Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01207/12.3BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2020
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:SENTENÇA; FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO; MATÉRIA DE FACTO; CONTRADIÇÃO INSANÁVEL.
Sumário:1- No julgamento da matéria de facto impende sobre o juiz a obrigação de, na sentença, discriminar os factos que considera provados e não provados, devendo, de forma clara e especificada, analisar criticamente as provas e expor os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção em relação a cada facto (art. 607º, n.ºs 3, 4 e 5 do CPC.), explicitando desse modo, não só a respetiva decisão como, também, quais os motivos que a determinaram.

2- A fundamentação das decisões judiciais desempenha uma dupla função: por um lado, impõe ao julgador um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, por forma a persuadir os destinatários e a comunidade jurídica em geral; por outro, pela via do recurso, permite o reexame do processo lógico ou racional que lhe está subjacente.

3- O vício determinativo da nulidade da decisão proferida com fundamento em ausência de fundamentação apenas ocorrerá quando se esteja perante uma absoluta e total ausência de fundamentação.

4- Para efeitos do disposto no art.º 662 nº2, al. c) do CPC só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis entre a mesma questão de facto.

5- Consistindo o vício da contradição em erro de julgamento, ele tem, no entanto, que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos externos, e daí que não possa confundir-se com a alteração da matéria de facto com base no erro notório na apreciação da prova. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MUNICÍPIO DE (...)
Recorrido 1:A., S.A. e R., S.A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo do Norte:

I. RELATÓRIO

1.1.MUNICÍPIO DE (...), intentou ação administrativa comum, sob a forma ordinária, contra A., S.A. e R., S.A., pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de € 49.512,61, acrescida de juros legais desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Alegou, para tanto, em síntese, que foi atribuída à R.- Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos S.A., a concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal do Norte Central, em regime de exclusividade, a qual passou a ser dona do aterro sanitário de (...), localizado em (...);
Que no dia 26.11.2007, pelas 18h30m ocorreu um acidente no referido aterro sanitário, do qual resultaram danos no veículo pesado de mercadorias, marca Mercedes BENZ, de matrícula XX-XX-SR, do autor;
Que o referido acidente ocorreu por o terreno por baixo do veículo ter começado a ceder junto ao eixo traseiro deste, após o seu motorista, no local indicado pelo funcionário da R., ter iniciado a manobra de marcha-atrás, recuando lentamente o veículo até chegar ao ponto do terreno onde existia um socalco e onde teria de depositar os aludidos resíduos;
Já era noite, o local estava mal iluminado, não possuía qualquer tipo de sinalização e o solo não estava ainda devidamente compactado, não possuindo a necessária consistência para suportar o peso de um veículo pesado.
Em consequência, o veículo caiu e capotou para o lado direito, danificando a sua parte lateral direita e o contentor, tendo sofrido danos no montante global de 49.512,61€;
A 1.ª Ré responde pelo pagamento da indemnização porque para ela a 2.ª Ré transferiu a responsabilidade civil pela apólice n.º 3071014;
A 2.ª Ré responde nos termos do art.º 13.º, n.º4 do D.L. n.º 379/93, de 05/11 e ainda nos termos dos artigos 492.º, 493.º e 500.º do Código Civil.

Regularmente citada, a Ré A. contestou, defendendo-se por impugnação. Alegou, em suma, que apólice garante a responsabilidade por acidente até ao limite de €500.000,00, estando contratualizado que a ré suportaria uma franquia de 10% do valor do sinistro, com um mínimo de €500 e o máximo de 2000.
Quanto à dinâmica do acidente, alegou, em suma, que o condutor do veículo interveniente conhecia bem local, que quem lhe deu instruções sobre o local foi o seu ajudante e não o funcionário da Ré, que aquele não foi diligente, tendo-se limitado a fazer marcha-atrás em direção ao talude, tendo aqueles contribuído para a verificação dos danos nos termos do artigo 570º do C.Civil, presumindo-se o mesmo culpado no acidente ( artigo 503.º, n.º3 do C.Civil e Assento do STJ n.º1/83).
Concluiu que as RR. não respondem pelo sinistro.

Regularmente citada, a ré R. contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Na defesa por exceção, invocou a sua ilegitimidade passiva. Na defesa por impugnação, alegou, em suma, que a culpa na verificação do acidente é imputável “in totum” ao próprio autor, cujo condutor encaminhou o veículo para um talude do aterro sanitário, onde o mesmo se afundou.
Que o condutor do camião conhecia bem o local, estava acompanhado de dois ajudantes e foi um deles, e não o vigilante da R., que lhe deu instruções para a manobra a efetuar, limitando-se o motorista a fazer marcha-atrás em direção a um talude.
O comportamento destes deve ser reconduzido à figura da contribuição do lesado para o dano, nos termos do artigo 570.º do C.Civil, para além de impender sobre o autor a presunção de culpa do art.º 503.º, n.º3 do C.Civil.
Que a atividade da R. enquanto concessionária e titular da exploração do aterro sanitário do (...), enquanto bem imóvel, não é considerada perigosa para efeitos do disposto no art.º 493.º do C.Civil, concluindo pela improcedência da ação.

Proferiu-se despacho saneador, julgou-se improcedente a exceção invocada, fixou-se a matéria assente e formulou-se a base instrutória.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância de todos os formalismos legais.

Em 10 de abril de 2017, o TAF de Braga proferiu decisão que julgou a presente ação totalmente improcedente, constando a mesma do seguinte segmento decisório:
«Ante o exposto, julga-se a presente ação administrativa comum totalmente improcedente, por provada, e, em consequência, absolvem-se os Réus do pedido.
Custas pelo Autor.
Fixo à presente ação o valor de € 49.512,61 (art. 32º nº1 do CPTA).
Registe e Notifique.»
*
Inconformado com a decisão, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«
Determina o nº2 do artigo 493º do Código Civil que: “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

A lei estabelece neste caso uma inversão do ónus da prova, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma actividade perigosa, sendo este que tem de provar, para se eximir à responsabilidade, que não teve culpa na produção do facto danoso.

Esta presunção de culpa assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano, daí que, quanto aos danos causados no exercício de actividades perigosas, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar.

Ora, a actividade própria da gestão e exploração de um aterro sanitário deve ser considerada perigosa para efeitos do art. 493.º, n.º 2, do CC.

Com efeito, um aterro sanitário é um local destinado à decomposição final de resíduos sólidos gerados pela atividade humana. Nele são dispostos resíduos domésticos, comerciais, da indústria de construção, e também resíduos sólidos retirados do esgoto.

No processo de decomposição dos resíduos sólidos, ocorre a liberação de gases e líquidos muito poluentes, pelo que se trata de um espaço com produtos tóxicos, que está submetido a regras e normas operacionais específicas, com legislação própria e rigorosa, não só de concepção e construção –o projecto de aterro sanitário exige cuidados como impermeabilização do solo, implantação de sistemas de drenagem eficazes, de águas e gases, entre outros, para evitar possíveis contaminações da água, do solo e do ar -, como de gestão, de recolha, transporte, armazenamento, tratamento, valorização e eliminação dos resíduos, por forma a não constituir perigo ou a causar danos ou riscos à saúde pública e à segurança e a minimizar os impactos ambientais adversos,

o que é um inequívoco sinal dos graves riscos que um aterro sanitário envolve para a segurança e saúde das pessoas e seus utilizadores.

