próprio preceituado, daquele mesmo diploma.
e) Igualmente a jurisprudência invocada na decisão recorrida não se aplica à situação dos autos, considerando que naquele Acórdão [Acórdão TCA Norte, P. 00144/18.2BECBR, de 28/06/2019, disponível em www.dgsi.pt] estava em causa uma avaliação e uma reavaliação feitas com base em tabelas diferentes, logo, com critérios técnicos distintos que justificam a conclusão ali alcançada.
f) Como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2009, e igualmente dos seus trabalhos preparatórios, o aditamento dos n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, visou, tão só, salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que, estando sujeitas à realização de uma nova junta médica, com base na aplicação da nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-lei n.º352/2007, vissem diminuído o seu grau de incapacidade em consequência de diferentes critérios técnicos.
g) Ou seja, pretendeu adequar-se os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 202/96 às instruções previstas na nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, dado que o Decreto-lei n.º 202/96 remetia para a revogada Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30/09.
h) Na situação objeto dos autos, quer a avaliação em 2014, quer a reavaliação em 2019, foi feita com base nos mesmos critérios técnicos consignados na atual Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, o que, desde logo, afasta a aplicabilidade do estatuído nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96.
i) O artigo 4.º-A aditado pela Lei n.º 80/2021 é uma norma interpretativa, que visou assegurar que situações similares às espelhadas nos Acórdãos invocados pelo Recorrido e pelo Tribunal a quo não se repetissem.
j) Não tem, nem pode ter, atenta a sua natureza meramente interpretativa, o alcance pretendido pelo Recorrido e acolhido pelo Tribunal a quo, de prorrogar ad eternum, e sem que estejam preenchidos os respetivos pressupostos, os diretos adquiridos.
k) O que não invalida que o princípio do tratamento mais favorável não afaste a aplicação, por exemplo, do disposto no n.º 8 do artigo 8.º do CIRS e o estabelecido no artigo 12.º da LGT, e permita que um contribuinte que, a meio do ano, veja a sua incapacidade revista, para percentagem inferior à fiscalmente relevante, possa usufruir, até ao final desse mesmo ano económico, dos benefícios inerentes à incapacidade fiscalmente relevante anteriormente concedida.
l) A manutenção de um grau de deficiência anterior, igual ou superior a 60%, em detrimento do fixado à posteriori, inferior a 60%, só é justificável se a tabela de avaliação nos dois casos for distinta, sujeita a critérios de quantificação diferentes para a mesma patologia, o que não se verifica nos presentes autos, o Recorrido foi avaliado e reavaliado com base na nova TNI.
m) Entendimento diverso consubstancia uma situação socialmente inaceitável, de se considerarem totalmente irrelevantes as alterações no estado clínico de uma pessoa que se traduzissem numa melhoria da sua situação física, discriminando, de forma totalmente injustificável, todos aqueles que, em sede da nova tabela de incapacidades, vejam ser-lhes reconhecida uma incapacidade de percentagem inferior a 60%, mas, por exemplo similar, e até superior, à do aqui Recorrido.
n) Subjugando o próprio propósito do Decreto-Lei n.º 202/96 e dos benefícios fiscais que lhe estão subjacentes.
o) A solução preconizada na sentença recorrida não enquadrou devidamente a situação em discussão no ordenamento jurídico vigente e aplicável aos factos, antes fez uma interpretação deficiente, por não ter olhado ao todo, e por se ter centrado na norma interpretativa introduzida pela Lei n.º 80/2021, sem considerar, como se impunha, ao diploma que aditou os n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96.
p) Nem o despacho objeto dos autos, nem a atuação da Recorrida, merecem qualquer censura, estão em plena sintonia com o enquadramento jurídico vigente e aplicável à questão sobre a que versa.
q) Juízo de não censurabilidade que não pode ser feito no que à decisão recorrida concerne, antes sendo evidentes os erros em que a mesma labora por deficiente interpretação das normas em causa.
r) Face a todo o exposto, a decisão recorrida padece de erro de julgamento por erro manifesto sobre os pressupostos de direito e de facto, e como tal não se pode manter na ordem jurídica.
Termina pedindo:
Termos em que deve o presente recurso proceder e a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada, com as legais consequências.
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O Recorrido não apresentou contra-alegações.
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O Digno Magistrada do M.º Público junto deste Tribunal foi oportunamente notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º, n.º 1 do CPTA, nada tendo vindo requerer ou promover.
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Os vistos foram dispensados, com a prévia anuência das Ex.mas Juízas Desembargadoras-Adjuntas.
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O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT.
Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a decisão recorrida padece de erro de julgamento de direito, por incorreta interpretação e aplicação ao caso do disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, no art. 4.º-A do mesmo diploma, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, e nos art. 13.º e 103.º da CRP.
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II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto
Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:
IV –FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Factos provados
São os seguintes os factos com relevância para a decisão da causa:
A) No dia 05 de setembro de 2019, o Autor apresentou um pedido de averbamento, no Sistema de Gestão de Registo de Contribuintes, de deficiência fiscalmente relevante do tipo permanente definitiva, com o grau de invalidez de 60%, com início a 01 de setembro de 2019 (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 4 de 12/10/2022 17:04:05);
B) No dia 16 de fevereiro de 2022, o serviço de finanças de ... emitiu um ofício com o número ...46, endereçado ao Autor, recebido no dia 18 de fevereiro de 2022, do qual consta, entre o mais, o seguinte:
(...) “Apresentou neste Serviço de Finanças um atestado médico de incapacidade multiuso, datado de 03-06-2019, que lhe confere um grau de incapacidade permanente de apenas 44%, e deste parece resultar a aplicação do regime transitório previsto no artigo 4.º n.º 7, do Decreto-Lei 202/96, com a redação do Decreto-Lei 291/2009 de 12/10.
