Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02475/09.3BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:07/04/2019
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:IMPOSTO AUTOMÓVEL, PRESSUPOSTOS DA ISENÇÃO, DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:
O Recorrente tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida, sendo que, não cumprindo os ónus fixados pelo artigo 685.º-B do Código de Processo Civil, o recurso quanto à matéria de facto terá de ser rejeitado. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:ADS
Votação:Unanimidade
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório
O Excelentíssimo Representante da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 04/04/2017, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida na sequência do indeferimento do recurso hierárquico interposto da decisão que revogou a isenção de Imposto Automóvel (IA) concedida por ocasião da transferência de residência de ADS, contribuinte n.º 22xxx96, da Bélgica para Portugal.
O Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
I. O objeto do presente recurso é a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 04/04/2017, proferida nos autos em epígrafe, ao julgar procedente a impugnação e, consequentemente, ao mandar anular o despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico, interposto da decisão de revogação do IA (Imposto Automóvel);
II. Do PROBATÓRIO da douta sentença recorrida constam FACTOS dados como PROVADOS sem que os mesmos estejam alicerçados em prova bastante, documental ou outra, constante dos mesmos autos ou, pelo menos, sem que na douta decisão recorrida seja feita referência expressa a essa prova; Assim,
III. Conclui a douta sentença recorrida que o impugnante teve residência na Bélgica e foi proprietário do veículo automóvel, em apreço, nos seis meses anteriores à transferência de residência para Portugal;
IV. Pelo que o atrás citado despacho de indeferimento é ilegal;
V. Alicerça a douta sentença recorrida esta sua convicção no facto dos contratos de trabalho, celebrados pelo impugnante com a firma CRRD, SA, não terem a natureza de «missão de duração determinada», isto é, não serem contratos a termo certo;
VI. Os serviços aduaneiros, fizeram novas diligências, já depois de concedido o benefício fiscal ao veículo automóvel (isenção do IA), com vista a confirmar a efetiva transferência da Bélgica para Portugal, na data declarada pelo impugnante, em 14/12/2006, e para definir com precisão a natureza da atividade laboral desenvolvida pelo impugnante na Bélgica com vista a apurar sobre a sua qualidade de residente ou não na Bélgica para efeito do disposto no n.° 2 do art.° 14.° do DL 264/93. 30 de Julho;
VII. E concluíram que:
- O impugnante permaneceu na Bélgica no âmbito de uma missão de duração pré-determinada;
- O impugnante era trabalhador duma empresa portuguesa com sede em Portugal e hierarquicamente dependente das suas ordens;
- Era remunerado por uma empresa portuguesa com sede em Portugal;
- Permaneceu na Bélgica em virtude da empresa portuguesa de construção ter ganho uma empreitada naquele país;
- Era um trabalhador duma empresa portuguesa deslocada temporariamente na Bélgica para uma missão de curta duração;
- Deste modo, não se encontravam reunidos os pressupostos da concessão do benefício fiscal (isenção do IA).
VIII. Isto é, o indeterminismo temporal e espacial que é característico da permanência dos emigrantes nos países de acolhimento, que tanto podem ficar muito como pouco tempo, tudo dependendo das condições de trabalho e de vida que consigam encontrar nesses países, não se verifica, dado que a ida do impugnante para a Bélgica ocorreu num determinado contexto, com um propósito determinado, muito bem definido. E a celebração de um novo contrato, entenda-se prorrogação, ocorreu no mesmo contexto (do parecer em que se sustentou o despacho do Ex.mo Senhor Diretor-geral);
IX. A douta sentença recorrida ao concluir que o impugnante teve residência na Bélgica com carácter efetivo, dado o seu vínculo profissional que o ligava à empresa portuguesa, fez errada apreciação da prova documental e testemunhal junta aos autos, violando o art.° 653.° e 668.° alínea b) do CPC;
X. A douta sentença recorrida ao concluir que o impugnante teve residência na Bélgica com carácter efetivo, dado o seu vínculo profissional que o ligava à empresa portuguesa, contraria o disposto no n.° 2 do art.° 14.° do DL 264/93, de 30 de Julho,
XI. Nestes termos, deverá o PROBATÓRIO ser reformulado em conformidade com o atrás exposto;
XII. Normas violadas: n.° 2 do art.° 14.° do DL 264/93, de 30 de Julho e art.° 653.° e 668.° alínea b) do CPC;
NESTES TERMOS, a douta sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a impugnação apresentada pelo ora recorrido.