Assim, sendo a actividade própria da exploração de um aterro sanitário uma actividade perigosa, em função da sua própria natureza, para os efeitos do disposto no artigo 493º, nº2, do Código Civil, a Ré R., S.A, tem contra si uma presunção de culpa

Por outro lado, pode considerar-se ainda que sobre Ré, R., S.A, recai a presunção de culpa do artigo 493º, nº1, do Código Civil, como considerou a decisão recorrida, no que respeita à violação dos deveres de fiscalização, manutenção e conservação do aterro sanitário, na medida em que, enquanto concessionária do serviço, substitui e representa o Estado no domínio da recolha e tratamento de resíduos sólidos, aplicando-se o regime da responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, que relativamente à culpa, a jurisprudência e a doutrina têm considerado existir uma presunção de culpa.
10º
Assim, dando por certo que sobre a Ré, R. recai uma presunção de culpa, teria a mesma de provar que actuou não apenas in abstracto, como teria actuado o bom pai de família pressuposto no art. 487º, nº 2, uma pessoa medianamente cautelosa e atenta em face do condicionalismo próprio do caso concreto, mas, mais do que isso, empregando todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar os danos, dado que os casos previstos no art. 493º, representam uma responsabilidade subjectiva agravada ou objectiva atenuada, de modo tal que o lesante só fica exonerado quando tenha adoptado todos os procedimentos idóneos, segundo o estado da ciência e da técnica ao tempo em que actua, para evitar a eclosão dos danos (neste sentido, Acórdão do STJ de 17/01/2012 – proc. nº 291/07.6TBLRA.C1.S1, in www.dgsi.pt).
11º
Ora, a matéria de facto apurada, mostra, contudo, que aquela presunção não foi ilidida.
12º
Na verdade, ficou provado que o motorista do Autor não tinha qualquer liberdade de escolha do local do aterro onde proceder à descarga dos resíduos e só a podia fazer no local que lhe fosse expressamente indicado pelo funcionário da Ré, R., S.A.; que o porteiro da R., S.A. (à data R-.), indicou ao condutor do Autor, o preciso local onde teria de fazer a descarga dos resíduos no aterro, que o condutor do Autor, dirigiu-se para o local do aterro indicado pelo funcionário da R., S.A. para efectuar a descarga, que no local para onde se dirigiu o funcionário do autor não estava qualquer funcionário da R., S.A, que no local indicado, o motorista do Autor, colocou o veículo em posição de iniciar a manobra de marcha-atrás e assim aproximar-se do local onde seria feita a descarga e que percorridos alguns metros, o terreno por baixo do veículo começou a ceder junto ao eixo traseiro direito deste.
13º
Ou seja, o motorista do autor foi para o local indicado pelo funcionário da R., S.A. e, nesse local, iniciou a manobra de marcha atrás fazendo retroceder o veículo para lançar os resíduos que transportava, através do respectivo contentor do veículo, para o aterro.
14º
Não se provou, nem se alegou, que o funcionário do autor tivesse ido para um local diferente do indicado pelo funcionário da Ré, R., S.A.; que o talude não fizesse parte desse local (porque fazia. Aliás, o aterro é composto por taludes, os quais, nos termos da legislação em vigor, são obrigados a ter a inclinação certa por razões de estabilidade e segurança); não se provou que o funcionário da R., S.A. tivesse excluído ao condutor do autor qualquer local do aterro; que existisse algum tipo de proteção no local; que tivesse sido implementada pela Ré qualquer medida que entendesse por adequada em ordem a evitar a ocorrência de um incidente do tipo do verificado, nem mesmo se provou que o condutor do autor tivesse contrariado algumas das instruções dadas pelo funcionário da R., S.A.
15º
Note-se que a resposta à parte final do quesito 20, na qual que refere – “onde não havia qualquer perigo de atolamento da viatura” - deve dar-se por não escrita, por se tratar de um facto conclusivo, um juízo de valor, e que está em manifesta contradição com a globalidade da prova produzida, sendo certo que o funcionário da R., S.A. até poderia estar convencido de que o local por si indicado para efectuar a descarga não oferecia qualquer perigo de atolamento, mas o certo é que oferecia, porque foi no preciso local por si indicado que o solo cedeu e o veículo atolou.
16º
Não se provou ainda que o local estivesse sinalizado, nem que estivesse suficientemente iluminado, pois a resposta de “não provado” a tais factos não significa que os mesmos se possam dar por provados.
17º
Aliás, não se vislumbram sequer as razões que levaram o tribunal a responder negativamente aos quesitos 3 (o local para onde se dirigiu o funcionário do autor estava mal iluminado e não existia sinalização), 11 (o solo do aterro não estava devidamente compactado) e 12 (o solo do aterro não possuía a resistência necessária para suportar o peso de um veículo pesado), uma vez que a decisão proferida sobre os referidos factos não se encontra devidamente fundamentada e as respostas aos referidos quesitos estão em contradição com a restante matéria dada como provada, pois se o solo cedeu é porque, ou não estava devidamente compactado ou não possuía a resistência necessária para suportar o peso do camião do lixo.
18º
De referir que a própria ré, A., S.A, no artigo 21º da sua contestação admite como más as condições de identificação do local e juntou aos autos um relatório de peritagem ao acidente feito pelos seus serviços no qual se refere expressamente que “o local da descarga possuía deficientes condições de iluminação”.
19º
Assim, não se apurou qualquer facto ilícito ou culposo dos funcionários do autor para que lhes possa ser imputada, como foi, e em exclusivo, a responsabilidade pelo acidente.
20º
Nada resulta da matéria de facto provada que permita concluir, como se concluiu na decisão recorrida, que o condutor do autor não agiu com a prudência adequada às condições do veículo, da carga e das circunstâncias de facto em que iria fazer a descarga dos mesmos”.
21º
Também não se vislumbra que diferença teria feito se os colegas do condutor do autor, aquando da realização da manobra de marcha atrás, em vez de terem ficado dentro do veículo, tivessem saído do veículo, porque, como se referiu, e se insiste, o veículo pesado atolou, e o atolamento do camião deu-se porque o solo cedeu e não por causa das indicações dadas ao condutor aquando da realização da manobra de marcha atrás.
22º
O acidente ocorreu porque o solo do local indicado pelo funcionário da R., S.A., ao motorista do autor, cedeu, como resulta da matéria de facto apurada.
23º
E se o solo cedeu é porque não estava seguro, é porque não possuía resistência, não reunia as necessárias e devidas condições de segurança.
24º
Assim, não tendo a Ré, R., S.A., feito prova de que não houve culpa sua, ou que mesmo que tivesse adoptado a diligência devida, o acidente em causa teria ocorrido, há que concluir pela sua culpa presumida.
25º
Para poder afastar a presunção de culpa que sobre si impendia, era necessário que a ré tivesse provado que os danos resultaram de um comportamento manifestamente censurável e perigoso dos funcionários do autor. Ou seja, um comportamento violador das mais elementares regras de conduta impostas pelo meio e pelas circunstâncias, uma actuação censurável, perigosa e reveladora de grave inconsideração, causadora do acidente e, ela mesmo, geradora do perigo, para poder considerar-se como indesculpável e causa única do facto danoso.
26º
Ora, de forma alguma existem factos no probatório que permitam concluir, como conclui a decisão recorrida, de que a causa única do acidente e inerentes danos se deveu ao comportamento dos funcionários do autor.
27º
Assim, a responsabilidade pela verificação do acidente e, consequentemente, pela reparação dos danos emergentes do mesmo é imputável à Ré, R., S.A.
28º
Ora, conforme também resulta da matéria de facto provada, foi transferida, até ao limite de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), para a Ré A., S.A., a responsabilidade civil extracontratual emergente da actividade comercial e/ou industrial da R., S.A., nos termos do contrato de seguro titulado pela apólice nº A03071014/0037.
29º
O Tribunal deu como provado que o autor procedeu à reparação dos danos sofridos pelo veículo, que alugou um camião de recolha de resíduos sólidos urbanos para continuar a proceder à recolha dos resíduos sólidos urbanos na área do concelho de (...) e que o contentor do veículo continua por reparar.
30º
Assim, assiste ao autor o direito a ser ressarcido pelos Réus do valor dos referidos danos sofridos.
31º
Ao assim não entender, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 493º e 487º, do Código Civil.