Assim de modo a podermos aferir do seu direito aos benefícios fiscais concedidos por aplicação do regime transitório já referido e não tendo esta UO na sua posse os elementos necessários a uma decisão, fica por este meio notificado, nos termos do artigo 58.º da Lei Geral Tributária (LGT) para, no prazo de 15 dias, remeter a este Serviços de Finanças o primeiro atestado que lhe conferiu o grau de incapacidade superior a 60%, relativo à patologia a que se refere o documento emitido em 03-06- 2019, bem como outros elementos que julgue pertinentes” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 6 de 12/10/2022 17:04:05);
C) No dia 08 de abril de 2022, foi emitida informação no âmbito do pedido de averbamento de incapacidade n.º ...34 (doravante pedido de averbamento), da qual, entre o mais, consta o seguinte:
(...) “DESCRIÇÃO DOS FACTOS/ANÁLISE DO PEDIDO
A questão sub judice prende-se com o facto de saber se a incapacidade conferida pelo atestado médico apresentado pelo requerente, lhe permite beneficiar do regime transitório contido nos n.ºs 7 e 8 do D.L. n.º 202/96, como é atestado naquele documento, de modo a manter o grau de incapacidade fiscalmente relevante, nos termos do n.º 5 do artigo 87.º do CIRS, uma vez que lhe foi atribuído um grau de incapacidade inferior a 60%.
O DL n.º 291/2009 de 12/10, que estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, alterou a redação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do DL n.º 202/96 de 23/10, procedendo à republicação do referido diploma. Com a nova redação do n.º 1 do artigo 4.º ficou estabelecido que “ ... a) Na avaliação da incapacidade das pessoas com deficiência, de acordo com o definido no artigo 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto, devem ser observadas as instruções gerais constantes do anexo I ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante, bem como em tudo o que não as contrarie, as instruções específicas constantes de cada capítulo ou número daquela Tabela;”, ou seja, a avaliação da incapacidades é feita de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), aprovada pelo DL n.º 352/2007.
Havia, contudo, de acautelar as situações que, tendo sido avaliadas por uma tabela de incapacidade anterior (revogada), poderiam ver o seu grau de incapacidade diminuído em face de uma reavaliação pela atual TNI.
Com o aditamento pelo DL n.º 291/2009, ao art.º 4.º do DL n.º 202/96 dos nos 7 e 8 (que são normas transitórias), o legislador quis salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que, estando sujeitas à realização de uma nova junta médica, com base na aplicação da Nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL n.º 352/2007, vissem diminuído o seu grau de incapacidade, em consequência de modificações efetivamente verificadas no seu estado clínico.
Com essa disposição, o legislador permitia à junta médica manter o anterior grau de incapacidade do avaliado, sempre que estivesse em causa a perda de direitos que o mesmo já estivesse a exercer ou de benefícios que já lhe tivessem sido reconhecidos, quando, na sequência da reavaliação, resultasse única e exclusivamente da aplicação da nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL n.º 352/2007, face à avaliação determinada no atestado médico anterior, efetuado com base na anterior tabela de incapacidades, entretanto revogada.
O DL n.º 291/2009, veio assim adequar os procedimentos previstos no DL n.º 202/96 às instruções previstas na nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL n.º 352/2007, uma vez que o DL n.º 202/96, remetia para a (revogada) Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL n.º 341/93, de 30/09).
Ora, no caso em apreço, e em face dos dois atestados médicos de incapacidade multiuso, anexos aos autos, constata-se que em ambas as avaliações efetuadas ao requerente (uma incapacidade temporária de 60% - atestado datado de 2014-08-05, com efeitos a setembro de 2013; e uma incapacidade permanente de 44% - atestado datado de 2019-06-03), foram utilizados os mesmos critérios técnicos de acordo com a atual Tabela Nacional de Incapacidades: a aprovada pelo DL n.º 352/2007, pelo que não se aplicam as normas transitórias constantes dos n.ºs 7 e 8 do art.º 4.º do DL n.º 202/96, aditadas pelo DL n.º 291/2009.
CONCLUSÃO
Face ao quadro legal e administrativo e à matéria de facto conhecida neste processo, estando em causa uma situação de revisão ou reavaliação, da qual resultou a atribuição de um grau de incapacidade de apenas 44%, inferior ao que foi anteriormente certificado, ao abrigo da atual tabela de incapacidade, considera-se que a incapacidade deixou de ser fiscalmente relevante em 2020-01- 01.
Nesse sentido, sou de parecer que o pedido deverá ser indeferido.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, deve o reclamante, ser notificado do projeto de decisão, para, querendo, exercer o seu direito de audição, no prazo de 15 dias.” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 10 de 12/10/2022 17:04:05);
D) No dia 08 de abril de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, o chefe de serviço de finanças de ... emitiu despacho do qual consta, entre o mais, o seguinte:
Concordo
Notifique-se a/o requerente para, no prazo de 15 dias, exercer o direito de audição nos termos do n.º 5 do art.º 60.º da LGT” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 10 de 12/10/2022 17:04:05);
E) No dia 08 de abril de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, o serviço de finanças de ... emitiu o ofício número ...08, endereçado ao Autor, do qual consta, entre o mais, que:
“Fica por este meio NOTIFICADO, considerando-se a notificação efectuada no 3.º dia útil posterior ao do registo (n.º 1 do art.º 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), de que, por despacho de 2022-04-08, de que se junta cópia, foi INDEFERIDO o requerimento que deu entrada neste Serviço, ao qual foi atribuída a entrada geral n.º ...............22. referente ao assunto identificado em epígrafe.
Por conseguinte, no prazo de 15 (quinze) dias a contar da data da notificação, poderá exercer por escrito o seu direito de audição, previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 9 de 12/10/2022 17:04:05);
F) No dia 20 de abril de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, o Autor exerceu direito de audição, do qual consta, entre o mais, que:
(...) “14. E se a dada altura a incapacidade desce para 44% - o que discordámos,
15. Tal facto, de acordo com a Lei 80/2021 de 29 de Novembro, não obsta à manutenção do anterior critério e avaliação que situou o grão de incapacidade nos 60 por cento.
