Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00499/23.7BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/02/2024
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:IMPEDIMENTO PREVISTO NA ALÍNEA L) DO Nº.1 DO ARTIGO 55º DO CCP
PERICULUM IN MORA ;
Sumário:
I – De acordo com a normação vertida na alínea l) do nº.1 do artigo 55º do CCP, não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que tenham acusado deficiências significativas ou persistentes na execução de, pelo menos, um contrato público anterior nos últimos três anos, tendo tal facto conduzido à resolução desse contrato por incumprimento, ao pagamento de indemnização resultante de incumprimento, à aplicação de sanções que tenham atingido os valores máximos aplicáveis nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 329.º, ou a outras sanções equivalentes.

II- A eventual suspensão da eficácia dos atos suspendendos não pode impor, em que futuros procedimentos em que os candidatos possam vir a participar, que as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não da participação no respetivo procedimento

III – Neste enquadramento, e justificando-se a interposição da presente da presente providência cautelar com a necessidade de obviar à eventual impossibilidade [da Recorrente] de concorrer a futuros procedimentos de contratação pública como decorrência do impedimento previsto na alínea l) do nº.1 do artigo 55º do CCP, não existe justificação racional para concluir-se no sentido da existência de um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar [ou ver reconhecidos] no processo principal.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte - Secção de Contencioso Administrativo, subsecção de Contratos Públicos:
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I – RELATÓRIO

1. A sociedade comercial [SCom01...], S.A., Requerente nos presentes autos de PROVIDÊNCIA CAUTELAR em que é Entidade Requerida o Município ..., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada nos autos, que “(…) não adoto[u] a providência cautelar requerida pela Requerente e, em consonância, não suspend[eu] a eficácia das decisões proferidas pela Entidade Requerida referidas no ponto 2) do probatório (…)”.

2. Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)

I. A sentença ora recorrida padece de um erro de julgamento de direito quanto à não verificação do requisito do periculum in mora, em violação ao artigo 3.º, n.º 3 e 120.º, n.º 1 do CPTA ex vi artigo 2.º, 20.º, n.º 2, 202.º, n.º 2 e 205.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

II. O «periculum in mora» constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma «situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação» aos interesses perseguidos nesse processo que motiva ou justifica este tipo de tutela urgente.

III. Efetivamente, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a decisão do processo principal pode já não vir a tempo de dar resposta às situações jurídicas envolvidas no litígio, ou porque a evolução da situação durante a pendência do processo «tornou a decisão totalmente inútil», ou porque essa evolução levou à «produção de danos dificilmente reparáveis».

IV. No caso concreto, os atos administrativos cuja suspensão se requer configuram em concreto uma situação de impedimento expressamente prevista na referida alínea l) do n.º 1 do artigo 55.º do Código dos Contratos Públicos, encontrando-se preenchidos cumulativamente todos os requisitos legais: i) A existência na fundamentação do ato suspendendo da existência de erros inadmissíveis num trabalho da tipologia em causa o que configura uma possível verificação do conceito de “deficiências significativas” e que estão na génese da resolução do contrato por incumprimento definitivo nos últimos três anos; ii) A redução do contrato em 30% do preço contratual corresponde ao pagamento de uma indemnização e/ou fixação de uma sanção equivalente aos valores máximos aplicáveis a sanções contratuais expressamente previstas nos n.º 2 e 3 do artigo 329.º do Código dos Contratos Públicos.

V. Esta situação concreta e objetiva que se verifica atualmente configura uma situação de fundado receio de «facto consumado», se a situação facto havido como consumado por referência ao fim a que se inclina a lide principal, de que o meio cautelar depende; isto significa que só ocorre uma situação de facto consumado quando, a não se deferir a providência, se o estado de coisas que a acção quer influenciar ganhar entretanto a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado ou acabado - ficando tal acção inutilizada ex ante», com a iminente executoriedade do ato administrativo que pode ocorrer a qualquer momento.

VI. Já num segundo segmento alternativo, a demora da acção principal não retira, de todo, utilidade a esta lide, todavia, há o fundado receio de que provoque «danos de difícil reparação», nomeadamente porque a sua indemnização pecuniária, ou a reconstituição da situação, ou, de um modo geral, a reintegração da respectiva legalidade, não é capaz de os reparar, ou, pelo menos, de os reparar integralmente, mormente ao nível de efetivar o seu direito fundamental de iniciativa económica privada – artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa – e o direito de lhe ser provisoriamente garantida a admissão nos processos de contratação pública de forma a não ser relevado o presente impedimento com base em juízos de proporcionalidade das entidades adjudicantes face ao caso concreto.

VII. Segundo opina o Professor Vieira de Andrade «o juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstem à reintegração específica da sua esfera jurídica [Lições de Direito Administrativo, 5ª edição, página 308].>>.

VIII. Importa, assim, apreciar as circunstâncias específicas deste caso, com base na análise dos seus factos sumariamente provados, para ver se permitem concluir, como conclui a requerente cautelar, que a situação de receio da constituição de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação é efetiva, e não uma mera conjetura, de verificação eventual.

IX. No dizer da sentença recorrida, a participação ou não participação da Recorrente em futuros procedimentos de contratação pública dependerá da ponderação que as entidades adjudicantes em causa façam ao caso concreto, a qual assenta, especialmente, num teste proporcionalidade, o que se refuta.

X. Essa avaliação que o tribunal a quo se alicerça nos factos que articulou e que, no essencial, se provaram, bem como nas regras da experiência comum, não pode ser acolhida pela Recorrente e, com o devido respeito, pelo Tribunal Central Administrativo do Norte.

XI. Importa, desde logo, salientar que a operação em causa – v.g. o juízo sobre a legalidade de atos administrativos suspendendos – configuram de forma concreta e objetiva uma iminente situação de impedimento nos termos da alínea l) do n.º 1 do artigo 55.º do CCP que exclui a Recorrente de ser admitida e parte outorgante em contratos públicos.