Termos em que, com o douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogada a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências»

A ré A. contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«
I. A Recorrente, apesar de impugnar a matéria dada pelo tribunal recorrido como provada, não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, nem os concretos meios probatórios constantes de gravação bem como as suas específicas passagens.

II. Pelo que deverá o presente recurso na respectiva parte ser rejeitado, nos termos e para efeitos do artigo 640.º, n.º 1 CPC.

III. Do ponto de vista do concessionário e titular da exploração de bem imóvel é de afastar que a sua actividade de mera exploração de uma instalação deste tipo, possa ser considerada perigosa para efeitos do disposto no art.º 493.º do CC.

IV. A actividade de gestão e exploração de um sistema multimunicipal para triagem, recolha, valorização e tratamento de resíduos sólidos não cria para terceiros um estado particular de perigo, ou uma maior probabilidade de receber dano em razão da sua natureza.

V. A perigosidade de uma atividade há-de ser apurada, caso a caso, perante as circunstâncias concretas, ou seja, neste caso, perante o concreto transporte e deposição de resíduos no aterro sanitário.

VI. Não é por a actividade desenvolvida pela Ré/Recorrida poder ser portadora de um risco que deva ser, por esse simples facto, qualificada em si mesma como uma actividade “perigosa”.

VII. É a Autora/Recorrente que procede ao transporte e deposição de entulho/resíduos. É a Autora/Recorrente, e não a Ré/Recorrida, que estava no exercício de uma actividade perigosa quando se dirigiu para o local do aterro para efectuar a descarga.

VIII. É a carga, transporte e descarga de entulho/resíduos que implica para outrem uma situação de perigo agravado de dano, face à normalidade das coisas.

IX. A existir uma presunção de culpa que recaísse sobre a Ré, a mesma foi devidamente ilidida tal como consta da Sentença recorrida.

Termos em que deve o recurso improceder e confirmar-se a douta Decisão Recorrida, com as legais consequências, como é de Justiça».

A ré R. contra-alegou formulando as seguintes conclusões.
«
I. As alegações da recorrente não cumprem os requisitos legais no que concerne à matéria de facto dada como provada pelo Exm.º Tribunal a quo, pelo que, relativamente a essa matéria deverá o presente recurso ser rejeitado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º n.º 1 do CPC.
II. A douta sentença não enferma de qualquer vício e não merece qualquer reparo.
III. O Exmo. Tribunal a quo fez a correcta interpretação da prova produzida e a sentença não apresenta qualquer contradição relativamente aos factos provados e não provados, conforme pretende fazer crer a recorrente.
IV. Pretende fazer crer no seu recurso o A. que sobre a R. impendia uma presunção de culpa nos termos do artigo 493.º n.º 2 do CC.
V. Tal enquadramento legal não é correcto, pois a actividade própria da gestão e exploração de um aterro sanitário não é uma actividade perigosa nos termos e para os feitos do artigo 493.º n.º 2 do CC.
VI. O presente recurso carece assim de total fundamento quer de facto, quer de direito. pelo que deve ser julgado totalmente improcedente o presente recurso e em consequência ser confirmada integralmente a sentença recorrida.