16. Aliás, tal facto é comprovado pelo próprio Atestado Médico de Incapacidade Multiuso de acordo com o DL n.º 202/96 com a redação do DL n.º 291/2009, de 12/10, artigo 4.º n.º 7, em que é declarado que o utente (o SP) é portador de deficiência de acordo com os documentos arquivados, tendo-lhe sido atribuído um grau de incapacidade DEFINITIVO de 60 por cento Razão pela qual, ao abrigo do disposto no artigo 4.º A da Lei 80/2021 de 29 de Novembro requerer a V Exa., no cumprimento integral de tal norma. seja mantido em vigor o resultado da avaliação de 60 por cento anterior pois que sendo em benefício do SP este incide sobre mesmíssima patologia.” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 15 de 12/10/2022 17:04:05);
G) No dia 02 de maio de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, foi emitida informação, da qual consta, entre o mais o seguinte:
Em cumprimento do despacho de 2022-04-08 e de conformidade com o disposto no n.º 5 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT), foi o reclamante notificado, através do ofício n.º ...08, de 2022-04- 08, para se pronunciar sobre o teor do projeto de decisão do indeferimento do pedido de averbamento do atestado de incapacidade multiusos.
Em 2022-04-21, dentro do prazo legal, o requerente veio exercer esse direito cujo depoimento consta da entrada GPS n.º ..........49, junto aos autos. Analisado aquele depoimento, constata-se que (...) conforme é comprovado pelo Atestado Médico Multiusos de acordo com o DL n.º 202/96 com a redação do DL n.º 291/2009, de 12/10, artigo 4.º n.º 7, em que é declarado que o utente é portador de deficiência de acordo com os documentos arquivados, tendo-lhe sido atribuído um grau de incapacidade DEFINITIVO de 60 por cento”. Termina requerendo “que lhe seja mantido em vigor o resultado da avaliação de 60 por cento anterior, pois que sendo em benefício do SP este incide sobre mesmíssima patologia”.
“Então, vejamos:
De acordo com o n.º 1 do artigo 4.º do DL n.º 202/96 de 23 de janeiro, a avaliação das incapacidades é a que resulta da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL n.º 352/2007 de 23 de outubro.
O n.º 5 do artigo 87.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) determina que se considera pessoa com deficiência aquela que apresente um grau de incapacidade permanente igual ou superior a 60%.
O requerente foi avaliado em 2014-08-05 tendo sido atribuída uma incapacidade permanente, não definitiva, de 60%, sujeita a reavaliação. Na reavaliação efetuada em 2019-06-03, foi-lhe conferido um grau de incapacidade permanente, definitiva, de apenas 44%, relativa à mesma patologia.
Portanto, ambas as avaliações foram efetuadas segundo os mesmos critérios técnicos de acordo com uma única tabela de incapacidades - a constante do DL n.º 352/2007 de 23/10. O que quer dizer que a patologia de que padece evoluiu favoravelmente, sendo que neste caso o grau que resulta deste procedimento apenas releva fiscalmente se for igualou superior a 60%, sem prejuízo da salvaguarda dos direitos que estejam a ser exercidos ou os benefícios reconhecidos que vigoram até ao seu termo ou caducidade, conforme n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do DL n.º 202/96, aditados pelo DL n.º 191/2009, em conjugação com o n.º 5 do artigo 87.º do Código do IRS.
O Serviço de Finanças não ignora a publicação da Lei n.º 80/2021 e foi tida em conta no projeto de decisão que foi notificado ao requerente, e estamos a aplicar o regime de salvaguarda previsto nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º atrás referidos, tal como consta do atestado médico emitido em 2019-06-03, mas não podemos concordar com a interpretação que o SP lhe dá, como a seguir se explica: Se nas situações de reavaliação fosse sempre mantido o grau de incapacidade mais favorável ao avaliado, como defende o requerente, sem que fosse tida em conta a evolução favorável da patologia, que se traduz numa melhoria da sua situação clínica, ou seja, numa diminuição real do seu grau de incapacidade, que sentido teria a solução normativa prevista nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do DL 202/96?
O atestado médico de reavaliação seria desnecessário, sem razão objetiva que o justificasse, já que todos teriam direito a manter a situação mais favorável. O IRS é um imposto cujo facto tributário é de formação sucessiva, em que a lei fixa um determinado período de tributação dos rendimentos auferidos nesse período, que corresponde ao ano civil, e a regra geral prevista no n.º 8 do artigo 13.º do Código do IRS, é que “a situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é aquela que se verificar no último dia do ano a que o imposto respeite”.
Para afastar a regra geral do Código do IRS de que a situação pessoal e familiar relevante é a que se verifica em 31 de dezembro de cada ano, bem como a regra da LGT de aplicação da lei no tempo, quando os factos tributários são de formação sucessiva, foi criado o regime de salvaguarda de aplicação do princípio da avaliação mais favorável ao contribuinte nos casos de reavaliação ou revisão do grau de incapacidade a que se reportam os nos 7 e 8 do artigo 4.º, bem como a norma interpretativa do artigo 4.º-A, todos do DL n.º 202/96.
Quer isto dizer que, no ano em que resulte, do processo de reavaliação ou de revisão, a atribuição de um grau de incapacidade inferior a 60%, nesse ano de imposto é salvaguardado ao contribuinte o direito a ser-lhe aplicado o regime fiscal em das pessoas com deficiência, Por este facto manteve os benefícios concedidos pelo atestado emitido em 2014 até ao fim do ano em que se verificou a reavaliação (2019-12-31), data em caducaram, tal como já constava no projeto de decisão.
Face ao quadro legal e administrativo e à matéria de facto conhecida neste processo, estando em causa uma situação de revisão ou reavaliação, da qual resultou atribuição de um grau de incapacidade de apenas 44%, inferior ao que foi anteriormente certificado, ao abrigo da mesma tabela de incapacidade, considera-se que a incapacidade deixou de ser fiscal mente relevante a partir de 2020-01-01. Em face do exposto, entendemos que não assiste razão ao contribuinte, termos em que se deverá manter o indeferimento da sua pretensão”. (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 19 de 12/10/2022 17:04:05)
H) No dia 03 de maio de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, foi emitido despacho, do qual consta, entre o mais, que:
Depois de ter sido concedido ao requerente o direito de participação/audição na formação da decisão, conforme determina o n.º 5 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária e após análise do exercício de tal direito, mantenho a minha proposta de decisão, indeferimento do pedido.