Assim, se procederá de acordo com a LEI e se fará JUSTIÇA.”
*
O Recorrido contra-alegou, tendo concluído da seguinte forma:
“Terá sido corretamente decidido o conteúdo da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida.
E bem andou o Tribunal "a quo" ao "...concluir que estavam preenchidas as condições legais para a concessão da impetrada isenção de I.A., uma vez que o Impugnante teve residência normal por mais de 185 dias na Bélgica e foi proprietário do veículo em apreço nos 6 meses anteriores à transferência da sua residência para Portugal (sendo que o preenchimento deste último requisito nem sequer foi posto em causa pela Alfândega do Freixieiro)
RESUMINDO:
A Recorrente limita-se a referir factos relacionados com a ligação do Recorrido à CRRD e situações ocorridas no âmbito da Alfândega do Freixieiro que nada tem a ver com o que consta dos presentes autos.
Não faz a análise crítica das provas consideradas lesivas nem enuncia os meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa. Em vez de manifestar discordância em relação à decisão proferida deveria demonstrar a existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova, o que não fez.
A convicção do Julgador alicerçou-se - e bem - no conjunto da prova produzida no decurso da audiência de julgamento, nomeadamente a análise dos documentos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas.
E o facto determinante ( alínea I ), foi dado como provado com base em tais meios de prova, sendo de realçar a credibilidade dada às testemunhas.
Assim sendo, não pode ser posta em causa a decisão proferida, já que obedeceu a todos os requisitos legais.
Termos em que deste ser confirmada a sentença recorrida e desatendida a pretensão da Recorrente.
Assim se fará a melhor Justiça.”
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O Ministério Público junto deste Tribunal requereu que os autos baixassem à primeira instância a fim de aí ser apreciada a nulidade da decisão recorrida.
Contudo, apesar da referência ao artigo 668.º, alínea b) do CPC, nas conclusões IX e XII das alegações deste recurso, não foi invocada qualquer matéria susceptível de gerar o entendimento de que foi arguida a nulidade da sentença, sendo nossa convicção e interpretação das alegações que o Recorrente somente imputa erro de julgamento à decisão da matéria de facto.
Por este motivo, não se acolheu o requerimento formulado pela digníssima Magistrada do Ministério Público.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e, consequentemente, de direito.
III. Fundamentação
1. Matéria de facto
Da sentença prolatada em primeira instância, consta decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“1. FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
A) Em 14/01/2005, foi outorgado entre a sociedade “CRRD, S.A.” e o aqui Impugnante um “contrato de trabalho a termo incerto”, do qual se extrai que o Impugnante foi admitido para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de diretor de obra, na obra que a sociedade detinha em Antuérpia (Bélgica), tendo o contrato início em 15/02/2005 e termo com a conclusão da referida obra ou, caso esta não fosse concluída, com a cessação do contrato de empreitada – cfr. fls. 43 e 44 do processo administrativo (PA) apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
B) Em 02/01/2006, foi outorgado entre a sociedade “CRRD, S.A.” e o aqui Impugnante um “contrato de trabalho a termo incerto”, do qual se extrai que o Impugnante foi admitido para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de diretor de obra, nas obras que a sociedade ia levar a efeito na Bélgica, iniciando-se o contrato em 02/01/2006 e caducando quando a sociedade comunicasse ao Impugnante o termo do mesmo – cfr. fls. 45 e 46 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
C) Em 18/01/2007, o Cônsul de Portugal em Antuérpia certificou, para os efeitos do disposto no art.º 12º do D.L. n.º 264/93, de 30/7, que o ora Impugnante residiu na Bélgica de 08/11/2005 até 14/12/2006 e que a sua permanência nesse país não resultou de circunstâncias temporárias – cfr. fls. 20 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
D) Em 10/04/2007, o ora Impugnante apresentou na Alfândega do Freixieiro um pedido de isenção de IA para o veículo automóvel de matrícula belga V** 2**, por transferência de residência da Bélgica para Portugal, pedido esse que foi deferido por despacho datado de 10/07/2007 – cfr. fls. 15 e 16 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
E) Em 03/04/2008, um funcionário da Alfândega do Freixieiro prestou uma informação, da qual se extrai, além do mais, o seguinte:
“(…)
Verifica-se, assim, que a permanência do interessado na Bélgica resultou do seu destacamento pela entidade patronal portuguesa “CRRD, SA”, com sede em Braga, para uma missão de duração determinada nas obras que a Empresa levou a efeito naquele Estado membro.