Nestes termos e nos mais e melhores de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, ser confirmada integralmente a sentença proferida.»
*
O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n. º1 do CPTA, não emitiu parecer.
*
Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
**
II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado em função do teor das conclusões do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso –cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e artigos 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do NCPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA – e, por força do regime do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem no âmbito dos recursos de apelação não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Nos presentes autos, as questões que a este tribunal cumpre ajuizar, cifram-se em saber se a sentença recorrida padece erro de julgamento:
(i) quanto á matéria de facto nela julgada provada na alínea AH), quando nela se dá como provado “…onde não havia qualquer perigo de atolamento da viatura”, por essa matéria não consubstanciar qualquer facto mas um mero juízo conclusivo;
(ii) no caso negativo, se essa facticidade assim julgada provada, padece do vício da contradição com a restante facticidade julgada provada na sentença recorrida quando considerada na sua globalidade;
(iii) quanto á decisão de mérito nela proferida, por julgar improcedente a ação desconsiderando a presunção do art.º 493.º, n.º1 e 2 do Cód. Civil;
**
III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. O tribunal de que proveio a decisão recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos:
«A) Em 20/12/2000, foi criado o sistema multimunicipal de triagem, recolha, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do (...), integrando como utilizadores originários os municípios de Amarante, Baião, (...), (...), Marco de Canaveses e Mondim de Basto;
B) Constituída a sociedade R-. , S.A., o Estado adjudicou a esta, em regime de concessão, o exclusivo da exploração e gestão do referido sistema multimunicipal do (...);
C) Em 19 de Janeiro de 2001, foi celebrado e outorgado o “Acordo Parasocial” entre os Municípios de Amarante, Baião, (...), (...), Marco de Canaveses e Mondim de Basto e a Empresa Geral do Fomento, S.A., todos aí conjuntamente designados accionistas, através do qual estes municípios e accionistas se obrigaram a prestar toda a colaboração necessária para atingir os objectivos de uma correcta e moderna política de gestão de resíduos sólidos no propósito da minimização consistente do impacto ambiental e da qualidade do serviço prestado às populações e manter adequada sustentabilidade económico – financeira da referida sociedade, indispensável ao bom desempenho do seu objecto social;
D) Para instalação do aterro sanitário, a R-. adquiriu terrenos na freguesia de (...), concelho de (...), onde o mesmo foi implantado;
E) Os municípios referidos em A) passaram a utilizar, para descarga e depósito dos seus resíduos sólidos urbanos o aterro sanitário mencionado em D):
F) Pagando, em contrapartida, uma verba mensal variável, calculada em conformidade com a quantidade (peso) dos resíduos aí descarregados;
G) Em 16 de Setembro de 2009, foi criado o sistema multimunicipal de triagem, recolha, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos do Norte Central, integrando como utilizadores originários os municípios de Alijó, Amarante, Armamar, Baião, Boticas, (...), (...), Chaves, Cinfães, Fafe, Guimarães, Lamego, Marco de Canavezes, Mesão Frio, Moimenta da Beira, Mondim de Basto, Montalegre, Murça, Penedono, Peso da Régua, Resende, Ribeira de Pena, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, Santo Tirso, São João da Pesqueira, Sernancelhe, Tabuaço, Tarouca, Trofa, Valpaços, Vila Nova de Famalicão, Vila Pouca de Aguiar, Vila Real e Vizela;
H) Foi constituída a sociedade R., S.A., sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, por fusão das sociedades R-., S.A., R., S.A. e R--., S.A.;
I) Foi atribuída à sociedade referida em H) a concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal do Norte Central, em regime de exclusividade;
J) No dia 26 de Novembro de 2007, pelas 18:30 horas, o veículo pesado de mercadorias, marca Mercedes Benz, matrícula XX-XX-SR, pertencente ao Município de (...), dirigiu-se às instalações da R. S.A. para efectuar descarga de entulho;
L) No dia e hora referidos em C), o condutor e motorista do Autor, J., acompanhado pelos cantoneiros de limpeza, funcionários do Autor, J-. e J--., ao chegarem ao aterro sanitário, entraram no recinto e pesaram o veículo na balança que está colocada junto à entrada do aterro;
M) O porteiro da R., S.A. (à data R-.), indicou ao condutor do Autor, o preciso local onde teria de fazer a descarga dos resíduos no aterro;
N) No dia 26 de Novembro de 2007, pelas 18h30m, já era noite;
O) O motorista do Autor não tinha qualquer liberdade de escolha do local do aterro onde proceder à descarga dos resíduos e só a podia fazer no local que lhe fosse expressamente indicado pelo funcionário da Ré. R., S.A.;
P) À data do acidente sofrido pelo veículo referido em L), resultaram danos para o mesmo;
Q) A R-. transferiu, até ao limite de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), para a Ré A., S.A., a responsabilidade civil extracontratual emergente da sua actividade comercial e/ou industrial, nos termos do contrato de seguro titulado pela apólice nº A03071014/0037, conforme condições gerais e particulares, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;
R) O condutor do Autor, dirigiu-se para o local do aterro indicado pelo funcionário da R., S.A. para efectuar a descarga:
S) No local para onde se dirigiu o funcionário do Autor não estava qualquer funcionário da R., S.A.;
T) No local indicado, o motorista do Autor, colocou o veículo em posição de iniciar a manobra de marcha-atrás e assim aproximar-se do local onde seria feita a descarga;
U) O motorista do Autor recuou o veículo para chegar ao ponto do terreno onde existia um socalco;
V) Percorridos alguns metros, o terreno por baixo do veículo começou a ceder junto ao eixo traseiro direito deste;
X) O condutor do Autor, de imediato, engatou a 1ª mudança para sair dali, mas não conseguiu, porque o veículo continuou a deslizar para trás;
Z) O condutor do Autor desligou o motor, accionou o travão de mão e saiu do veículo, tal como fizeram os outros funcionários daquele;
AA) Dois funcionários do Autor tentaram agarrar o veículo, tendo em vista evitar que o mesmo capotasse, enquanto outro funcionário do Autor correu a pedir ajuda, mas em vão;
AB) O veículo caiu e capotou para o lado direito, danificando a sua parte lateral direita e o contentor;
AC) O Autor procedeu à reparação dos danos sofridos pelo veículo;
AD) O Autor alugou um camião de recolha de resíduos sólidos urbanos para continuar a proceder à recolha dos resíduos sólidos urbanos na área do concelho de (...);
AE) O contentor do veículo do Autor continua por reparar;
AF) Na entrada do aterro, o vigilante de serviço, depois de auscultado o operador de serviço existente no local, e depois de devidamente pesada a viatura e verificada a carga, indicou ao motorista a área correcta para a descarga e deu-lhe as seguintes indicações: ”já existem duas descargas no local se houver espaço ao lado destas pode descarregar, senão deixar à frente das que lá se encontram”;
AG) O vigilante de serviço não acompanhou o camião até àquele que seria o local correcto de descarga porque o condutor do camião conhecia o local e informou o vigilante da desnecessidade dessa sua deslocação;
AH) O vigilante deu ao condutor do veículo indicações precisas sobre o local onde deveria efectuar a descarga e onde não havia qualquer perigo de atolamento da viatura;
AI) O condutor do veículo do Autor iniciou a manobra de marcha- atrás, seguindo as indicações que lhe eram dadas por um dos seus ajudantes e acabou por encaminhar o veículo para um talude daquele aterro sanitário, onde se afundou.
*

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
1) O local para onde se dirigiu o funcionário do Autor estava mal iluminado e não existia sinalização;
2) O solo do aterro não estava devidamente compactado;
3) O solo do aterro não possuía a resistência necessária para suportar o peso de um veículo pesado;
4) Após o acidente, a Ré, R., S.A., colocou holofotes no local deste e passou a limitar e a sinalizar os locais para as descargas;
5) Por causa da imobilização do veículo, na oficina da C. da Mercedes- Benz, em Braga, no período compreendido entre 1/01/2008 e 9/04/2008m durante o qual a 1ª Ré procedeu à peritagem e averiguações, o Autor sofreu um prejuízo de € 1. 512,50 correspondente a €12,50 por dia.»
*
III.B. DO DIREITO

O Autor moveu a presente ação contra os Réus pretendendo ser indemnizado, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por fatos ilícitos, ao abrigo do disposto nos artigos 483.º e 493.º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil, pelos prejuízos sofridos com o acidente ocorrido no dia 27.11.2007, pelas 18h30m, com o veículo pesado de mercadorias, pertencente ao Município de (...), o qual, quando procedia a uma descarga de resíduos sólidos urbanos no aterro sanitário, instalado em (...), (...), gerido e explorado pela Ré R., no local indicado para o efeito pelo funcionário da última, capotou, em consequência do terreno por baixo do veículo ter começado a ceder.