Notifique” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 19 de 12/10/2022 17:04:05)
I) No dia 05 de maio de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, o serviço de finanças de ... emitiu o ofício número ...76, endereçado ao Autor, recebido no dia 09 de maio de 2022, por terceiro a quem foi entregue, do qual consta, entre o mais, que:
Fica V. Exa. por este meio NOTIFICADO, considerando-se a notificação efetuada na data de assinatura do aviso de receção da presente notificação, (n.º 3 do art.º 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), de que, por despacho de 2022-05-03, de que se junta cópia, foi INDEFERIDO o requerimento que deu entrada neste Serviço, ao qual foi atribuída a entrada geral n.º ...............22, referente ao assunto identificado em epígrafe.
No caso de não se conformar com o referido despacho, poderá, querendo, RECORRER HIERARQUICAMENTE, nos termos e com os efeitos consignados no n.º 1 do artigo 66.º do CPPT (Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Esta opção implica que o recurso, dirigido a S. Exa o Ministro das Finanças, deva ser apresentado neste Serviço no prazo de 30 dias a contar da data desta notificação (artigo 66.º, n.º 2, do CPPT).
(Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 17 de 12/10/2022 17:04:05)
J) No dia 31 de maio de 2022, no âmbito do pedido de averbamento, o serviço de finanças de ..., emitiu o ofício número ...07, endereçado ao Autor, recebido no dia 03 de junho de 2022, por pessoa a quem foi entregue, do qual consta, entre o mais, que:
Fica V. Exa. por este meio NOTIFICADO, considerando-se a notificação efetuada na data de assinatura do aviso de receção que acompanha este ofício, (n.º 3 do art.º 39.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário-CPPT), de que, por despacho de 2022-05-03, de que se junta cópia, foi INDEFERIDO o pedido referente ao assunto identificado em epígrafe.
Fica ainda notificado que a decisão produz efeitos a partir de 2023-01-01 (n.º 6 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 141.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
Da decisão ora notificada, poderá, querendo, nos termos e com os fundamentos do preceituado no artigo 660 do CPPT, interpor perante este Serviço de Finanças, Recurso Hierárquico dirigido ao Senhor Ministro das Finanças, no prazo de 30 dias a contar desta notificação (artigo 66.º, n.º 2 do CPPT).
Este ofício substitui o ofício n.º ...76, de 2022-05-05, que deve considerar nulo e de nenhum efeito.” (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 23 de 12/10/2022 17:04:05);
K) No dia 08 de junho de 2022, foi emitido o documento de alteração oficiosa do registo central de contribuintes, do qual consta, relativamente ao Autor, a deficiência fiscalmente relevante, do tipo permanente temporária, com o grau de invalidez de 60%, com o período de 01 de setembro de 2019 a 31 de dezembro de 2022 (Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 25 de 12/10/2022 17:04:05);
L) No dia 01 de setembro de 2022, o Autor apresentou a petição inicial da presente ação por via eletrónica no presente tribunal (Petição Inicial (242046) Petição Inicial (Comprovativo Entrega) (004848993) de 01/09/2022 18:56:21; Petição Inicial (242046) Petição Inicial (004848988) de 01/09/2022 18:56:21);
Mais se apurou com relevância para a decisão da causa que:
M) No dia 05 de agosto de 2014, por junta médica da Administração Regional de Saúde do ..., ..., do Ministério da Saúde, foi emitido documento, denominado “atestado médico de incapacidade multiuso”, relativo ao Autor, do qual consta, entre o mais que:
Atesto que, de acordo com a TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, o utente é portador de deficiência que, nesta data e conforme o quadro seguinte, lhe confere uma incapacidade permanente global de: 60% (sessenta por cento) susceptível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de 2019 Capítulo Número Alínea Coeficiente Capacidade Restante Desvalorização XVI-IV 3 0,60 1,000 0,6000 grau de incapacidade 0,6000”
(...) “A incapacidade teve início em setembro de 2013”
(Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 8 de 12/10/2022 17:04:05);
N) No dia 03 de junho de 2019, por junta médica da Administração Regional de Saúde do ..., ..., do Ministério da Saúde, foi emitido documento, denominado “atestado médico de incapacidade multiuso” (doravante reavaliação), relativo ao Autor, do qual consta, entre o mais que:
“Atesto que, de acordo com a TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, o utente é portador de deficiência que, nesta data e conforme o quadro seguinte, lhe confere uma incapacidade permanente global de: 44% (quarenta e quatro por cento)” susceptível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de …”
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(...) “grau de incapacidade 0,4354” e, por fim” no campo “DL n.º 202/96 c/a redacção do DL n.º 291/2009, de 12/10 (Artigo 4.º, n.º 7)” consta “declaro que o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 05-08-2014 pela TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23-10-2007 o grau de incapacidade de: 60% (sessenta por cento)” Contestação (243000) Processo Administrativo “Instrutor” (004856395) Pág. 3 de 12/10/2022 17:04:05).
Factos não provados
Inexistem outros factos com interesse para a decisão da causa.
Motivação
O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa, com base na análise crítica e conjugada dos meios de prova indicados em cada facto julgado provado, designadamente dos documentos juntos aos autos, de cujo teor se extraem os factos provados, e, bem assim, na parte dos factos alegados pelas partes que, não tendo sido impugnados, se encontram corroborados pelos documentos identificados em cada um dos factos.
A restante matéria de facto alegada não foi julgada provada ou não provada, por constituir alegação de factos conclusivos, matéria de direito ou por se revelar inútil ou irrelevante para a decisão da causa.
*
II.2. Fundamentação de Direito
Importa apreciar se o saneador sentença objeto do presente recurso padece de erro de julgamento de direito, por incorreta interpretação e aplicação ao caso do disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, e nos art. 13.º e 103.º da CRP.
De facto, e embora nas conclusões das alegações de recurso se invoque a existência de um “erro manifesto sobre os pressupostos (…) de facto (cf. alínea b, das conclusões), o mesmo não é especificado pela Recorrente, resultando da interpretação do que ali é afirmado que o que se pretende é invocar uma incorreta aplicação do direito à factualidade que demarca o caso em apreço, o que, como é sabido, configura um erro de julgamento de direito, na sua categoria de erro de estatuição, interpretação, ou de aplicação stricto sensu (cf. PINTO, Rui – Manual do Recurso Civil. Volume I. Lisboa, AAFDL editora, 2020, pág. 27).