Nesta conformidade, afigura-se não se mostrarem cumpridos os pressupostos que estiveram na origem do despacho de deferimento de 10/07/07, nomeadamente, o disposto no nº 2 do artº 14º do Dec. Lei n.º 264/93 (permanência noutro EM para efeitos de estudos, estágios ou missões de duração determinada).
(…)” – cfr. fls. 58 e 59 do PA apenso aos autos.
F) Em 08/04/2008, o Diretor da Alfândega do Freixieiro proferiu o seguinte despacho:
“Face à informação supra, revogo o despacho de deferimento de 10/07/07 e indefiro o pedido de benefício fiscal.
Proceda-se à cobrança “a posteriori” das imposições devidas.
(…)” – cfr. fls. 59 do PA apenso aos autos.
G) Em 21/05/2008, o aqui Impugnante interpôs recurso hierárquico da decisão mencionada na alínea antecedente, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 9 a 11 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
H) O recurso hierárquico foi indeferido por despacho do Diretor Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo datado de 05/06/2009, por se ter entendido que o Recorrente não preenchia os requisitos legais para beneficiar da isenção de IA que lhe havia sido concedida, porquanto a sua permanência na Bélgica resultou de circunstâncias meramente temporárias, relacionadas com o acompanhamento e direção de obras que a sua entidade patronal efetuou naquele país – cfr. fls. 24 a 28 do processo físico, cujo teor se dá por reproduzido.
Mais se provou que,
I) O Impugnante assumiu, no decurso do ano de 2006, funções de diretor de zona, ficando responsável pela supervisão das obras da “CRRD” na Bélgica – facto dado como provado através da articulação da prova testemunhal com a prova documental inserta a fls. 51 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem, com relevância para a decisão.
Motivação:
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados mencionados nas alíneas A) a H) supra resultou da análise dos documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados.
No que concerne ao facto mencionado na alínea I) supra, o mesmo foi dado como provado mediante a articulação da prova documental (de fls. 51 do PA apenso aos autos) com o depoimento das testemunhas MATR (encarregado de construção civil que trabalhou com o Impugnante na Bélgica) e AMMS (namorada do Impugnante). Estas testemunhas demonstraram conhecimento dos factos e depuseram de forma clara, isenta e credível (apesar dos laços afetivos que unem a segunda testemunha ao Autor), tendo ambas confirmado que durante o ano de 2006 (no final da construção do túnel em Antuérpia) o Impugnante ficou como “responsável pelo país”, ou seja, passou a ser o responsável pelas obras da “CRRD” na Bélgica, deixando de ser apenas um engenheiro/diretor de obra.”