O tribunal de 1.ª instância julgou a ação improcedente, absolvendo as Rés do pedido formulado pelo autor, por ter considerado que a responsabilidade pela verificação do acidente é imputável aos funcionários do autor- condutor e dois ajudantes – podendo ler-se na sentença recorrida, a este respeito, o seguinte:
« No caso sub iudice, perante a matéria de facto assente, temos que no dia 26 de Novembro de 2007, pelas 18:30 horas, já era noite, o veículo pesado de mercadorias, marca Mercedes Benz, matrícula XX-XX-SR, pertencente ao Município de (...), dirigiu-se às instalações da R. S.A. para efectuar descarga de entulho, o condutor e motorista do Autor, J., acompanhado pelos cantoneiros de limpeza, funcionários do Autor, J-. e J--., ao chegarem ao aterro sanitário, entraram no recinto e pesaram o veículo na balança que está colocada junto à entrada do aterro, o porteiro da R., S.A. (à data R-.), indicou ao condutor do Autor, o preciso local onde teria de fazer a descarga dos resíduos no aterro, o motorista do Autor não tinha qualquer liberdade de escolha do local do aterro onde proceder à descarga dos resíduos e só a podia fazer no local que lhe fosse expressamente indicado pelo funcionário da Ré. R., S.A., o condutor do Autor, dirigiu-se para o local do aterro indicado pelo funcionário da R., S.A. para efectuar a descarga, no local indicado, o motorista do Autor, colocou o veículo em posição de iniciar a manobra de marcha-atrás e assim aproximar-se do local onde seria feita a descarga, o motorista do Autor recuou o veículo para chegar ao ponto do terreno onde existia um socalco, percorridos alguns metros, o terreno por baixo do veículo começou a ceder junto ao eixo traseiro direito deste, o condutor do Autor, de imediato, engatou a 1ª mudança para sair dali, mas não conseguiu, porque o veículo continuou a deslizar para trás, o condutor do Autor desligou o motor, accionou o travão de mão e saiu do veículo, tal como fizeram os outros funcionários daquele, dois funcionários do Autor tentaram agarrar o veículo, tendo em vista evitar que o mesmo capotasse, enquanto outro funcionário do Autor correu a pedir ajuda, mas em vão, o veículo caiu e capotou para o lado direito, danificando a sua parte lateral direita e o contentor, no local para onde se dirigiu o funcionário do Autor não estava qualquer funcionário da R., S.A., na entrada do aterro, o vigilante de serviço, depois de auscultado o operador de serviço existente no local, e depois de devidamente pesada a viatura e verificada a carga, indicou ao motorista a área correcta para a descarga e deu-lhe as seguintes indicações: ”já existem duas descargas no local se houver espaço ao lado destas pode descarregar, senão deixar à frente das que lá se encontram”, o vigilante de serviço não acompanhou o camião até àquele que seria o local correcto de descarga porque o condutor do camião conhecia o local e informou o vigilante da desnecessidade dessa sua deslocação, o vigilante deu ao condutor do veículo indicações precisas sobre o local onde deveria efectuar a descarga e onde não havia qualquer perigo de atolamento da viatura, o condutor do veículo do Autor iniciou a manobra de marcha- atrás, seguindo as indicações que lhe eram dadas por um dos seus ajudantes e acabou por encaminhar o veículo para um talude daquele aterro sanitário, onde se afundou.
O Autor fundamentou a sua pretensão numa deficiente vigilância e manutenção do aterro e deficiente iluminação e sinalização do mesmo, que gerou que o veículo, para descarga dos resíduos sólidos, tivesse caído num talude.
Ora, acontece que o funcionário da Ré observou todas as regras a que estava obrigado, para além de que não resultou provada qualquer omissão na iluminação e sinalização do aterro, pois que indicou com exactidão o local onde o funcionário do Autor deveria proceder à descarga e só não o acompanhou porque aquele lhe disse não ser necessário que o acompanhasse uma vez que conhecia bem o local, desta forma, a responsabilidade do local para onde se dirigiu o funcionário do Autor foi dele próprio que dispensou o acompanhamento do funcionário da Ré, acresce que este último lhe indicou com exactidão o local onde deveria efectuar a descarga e onde não havia qualquer perigo de atolamento e queda da viatura.
O acidente foi resultado do comportamento dos funcionários do Autor, que agiram com demasiada confiança no facto de conhecerem o aterro sanitário e de, apesar de já ser noite, não terem, os acompanhantes do condutor, saído do veículo para ajudarem este a realizar a manobra de descarga dos resíduos sólidos que transportavam, tendo prestado essa ajuda sentados dentro do veículo.
Assim, consideramos que não agiram estes de acordo com um bom pai de família, uma pessoa média, com um comportamento sensato e adequado à não produção de acidentes, tendo em atenção o especifico local onde se encontravam e as horas a que estavam a realizar a descarga.
Desta forma, consideramos que a Ré logrou provar que os danos invocados não resultaram de inobservância por sua parte do dever de manutenção, vigilância, sinalização e iluminação do aterro sanitário e provou que os danos resultaram da conduta temerária dos funcionários do Autor e, desta forma, a Ré afastou a presunção legal de culpa que sobre si impendia e demonstrou que os únicos culpados na produção do acidente foram o condutor do veículo pesado, propriedade do Autor, e os seus colegas, o primeiro porque não realizou a manobra necessária à descarga dos resíduos sólidos que transportava com a prudência adequada às condições do veículo, da carga, e das circunstâncias de facto em que iria fazer a descarga dos mesmos, os segundos porque não agiram com a prudência adequada nas indicações que estavam a dar ao condutor nem assumiram o comportamento que lhes era exigível perante as circunstâncias de facto concretas em que se encontravam (art. 493º nº 1CC).
Conforme é referido no sumário do Ac. do STA, de 12-07-2010, in www.dgsi.pt, “ I – É aplicável à responsabilidade contratual dos entes públicos fundada em acto ilícito, a presunção de culpa estabelecida no art. 493º, nº 1 do C.Civil.
II – A regra geral de caber ao lesado a prova da culpa do autor da lesão sofre inversão nas situações em que esteja estabelecida uma presunção de culpa, pois, em tal situação, ao lesado incumbe, apenas, o ónus da prova da base da presunção entendida como o facto conhecido de que se parte para firmar o facto desconhecido.
III – Em tais situações, ao autor da lesão incumbe a prova principal de que não teve culpa no acidente gerador de danos, mas, e também a de que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, adequadas a evitar o acidente.
(…)”.
Desta forma, não sendo a Ré responsável pela produção do acidente não pode ser responsabilizada pelos danos sofridos pelo Autor, atento o carácter cumulativo dos requisitos da responsabilidade civil acima expostos e, também, como supra já foi referido.».

O Apelante, nas conclusões 1.ª a 10.ª, começa por sustentar que impendia sobre a Ré a presunção de culpa do n.º2 do art.º 493.º do Cód. Civil, uma vez que a atividade própria da gestão e exploração de um aterro sanitário deve ser considerada perigosa em função da sua própria natureza para efeitos do art.º 493.º, n.º2, por ser um local destinado à decomposição final de resíduos sólidos gerados pela atividade humana, o que exige cuidados adicionais na conceção do projeto, assim como na sua manutenção. Trata-se de um espaço com produtos tóxicos, que tem de observar normas operacionais especificas a que está submetido, com regras e legislação própria, não só de conceção de construção, como de gestão, de recolha, transporta, armazenamento, tratamento, valorização e eliminação de resíduos, por forma a não constituir perigo ou a causar danos ou riscos à saúde pública e à segurança e a minimizar os impactos ambientais adversos, o que é um inequívoco sinal dos graves riscos que um aterro sanitário envolve para a segurança e saúde das pessoas e seus utilizadores.
E bem assim, que impendia também sobre a Ré a presunção de culpa do art.º 493.º, n.º1 do Cód. Civil no que respeita à violação dos deveres de fiscalização, manutenção e conservação do aterro sanitário, na medida em que, enquanto concessionária do serviço, substitui e representa o Estado no domínio da recolha e tratamento de resíduos sólidos, aplicando-se o regime da responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, que relativamente à culpa, a jurisprudência e a doutrina têm considerado existir uma presunção de culpa.
Conclui, em conformidade, que a Ré R. tem contra si uma presunção de culpa que teria de ser ilidida pela prova do contrário, pelo que incumbia à Ré demonstrar que empregou todos os deveres de diligência exigidos pelas circunstâncias no propósito de evitar danos, o que não fez, não tendo logrado ilidir a presunção de culpa.