Vejamos então.
Como já aqui se deixou referido, em causa está a decisão do TAF de Aveiro que julgou procedente a ação interposta pelo aqui Recorrido tendo por objeto o despacho proferido em 3 de maio de 2022 pela Chefe de Finanças ..., que indeferiu o pedido de averbamento do atestado médico de incapacidade multiusos emitido em 3 de junho de 2019 em sede de revisão/reavaliação do grau de incapacidade do aqui Recorrido, por ali se ter entendido, e em síntese, que à reavaliação da incapacidade efetuada em 2019 apenas se aplicaria o disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, mantendo-se em consequência o grau de incapacidade de 60% determinado na avaliação efetuada em 2014, se as duas avaliações tivessem sido feitas de acordo com critérios técnicos distintos (cf. pontos G e H da fundamentação de facto), ou, dito de outra forma, que o citado regime – que consagra o princípio da avaliação mais favorável - apenas se aplicaria se a revisão ou reavaliação da incapacidade que determinou a atribuição de um grau de incapacidade diferente do anteriormente certificado, tivesse resultado da alteração de critérios técnicos introduzidos na tabela de incapacidades em consequência da alteração produzida no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro por força do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro.
Para suportar a decisão de conceder provimento à ação, no saneador sentença recorrido são alinhavados os seguintes fundamentos, que se passam a reproduzir:
(…)
O Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei.
O mencionado regime foi objeto de alteração pelo Decreto-Lei 291/2009, de 12 de outubro, que, entre o mais, alterou o artigo 4.º, no seguinte sentido:
1 - A avaliação da incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, tendo por base o seguinte:
a) Na avaliação da incapacidade das pessoas com deficiência, de acordo com o definido no artigo 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto, devem ser observadas as instruções gerais constantes do anexo I ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante, bem como em tudo o que não as contrarie, as instruções específicas constantes de cada capítulo ou número daquela Tabela;
b) Não se aplicam, no âmbito desta avaliação de incapacidade, as instruções gerais constantes daquela Tabela.
2 - Findo o exame, o presidente da junta médica emite, por via informática ou manual, o respectivo atestado médico de incapacidade multiuso, o qual obedece ao modelo aprovado por despacho do director-geral da Saúde, em que se indica expressamente qual a percentagem de incapacidade do avaliado.
(...)
7 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.
8 - Para os efeitos do número anterior, considera-se que o grau de incapacidade é desfavorável ao avaliado quando a alteração do grau de incapacidade resultante de revisão ou reavaliação implique a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos.
9 - No processo de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais mantém-se inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação.». (cf. artigo 1.º e 3.º do Decreto-Lei 291/2009 de 10 de outubro).
Posteriormente, foi apresentado o projeto de lei n.º 871/XIV/2.ª, do qual consta, entre o mais, na respetiva “exposição de motivos”, que:
Nesse Ofício Circulado (n.º 20215, de 3 de dezembro de 2019) passa a ler-se que “os atestados médicos de incapacidade multiusos emitidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro (alterado e republicado através do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro), mantêm-se válidos desde que certifiquem incapacidades definitivas, ou seja, não suscetíveis de reavaliação” e que “sempre que, das situações de revisão ou reavaliação, que determinem a atribuição de um grau de incapacidade diferente do anteriormente certificado, não resultante da alteração de critérios técnicos, o grau que resulta deste procedimento releva fiscalmente quando reúna os pressupostos previstos na lei, deficiência igual ou superior a 60%, sendo reconhecido um benefício ex novo.”
Ou seja, o princípio da avaliação mais favorável que sempre vigorou, passa a aplicar-se apenas quando existirem alterações técnicas na tabela de incapacidades, deixando de aplicar-se às novas avaliações e reavaliações.
Esta alteração (que acontece, diga-se, por via de uma nova interpretação e sem nunca se alterar a própria legislação) está já a ter impactos graves na vida de muitas pessoas que, de um momento para o outro, contra as suas expectativas e até contra a informação prestada pelos serviços e repartições de finanças, ficaram sem benefícios e apoios de que usufruíam e que constituíam um direito adquirido.
Como foi possível comprovar em audição parlamentar requerida pelo Bloco de Esquerda, existem neste momento várias centenas de doentes com doenças incapacitantes, oncológicas e outras, que perdendo o acesso a determinados benefícios, viram agravadas as suas condições de vida e mais diminuído o seu orçamento familiar. O facto de em determinado momento existir uma evolução positiva da doença não quer dizer que deixe de existir doença ou que os impactos sociais e económicos da mesma tenham desaparecido. Mas, com o novo despacho do SEAF sobre o assunto, desaparecem os apoios a estas pessoas.
Alguém que está a recuperar de uma doença grave e incapacitante continua a ter despesas acrescidas na área da saúde e em muitos casos mantém dificuldades para o trabalho e na reintegração no mercado de trabalho. Por tudo isso, e porque o histórico e a história da doença impactam no presente, fazia e faz sentido manter o princípio da avaliação mais favorável para que se mantenham, por mais um período de tempo, os apoios necessários a estas pessoas. O que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção do benefício se a avaliação imediatamente anterior reconhecia esse direito.
Esse não é, no entanto, o entendimento do Governo que se recusa a anular o seu despacho que tantas consequências negativas está a trazer a muitos doentes. Por isso, apresenta-se este projeto de lei, que consagra de forma inequívoca o princípio da avaliação mais favorável nos processos de revisão ou reavaliação do grau de incapacidade, de forma a que este não fique sujeito a interpretações ou reinterpretações mais ou menos criativas, mas com alto impacto negativo na vida de quem vive com doenças graves e incapacitantes.
Propõe-se que, nos casos de incapacidade temporária, para além das situações de alteração do grau de incapacidade resultante a alteração de critérios da tabela de avaliação, vigore também o princípio da avaliação mais favorável quando a alteração do grau de incapacidade resulta da alteração da situação clínica. Nestes casos, sempre que a reavaliação implique a perda de direitos que o avaliado já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos ter-se-á em consideração a avaliação imediatamente anterior e sendo esta a mais favorável é ela que será mantida até próxima reavaliação. (Vide https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).
No mesmo sentido, do projeto de Lei n.º 916/XIV/2.ª do qual consta, entre o mais, na respetiva “exposição de motivos”, que:
“A questão é simples. Se a patologia que esteve na origem da atribuição da incapacidade permanece, e continua a constar do atestado médico de incapacidade multiusos, o que releva para o reconhecimento de direitos e benefícios previstos na lei é o grau de incapacidade que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.
Significa que, o grau de incapacidade correspondente à data dessa avaliação ou da última reavaliação se mantém sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado. Justifica-se este entendimento porque a patologia que conduziu à atribuição do grau de incapacidade não desapareceu.
Sucede, todavia, que o Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03 da Autoridade Tributária e Aduaneira, que materializa a decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, introduz uma nova interpretação da lei cujo resultado prático é a eliminação do artigo 4º no Decreto – Lei nº 202/96, de 23 de outubro.
Esta interpretação para além de se revelar contrária à lei, revela uma profunda insensibilidade por estas pessoas, subvertendo inclusive os objetivos que estiveram na base desta lei.”
(Vide https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).
Na sequência dos referidos projetos, o regime veio a ser alterado pela Lei 80/2021, de 29 de novembro, com entrada em vigor no dia 30 de novembro de 2021, que aditou um artigo 4.º-A, com a epígrafe “norma interpretativa”, da qual consta:
1 - À avaliação de incapacidade prevista no artigo anterior aplica-se o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado, nos termos dos n.ºs 7 e 8 do artigo anterior.
2 - Sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado.” (cf. artigos 2.º e 3.º da Lei 80/2021, de 29 de novembro).
E, por fim, o dito regime foi alterado pelo Decreto-Lei 1/2022, de 03 de janeiro, que a partir de 28 de fevereiro de 2021 e nos termos do n.º 1 do art. 7.º, alterou os artigos 3.º, 4.º e 6.º, e aditou o artigo 4.º-B, tendo mantido inalterados os números 7 a 9 do referido artigo 4.º.
Assim, no que releva para a presente ação, temos que o legislador estipulou, no ano de 2009, que “nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado”, sendo que “Para os efeitos do número anterior, considera-se que o grau de incapacidade é desfavorável ao avaliado quando a alteração do grau de incapacidade resultante de revisão ou reavaliação implique a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos” e que “No processo de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais mantém-se inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação” (cf. artigo 4.º, n.º 7 a 9, do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, na redação dada pelo Decreto-Lei 291/2009 de 10 de outubro;).
No que concerne à interpretação das referidas normas, a jurisprudência superior explicita que: “Começando pelo n.º 9 do artigo 4.º do diploma em causa, está bom de ver que a solução nele contemplada só pode respeitar àquelas situações em que o avaliado não sofreu qualquer alteração clínica ao nível das sequelas de que ficou a padecer em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima ou da doença profissional que o atingiu, entre a data da avaliação ou última reavaliação e a data em que foi sujeito a novo processo de revisão ou reavaliação e em que a avaliação da sua incapacidade foi calculada pela nova TNI aprovada pelo D.L. n.º 352/2007, de 23.10, resultando a diminuição do seu grau de incapacidade única e exclusivamente da diferente graduação prevista na nova TNI para a sua incapacidade.
(...) “Isto dito e centrando-nos agora na solução prevista nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º, cremos que com o regime legal aí estabelecido o legislador quis salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que tendo sido sujeitos à realização de uma nova junta médica, viram o grau de incapacidade que lhes foi fixado à data da avaliação ou da última reavaliação alterado em consequência de modificações efetivamente verificadas no seu estado clínico, o mesmo é dizer, de alterações ao nível das sequelas de que ficaram a padecer, quando daí resulte, por força da diminuição que tal implique no grau de incapacidade que lhes tenha sido atribuído, a perda de direitos que já estejam a exercer ou benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos. Esta possibilidade da junta médica manter o anterior grau de incapacidade apenas é consentida pelo legislador quando estejam em causa situações das quais possa resultar a perda de direitos que o avaliado já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos. Em suma, o sentido útil que se extrai do disposto no artigo 4.º, nºs 7, 8 e 9, de acordo com os elementos interpretativos fornecidos pelo artigo 9.º do C. Civil, leva-nos a considerar que nos n.ºs 7 e 8 do art.º 4.º do D.L. 202/96, na versão conferida pelo D.L. 291/09, de 12.10, o legislador gizou uma solução normativa para aquelas situações em que houve uma alteração efetiva na situação clínica do avaliado geradora de uma alteração do grau de incapacidade que lhe fora fixado anteriormente, da qual possa resultar a perda de direitos que o avaliado já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos, ao passo que no n.º 9 do referido preceito, o legislador contemplou aquelas situações em que o grau de incapacidade do avaliado apenas resulta diminuído por força da aplicação da nova TNI, sem que a tal corresponda qualquer efetiva alteração das sequelas de que padece.
(Vide Acórdão TCAN de 28 de junho de 2019, processo 00144/18.2BECBR, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, da matéria de facto provada resulta que, no dia 05 de agosto de 2014, foi atribuído um atestado médico de incapacidade multiuso ao Autor que atesta que, de acordo com a TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, o mesmo é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de: 60% (sessenta por cento), fundada no capítulo XVI-IV, com coeficiente de 0,60 (cf. alínea M) da matéria de facto provada).
Mais resulta da matéria de facto provada que, no dia 03 de junho de 2019, foi atribuído atestado médico de incapacidade multiuso ao Autor, que atesta que, de acordo com a TNI - Anexo I, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, o mesmo é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 44% (quarenta e quatro por cento) fundada, entre o mais, no capítulo XVI - IV, este último parte com coeficiente de 0,18 (cf. alínea N) da matéria de facto provada).