XII. Trata-se por isso de uma situação de fundado receio e de iminente restrição de direitos fundamentais de iniciativa privada e de tutela jurisdicional efetiva – artigo 20.º, n.º 2 e 85.º da CRP - dentro da «harmonização» possível com os demais interesses públicos e particulares em causa.

XIII. A Recorrente não pode aceitar que o seu direito de admissão e de ser parte outorgante de contratos públicos fique casuisticamente nas mãos de juízos de proporcionalidade das entidades adjudicantes que apreciarão discricionariamente a legalidade ou ilegalidade dos atos administrativos suspendendos para efeitos de exclusão da [SCom01...], S.A. como se de uma medida necessária ou exigível se trate.

XIV. Há, portanto, danos reais em curso, com a apreciação casuística e subjetiva que as entidades adjudicantes façam ou possam fazer da relevação de impedimento que decorre dos atos administrativos suspendendos que obrigam a empresa a ter de assumir custos operacionais, administrativos e judiciais que não tem necessidade de fazer, nomeadamente o fazer prova da realização de medidas de “autorregeneração” e “self cleaning” em termos de funcionamento da sua estrutura interna, o pagamento da indemnização e dos danos alegadamente originados ao Município ..., a impugnação sistemática de atos administrativos de exclusão a concurso com o absurdo de poder ter decisões judiciais opostas quanto à legalidade ou ilegalidade dos atos administrativos cuja suspensão ora se requer.

XV. A sentença ora recorrida com o devido respeito erra ao não aceitar a verificação do requisito do periculum in mora consagrado no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA pois, o meio cautelar destinado à salvaguarda da utilidade da sentença a proferir no processo declarativo irá ser julgado casuisticamente por entidades adjudicantes, por via de juízos de proporcionalidade e não de legalidade, que paralisarão e poderão até levar a um aumento exponencial dos custos operacionais da empresa com a adoção de medidas de “Auto reabilitação”, “self-cleaning” e custas judiciais que não tem de ser adotadas.

XVI. Paralisar a procedência da presente providência cautelar, significa arrastar a Recorrente para uma situação de iminente paragem funcional e até de rutura financeira atendendo à limitação do seu objecto social e ao iminente aumento de custos operacionais que advém dos juízos de proporcionalidade que as entidades adjudicantes façam ao caso concreto sobre a legalidade ou ilegalidade dos atos administrativos suspendendos.

XVII. A situação atual não é meramente conjetural, confronta-se, em face dos cuidados já referidos, com uma eventual situação de facto consumado e de iminentes prejuízos de difícil reparação no funcionamento e no cumprimento do objeto social da [SCom01...], S.A., que, para além disso, partem de um pressuposto errado vertido na sentença cautelar ora recorrida, a de que os juízos de legalidade dos atos administrativos suspendendos devem ser apreciados não pelo Tribunal, mas sim por juízos casuísticos e de proporcionalidade das entidades adjudicantes.

XVIII. Não há dúvida de que a noção de «prejuízo de difícil reparação», e a de «situação de facto consumado» - tal como consagradas no artigo 120º do CPTA - integram uma carga lesiva, negativa, sem a qual deixam de fazer sentido. Tanto o «prejuízo» como o «facto consumado» lesam, cada um a seu modo, a esfera jurídica da ora Recorrente.

XIX. A sustentar a nossa posição veja-se o Ac. do TCAN de 15.07.2011, Processo n.º 00220/10.0BEMDL, Relator Carlos Luís Medeiros de Carvalho, disponível in www.dgsi.pt que nos ensina lapidarmente: “I. Estar-se-á em presença duma situação de facto consumado quando se revele de todo em todo impossível a reintegração específica da esfera jurídica daquele mesmo requerente, tendo por referência a situação jurídica e de facto para ele existente no momento da respectiva lesão.

II. A tutela cautelar, especialmente nas providências conservatórias, tem por finalidade garantir a utilidade da decisão final a proferir na acção principal, acautelando provisoriamente os seus efeitos.

III. Daí que não poderemos deixar de reconhecer e de assegurar o papel/função da tutela cautelar também enquanto garantia da «tutela de conteúdo repristinatório» emergente da decisão judicial anulatória, ou seja, de assegurar a realização efetiva do direito ou interesse lesado pelo acto ilegal e não a mera tutela da reparação de danos (danos emergentes e lucros cessantes) que eventualmente se produzirão na pendência do processo impugnatório. (…)”. – veja-se igualmente neste sentido o Ac. do TCAS de 20.10.2022, Processo n.º 285/22.1BELLE-A, Relator Rui Pereira disponível in www.dgsi.pt. “. (sublinhado nosso)

XX. Nesse sentido encontra-se efetivamente provado o requisito do periculum in mora, nos termos do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, pois é notória a urgência em suspender a eficácia das deliberações do executivo municipal do ..., havendo um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado – v.g. a impossibilidade iminente de aceder a procedimentos de contratação pública e de celebrar contratos públicos - ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que a requerente pretende ver reconhecidos no processo principal – v.g. o iminente aumento exponencial de custos operacionais com a necessidade de demonstrar e fazer prova de medidas de “autorregeneração” e “self-cleaning” e de impugnação contenciosa de atos administrativos resultantes de juízos de proporcionalidade e casuísticos de entidades adjudicantes sobre a legalidade dos atos administrativos que se requer a suspensão.

XXI. Concluindo, cumpridos os pressupostos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA, deve a sentença ora recorrida ser objeto de anulação por se encontrar verificado o requisito do periculum in mora, devendo a mesma ser devolvida à primeira instância para efeitos de apreciação dos demais requisitos cautelares legalmente exigidos (…)”.