Nas conclusões 12.ª a 18.ª, alega resultar provado que o condutor da viatura se dirigiu para o local exato indicado pelo funcionário da Ré e que foi nesse local exato que o solo por debaixo da viatura começou a ceder. E que não se tendo alegado nem provado que o funcionário do autor tivesse ido para local diferente do indicado pelo funcionário da Ré, nem que o talude não fizesse parte desse local, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto decorrente da manifesta contradição entre a resposta que consta da parte final do quesito 20 - alínea AH) dos factos assentes na sentença- com a globalidade da prova produzida” quando aí se dá como provado “ onde não havia qualquer perigo de atolamento da viatura”.
E, por isso, entende que essa resposta devia ser dada por não escrita, “por se tratar de um facto meramente conclusivo, um juízo de valor e que está em manifesta contradição.
A este respeito adiantamos, sem prejuízo de voltarmos a esta questão, que não se trata de matéria conclusiva ou de um juízo e valor.
Questão diferente será saber se ocorre a alegada contradição, o que veremos de seguida.

Mais alega não se vislumbrarem, sequer compreenderem, as razões que levaram o tribunal a responder negativamente aos quesitos:
(i) 3 (o local para onde se dirigiu o funcionário estava mal iluminado e não existia sinalização);
(ii) 11 ( o solo do aterro não estava devidamente compactado) e,
(iii) 12 ( o solo do aterro não possuía a resistência necessária para suportar o pesos de um veículo pesado).

Afirma que a decisão recorrida não se encontra devidamente fundamentada e que as respostas estão em contradição com a restante matéria dada como provada, desde logo porque, se o solo cedeu, é porque, ou não estava devidamente compactado ou não possuía a resistência necessária para suportar o peso do camião, para além de a própria Ré, no artigo 21.º da sua contestação admitir como más as condições de identificação do local, tendo junto aos autos um relatório de peritagem ao acidente feito pelos seus serviços no qual referiu expressamente que “o local da descarga possuía deficientes condições de iluminação” e o tribunal a quo ter dado como não provado que houvesse deficientes condições de iluminação do local.
Vejamos.


Compulsada a decisão recorrida afigura-se-nos que existem não só contradições em relação á facticidade que consta de algumas das suas alíneas, como obscuridade e total falta de fundamentação quanto às razões que levaram o Tribunal a quo a dar como provada e não provada toda a matéria de facto que
julgou.
-Do Erro de Julgamento Sobre a Matéria de Facto Decorrente de Contradição Entre os Factos Julgados Provados.
Para efeitos do disposto no art.º 662 nº2, al. c) do CPC só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis entre a mesma questão de facto.
Consistindo o vício da contradição em erro de julgamento, ele tem, no entanto, que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a elementos externos, logo não pode confundir-se com a alteração da matéria de facto com base no erro notório na apreciação da prova.
Nas alíneas R), T) e AH) dos factos assentes o tribunal a quo deu como provada a seguinte facticidade:
«R) O condutor do Autor, dirigiu-se para o local do aterro indicado pelo funcionário da R., S.A. para efectuar a descarga:
T) No local indicado, o motorista do Autor, colocou o veículo em posição de iniciar a manobra de marcha-atrás e assim aproximar-se do local onde seria feita a descarga;
AH) O vigilante deu ao condutor do veículo indicações precisas sobre o local onde deveria efectuar a descarga e onde não havia qualquer perigo de atolamento da viatura;»

Considerando a matéria das alíneas R) e T), ou o local aí referido em que se veio a dar o acidente traduzido na circunstância do veículo ter entrado em deslizamento e subsequente capotamento, é o local indicado pelo funcionário da Ré R. para o condutor do veículo do Autor fazer a descarga, o que, refira-se, embora a facticidade julgada provada aponte nesse sentido mas que não é líquido que assim seja e então forçoso é concluir que a enunciada facticidade é obscura. Assim, importa que, concreta e especificamente, nela se explane se o local onde a viatura entrou em deslizamento e onde capotou é efetivamente o local indicado pelo funcionário da R..
A ser esse efetivamente o local, assiste-se a uma patente contradição entre a facticidade das alíneas R) e T) com a matéria da alínea AH).
É que nesta última alínea – AH) - dá-se como provado que no local indicado pelo funcionário da R. não havia perigo de atolamento da viatura.
Sendo o local mencionado nesta alínea AH), o mesmo local a que se alude nas alíneas R) e T), que é também o local indicado pelo funcionário da R., a verdade é que nesse concreto local a viatura entrou em deslizamento e acabou por abalroar conforme provado nas alíneas V), X) e AA) da facticidade provada.

Assim, é patente que essa matéria está em contradição com a matéria da alínea AH), uma vez que nesta última se dá como facto provado que no local indicado pelo vigilante, onde devia ser feita a descarga, não havia perigo de atolamento da viatura.
Ou então, afinal, o local para onde se dirigiu o veículo mencionado nas identificadas alíneas R) e T) e onde este acabou por deslizar e capotar, embora próximo do local indicado pelo porteiro da R., não era o concreto local que por este foi indicado, embora próximo, o que não resulta esclarecido em função do quadro factuológico apurado.
O que é certo é que a ser o mesmo local existe uma patente contradição lógica entre a matéria provada nas alíneas R) e T) e a aquela que foi dada como provada na alínea AH), considerando que nesse local a terra cedeu e o veículo capotou.

Precise-se, que tal como já Alberto dos Reis referia, as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente. Cfr. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. IV, pág. 553; Abrantes Geraldes Recursos no Novo C.P.C, 2017, 4.ª edição, Almedina, pág. 293.

Dito por outras palavras a contradição implica a existência de colisão entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto constante de outra das respostas, ou então, com a factualidade provada, no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja contrária da outra. Cfr. Ac. RE, de 06.10.1988, BMJ, 380, pág.559.


A contradição implica que o Tribunal da Relação mesmo oficiosamente, isto é, independentemente desse vício ser suscitado pelas partes tenha que anular a decisão proferida na 1.ª instância, quanto ao julgamento de facto em que se verifique a aludida contradição, ou seja, no caso, as alíneas R), T) e AH), exceto se o processo contiver todos os elementos probatórios que lhe permitam de forma conscienciosa fazer o julgamento de facto em relação a essa concreta matéria em que se verifica essa contradição.
De contrário terá, como dito, que anular esse julgamento de facto quanto à matéria onde se verifica a contradição e remeter o processo à 1.ª instância para que supra a contradição, após produção de prova suplementar que lho permita fazer.