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2. O Direito
O presente recurso tem como objecto, essencialmente, a decisão da matéria de facto. Resulta tal conclusão do teor das alegações de recurso que, quanto à matéria de direito, se apresenta totalmente consequente da alteração da matéria de facto visada pelo mesmo: “a douta sentença recorrida ao concluir que o impugnante teve residência na Bélgica com carácter efetivo, dado o seu vínculo profissional que o ligava à empresa portuguesa, fez errada apreciação da prova documental e testemunhal junta aos autos, (…) contraria o disposto no n.º 2 do art.º 14.º do DL 264/93, de 30 de Julho,
Nestes termos, deverá o PROBATÓRIO ser reformulado em conformidade com o atrás exposto; (…) ” – cfr. alegações e conclusões do recurso.
Defende a Recorrente que a matéria de facto deveria ser devidamente reapreciada, dado que a questão de facto, essencial, que importa apreciar e decidir nos presentes autos é a questão de saber se o impugnante pode ou não ser considerado como residente na Bélgica, para efeitos do disposto n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 264/93, de 30 de Julho, no período que antecedeu a data declarada pelo mesmo, em 14/12/2006, alegadamente a data da sua transferência efectiva e definitiva da Bélgica para Portugal.
A Recorrente não contesta o facto de o impugnante, aqui Recorrido, ter exercido na Bélgica uma actividade profissional remunerada, mas afirma que os seus serviços técnicos competentes não ficaram convencidos que a natureza do seu contrato de trabalho na Bélgica era de carácter efectivo e a termo incerto.
Ora, estando em causa, alegadamente, um erro na apreciação da prova, importa começar por efectuar algumas considerações:
O artigo 685.°-B do Código de Processo Civil de 1961, a que corresponde o artigo 640.° do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, estabelece os ónus que o recorrente que impugne a matéria de facto deve cumprir sob pena de rejeição do recurso, assim estabelecendo:
«1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento ou erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do n.º 2 do artigo 522.°-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.»
O legislador rejeitou a possibilidade de repetição de julgamentos bem como de recursos genéricos sobre a matéria de facto impondo ao recorrente não só que indique os concretos pontos da matéria de facto em divergência bem como os concretos meios probatórios que constam do processo que permitam o julgamento pretendido.
Efectivamente, quanto ao julgamento da matéria de facto, importa ter presente que o poder de cognição deste Tribunal sobre a matéria de facto ou controlo sobre a decisão de facto prolatada pelo tribunal “a quo” não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto – cfr. o transcrito artigo 685.º-B do CPC, que regula esta matéria depois da alteração introduzida pelo D.L. n.º 303/07, de 24-08, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no artigo 685º-B, nºs 1 e 2 do CPC, e, por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade (vide sobre esta problemática A.S. Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, págs. 250 e segs.).
Daí que sobre o recorrente impende um especial ónus de alegação quando pretenda efectuar impugnação com aquele âmbito mais vasto, impondo-se-lhe, por conseguinte, dar plena satisfação às regras previstas no artigo 685.º-B do CPC.
É que ao TCA assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal “a quo” desde que ocorram os pressupostos vertidos no artigo 712.º, n.º 1 do CPC, incumbindo-lhe, nessa medida, reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada objecto de controvérsia, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.
Ora, como já ficou claro, a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, o que significa que o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida, sendo que a Recorrente, “in casu”, não cumpre com o referido ónus, pois, além de não indicar um único ponto de facto que considera incorrectamente julgado, também não cumpre o segundo ónus, uma vez que a indicação dos meios probatórios é feita genericamente, dizendo somente que o tribunal recorrido fez errada apreciação da prova documental e testemunhal junta aos autos, sem identificar qualquer documento ou depoimento de uma testemunha, sem indicar com exactidão as passagens da gravação em que, eventualmente, se funda ou sequer ter procedido à respectiva transcrição na parte pertinente, de modo que, não tendo a Recorrente cumprido o determinado na norma citada, o recurso nesta parte é rejeitado, o que obsta a que este Tribunal proceda ao reexame de tal matéria de facto.
A Recorrente limita-se a remeter para as diligências que os serviços aduaneiros fizeram, numa fiscalização a posteriori, ou seja, já depois de concedido o benefício fiscal ao veículo automóvel (isenção do IA), com vista a confirmar a efectiva transferência da Bélgica para Portugal, na data declarada pelo impugnante, em 14/12/2006, e para definir com precisão a natureza da actividade laboral desenvolvida pelo impugnante na Bélgica, com vista a apurar sobre a sua qualidade de residente ou não na Bélgica para efeito do disposto no n.º 2 do artigo 14.º do DL n.º 264/93, 30 de Julho; e para as conclusões a que chegaram na sequência dessas diligências, sem apontar, concretamente, factos pertinentes subjacentes às seguintes conclusões:
- O impugnante permaneceu na Bélgica no âmbito de uma missão de duração pré-determinada;
- O impugnante era trabalhador duma empresa portuguesa com sede em Portugal e hierarquicamente dependente das suas ordens;
- Era remunerado por uma empresa portuguesa com sede em Portugal;
- Permaneceu na Bélgica em virtude da empresa portuguesa de construção ter ganho uma empreitada naquele país;
- Era um trabalhador duma empresa portuguesa deslocada temporariamente na Bélgica para uma missão de curta duração;
- Deste modo, não se encontravam reunidos os pressupostos da concessão do benefício fiscal (isenção do IA).
Os factos apurados nos presentes autos, assentes na convicção do julgador através da análise crítica da prova documental concatenada com a prova testemunhal, não se mostram devidamente impugnados, como vimos.
Na medida em que a decisão da matéria de facto se mantém, estabilizada, nenhuma outra questão se mostra suscitada à apreciação deste tribunal. Como referimos supra, a questão de direito está colocada de forma conclusiva e totalmente dependente da alteração da matéria de facto, que não ocorreu, por rejeição do recurso nessa parte.
Nesta conformidade, a sentença recorrida, cuja parte mais relevante passamos a transcrever, não merece qualquer censura:
(…) Na presente impugnação judicial está em causa a legalidade do despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto da decisão que revogou a isenção de IA concedida ao aqui Impugnante por ocasião da transferência da sua residência da Bélgica para Portugal. O despacho em crise assentou no entendimento de que o Impugnante não podia ser considerado residente na Bélgica para efeitos de isenção de IA, uma vez que a sua permanência nesse país resultou de circunstâncias meramente temporárias, relacionadas com o acompanhamento e direção de obras que a sua entidade patronal ali efetuou.
O Impugnante insurge-se contra esta decisão, alegando que preenchia as condições para beneficiar da isenção de IA.
Vejamos se lhe assiste razão.
O D.L. n.º 264/93, de 30/71, regulava o regime de isenção fiscal a conceder por ocasião da transferência de residência de um Estado membro da Comunidade para Portugal, estatuindo no seu art.º 12º que era concedida isenção do IA na introdução no consumo de veículos automóveis propriedade de particulares, legalmente habilitados à respetiva condução, que transferissem a sua residência habitual de um Estado membro da Comunidade Europeia para Portugal.
O conceito de residência habitual, que não decorre do citado diploma, deve buscar-se no direito interno, correspondendo ao local onde uma pessoa singular normalmente vive e de onde se ausenta, em regra, por períodos mais ou menos curtos (cfr. art.º 82º do Código Civil). Também a lei fiscal faz coincidir o conceito de residência habitual com o conceito de domicílio fiscal, no que se refere às pessoas singulares (cfr. art.º 19º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária). [Neste sentido, veja-se o acórdão do TCA Sul de 11/12/2012, processo 05810/12].
Por seu turno, o art.º 13º, n.º 1, alínea b), do D.L. n.º 264/93, de 30/73, previa que a referida isenção do IA só seria concedida se o veículo tivesse sido propriedade do interessado no Estado membro de proveniência durante, pelo menos, seis meses antes da transferência da residência para Portugal, contados a partir da data de emissão do título de registo de propriedade.
Finalmente, o art.º 14º do citado diploma, estabelecia que a concessão da isenção fiscal dependia ainda da comprovação pelo beneficiário do regime de que o período de residência normal noutro Estado membro da Comunidade foi igual ou superior a 185 dias por ano civil (n.º 1), não se considerando residentes noutro Estado membro os particulares que aí permanecessem para efeitos de estudos, estágios ou missões de duração determinada (n.º 2).
Por conseguinte, a isenção do IA aquando da transferência de residência de um Estado membro da Comunidade para Portugal estava dependente de o interessado comprovar que residiu nesse Estado membro pelo menos 185 dias por ano civil e que foi proprietário do veículo em causa nos seis meses anteriores à transferência de residência.
Aqui chegados, ficou provado que o Impugnante residiu na Bélgica entre 08/11/2005 e 14/12/2006, tendo inicialmente exercido funções de diretor de obra, em obras específicas da “CRRD”, assumindo, no decurso do ano de 2006, funções mais abrangentes de diretor de zona, ficando responsável pela supervisão das obras da “CRRD” na Bélgica.
A respeito da prova produzida pelo Impugnante, é de valorar positivamente o documento oficial emitido pelo Consulado de Portugal em Antuérpia, que certifica que o Impugnante residiu na Bélgica naquelas datas (entre 08/11/2005 e 14/12/2006) e que a sua permanência nesse país “não resultou de circunstâncias temporárias”, uma vez que não foi apresentado qualquer motivo válido para pôr em causa a veracidade desta declaração, não colhendo a alegação da Fazenda Pública, meramente conclusiva, de que na maioria dos casos os consulados se limitam a certificar factos declarados pelos próprios interessados sem deles terem conhecimento direto ou indagarem.
Por outro lado, também não acompanhamos o entendimento da Autoridade Aduaneira no sentido de que o Impugnante não devia considerar-se residente na Bélgica pelo facto de a sua permanência neste país ter resultado de circunstâncias meramente temporárias. É que o trabalho prestado pelo Impugnante na Bélgica, entre 08/11/2005 e 14/12/2006, não se afigura subsumível a uma “missão de duração determinada”, a que alude o n.º 2 do art.º 14º do D.L. n.º 264/93, de 30/7, uma vez que a duração dos contratos de trabalho do impetrante não foi concretamente definida pela sua entidade patronal (não estamos perante contratos a termo certo) e os mesmos foram-se renovando ao longo do tempo, o que não se compagina com uma “missão de duração determinada”, que pressupõe uma atividade perfeitamente balizada no tempo. E ainda que se entendesse que o primeiro contrato de trabalho a termo incerto (celebrado em 14/01/2005) tinha um período de duração perfeitamente definido (de 15/02/2005 até à conclusão da obra em Antuérpia), o segundo contrato de trabalho a termo incerto (celebrado em 02/01/2006) não tinha, seguramente, essa duração definida, uma vez que a sua caducidade dependia apenas da comunicação do seu termo pela sociedade “CRRD, S.A.”, ou seja, o termo do contrato não estava dependente da conclusão de uma determinada obra.
Assim sendo, face à prova produzida, podemos concluir que estavam preenchidas as condições legais para a concessão da impetrada isenção de IA, uma vez que o Impugnante teve residência normal por mais de 185 dias na Bélgica e foi proprietário do veículo em apreço nos seis meses anteriores à transferência da sua residência para Portugal (sendo que o preenchimento deste último requisito nem sequer foi posto em causa pela Alfândega do Freixieiro).
Neste enquadramento, padece de ilegalidade, por violação do D.L. n.º 264/93, de 30/7, o despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto da decisão de revogação da isenção de IA, o que determina a sua anulação, com a consequente manutenção da isenção inicialmente concedida. (…)”
Pelo exposto, restará negar provimento ao recurso e manter na ordem jurídica a sentença recorrida.
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Conclusão/Sumário
O Recorrente tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida, sendo que, não cumprindo os ónus fixados pelo artigo 685.º-B do Código de Processo Civil, o recurso quanto à matéria de facto terá de ser rejeitado.
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IV. Decisão
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.
Porto, 04 de Julho de 2019
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Cristina Travassos Bento
Ass. Paulo Ferreira de Magalhães