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3. Notificado que foi para o efeito, o Recorrido produziu contra-alegações, defendendo o convite ao aperfeiçoamento das conclusões da Recorrente – que não se acolhe – e a manutenção do decidido quanto à improcedência da tutela cautelar requerida nos autos.

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4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida, tendo ainda indeferido o pedido de substituição do efeito devolutivo fixado ao recurso interposto pela Requerente.

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5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito vertido no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.

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6. Cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida “(…) erra [ou não] ao não aceitar a verificação do requisito do periculum in mora consagrado no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA (…)”.

9. É na resolução de tal questão que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.1 – DE FACTO

A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida, como decorre do art.º 663º, n.º 6, do CPC.


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IV- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO

10. A Requerente, aqui Recorrente, intentou a presente providência cautelar, peticionando o provimento do presente meio processual por forma ser suspensa a eficácia “(…) dos atos administrativos finais praticados pela Câmara Municipal ... em 21/04/2023 e 03/08/2023 e constantes das deliberações desse órgão com a mesma data (…) consubstanciados na resolução do contrato celebrado com a Autora, na redução do preço do contrato em 30% do valor da adjudicação e na aplicação de penalidades contratuais (…) [e] na redução do preço do contrato em 30% do valor da adjudicação e na aplicação de penalidades contratuais (…)”.

11. O Tribunal a quo, como sabemos, não validou esta pretensão jurisdicional.

12. A decisão que a 1.ª Instância proferiu a este respeito tem, no mais essencial, o seguinte teor, que consideramos útil transcrever para a melhor compreensão da questão prévia acima elencada e que ora nos cumpre decidir: ”(…)

Os requisitos gerais para a adoção ou rejeição das providências cautelares encontram-se plasmados no artigo 120º do CPTA, cujo n.º 1 estabelece que “… as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”

Por seu lado, o n.º 2 do mesmo artigo prescreve que “… a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”.

Daí que, os requisitos do procedimento cautelar administrativo se cinjam aos seguintes:

1) perigosidade, estatuído na primeira parte do n.º 1 do artigo 120º do CPTA (periculum in mora);

2) juízo positivo de probabilidade da procedência da ação principal, contemplado na segunda parte do n.º 1 do artigo 120º do CPTA (fumus boni iuris);

3) proporcionalidade e adequação, previsto no n.º 2 do artigo 120º do CPTA.

Analisemos, então – e tendo sempre presente o caso concreto dos autos -, os requisitos referidos e, atendendo às problemáticas que os autos suscitam, é curial iniciar essa análise pelo requisito da perigosidade.

Assim, o requisito da perigosidade contempla duas vertentes: a constituição de uma situação de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação.

E relativamente a estas duas situações, deve-se entender que, por um lado, “o requisito do periculum in mora se encontra preenchido sempre que os factos concretos alegados pelo requerente permitam perspetivar a criação de uma situação de impossibilidade da restauração natural da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente” e, por outro lado, que “mesmo que não seja de prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade se tornará impossível em razão da mora do processo, os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio da produção de “prejuízos de difícil reparação” no caso de a providência ser recusada, seja porque a reintegração no plano dos factos se perspetiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos de reparar integralmente” (conforme põem em evidência Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.ª edição, 2017, anotação ao artigo 120º, página 972).

Pelo que “O juiz deve, pois, fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dele deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera jurídica” (conforme salienta José Carlos Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, Lições, Almedina, 13ª edição, 2014, página 311).

Assim, quanto a este requisito, a Requerente alega – em suma - que as decisões tomadas pela Entidade Requerida terão como consequência a verificação da situação de impedimento prevista no artigo 55º, n.º 1 alínea l) do Código dos Contrato Públicos, o que a impossibilitará de concorrer a outros procedimentos de contratação pública pondo em causa a sua atividade económica.

Vejamos.

O artigo 55º, n.º 1 alínea l) do Código dos Contrato Públicos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 290/01- doravante CCP) – subordinado à epígrafe “Impedimentos” – prescreve que “Não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que: Tenham acusado deficiências significativas ou persistentes na execução de, pelo menos, um contrato público anterior nos últimos três anos, tendo tal facto conduzido à resolução desse contrato por incumprimento, ao pagamento de indemnização resultante de incumprimento, à aplicação de sanções que tenham atingido os valores máximos aplicáveis nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 329.º, ou a outras sanções equivalentes”.

Por seu lado, o artigo 55º-A do CCP – sob a epígrafe “Relevação dos impedimentos” - estabelece que:

“2 - O candidato ou concorrente que se encontre numa das situações referidas nas alíneas b), c), g), h) ou l) do n.º 1 do artigo anterior pode demonstrar que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua idoneidade para a execução do contrato e a não afetação dos interesses que justificam aqueles impedimentos, não obstante a existência abstrata de causa de exclusão, nomeadamente através de:

a) Demonstração de que ressarciu ou tomou medidas para ressarcir eventuais danos causados pela infração penal ou falta grave;

b) Esclarecimento integral dos factos e circunstâncias por meio de colaboração ativa com as autoridades competentes;

c) Adoção de medidas técnicas, organizativas e de pessoal suficientemente concretas e adequadas para evitar outras infrações penais ou faltas graves.

3 - Tendo por base os elementos referidos no número anterior, bem como a gravidade e as circunstâncias específicas da infração ou falta cometida, a entidade adjudicante pode tomar a decisão de não relevar o impedimento”.

Neste âmbito, é curial ter em conta, desde já, que “A definição de impedimentos à participação dos operadores económicos em procedimentos de contratação pública é um assunto delicado, que interfere diretamente com a autonomia privada, com a liberdade de iniciativa económica e com o princípio da igualdade de oportunidades”, sendo que “as finalidades prosseguidas consistem,…, em proteger a reputação da entidade adjudicante, bem como o seu interesse específico na boa execução do contrato, cuja realização pode estar em risco em face de concorrentes não fiáveis e sem idoneidade profissional que apresentam risco elevado de mau desempenho; ainda nestes casos, está obviamente presente o propósito de promover valores essenciais, como a moralidade, a ética e a integridade nos negócios públicos” (de acordo com Pedro Costa Gonçalves, obra citada, páginas 624 e 625/626, respetivamente).