Neste sentido, Abrantes Geraldes, in ob. cit. pág. 294 a 295, postula que «a anulação de julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legitima quando de outro modo não for possível superar a situação por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vetores da celeridade e da eficácia».

Acontece que aquelas respostas vertidas nas alíneas R), T) e AH), para além de contraditórias mostram-se obscuras, uma vez que deixam em aberto, conforme acima se referiu, que o local onde o veiculo começou a deslizar e caiu não era afinal o local indicado pelo porteiro da R. mas um local próximo daquele.

Refira-se que são obscuras as respostas cujo significado não possa ser apreendido com clareza e segurança.Cfr. Ac. STJ, do 04.02.97, processo 458/06, da 1.ª Secção.

É certo que essa obscuridade nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º2, al. c) do CPC. , tal como a contradição, é vício do conhecimento oficioso da 2.ª instância a ser por ela suprido por forma a eliminar a contradição e a obscuridade no uso dos seus poderes de cassação quando o processo contenha todos os elementos de prova, que lhe permita fazer o julgamento de facto em relação à matéria julgada provada em que se verifique a contradição e a obscuridade.
De contrário terá de anular a sentença e as respostas provadas em relação às alíneas em que se verifique a enunciada contradição e obscuridade.
No caso, como referido, a facticidade julgada provada sob as alíneas R), T) e AH) mostra-se, além de contraditória, obscura.

Acresce que, compulsada a fundamentação às respostas dadas a essa matéria e não só, verifica-se que se assiste a uma total falta de fundamentação.

Com efeito, as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à eficácia ou à validade das ditas decisões): por ter-se errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e, como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC. Cfr Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo n.º 00858/14;


Um dos vícios de nulidade da sentença taxativamente elencados no art. 615º do CPC, é a da falta da fundamentação de facto e de direito que justificam a decisão, isto é, quando aquele não se encontre fundamentada (al. b), do n.º 1 do art. 615º do CPC).

A propósito do dever de fundamentação das decisões judiciais, dir-se-á que o ónus de fundamentar as decisões judiciais é uma decorrência do art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Densificando esse comando constitucional os arts. 154º, n.º 1 e 615º, n.º 1, al. b) do CPC impõem ao juiz o dever de especificar os fundamentos de facto e de direito em que alicerça a decisão.

De acordo com estas disposições, a fundamentação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade (n.º 2 do art. 154º do CPC).

O dever de fundamentação tem como fundamento teleológico a circunstância de destinando-se a decisão judicial a resolver um conflito de interesses (art. 3º, n.º 1 do CPC), esse conflito só logrará efetiva resolução e a restauração da paz social se o juiz “passar de convencido a convincente”, o que apenas se conseguirá se aquele, através da fundamentação, convencer “os terceiros da correção da sua decisão”.

O dever de fundamentação é ainda fator de legitimação do poder soberano constitucionalmente atribuído aos tribunais para em nome do povo, administrarem a justiça, assegurarem a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos pelos cidadãos, reprimirem a violação da legalidade democrática e dirimirem os conflitos públicos e privados (art. 202º, n.º 1 da CRP), posto que não possuindo os tribunais uma legitimidade direta, mas antes indireta, que lhes advém da Constituição, essa legitimidade apenas será assegurada se, através da fundamentação, os tribunais lograrem demonstrar e convencer que as decisões que proferem não são meros atos arbitrários, mas antes a concretização da vontade abstrata da lei aplicada ao caso concreto, contendo-se dentro dos limites constitucionalmente fixados para a atuação do poder judicial e que legitima o poder soberano que lhe é concedido.

A fundamentação é igualmente requisito de salvaguarda dos direitos de ação e de defesa das partes, posto que é através dela que se assegura aos litigantes o conhecimento da razão ou razões do decaimento das suas pretensões, designadamente, a possibilidade de ajuizarem da viabilidade de utilizarem os meios legalmente previstos para sindicar e impugnar essas decisões.

Finalmente, a fundamentação é requisito para que os tribunais superiores possam controlar as decisões dos tribunais inferiores. É que à semelhança do que acontece com as partes, as instâncias superiores carecem de conhecer os concretos fundamentos de facto e de direito em que o tribunal que proferiu a decisão que está a ser sindicada, se ancorou de modo a poderem cabalmente reapreciar esses fundamentos e ajuizar do bom ou mau fundamento da decisão recorrida.

Em suma, a motivação das decisões judiciais desempenha uma dupla função: por um lado, impõe ao julgador um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, por forma a persuadir os destinatários e a comunidade jurídica em geral; por outro, pela via do recurso, permite o reexame do processo lógico ou racional que lhe está subjacente.

É por isso, que em termos de matéria de facto, se impõe ao juiz a obrigação de, na sentença, discriminar os factos que considera provados e não provados, devendo, de forma clara e especificada, analisar criticamente as provas e expor os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção em relação a cada facto (art. 607º, n.ºs 3, 4 e 5 do CPC.), explicitando desse modo, não só a respetiva decisão como, também, quais os motivos que a determinaram.

Por sua vez, em sede de fundamentação da matéria de direito, a lei faz impender sobre o juiz iguais obrigações, impondo-lhe o ónus de, na decisão, identificar as normas e os institutos jurídicos de que se socorreu e a interpretação que deles fez em sede de subsunção jurídica ao caso concreto (n.º 3 daquele art. 607º).

«Por que assim é, compreende-se que nos termos consignados no n.º4 do art. 607 º, relativamente aos factos declarados como provados em resultado da prova produzida em juízo, bem assim relativamente aos factos declarados não provados, o juiz deverá explicitar o raciocínio decisório, “analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”: é a fundamentação da convicção do julgamento de facto.
A fundamentação da convicção subjacente à decisão de facto constitui, sem dúvida, uma das mais delicadas e significativas vertentes da intervenção do juiz, porquanto, mais do que o mero ato de declarar provados ou não provados certos factos, é indispensável que o julgador explicite as razões pelas quais decidiu assim e não de outro modo. Tais razões exigem sempre a análise critica das provas e a especificação dos demais fundamentos decisivos para a convicção do juiz. É assim que o juiz explicitará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos.
(…) Enfim, o juiz deverá objetivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a “ identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do julgador” e ainda “ a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto». Cfr. Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, pág.325.

Não obstante a importância angular da fundamentação, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, só a falta, em absoluto, de fundamentação determina a nulidade da decisão a que se reporta a al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC, designadamente, a falta de discriminação dos factos provados, ou a genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, ou conclusivos juízos de direito, e não apenas a mera deficiência da mesma.

Deste modo, importa distinguir entre erros de atividade ou de construção da sentença, geradores de nulidade a que se reporta aquele art. 615º, n.º 1, dos erros de julgamento, atacáveis em vias de recurso e não determinativos daquela invalidade.