Assim, nos presentes autos, é manifesto que nos encontramos no domínio dos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, isto é, de portador de incapacidade oncológica que, tendo sido sujeito à realização de uma nova junta médica, viu o grau de incapacidade alterado em consequência de modificações efetivamente verificadas no seu estado clínico, o mesmo é dizer, de alterações ao nível das sequelas de que ficou a padecer.
Aqui chegados, a questão em apreço concerne em saber se o Autor tem direito à manutenção do grau de incapacidade de 60% em face do princípio da avaliação mais favorável. Isto é, se face à reavaliação da incapacidade, com resultado inferior ao resultado da avaliação inicial, se deve considerar que se mantém em vigor o resultado mais favorável, isto é, o resultante da avaliação inicial.
Ora, como vimos, a norma interpretativa referente aos referidos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, esclarece que à avaliação de incapacidade se aplica o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado e que, sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado.
Note-se que, como é consabido e a Entidade Demandada reconhece, a atribuição de uma incapacidade igual ou superior a 60% conferiu e confere diversos direitos inerentes ao atestado médico de incapacidade multiusos e durante a sua vigência ou, dito de outro modo, até à reavaliação da incapacidade.
Quer isto dizer, a manutenção de diversos direitos e benefícios, nomeadamente de isenções subjetivas tributárias, implica a manutenção de incapacidade global igual ou superior a 60%.
Nesta medida, quando o legislador explicita ser devida a manutenção do grau de incapacidade mais favorável - sempre que ocorra “a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos” e “desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade” -, não desconhece e tem em vista acautelar a perda de direitos e benefícios de que o utente beneficiava com a avaliação/certificado anterior relativo à mesma patologia.
Isto é, o legislador refere-se aos direitos e benefícios conferidos ao titular pelo atestado, durante a sua pendência/validade plurianual, e que, face à reavaliação e emissão de novo certificado com menor grau de incapacidade, o utente poderá deixar de beneficiar.
Tal interpretação resulta expressamente da exposição de motivos supra transcrita.
E, bem assim, do teor literal da norma interpretativa supra transcrita, quando afirma que “Sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos” deve manter-se o resultado mais favorável.
Por outro lado, não obsta à manutenção da incapacidade mais favorável o facto de o atestado médico de incapacidade multiusos mencionar outras patologias, dado que o Autor manteve a mesma patologia clínica, do foro oncológico, ainda que com coeficiente menor, que contribuiu para o grau de incapacidade da reavaliação.
Dito de outro modo, o facto de o Autor padecer de outras incapacidades, concorrentes para o resultado da incapacidade global, não pode fundar a exclusão da aplicação do princípio da avaliação mais favorável. Isto é, consideramos encontrar-se preenchido o pressuposto de manutenção da mesma patologia clínica, ainda que, como vimos, em menor grau e em concorrência com outras patologias.
Por fim, cremos, ainda, que resulta do atestado médico de incapacidade multiusos que o grau de incapacidade anterior se mostra mais favorável ao avaliado na aceção do referido regime, dado que se declara no campo “DL n.º 202/96 c/a redacção do DL n.º 291/2009, de 12/10 (Artigo 4º, nº 7)” que “o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 05 de agosto de 2014 pela TNI aprovada pelo Decreto - Lei n.º 352/2007 de 23-10-2007 o grau de incapacidade de: 60% (sessenta por cento)” (cf. alínea N) da matéria de facto provada).
Ora, como vimos, o artigo 4.º, n.º 7, do D.L. n.º 202/96, de 23 de outubro, na redação do D.L. n.º 291/2009, de 12 de outubro, determina precisamente que: “7 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.”.
Donde se conclui que a menção em declaração de junta médica, precisamente no campo relativo à referida norma, de existência de anterior incapacidade de 60%, se destina a declarar os pressupostos de existência de avaliação anterior mais favorável, em relação à reavaliada e inferior.
Não vemos que seja outro, nem a Entidade Demandada alega que seja outro, o sentido do referido campo do formulário e da menção nele inserta.
E, no que concerne a esta matéria, incumbe extrair todas as consequências decorrentes das declarações constantes do atestado médico de incapacidade multiuso.
Por fim, não vemos que ao Autor que, como vimos, é beneficiário do regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência, seja exigível a obtenção de qualquer outra declaração adicional da junta médica. Cabendo aos diversos intervenientes, com particular acuidade nas matérias atinentes a atestados decorrentes de incapacidades, cooperar na interpretação dos documentos emitidos por outras entidades administrativas, nomeadamente de formulários de utilização massiva, a fim de se dar pleno e material cumprimento à norma aplicável.
Em suma, da factualidade decorre que o Autor padeceu de incapacidade fixada em 60%, que lhe conferiu diversos direitos e benefícios, nomeadamente em sede tributária, e que, em sede de reavaliação, se concluiu que padece de incapacidade global inferior, na qual se inclui, entre outras, a mesma patologia da anterior avaliação, constando do atestado médico de incapacidade multiuso, no campo referente ao “D.L. n.º 202/96 c/a redacção do DL n.º 291/2009, de 12/10 (Artigo 4º, nº 7)”, que “o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 05 de agosto de 2014 pela TNI aprovada pelo Decreto - Lei n.º 352/2007 de 23-10-2007 o grau de incapacidade de: 60% (sessenta por cento)”.
E da matéria de direito resulta que o legislador esclareceu, em norma interpretativa, que pretende que seja aplicado o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado, sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantendo-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado.
Cremos que os princípios da legalidade, da unidade do ordenamento jurídico, da igualdade e da excecionalidade dos benefícios fiscais não colidem e, pelo contrário, implicam o respeito e cumprimento material da referida norma interpretativa e princípio de aplicação da avaliação mais favorável dimanantes de projetos de lei que visaram precisamente reiterar a interpretação normativa no sentido supra referido, o que, aliás, se encontra expressamente mencionado na respetiva “exposição de motivos”.
Assim, cremos que a decisão de indeferimento em causa nos presentes autos incorreu em erro nos pressupostos de direito, por violação do referido princípio e das referidas normas, inexistindo fundamento de recusa do averbamento da incapacidade resultante da reavaliação, com aplicação da avaliação mais favorável.
(…)
Ora, desde já se adianta que nada há que censurar à decisão do Tribunal a quo, que ao contrário do alegado pela Recorrente, faz uma correta interpretação e aplicação ao caso do direito.
De facto, resultando provado que em 2014 foi reconhecida ao Recorrido uma incapacidade de 60% (cf. ponto M, da fundamentação de facto), tendo o mesmo, por força dessa incapacidade, usufruído de vários benefícios, nomeadamente em sede tributária, e que essa incapacidade foi reavaliada em 2019 em 44%, tendo origem na mesma patologia e constando do atestado médico de incapacidade multiuso, no campo referente ao “D.L. n.º 202/96 c/a redacção do DL n.º 291/2009, de 12/10 (Artigo 4º, nº 7)”, que “o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 05 de agosto de 2014 pela TNI aprovada pelo Decreto - Lei n.º 352/2007 de 23-10-2007 o grau de incapacidade de: 60% (sessenta por cento)” (cf. ponto N, da fundamentação de facto) não resta senão concluir que se encontram preenchidos os requisitos previstos na lei para que o mesmo beneficie da avaliação mais favorável.
Com efeito, é o que expressamente decorre do disposto no n.º 7 do art. 4.º, do DL 202/96, de 23 de outubro, em conjugação com o n.º 8 da mesma disposição legal, sendo inquestionavelmente esse o sentido que o legislador pretendeu conferir ao regime, como resulta do disposto na norma interpretativa constante no art. 4.º-A, aditado ao citado diploma pela Lei 80/2021, de 29 de novembro.
Efetivamente, dispõe-se no art. 4.º-A o seguinte:
Artigo 4.º-A
Norma interpretativa
1 - À avaliação de incapacidade prevista no artigo anterior aplica-se o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado, nos termos dos n.ºs 7 e 8 do artigo anterior.
2 - Sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado.
A este propósito não será de mais recordar que decorre da natureza interpretativa da Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro o facto de, precisamente, incidir sobre questão que no regime aplicável tinha um sentido controvertido – atenta a interpretação que do mesmo vinha sendo preconizada pela Administração fiscal, através o Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03 da Autoridade Tributária e Aduaneira, que materializou decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a que se alude nos respetivos trabalhos preparatórios - consagrando uma solução que os tribunais poderiam ter adotado.
Importará também recordar que a lei interpretativa se integra na lei interpretada, tal como decorre do disposto no n.º 1 do art. 13.º do Código Civil.
Quanto à argumentação despendida pela Recorrente, sempre se dirá, por um lado, que sendo a Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, por força da qual foi aditado o art. 4.º-A ao DL 202/96, de 23 de outubro, posterior ao Decreto-Lei n.º 291/2009, não pode o legislador ter deixado de ter considerado o mesmo na interpretação que veio a consolidar do regime aqui em causa.
Com efeito, não se vê qual seria o sentido útil da interpretação preconizada no art. 4.º-A, caso a mesma nada acrescentasse ao que decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2009, no extrato citado pela Recorrente, assim se esclarecendo que o princípio da avaliação mais favorável extravasa as situações em que a divergência na avaliação da incapacidade se deve apenas à aplicação de critérios técnicos diferentes.
Por outro lado, também não procede o argumento de que deste modo é violado o princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da CRP.
Com efeito, é manifesto que não está na mesma situação o cidadão portador de deficiência que por ser de 60% lhe permite aceder a um conjunto de benefícios, sendo posteriormente avaliada numa percentagem inferior, e o cidadão portador de deficiência ao qual, pela primeira vez é reconhecida uma incapacidade inferior a 60%, que não lhe permite usufruir desses benefícios.
Esta questão não deixou, aliás, de ser endereçada nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 80/2021, quando nos mesmos se refere que “O facto de em determinado momento existir uma evolução positiva da doença não quer dizer que deixe de existir doença ou que os impactos sociais e económicos da mesma tenham desaparecido. (…) Alguém que está a recuperar de uma doença grave e incapacitante continua a ter despesas acrescidas na área da saúde e em muitos casos mantém dificuldades para o trabalho e na reintegração no mercado de trabalho.” (cf. projeto de lei n.º 871/XIV citado na decisão recorrida, disponível para consulta em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).
O mesmo se diga relativamente ao argumento que adianta quanto à concessão alegada concessão ad aeternum do benefício fiscal.
De facto, e como igualmente se refere nos trabalhos preparatórios da lei interpretativa que originou o aditamento do art. 4.º-A ao DL 202/96, de 23 de outubro, “O que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção do benefício se a avaliação imediatamente anterior reconhecia esse direito” (cf. projeto de lei n.º 871/XIV citado na decisão recorrida, disponível para consulta em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).
Por fim, nem a Recorrente esclarece, nem aqui se vislumbra em que é que é que a interpretação preconizada pelo Tribunal recorrido contende com o disposto no art. 103.º da CRP.
Em suma, não tem a Recorrente razão, nada havendo a censurar à decisão recorrida.
Assim sendo, e em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente.
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No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, a mesma cabe à Recorrente, atendendo ao seu decaimento [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 1.º, do CPTA].
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Conclusão:
Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:
I. Decorre da natureza interpretativa da Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro o facto de incidir sobre questão que no regime aplicável tinha um sentido controvertido – atenta a interpretação que do mesmo vinha sendo preconizada pela Administração fiscal, através o Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03 da Autoridade Tributária e Aduaneira, que materializou decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a que se alude nos respetivos trabalhos preparatórios - consagrando uma solução que os tribunais poderiam ter adotado.
II. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada.
III. Por força da norma interpretativa constante no art. 4.º-A do Decreto-Lei n.º 202/96, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, tem direito ao tratamento mais favorável o sujeito passivo portador de deficiência cuja incapacidade for reavaliada numa percentagem inferior à legalmente exigida para a obtenção de benefício fiscal, independente de essa reavaliação se dever a uma alteração de critérios técnicos introduzidos na tabela de incapacidades.
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III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao presente recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Porto, 26 de outubro de 2023 - Margarida Reis (relatora) – Conceição Soares – Celeste Oliveira.