Assim, é o regime jurídico que resulta especialmente dos dois normativos citados que importa analisar, a fim de se averiguar se nos presentes autos estamos perante uma situação de perigosidade que deva ser acautelada.

E atendendo a esse regime jurídico, não se afigura ao Tribunal que a verificação em abstrato do impedimento previsto no artigo 55º, n.º 1, alínea l) do CCP é suscetível de constituir, sem mais e de imediato, uma situação de facto consumado, ou seja, que a Requerente ficará, efetivamente, impedida de participar noutro procedimento de contratação pública nos próximos três anos (atendendo ao limite temporal expresso nessa norma).

Vejamos porquê.

Não se encontra em causa que, constituindo uma das decisões tomadas pela Entidade Requerida a resolução do contrato outorgado entre ambas por incumprimento definitivo, em abstrato poderá verificar-se o impedimento consagrada nessa norma.

Assim como, caso – no final de um procedimento encetado para o efeito – se conclua, num outro procedimento de contratação pública a que a mesma se candidate ou concorra, que essa circunstância se verifica em concreto, tal implicará a impossibilidade de a Requerente participar no mesmo.

De facto, “A verificação de um impedimento inabilita o candidato ou concorrente”, ou seja, “impede[] os operadores económicos de participarem em procedimentos de adjudicação” (conforme salienta Pedro Costa Gonçalves, em Direito dos Contratos Públicos, Almedina, Volume I, 2.ª edição, 2018, página 618) e decorre, especialmente, do artigo 146º, n.º 2, alínea c) do CCP.

Aliás, essa exclusão – no final do procedimento encetado para o efeito – até se afigura como obrigatória, dado que “o legislador português não distingue entre motivos de exclusão facultativa e motivos de exclusão obrigatória”, e daí que, “Entre nós, o impedimento é sempre obrigatório, pelo que o órgão adjudicante não pode deixar de excluir a proposta sempre que se verifique uma das situações previstas no n.º 1 do artigo 55.º, salvo se houver relevação do impedimento, nos termos do artigo 55.º-A” (de acordo com Pedro Gonçalves, obra citada, página 629).

Porém, há que sopesar - e em primeiro lugar -, que a questão do impedimento poderá nem sequer ser levantada num eventual futuro procedimento: tudo dependerá do objeto do mesmo e da relação que apresente com as causas da resolução decidida pela Entidade Requerente nestes autos.

De facto, conforme salienta Margarida Olazabal Cabral, apesar de “a responsabilidade primeira [ser] do operador” e de impor “a prudência que o operador seja muito cauteloso nesse seu juízo e que só não declare aquilo que com segurança considere não ser impedimento”, caso “um operador que foi objeto de uma resolução sancionatória no ano anterior àquele a que se apresenta a concurso” e que “Entende o mesmo que a referida resolução não se deve a deficiências «significativas ou persistentes»”, o mesmo “deve fazer um juízo sobre o facto de estar ou não impedido, e agir em conformidade”.

E acrescenta: “não me parece exigível que, nos casos em que existem dúvidas, mas o candidato ou concorrente tem uma interpretação, com fundamentos racionais, segundo a qual considera não estar impedido, se lhe exija que venha ao procedimento levantar a questão. As suas obrigações em matéria de veracidade nas declarações, e em matéria [de] boa fé, de transparência e de colaboração com a entidade adjudicante, não se estendem, do meu ponto de vista, a uma obrigação de comunicar situações que o operador entende não serem de impedimento, de forma a que possa ser a entidade adjudicante a decidir (designadamente pelo que isto envolve de risco reputacional e de possíveis reações de outros concorrentes)” (no artigo Alguns apontamentos sobre os impedimentos no CCP, disponível no Comentário ao Código dos Contratos Públicos, da AAFDL Editora, 5ª edição, 2023, volume II, páginas 142 e 143).

Em segundo lugar - e suscitando-se efetivamente essa questão -, em qualquer outro procedimento a que a Autora se candidate ou concorra poderá “demonstrar à entidade adjudicante que se tomaram as medidas necessárias para que, apesar da situação de impedimento, se seja considerado idóneo para celebrar o contrato”, “por exemplo, que o incumprimento em causa foi um caso isolado, por causas que se explicam, não existindo outros casos na história da entidade em causa, e demonstrando que a mesma está organizada de forma a que os mesmos não sucedam” (conforme assume e exemplifica Margarida Olazabal Cabral, no artigo e obra citada, páginas 140 e 141).

É o que decorre das três alíneas do artigo 55º-A, n.º 1 acima transcrito, nas quais “o legislador enuncia, de forma exemplificativa, um conjunto de medidas de “limpeza” que, tipicamente, evidenciam a “regeneração” da entidade impedida” (de acordo com Pedro Gonçalves, obra citada, página 674).

Esta possibilidade que é conferida à Requerente, assenta na “ideia de que não deve ser excluído um concorrente atingido por um impedimento quando, em virtude da adoção de medidas de “auto-reabilitação” ou de “auto-limpeza”, o seu afastamento deixa de justificar-se à luz das finalidades que presidiram à consagração legal do impedimento” (de acordo com Pedro Gonçalves, obra citada, página 669).

Constata-se, assim, que “este mecanismo [é] uma espécie de contramedida ao regime severo dos motivos de exclusão” (de acordo com Pedro Gonçalves, obra citada página 670), ou seja, “a introdução do instrumento de self-cleaning produz, desde logo, um efeito atenuador da tradicional rigidez do sistema português” (conforme explicita José Azevedo Moreira, no artigo A relevação dos impedimentos no Código dos Contratos Públicos, publicado na revista E-Publica, volume 4, n.º 2, novembro de 2017, página 126).

Igualmente deste modo se mostra que a não participação da Entidade Requerida em futuros procedimentos é uma eventualidade e não uma certeza e tudo dependerá das medidas que adote e da prova que das mesmas faça.

Em terceiro lugar, há igualmente que ter em conta que uma decisão de não relevação de um impedimento num procedimento futuro em que tal questão se suscite, encontra-se dependente de uma valoração a ser efetuada pela entidade adjudicante, a qual está sujeita a critérios rigorosos, não sendo, por isso, a exclusão automática.

De facto, “o CCP consagra um sistema de apreciação “descentralizada” da existência de impedimentos. A avaliação é feita de forma casuística, procedimento a procedimento, pela respetiva entidade adjudicante” (de acordo com José Azevedo Moreira, artigo citado, página 139).

Essa circunstância implica que “Em face da demonstração que o interessado faça e dos esclarecimentos que preste, o órgão adjudicante vai ter de decidir sobre o pedido de relevação”, isto é, “a efetuar ponderações e a formular juízos de avaliação discricionária, quanto à decisão de relevar ou de não relevar o impedimento”, sendo que “Na atuação desses poderes discricionários, o órgão adjudicante tem, naturalmente, de se orientar por critérios jurídicos, designadamente os que decorrem do princípio da proporcionalidade e da exigência de ponderação adequada de todos os factos e elementos relevantes que lhe permitam fundamentar a decisão que venha a adotar, quer no sentido da relevação, quer no sentido oposto” (de acordo com Pedro Gonçalves, obra citada, página 676).

A relevância desta ponderação por parte das entidades adjudicantes assenta em que “a simples subsunção de uma determinada situação de um operador a uma previsão legal vinculada determinante de impedimento (… ter incumprido um contrato anterior), sem avaliação das circunstâncias particulares do caso em apreço, pode levar a uma penalização desadequada e excessiva de um operador”, e daí que “A exigência dessa ponderação, em vez de uma aplicação cega do impedimento sempre que existam as consequências contratuais referidas na norma, parece-nos importante, por um lado, para diminuir (embora não o afaste totalmente) o risco da ameaça deste impedimento funcionar como modo de gestão dos contratos pelas entidades públicas contratantes, e, por outro, para que as resoluções ou aplicação de sanções infundadas ou desproporcionadas (cuja falta de fundamento, ou caráter excessivo, se deteta na própria decisão) não determinem um impedimento do contratante” (conforme evidencia Margarida Olazabal Cabral, no artigo e obra citados, páginas 115 e 125).

Ou seja, a participação ou não da Requerente em futuros procedimentos de contratação pública dependerá da ponderação que a entidade adjudicante em causa faça no caso concreto, a qual assentará, especialmente, num teste de proporcionalidade, isto é, se a exclusão do mesmo se apresenta como uma medida necessária ou exigível.

E essa ponderação e decisão de exclusão deverá ter em conta, nomeadamente, dois fatores.

Por um lado, deve “assentar na premissa de que estaremos perante situações de cariz excecional que justifiquem esta restrição ao valor da concorrência” a qual é “a “pedra de toque” do direito da contratação pública, nacional e europeu”, sendo de esperar “que as entidades adjudicantes nacionais não se desviem dos … objetivos de flexibilização e agilização do regime dos impedimentos e que, nesta matéria, procurem assegurar ao máximo o princípio nuclear da concorrência nos procedimentos de contratação pública” (de acordo com José Azevedo Moreira, no artigo O regime dos impedimentos no CCP, à luz da Diretiva 2014/24/EU, disponível no Comentário ao Código dos Contratos Públicos, da AAFDL Editora, 5ª edição, 2023, volume II, páginas 152 e 184, respetivamente).

E, por outro lado, de que caso o operador económico consiga no procedimento de contratação pública “criar na entidade adjudicante a convicção de que não houve qualquer deficiência significativa ou persistente, ou, pelo menos, …, criar a fundada dúvida de que tal não tenha ocorrido”, tal será “suficiente para que não haja impedimento” (conforme o sustenta Margarida Olazabal Cabral, no artigo e obra citada, página 129).

Pelo que, mais uma vez se constata a imprevisibilidade e incerteza na criação de uma situação em que a Requerente não seja admitida a participar em procedimentos de contratação pública nos próximos três anos.

Em quarto e último lugar, caso no futuro a Requerente se veja confrontada, num outro procedimento de contratação pública a que se candidate ou concorra, com uma decisão de não relevação do impedimento agora em causa, sempre poderá impugnar essa decisão judicialmente, de modo a discutir contenciosamente os pressupostos previstos nos artigos 55º e 55º-A do CCP.

E nesse caso, o juízo a proferir relativamente ao requisito da perigosidade em sede de uma eventual providência cautelar intentada nesse âmbito, já poderá ser distinto do a seguir efetuado, dado que a apreciação em causa terá em conta uma decisão concreta de não relevação do impedimento no que isso implica de acesso ao mercado.

Em suma, como “hoje, à luz da lei, e para grande parte dos casos de impedimentos, não é possível dizer em abstrato se um operador pode, ou não, participar num procedimento de contratação pública” (de acordo com Margarida Olazabal Cabral, artigo e obra citada, página 116, retira-se que, neste momento, não se pode assumir que se irá produzir uma situação de facto consumado com a não suspensão dos atos administrativo em causa nestes autos.

Isto é, uma vez que a não participação efetiva da Requerente noutros eventuais procedimentos de contratação pública futuros depende de inúmeras circunstâncias que só em concreto se poderão verificar ou não – como delimitado acima - não é possível asseverar-se que, neste momento, existe um risco sério e concreto suscetível de constituir uma situação de facto consumado.

E não havendo esta, igualmente não se verificam os prejuízos de difícil reparação alegados pela Requerente, de dificuldades na capacidade da sua atividade económico financeira, dado que não está demonstrado que, em concreto, a mesma ver-se-á impedida de participar noutros procedimentos de contratação pública em virtude das decisões tomadas pela Entidade Requerente e, por essa via, sofrerá as repercussões financeiras e económicas que alegou.

De facto, não se perca de vista que “Tais prejuízos têm de ser, assim, uma consequência adequada da execução do acto, motivo por que são irrelevantes os meramente eventuais” (conforme propugna o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.º 0819/19.9BESNT, de 19/11/2020, disponível em www.dgsi.pt, a propósito do requisito do “periculum in mora” relativamente ao impedimento previsto no artigo 55º, n.º 1, alínea e) do CCP).

Daí que, não configurando a situação alegada pela Requerente uma situação de perigo que importe desde já acautelar, o Tribunal julga não verificado o requisito da perigosidade exigível para a adoção da providência cautelar requerida pela Requerente, sufragando-se assim o juízo decisório efetuado pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão citado de que “porque o prejuízo alegado não constitui uma consequência da execução do acto suspendendo, não se pode considerar demonstrada a verificação do requisito do “periculum in mora””.

Deste modo, torna-se desnecessário apreciar os restantes requisitos enunciados, dada a necessária verificação cumulativa dos mesmos para o efeito.

De facto, “perante o não preenchimento de um dos requisitos necessários ao seu decretamento, veja-se, do periculum in mora, será inútil aferir do preenchimento dos demais requisitos atinentes ao fumus boni iuris e à ponderação dos interesses, necessários para ser decretada a providência cautelar à luz do disposto no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, por, como vimos, serem de verificação cumulativa” (conforme põe em evidência o Tribunal Central Administrativo Norte, no acórdão proferido no processo n.º 01146/21.7BEBRG, de 28/01/2022, disponível em www.dgsi.pt).

Uma última nota para salientar que – tal como decorre do regime jurídico analisado – afigura-se inviável o outro pedido efetuado pela Requerente nestes autos de que seja provisoriamente levantado o impedimento previsto no artigo 55º, n.º 1 alínea l) do Código dos Contrato Públicos, dado que - como se viu - o legislador optou por um sistema descentralizado por todas as entidades adjudicantes - e não centralizado numa única entidade – relativamente à apreciação dos impedimentos dos operadores económicos, pelo que, uma tal decisão colidiria com o princípio da separação de poderes, no sentido de que, em primeiro lugar, deverão ser as entidades adjudicantes a pronunciarem-se sobre a relevação ou não dos impedimentos em causa, salvaguardando-se a pronúncia do Tribunal para um momento posterior (artigo 3º, n.º 1 do CPTA).

Conclui-se, deste modo - e prejudicadas demais questões e considerações – que a providência cautelar requerida pela Requerente não deverá ser adotada por falta de verificação do requisito do “periculum in mora (…)”.

11. A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, impetrando-lhe erro de julgamento de direito.

12. Realmente, clama a Recorrente que “(…) A sentença ora recorrida com o devido respeito erra ao não aceitar a verificação do requisito do periculum in mora consagrado no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA pois, o meio cautelar destinado à salvaguarda da utilidade da sentença a proferir no processo declarativo irá ser julgado casuisticamente por entidades adjudicantes, por via de juízos de proporcionalidade e não de legalidade, que paralisarão e poderão até levar a um aumento exponencial dos custos operacionais da empresa com a adoção de medidas de “Auto reabilitação”, “self-cleaning” e custas judiciais que não tem de ser adotadas (…)”.

13. Apregoa ainda que “(…) Paralisar a procedência da presente providência cautelar, significa arrastar a Recorrente para uma situação de iminente paragem funcional e até de ruptura financeira atendendo à limitação do seu objecto social e ao iminente aumento de custos operacionais que advém dos juízos de proporcionalidade que as entidades adjudicantes façam ao caso concreto sobre a legalidade ou ilegalidade dos atos administrativos suspendendos. XVII. A situação atual não é meramente conjectural, confronta-se, em face dos cuidados já referidos, com uma eventual situação de facto consumado e de iminentes prejuízos de difícil reparação no funcionamento e no cumprimento do objeto social da [SCom01...], S.A., 18 que, para além disso, partem de um pressuposto errado vertido na sentença cautelar ora recorrida, a de que os juízos de legalidade dos atos administrativos suspendendos devem ser apreciados não pelo Tribunal, mas sim por juízos casuísticos e de proporcionalidade das entidades adjudicantes (…)”.

14. Conclui que “(…) encontra-se efetivamente provado o requisito do periculum in mora, nos termos do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, pois é notória a urgência em suspender a eficácia das deliberações do executivo municipal do ..., havendo um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado – v.g. a impossibilidade iminente de aceder a procedimentos de contratação pública e de celebrar contratos públicos - ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que a requerente pretende ver reconhecidos no processo principal – v.g. o iminente aumento exponencial de custos operacionais com a necessidade de demonstrar e fazer prova de medidas de “auto-regeneração” e “self-cleaning” e de impugnação contenciosa de atos administrativos resultantes de juízos de proporcionalidade e casuísticos de entidades adjudicantes sobre a legalidade dos atos administrativos que se requer a suspensão (…)”.

15. Espraiadas as considerações pertinentes aduzidas pela Recorrente, adiante-se, desde já, que o presente recurso jurisdicional não irá vingar.

16. Na verdade, e conforme ressuma grandemente da constelação argumentativa da Recorrente, a razão de ser da presente providência cautelar prende-se, essencialmente, com a necessidade de obviar à eventual impossibilidade [da Recorrente] de concorrer a futuros procedimentos de contratação pública como decorrência do impedimento previsto na alínea l) do nº.1 do artigo 55º do CCP.

17. Na génese desta representação subjaz, como está bom de ver, o entendimento de que o decretamento da presente providência cautelar configura o meio idóneo e capaz de obstaculizar às eventuais consequências do impedimento previsto na alínea l) do nº.1 do artigo 55º do CCP.

18. Mas será mesmo assim?

19. A resposta é, manifestamente, desfavorável, às pretensões da Recorrente.

20. De facto, sobre a possibilidade da tutela cautelar requerida nos autos poder obstar [ou não] a que as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não da participação no respetivo procedimento por parte de concorrentes abrangidos pelo impedimento previsto no artigo 55º, nº1, alínea l) do CCP, - e que prende ora a nossa atenção, pronunciou-se já o Tribunal Central Administrativo Sul no aresto de 12.12.023, tirado no processo nº. 1467/23.4BELSB-A.

21. A questão ou uma das questões levadas a conhecimento no âmbito do referidos processo foi exatamente a mesma que agora se equaciona.

22. Acompanhemos, por isso, as partes mais significativas da argumentação nele [Acórdão do TCAS] expendida: ”(…)

O citado artigo 55º, nº 1, al. l) do CCP representa a transposição para o direito nacional de o motivo de exclusão previsto no artigo 57º, nº 4, al. g) da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos, que teve o propósito de autorizar as entidades adjudicantes a afastar dos procedimentos de contratação contratantes incumpridores.

Chamado a pronunciar-se o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão Meca Srl/Comune di Napoli, do TJUE, Proc. C-41/18, 19.06.2019 (1)Este acórdão do TJUE foi comentado pelo Prof. Pedro Costa Gonçalves in “Notas breves sobre duas decisões judiciais em matéria de impedimentos” RCP, nº 21, 2019 p.7 e segs., declarou que:

“ O artigo 57º., nº. 4, alíneas c) e g), Diretiva 2014/24/EU (…), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual a impugnação judicial da decisão de resolver um contrato público tomada por uma autoridade adjudicante devido a deficiências significativas verificadas durante a sua execução impede a autoridade adjudicante que lança um novo concurso de efetuar qualquer apreciação, na fase da seleção dos proponentes, sobre a fiabilidade do operador a que diz respeito essa resolução”.

Esta temática foi também suscitada por Miguel Neiva de Oliveira, “A Exclusão de Concorrentes com Fundamento em Deficiências na Execução de Contratos Passados” in Estudos de Homenagem a Mário Esteves de Oliveira, Tomo II, 2018, pág. 836, onde à pergunta: “E se tiver a ver com uma decisão que ainda se encontre pendente em tribunal?

Expendeu:

“(...)

Conforme temos vindo a defender ao longo do presente estudo, não está em causa se a decisão de exclusão se funda, necessariamente, numa deficiência grave que tenha dado origem à rescisão de contrato anterior (e, eventualmente à condenação por danos) e, sequencialmente, depois de ter resultado nessa decisão por parte da entidade adjudicante e o contraente com a mesma não tenha concordado o mesmo a haja impugnado em sede judicial (e que, nesse último caso, ainda seria necessário aguardar por uma decisão transitada em julgado que pudesse legitimar a atuação da entidade adjudicante).

O que verdadeiramente releva (ou devia relevar) prende-se com conferir a uma entidade adjudicante a possibilidade de, caso se verifiquem todos os pressupostos e, claro, o respeito pelos princípios da contratação pública, afastar um potencial contratante com quem (fundadamente antecipa) sabe que a execução do contrato a celebrar irá revelar-se defeituosa, problemática, tormentosa e, nessa sequência, prejudicial para o interesse público.

Acresce que, fazer depender esta possibilidade de uma anterior decisão judicial transitada em julgado que atestasse as deficiências anteriores, através da legitimação de uma rescisão ou de uma condenação definitiva por danos, seria inócuo e acabaria por abranger um número manifestamente escasso de casos em que se justificaria uma decisão deste calibre.

Claro que, e já supra se mencionou, terá que haver um controlo judicial reforçado nesta matéria, no sentido em que, aí sim, uma decisão tomada com este fundamento possa e deve ser sindicada judicialmente de modo rigoroso, assim se evitando decisões discricionárias, subjetivas e infundamentadas”.

Acresce ainda um outro argumento, pois que prevendo o art. 55º, nº 1, al. l) do CCP que a declaração de impedimento só é possível quando esteja em causa “um contrato público anterior nos últimos três anos”, sendo certo, atento o atraso nesta jurisdição, de todos conhecido, nos processos não urgentes, então, quando transitasse em julgado a acção principal jamais seria possível a “efetiva” aplicação do aludido impedimento, ainda que viesse a improceder.

Não se trata, pois, de afastar os eventuais efeitos derivados da demora da acção principal.

Além disso, estar-se-ia a limitar a uma futura entidade adjudicante o juízo que só a esta cabe no âmbito do aludido possível impedimento.

Considerando (101) da Diretiva as Entidades Adjudicantes “Deverão também ter a possibilidade de excluir os candidatos ou proponentes cujo desempenho no âmbito de anteriores contratos públicos tenha acusado deficiências graves no que se refere aos requisitos essenciais, por exemplo, falhas na entrega ou execução, deficiências significativas do produto ou do serviço prestado que os tornem inutilizáveis para o fim a que se destinavam, ou conduta ilícita que levante sérias dúvidas quanto à fiabilidade do operador económico”.

Ideia que perpassa do citado Acórdão Meca, de que cabe às entidades adjudicantes e não aos Tribunais “neutralizar” o efeito em caso de resolução, de aplicação de multa ou de cessão da posição contratual, como se pode extrair de algumas premissas do Acórdão do TJUE no sentido de que “resulta assim da redação da referida disposição [da Diretiva] que foi às autoridades adjudicantes, e não a um órgão jurisdicional nacional, que foi confiada a tarefa de apreciar se um operador económico deve ser excluído de um procedimento de contratação” (par. 28), pois que “ambos os motivos de exclusão [artigo 57º., nº. 4, alíneas c) e g), da Diretiva 2014/24] têm como fundamento um ingrediente essencial da relação do adjudicatário do contrato com a autoridade adjudicante, a saber, a fiabilidade do primeiro, na qual assenta a confiança que a segunda deposita naquele (par. 30).

Ou ainda quando alude que, “se uma autoridade adjudicante devesse estar automaticamente vinculada por uma apreciação efetuada por um terceiro, ser-lhe-ia provavelmente difícil prestar especial atenção ao princípio da proporcionalidade no momento de aplicar as causas facultativas de exclusão (par. 32).

Prosseguindo, “o poder de apreciação dos Estados-Membros não é absoluto e que, uma vez que um Estado-Membro decida incorporar um dos motivos facultativos de exclusão previstos na Diretiva 2014/24, deve respeitar as suas características essenciais, conforme definidas nesta última. Ao esclarecer que os Estados-Membros devem ter «em conta o direito da União» quando especificarem «as condições de aplicação do presente artigo», o artigo 57º., nº. 7, da Diretiva 2014/24 obsta a que os Estados-Membros desvirtuem os motivos facultativos de exclusão estabelecidos nesta disposição ou ignorem os objetivos e os princípios subjacentes a cada um desses motivos” (par. 33). “Ora, como foi salientado no nº. 28 do presente acórdão, resulta da redação do artigo 57º., nº. 4, da Diretiva 2014/24 que o legislador da União entendeu atribuir à autoridade adjudicante, e só a esta, na fase da seleção dos proponentes, a tarefa de apreciar se um candidato ou um proponente deve ser excluído de um procedimento de contratação” (par. 34).

Como o sobredito Prof. Pedro Costa Gonçalves parece reconhecer, na 6ª edição da citada obra, o Direito dos Contratos Públicos, p. 621, deixando a dúvida em que mesmo quando o Tribunal decrete a suspensão dos efeitos da resolução, da cessão da posição contratual ou de decisões de aplicação de multas, “mesmo neste caso, talvez não seja de dar como definitivamente excluída a possibilidade de invocação do impedimento pela entidade adjudicante”.

Há, ainda, a sopesar que o legislador comunitário previu que deveria ser dada a oportunidade de os operadores económicos demonstrarem que adotaram as medidas destinadas a prevenir e evitar eficazmente a repetição das faltas conducentes ao impedimento (considerando 102 da Diretiva).

Pelas razões aduzidas entendemos que falece a premissa do Tribunal a quo para o deferimento da providência baseada nos efeitos derivados (automaticamente) do art. 55º, nº 1 al. l) do CCP, para as Requerentes que ficariam impedidas de concorrer a futuros concursos públicos. Na medida em que a eventual suspensão de efeitos da presente decisão cautelar, como se expôs, não pode obstar a que em futuros procedimentos a que as Requerentes possam vir a concorrer as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não de participação no respetivo procedimento.

Termos em que não se pode manter o decidido pelo Tribunal a quo, pelo que será de conceder provimento ao recurso e julgar inverificado o requisito do periculum in mora. E, faltando este requisito, cumulativo e essencial ao deferimento da providência, atento o disposto no nº 1 do art. 120º do CPTA, então será de conduzir à improcedência do pedido cautelar, como se decidirá a final (…)”.

23. Sopesando a jurisprudência transcrita, e cotejando a mesma com a argumentação aduzida pela Recorrente, não é despiciendo salientar que subsiste uma identidade muito próxima entre a causa que agora se discute e a que foi julgada no processo n.º 1467/23.4BELSB-A.

24. Nesta esteira, ponderada a linha jurisprudencial ali evidenciada, inteiramente transponível para o caso em apreço, ressalvadas as particularidades do caso concreto, e, não se vê razão para dela divergir, dada a bondade da solução adotada, cujo sentido perfilhamos por completo, entendemos ser forçosa a conclusão que a eventual suspensão de eficácia dos atos suspendendos não pode impor, em que futuros procedimentos em que os candidatos possam vir a participar, que as entidades adjudicantes fiquem impedidas de aferir das condições impeditivas ou não da participação no respetivo procedimento.

25. Neste enquadramento, é de manifesta evidência que a argumentação que a Recorrente mobiliza como esteio da sua pretensão não constitui suporte para se concluir, com a certeza e segurança que o direito exige, no sentido de que, se não for decretada a presente providência cautelar, advirá para a Requerente, aqui Recorrente, uma situação de facto consumado e/ou prejuízos de difícil reparação.

26. Efetivamente, não operando a suspensão de eficácia dos atos suspendendos qualquer alcance inibitório quanto à capacidade de aferição das condições de participação dos concorrentes no âmbito dos respetivos procedimentos concursais, não será, pois, o decretamento da suspensão de eficácia dos atos suspendendos que (i) irá evitar a eventual impossibilidade de participação da Recorrente em futuros procedimentos concursais e/ou (ii) impedir o aumento de eventuais custos operacionais com a necessidade de demonstrar e fazer prova de medidas de “auto-regeneração” e “self-cleaning” e de impugnação contenciosa de atos administrativos, tudo mercê do impedimento estatuído no art. 55º, nº 1, al. l) do CCP.

27. Perante este quadro, e à míngua de qualquer outra argumentação relevante no domínio em análise, entendemos ser forçosa a conclusão que a decisão judicial recorrida mostra-se certeiramente justificada, sendo isenta de reparo.

28. Assim deriva, naturalmente, que se impõe negar provimento ao presente recurso, devendo ser confirmada a decisão judicial recorrida.

29. Ao que se provirá no dispositivo.

* *

IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice” e confirmar a decisão judicial recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e Notifique-se.


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Porto, 02 de fevereiro de 2024,


Ricardo de Oliveira e Sousa

Luís Migueis Garcia em substituição

Helena Maria Mesquita Ribeiro