Como referido, o vício determinativo da nulidade da decisão proferida com fundamento em ausência de fundamentação apenas ocorrerá quando se esteja perante uma absoluta e total ausência de fundamentação.
Conforme é doutrina e jurisprudência pacíficas, esta causa de nulidade só ocorre quando perante absoluta falta de fundamentação.
Neste sentido, atente-se no acórdão do STA, de 09-01-2013, proc. nº 01076/12, no qual se sublinha que a lei fulmina com a nulidade a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Cfr. Acs. do STA de 21/3/00 (rec. 41.027), de 25/10/00 (rec. 27.760), de 14/11/00 (46.046), de 27/6/01 (rec. 37.410), de 2/5/02 (rec. 44.888) e de 27/5/98 (rec. 37.068, publicado nos CJA n.º 20, pg. 18).); do TCAS, de 19-01-2012, proc. nº 06234/10 e do TCAN, de 14.06-2013, proc. nº 00100/13.7BEAVR
Com efeito, essa cominação só pode incidir sobre uma decisão a que faltem os fundamentos que a justificam já que, como ensinou o Prof. J. A. dos Reis «Uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas; é uma peça sem base. …. As partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admita recurso, para poder impugnar fundamento ou fundamentos perante o Tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso.». Cfr. Cód. Proc.Civil Anotado, vol. V, pg. 139;




A deficiente fundamentação apenas consubstanciará erro de julgamento de facto e/ou de direito, em que apenas se assiste a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto.

A deficiente análise crítica da prova ou a deficiente enunciação das normas aplicáveis ou de interpretação daquelas ou saber-se se as mesmas são ou não aplicáveis ao caso concreto ou se a interpretação delas feita está ou não correta, não constitui omissão de fundamentação, determinativa de nulidade da sentença, mas mero erro de julgamento, atacável e sindicável em via de recurso.

Acresce que nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício carece, em princípio, de ser solucionado mediante recurso às regras próprias enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º do CPC, não determinando, em regra, a nulidade da sentença.

Compulsada a sentença proferida nos autos, verifica-se que a mesma não especificou os fundamentos de facto.

No caso, é insofismável que a Meritíssima Juiz a quo não cuidou de explicitar as concretas razões pelas quais se decidiu pela prova e não prova dos factos que elencou, não tendo realizado nenhuma análise critica das provas, desconhecendo-se absolutamente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção.

Com efeito, dizer-se « que os factos considerados provados resultaram do teor das declarações produzidas pelas testemunhas inquiridas as quais se revelaram espontâneas e idóneas e com conhecimento direto de alguns dos factos sobre os quais foram inquiridas e foram julgados provados pelo tribunal » e que « a matéria de facto não provada resulta de não ter resultado da inquirição das testemunhas indicadas certeza suficiente sobre os factos a que foram inquiridas ou porque não foram inquiridas àquela matéria de facto» sem que se tivesse indicado quais os concretos depoimentos testemunhais em que assentou a prova e a não prova dessa facticidade, ou seja, quais as razões porque o tribunal deu por provada ou não provada a facticidade concreta em relação a esses depoimentos, em face de depoimentos contraditórios, porque razão atribuiu credibilidade a determinada testemunha ou testemunhas em detrimento de outra ou outras, enfim , sem que se indique por referência a cada um dos pontos de facto que se julgaram provados e não provados os concretos meios de prova em que assentou esse julgamento de facto e sem especificar esses concretos meios de prova, isto é, o porquê de se ter julgado essa concreta matéria como provada ou não provada, não permite às partes, sequer à instância superior fazer qualquer sindicância sobre esse julgamento de facto, como manifestamente, é o caso.

Estas referências do Tribunal a quo em sede de alegada “motivação” da decisão de facto, jamais poderão ser havidas como conformes à lei, uma vez que são meras referências vagas e genéricas às testemunhas inquiridas e aos documentos juntos aos autos, sem que se especifique, sequer quem sejam essas testemunhas, e as razões que levaram o tribunal a quo a dar como provada ou não provada a concreta matéria por referência às mesmas e das razões que levaram o julgador a fazer esse concreto julgamento da matéria de facto.

Como dissemos, o vício da falta de fundamentação ou da indevida fundamentação do julgamento de facto, em regra, não determina a nulidade da sentença mas apenas implica a devolução dos autos à 1.ª instância para que fundamente devidamente esse julgamento de facto tendo em conta os depoimentos gravados ou registados- art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPC.


Também o vício da obscuridade e da contradição da matéria de facto, em princípio, determina que o tribunal ad quem exerça os seus poderes de substituição e faça o julgamento de facto em relação á facticidade eivada desses vícios por forma a superá-los.

Acontece que, no caso, perante uma situação em que a fundamentação do julgamento de facto é de tal forma deficiente que não permite às partes, sequer ao a esta tribunal de recurso apurar quais os concretos fundamentos em que o tribunal a quo alicerçou a sua convicção em sede de julgamento de facto impedindo a este tribunal superior qualquer possibilidade de fazer a sua sindicância quanto a esses fundamentos, o mesmo se afirmando em relação às partes e em que acrescidamente se verifica que a facticidade julgada provada das alíneas R), T) e AH) padecem dos vícios da obscuridade e da contradição conforme supra já demonstrado, impõe-se ao abrigo do disposto no artigo 662.º
n.º 2, alíneas c) e d) do CPC anular a sentença recorrida e determinar que a 1.ª instância fundamente devidamente o julgamento de facto quanto às respostas julgadas como provadas sob as alíneas A a Q, S, U a AG e AI, dos factos provados e dos pontos 1 a 5 dos factos não provados e bem assim, anular o julgamento quanto às respostas dadas à facticidade das alíneas R), T) e AH), devendo quanto a essa matéria recair prova suplementar e uma vez produzida essa prova, ser proferida nova sentença por forma a eliminar-se as contradições e obscuridades acima enunciadas de que aquelas padecem, devendo nessa nova sentença ser devidamente fundamentadas não só as respostas quanto a esta facticidade mas também quanto à facticidade identificada na alínea antecedente.
Note-se que nos termos do disposto na alínea b), n.º3 do art.º 662.º do CPC esse novo julgamento incidirá apenas quanto à facticidade das alíneas R), T) e AH), sem prejuízo da apreciação dos restantes pontos da matéria de facto julgada provada e não provada, com vista a evitar contradições.

Em face do que se acaba de determinar, naturalmente que se encontra prejudicado a apreciação do erro de julgamento quanto á decisão de mérito assacados pelo Apelante à sentença recorrida.
**
IV-DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Apelante e, em consequência anular a sentença recorrida determinado que a 1.ª instância:
a) Produza prova suplementar quanto à facticidade das alíneas R), T) e AH);
b) fundamente devidamente o julgamento de facto quanto às respostas dos factos julgados provados sob as alíneas A) a Q), S), U) a AG) e AI) e dos pontos 1 a 5 dos factos não provados;
c) profira nova sentença por forma a eliminar-se as contradições e obscuridades acima enunciadas, devendo nessa nova sentença serem devidamente fundamentadas não só as respostas quanto á facticidade das alíneas R), T) e AH) mas também quanto à facticidade identificada nas demais alíneas.
*
Custas da apelação pelas Apeladas, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
*
Registe e notifique.
*
Porto, 17 de abril de 2020.

Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro