Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00551/16.5BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/13/2017
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:NULIDADE DO ACTO; PRETERIÇÃO ABSOLUTA DO PROCEDIMENTO;
FALTA ABSOLUTA DE FUNDAMENTAÇÃO; DIREITO INSTRUMENTAL; VIOLAÇÃO DO CONTEÚDO ESSENCIAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL; DIREITO DE INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA; DECISÃO DE CADUCIDADE DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR; DECLARAÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO; TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA; ALÍNEA F) DO N.º2 DO ARTIGO 133º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (DE 1991; ALÍNEA G) DO N.º 2 DO ARTIGO 161º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE 2015); ALÍNEA D) DO N.º2 DO ARTIGO 133º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE 1991 (ALÍNEA D) DO ARTIGO 161º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE 2015); ARTIGO 123.º N.º 1, ALIENA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:1. Não se pode falar de preterição absoluta de procedimento legalmente exigido para a concessão de um alvará se foi pedida a renovação do alvará, foi indeferido esse pedido e este acto de indeferimento da renovação foi o objecto de decisão, também negatória, de recurso hierárquico.
2. Por regra a falta de fundamentação, como preterição de um direito instrumental, gera a mera anulabilidade; só gera a nulidade, nos termos do disposto na alínea f) do n.º2 do artigo 133º do Código de Procedimento Administrativo (de 1991; alínea g) do n.º 2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo de 2015) se a fundamentação servir o conteúdo essencial de um direito fundamental.
3. Só a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental conduz à nulidade do acto – alínea d) do n.º2 do artigo 133º do Código de Procedimento Administrativo de 1991 (alínea d) do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo de 2015).
4. O direito de iniciativa económica privada, admitindo que é um direito digno da tutela dos “direitos, liberdades e garantias fundamentais”, não é um direito absoluto, antes está sujeito a limitações, de interesse público, incluindo as decorrentes da necessidade de licenciamento de acordo com as normas legais de direito ordinário.
5. A declaração de caducidade da decisão cautelar, neste caso provisória, tem uma natureza e uma finalidade distintas e autónomas da declaração de caducidade do direito de acção.
6. Não se verifica violação do direito de tutela jurisdicional efectiva na interpretação do artigo 123.º n.º 1, aliena a), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, segundo a qual pode ser decretada a caducidade da providência cautelar antes da declaração de caducidade da acção no processo principal.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:S..., Empresa de Segurança Privada, Lda
Recorrido 1:Ministério da Administração Interna
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento cautelar não especificado - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

S..., Empresa de Segurança Privada, Lda veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, de 31.10.2016, pela qual se declarou “caduca a providência cautelar provisoriamente decretada e extinto o presente processo cautelar”, face à intempestividade da acção principal.

Invocou pra tanto, em síntese, que ao contrário do decidido o acto impugnado não padece apenas de vícios susceptíveis de mera anulabilidade mas de vícios geradores de nulidade pelo que a acção principal, de impugnação, não está sujeita a prazo.

O Recorrido contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

*
Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida no dia 31 de Outubro de 2016 pela 1ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, no âmbito do processo cautelar que corre termos sob o número 551/16.5BEBRG, que declarou “caduca a providência cautelar provisoriamente decretada e extinto o (…) processo cautelar”.

B. A decisão contida na sentença recorrida assenta no pressuposto de que o prazo para a propositura da acção principal seria de apenas 3 meses – na medida em que “o vício do acto de indeferimento em que se funda a respectiva invalidade e, em consequência, a sua pretensão, corresponde ao de erro sobre os pressupostos de facto, gerador da mera anulabilidade daquela decisão administrativa” – razão pela qual o caso dos autos deveria subsumir-se à hipótese legal do artigo 69º/2 do CPTA.

C. Tal entendimento não está, porém, do ponto de vista jurídico, correto, na medida em que são vários os vícios que apontam para a nulidade do referido acto de indeferimento.

D. É assim, desde logo, porque – como reconheceu a Entidade Recorrida no ponto 5 do parecer sobre o qual incidiu a aposição manuscrita da decisão do recurso hierárquico – relativamente a um dos dois Alvarás de que a Recorrente é titular, a decisão de não renovação foi tomada sem que, contanto, o órgão instrutor tivesse tramitado o respectivo processo, aferido dos respectivos pressupostos ou tão pouco emitido qualquer tipo de pronúncia sobre os fundamentos de recusa, estando portanto verificados os requisitos do artigo 161º/2, alínea l), do Código de Procedimento Administrativo, segundo o qual são nulos “os actos praticados, salvo em estado de necessidade, com preterição total do procedimento legalmente exigido”.

E. Em segundo lugar, a omissão de qualquer fundamentação no acto em causa relativamente à não renovação do Alvará A de que a Recorrente é titular constitui, pelo alcance da decisão em causa – que, recorda-se, a manter-se, conduzirá necessariamente à imediata insolvência da S..., ao despedimento de mais de 120 pessoas e à imediata colocação em causa da segurança das várias centenas de entidades públicas e privadas (aproximadamente 1000, ao todo) que dela dependem, incluindo Hospitais, Câmaras Municipais, Lares e pessoas e bens em estado de especial vulnerabilidade – um caso de especial gravidade e intensidade que, de tão chocante, terá de necessariamente conduzir à sua nulidade por manifesta violação grave e grosseira do princípio da fundamentação.

F. Em terceiro lugar, deve ter-se presente que o acto de não renovação dos Alvarás – ao determinar a extinção das autorizações de que a S... é titular, que lhe permitem levar a cabo os serviços de segurança privada, que constituem a única actividade permitida pelo seu objecto social – afecta, em toda a sua extensão, afectando por isso necessariamente o seu núcleo central, o direito fundamental da Recorrente, dos seus legais representantes e trabalhadores “à iniciativa económica privada”, estabelecido no artigo 61º da Constituição da República Portuguesa.

G. Se para além dessa afectação total do núcleo central desse direito fundamental – ou melhor da sua total remoção da esfera jurídica da Recorrente –, tivermos em consideração que o acto foi praticado em violação, grave e grosseira, do regime jurídico pelo qual se rege o acesso ao exercício da actividade segurança privada, na medida em que a Entidade Requerida tomou a decisão de não renovar os dois Alvarás de que a Recorrente é titular depois de:

- por sua escolha, ter apenas ter apenas tramitado o procedimento (e apreciado os requisitos) relativamente a um deles, em manifesta violação do artigo 161º/2, alínea l), do CPA;

- não ter notificado a S... do relatório da inspecção realizada às suas instalações, em manifesta violação do artigo 29º/3 da Portaria n.º 273/2013;

- ter omitido até à tomada de uma decisão final as deficiências por ela supostamente detectadas, em manifesta violação do artigo 29º/3 da Portaria n.º 273/2013;

- ter negado à Recorrente o direito a reparar as deficiências por ela detectadas, em manifesta violação do artigo 29º/3 da Portaria n.º 273/2013;

- não ter procedido à realização de uma “nova inspecção” às instalações da Recorrente, em manifesta violação do artigo 29º/3 da Portaria n.º 273/2013;

- ter remetido à Requerente sucessivas missivas em que, sem qualquer fundamento jurídico, a notificou de que a decisão de não renovação dos Alvarás era definitiva, apesar de ser do seu conhecimento que ela se encontrava impugnada;

- ter por diversas vezes referido à Recorrente que ela deveria suspender de imediato a sua actividade “sob pena de cometimento de ilícito criminal, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 57º da Lei n.º 34/2013”.

- se se tiver tudo isso em consideração, dizia-se, pode apenas concluir-se que o acto em causa está também ferido de nulidade por força do regime do referido artigo 161º, n.º 2, alínea d), do CPA.

H. Em quarto lugar, o acto de não renovação dos Alvarás constitui, também pelo prisma da inequívoca violação do princípio do contraditório de que ele enferma, um acto nulo, nos termos do artigo 161º/2, alínea d) do CPA.

I. É, assim, desde logo, porque, como se expôs, o acto em causa foi praticado sem que a Requerente tenha alguma vez sido notificada do relatório das deficiências que lhe são imputadas ou tenha delas tido conhecimento por qualquer outra forma e sem que lhe tenha sido dada a possibilidade de, em devido tempo, as reparar ou sido ordenada uma “nova inspecção” – e tudo isto, como se viu também, em flagrante violação do artigo 29º/3 da Portaria n.º 273/2013 de 20 de agosto.

J. E é também assim porque, como se veio a perceber no final do procedimento, o acto tomado pela Entidade Requerida constituiu o pior e mais punitivo acto que uma pessoa colectiva pode ter, consubstanciado na impossibilidade de realizar a única actividade que, por força do princípio da especialidade do objecto a que estão adstritas todas as pessoas colectivas, ela pode realizar – em termos práticos, o acto em causa corresponde à extinção da Recorrente – na medida em que implicará a sua insolvência – ao desemprego de mais de 120 pessoas e a imediata colocação em situação de especial vulnerabilidade e alarme real de centenas de pessoas e bens.

K. Por último, importa salientar que, na pendência do procedimento em causa, o órgão instrutor veio a emitir uma a Circular n.º 07/SP/2015, de 14 de Setembro de 2015, através da qual o DSP – reconhecendo que o REASP impunha às empresas do sector um “conjunto de requisitos de ordem técnica, em relação às suas instalações operacionais, onde o grau de dificuldade de supressão era manifesto” – veio eliminar ou postergar no tempo a exigência do cumprimento de vários dos requisitos técnico-funcionais de que depende a atribuição e/ou renovação dos alvarás.

L. Tal circular é particularmente relevante para o caso sub judice, por um lado, porque a Entidade Requerida vem nela reconhecer expressamente que os requisitos técnico-funcionais – que tantos custos pessoais, técnicos e financeiros trouxeram à Recorrente – eram de um “grau de dificuldade de supressão manifesto”, o que, claro, contradiz flagrantemente um dos fundamentos da decisão de não renovação dos Alvarás da Recorrente, particularmente, a parte da decisão do recurso hierárquico em que se invoca que “toda a tramitação processual decorreu longamente e excedeu, largamente, o habitual” (ideia que repetiu, por exemplo, neste processo ou na acção principal).

M. Tal circular é ainda relevante pelo facto de uma das condições técnico-funcionais que a Entidade Requerida afirmava, na decisão de 7 de Julho de 2015, estar em incumprimento se encontrar directamente relacionada com um dos requisitos que, de acordo com a Circular n.º 07/SP/2015, de 14 de Setembro de 2015, passaram a estar dispensados até 1 de Setembro de 2018.

N. Ao atribuir à S... um tratamento altamente desfavorável face ao que, simultaneamente, ia concedendo aos outros operadores do sector – nomeadamente àqueles que, por se terem atrasado na implementação das adaptações ao REASP, iniciaram o respectivo procedimento mais tarde – a Entidade Requerida violou de forma flagrante o princípio da igualdade, o qual constitui, como se sabe, um dos mais basilares e axiais princípios estruturantes do ordenamento jurídico português, tendo igualmente violado alguns concretos imperativos de tratamento igualitário de índole constitucional que dele decorrem – desde logo, a obrigação que incumbe à Administração de “assegurar a igualdade de oportunidades” [cf. artigo 81º, b)] ou de guiar a sua actividade com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé [cf. artigo 266º/2] – razão pela qual, deve, também por esta via, o acto em causa ser tido como nulo, nos termos do artigo 161º/2, alínea d) do CPA.

O. Dessa forma, por estar em causa um acto nulo, e não apenas anulável, não há dúvida de que a acção de condenação à prática do acto devido, intentada 6 meses após o acto, foi proposta em devido tempo, não havendo, portanto, qualquer razão, juridicamente consistente, que possa determinar a extinção do presente processo cautelar (que daquele principal depende e é acessório) ou a caducidade da providência provisoriamente decretada.

P. Por último, considerando, por um lado, que a S... intentou já a acção principal e atendendo, por outro lado, que é o processo cautelar que, em função da sua dependência e acessoriedade, deve subordinar-se à acção principal (e não o contrário), mandaria a ordem natural das coisas que a questão da tempestividade do pedido de condenação à prática do acto devido, deduzido pela Recorrente, fosse apreciado em sede própria, isto é no âmbito do processo principal.

Q. Uma interpretação diferente do artigo 123, n.º 1, alínea a) do CPTA da que acima se propugna – isto é, uma interpretação segundo a qual cabe ao julgador do processo cautelar decretar a caducidade das providências com fundamento na intempestividade do pedido deduzido na acção principal sem que o julgador da acção principal, entretanto intentada, tenha ainda tomado qualquer decisão sobre tal questão – resulta numa inconstitucionalidade material da referida norma, assim invocada, por violação do direito dos cidadãos à tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (a qual inclui, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas), tudo, nos termos dos artigos 20º, n.os 1, 4 e 5, 202º, n.º 2, 205º, n.º 1 e 268º, n.º 4 da CRP, inconstitucionalidade que se argui para todos os devidos e legais efeitos.

R. De igual modo, também por idênticas razões, a interpretação do artigo 69º, n.os 2 e 3 do CPTA, no sentido de que a apreciação da tempestividade do pedido deduzido na acção principal pode ser primeiramente apreciada no processo cautelar para aferição da caducidade da providência e eventual extinção do processo resulta numa inconstitucionalidade material das duas referidas normas, assim invocadas, por violação do direito dos cidadãos à tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (a qual inclui, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas), tudo, nos termos dos artigos 20º, n.os 1, 4 e 5, 202º, n.º 2, 205º, n.º 1 e 268º, n.º 4 da CRP, inconstitucionalidade que se argui para todos os devidos e legais efeitos.

S. Por todo o exposto, o Tribunal recorrido violou precisamente os artigos 32º, n.º 10, 13º, 20.º, n.º 1, 58º, 61º, 81º, alínea b), 86º, n.º 1, 266º, n.º 2, 267º, n.º 5, 268º, n.os 3 e 4 da CRP, 6º, 7º, 8º, 9º, 12º, 152º, n.º 1, alínea a), 161º, n.º 2, alíneas d) e l), 162º, n.º 2, 163º, n.º 1 do CPA, 7º, 66º, n.º 2, 69º, n.os 2 e 3, 113º n.º 1, 123º n.os 1 e 3 do CPTA e 29º, n.º 3 da Portaria n.º 273/2013 de 20 de agosto, o que determina a revogação da Sentença sub judice.

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II. Matéria de facto.

Ficaram provados os seguintes factos, na decisão recorrida, sem preparos nesta parte:

1. A requerente solicitou à Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública a renovação dos Alvarás n.os 142 A e 142 C, que titulavam o exercício da sua actividade de segurança privada – cfr. docs. n.os 2 e 3 juntos com o requerimento inicial.

2. O pedido de renovação solicitado foi rejeitado por despacho datado de 03 de Julho de 2015, proferido pelo Director Nacional da Polícia de Segurança Pública, o que foi comunicado à requerente por ofício de 07 de Julho de 2015 – cfr. doc. n.º 4 junto com o requerimento inicial.

3. Da referida decisão de indeferimento a Requerente interpôs recurso hierárquico para o Ministro da Administração Interna – cfr. doc. n.º 5 junto com o requerimento inicial.

4. Por despacho de 10 de Março de 2016 da Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, foi negado provimento ao recurso hierárquico – cfr. doc. n.º 6 junto com o requerimento inicial.

5. A aludida decisão que negou provimento ao recurso hierárquico foi notificada à Requerente no dia 18 de Março de 2016 – cfr. doc. n.º 6 junto com o requerimento inicial.

6. O requerimento inicial que deu origem ao presente processo cautelar foi remetido via mail a 19.03.2016 – cfr. fls. 3 dos autos.

7. Por despacho de 08.04.2016 foi provisoriamente decretada a providência requerida, autorizando-se a requerente a prosseguir a sua actividade de segurança privada na pendência do presente processo cautelar – fls. 139 e ss. dos autos cautelares.

8. A petição inicial da acção principal a que correspondem os presentes autos cautelares foi remetida via mail a 26.09.2016 – cfr. consulta do SITAF (proc. n.º 1789/16.0BEBRG – fls. 2 desses autos).


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III - Enquadramento jurídico.

É este o enquadramento jurídico feito pela decisão recorrida:

“A requerente propôs o presente processo cautelar em vista da obtenção de alvará provisório, que a habilitasse à consecução da actividade a que se dedica, de segurança privada.

Mais requereu o decretamento provisório da providência, a coberto do regime decorrente do art. 131.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o que, como se deixou assente, lhe foi concedido, por despacho de fls. 139 e ss dos autos físicos [cfr. “7.” do probatório].

Em 15.09.2016, conclusos os autos, constatou-se que não dera entrada a acção principal de que o processo cautelar necessariamente depende.

Dispõe, com efeito, o artigo 113.º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

“O processo cautelar depende da causa que tem por objecto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respectivo.”

Mais se estabelecendo no art.º 123.º do mesmo diploma:

“Artigo 123.º

Caducidade das providências

1 - Os processos cautelares extinguem-se e, quando decretadas, as providências cautelares caducam:

a) Se o requerente não fizer uso, no respectivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que o pedido de adopção de providência cautelar se destinou;

b) Se, tendo o requerente feito uso desses meios, o correspondente processo estiver parado durante mais de três meses por negligência sua em promover os respectivos termos ou de algum incidente de que dependa o andamento do processo;

c) Se esse processo findar por extinção da instância e o requerente não intentar novo processo, nos casos em que a lei o permita, dentro do prazo fixado para o efeito;

d) Se se extinguir o direito ou interesse a cuja tutela a providência se destina;

e) Se se verificar o trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo principal, no caso de ser desfavorável ao requerente;

f) Se ocorrer termo final ou se preencher condição resolutiva a que a providência cautelar estivesse sujeita;

g) [Revogada].

2 - Quando a tutela dos interesses a que a providência cautelar se destina seja assegurada por via contenciosa não sujeita a prazo, o requerente deve, para efeitos da alínea a) do número anterior, usar essa via no prazo de 90 dias, contado desde o trânsito em julgado da decisão.

3 - A extinção do processo cautelar ou a caducidade da providência é reconhecida pelo tribunal, oficiosamente ou a pedido fundamentado de qualquer interessado, mediante prévia audição das partes.

4 - Apresentado o requerimento, o juiz ordena a notificação do requerente da providência para responder no prazo de sete dias.

5 - Concluídas as diligências que se mostrem necessárias, o juiz decide sobre o pedido no prazo de cinco dias.”

A estatuição da norma espelha justamente a natureza instrumental e acessória do processo cautelar, relativamente à acção principal, de que o primeiro ontologicamente depende.

Com efeito, o processo cautelar destina-se à obtenção, a título provisório, do que só por meio do correspondente processo principal pode definitivamente ser concedido (excepção feita ao mecanismo previsto no art. 121.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

A este propósito, esclarecem AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, com particular pertinência para a situação em apreço:

“Decorre da instrumentalidade das providências cautelares em relação ao processo principal que, uma vez tendo elas sido decretadas, a respectiva subsistência depende de vicissitudes relativas àquele processo, da ocorrência das quais pode resultar a respectiva caducidade.

(...)

É assim, desde logo, que recai sobre o requerente o ónus de desencadear o processo principal (...). Quando o processo cautelar tenha sido intentado como preliminar do processo principal, o decurso do prazo sem que este último tenha sido intentado conduz à extinção do processo cautelar e à caducidade da providência que nele tenha sido decretada.

Isto há-de valer, desde logo, para as acções relativas a actos administrativos arguidos de anulabilidade, caducando as providências cautelares que já tenham sido decretadas se aquelas acções não forem propostas dentro do respectivo prazo.” [Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 832 a 833, em anotação ao art. 123º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos].

O excerto transcrito esclarece justamente acerca dos efeitos que decorrem desta relação de acessoriedade e dependência, designadamente no que toca aos efeitos da não propositura (atempada) da acção principal a que corresponda a requerida tutela cautelar.

A reforma da legislação processual administrativa operada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10, veio igualmente esclarecer algumas dúvidas que se suscitavam na vigência da anterior redacção do artigo 123.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a propósito da qual escreviam os autores acima citados:

“Ao contrário do que sucede em processo civil com o homólogo artigo 389.º [actual 373.º] do Código de Processo Civil, o presente artigo não prevê a caducidade do próprio processo cautelar, quando algumas das circunstâncias previstas no n.º 1 ocorra ainda na pendência deste processo, em momento anterior ao da adopção de qualquer providência (v.g., se verifique que o processo principal ainda não foi intentado e já não o poderá ser, por caducidade do direito de acção). Para essas situações, a jurisprudência tem-se, no entanto, orientado no sentido da aplicabilidade do artigo 389.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º do CPTA.”

Com a nova redacção do artigo 123.º (cujo corpo do artigo corresponde, nos seus exactos termos, ao daquele 389.º do Código de Processo Civil, antes da respectiva alteração), veio deixar-se claro, precisamente, que os efeitos que decorrem da instrumentalidade da providência relativamente à acção principal se fazem sentir mesmo nos casos em que não haja ainda sido decretada qualquer providência, no decurso do processo cautelar.

Assim, ao prever-se a extinção dos processos cautelares e, “quando decretadas”, a caducidade das providências, deixa-se claro que o efeito da inércia do requerente quanto à propositura ou tramitação da acção principal se repercute sobre os autos cautelares, independentemente da providência requerida já ter sido, ou não, decretada.

Tudo o que vem de se dizer releva, incisivamente, no caso dos autos.

Descendo, assim, às concretas circunstâncias do caso que nos ocupa, temos que o requerimento inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada em 19.03.2016 [cfr. “6.” do probatório].

Mais temos que a acção principal de que os presentes cautelares dependeriam deu entrada em juízo a 26.09.2016 [cfr. “8.” dos factos provados].

Mesmo ignorando a limitação do período de suspensão do prazo de impugnação contenciosa, decorrente da utilização de meios de impugnação administrativa, que é imposta pelo art. 59.º, n.º 4, 2ª parte, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, temos como data relevante a de 18 de Março de 2016, coincidente com o momento em que a requerente foi notificada da decisão de indeferimento do recurso hierárquico.

E mesmo considerando que os presentes autos respeitam a uma providência de tipo antecipatório, a que corresponde uma acção principal de condenação à prática de acto devido, não pode obviar-se aos comandos contidos no art. 69.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, onde se prescreve, em matéria de prazos de propositura da acção de condenação à prática de acto legalmente devido, com relevo para a hipótese em apreciação:

“2 - Nos casos de indeferimento, de recusa de apreciação do requerimento ou de pretensão dirigida à substituição de um ato de conteúdo positivo, o prazo de propositura da acção é de três meses, sendo aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 58.º e nos artigos 59.º e 60.º

3 - Quando, nos casos previstos no número anterior, esteja em causa um ato nulo, o pedido de condenação à prática do ato devido pode ser deduzido no prazo de dois anos, contado da data da notificação do ato de indeferimento, do ato de recusa de apreciação do requerimento ou do ato de conteúdo positivo que o interessado pretende ver substituído por outro, sem prejuízo, neste último caso, da possibilidade, em alternativa, da impugnação do ato de conteúdo positivo sem dependência de prazo.”

Do enquadramento legal supra exposto, aliado às circunstâncias de facto descritas, resulta, sem margem para dúvidas, situação de inércia da requerente, enquadrável na disposição prevista na al. a) do n.º 1 do art. 123.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Na verdade, à vista dos elementos de facto e de direito mencionados, é indiscutível que a requerente não fez uso, dentro do respectivo prazo de três meses, do meio contencioso destinado à tutela dos interesses a que o pedido de adopção da providência se destinou.

Sendo certo que, quanto resulta do requerimento inicial, o vício do acto de indeferimento em que a requerente funda a respectiva invalidade e, em consequência, a sua pretensão, corresponde ao de erro sobre os pressupostos de facto, gerador da mera anulabilidade daquela decisão administrativa.

Assim, a hipótese fáctica em apreço é claramente enquadrável no n.º 2 do citado artigo 69.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o que evidencia em muito ter sido ultrapassado o prazo de três meses aí previsto.

Com efeito, mesmo tomando como data relevante para este efeito a de 18.03.2016, data em que foi notificada à autora a decisão que não concedeu provimento ao recurso hierárquico, em 26.09.2016 estaria há muito precludida a possibilidade de instauração da acção principal, por decurso do respectivo prazo.

A situação é, naturalmente, mais explícita ainda quando se tem em atenção que a decisão de indeferimento do pedido de renovação do alvará foi comunicada à autora por ofício de 07.07.2015 e que o prazo legal de decisão do recurso hierárquico corresponde a 90 dias (cfr. art. 128.º do Código do Procedimento Administrativo), nos termos e para os efeitos da suspensão decorrente do mencionado artigo 59.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Surge, assim, perfeitamente inequívoco que a requerente não interpôs, em devido tempo, a competente acção de condenação à prática de acto devido, de que a presente acção cautelar é meramente acessória.

A consequência processual que daqui decorre é igualmente inequívoca, à face da supra mencionada alteração da redacção do corpo do artigo 123.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que passa a referir-se não só à caducidade da providência (quando) decretada, mas ainda à extinção do próprio processo cautelar, nos termos acima explanados.

Com efeito, quer se tenha ou não por integrador do conceito de “decretada”, tal como consta do corpo do artigo 123.º, o decretamento provisório da providência ao abrigo do regime consagrado no art. 131.º (como sucede in casu), certo é que a inércia da requerente tem como efeito a extinção do presente processo.

Na verdade, mesmo que se considerasse (entendimento que apesar de tudo não se sufraga) que seria necessário – para efeito de enquadramento na previsão contida no art. 123.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – o decretamento da providência no culminar do processo cautelar, com obtenção da correspondente decisão final de adopção da providência, a nova redacção do artigo veio determinar a extinção do processo mesmo antes de ou sem que tenha sido obtida tal decisão final.

Assim, da nova redacção do artigo resulta indubitavelmente que, mesmo que se tenha por não (decisivamente) decretada a providência requerida, a inércia da requerente importará forçosamente a extinção dos autos cautelares.

Entende-se, porém, que tendo sido provisoriamente decretada a providência a coberto do regime decorrente do art. 131.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a caducidade imposta pelo artigo 123.º do mesmo código opera sobre a mesma, por forma a fazer cessar os efeitos da tutela urgente (ainda que provisoriamente) concedida.

Eis que, assim, a conclusão sobre a caducidade da providência e a extinção do presente processo surgem linearmente.

Uma última palavra quanto ao argumento esgrimido pela requerente no tocante ao regime derivado do art. 369.º do Código de Processo Civil, referente ao mecanismo de inversão do contencioso.

Esclarece-se, quanto a este ponto, que o regime consagrado como novidade na reforma da lei processual civil não obsta à produção dos efeitos vindos de enunciar.

Na verdade, o regime de inversão do contencioso é o paralelo civilista ao mecanismo especial previsto no art. 121.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, para o processo administrativo.

Com efeito, o instituto consagrado na lei processual administrativa destinado à antecipação da decisão de mérito, com conversão da tutela provisória em tutela final, urgente, constitui lei especial, à face da legislação processual civil – a qual, nos termos da remissão operada pelo art. 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, é de aplicação meramente subsidiária.

Assim, só na ausência de um meio próprio seria viável ou lícito o recurso ao mecanismo previsto naquele art. 369.º – o qual, sempre se diga, nunca seria de molde a obviar aos imperativos decorrentes do regime prescrito para a caducidade das providências cautelares, em homenagem à ideia de instrumentalidade que preside, tanto na lei processual administrativa, como na civil, a este tipo de tutela urgente.

Por todo o exposto, deve declarar-se a caducidade da providência provisoriamente decretada e a extinção do presente processo cautelar.

Em matéria de custas, dispõe o art. 539.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que a taxa de justiça paga no processo cautelar será atendida para efeitos de custas em sede de acção principal, nada havendo, pois, a decidir nesta sede.”




A Recorrente ataca a decisão recorrida, no essencial, por entender que imputou ao acto impugnado vícios geradores de nulidade e não de mera anulabilidade.

Aceitando assim o discurso da decisão recorrida no pressuposto de o acto ser meramente anulável, único (e essencial) pressuposto que entende errado na decisão recorrida.

Mas não tem razão quando aponta ao acto impugnado vários vícios geradores de nulidade, nos termos do disposto no artigo 133º do Código de Procedimento Administrativo, pois em abstracto não são vícios dessa natureza.

Está aqui em causa o acto de indeferimento do pedido de renovação das licenças de que era titular para o exercício da actividade de segurança privada.

Invoca em primeiro lugar que terá de necessariamente conduzir à sua nulidade por preterição total do procedimento legalmente exigido relativamente a um dos alvarás, o Alvará 142 A.

Apoia-se no ponto 5 da informação que serviu de base ao indeferimento do recurso hierárquico, a decisão ora impugnada (documento n.º 6 junto com a petição inicial:

5. Do mesrno modo, não procede a argurnentação que, agora, procura a empresa trazer à colação, para que toda a tramitação processual referente aos Alvarás C seja transformada, sem rnais, em concessão de Alvarás A, Não só os requisitos a cumprir são diferentes, à luz da legislação aplicável, e a que nos temos referido, como todo o processo administrativo, a cumprir pelo interessado e a ser instruído e fiscalizado pela PSP, deverá, também, ser outro”.

Esta afirmação deve no entanto ser contextualizada no objecto do recurso hierárquico, definido logo no início da referida informação:

“ASSUNTO: RËCURSO HlËRÁRQUICO INTERPOSTO POR S... - SEGURANÇA

PRIVADA LDA., RELATIVO À RENOVAÇÃO DOS ALVARÁS 142 A e 142 C -

RÊQUERIMENTO

1. A empresa S... - Segurança Privada, Lda., apresentou um requerimento, em 4 de fevereiro de 2016, que se dá aqui por integralrnente reproduzido para os devidos e legais efeitos, na sequência da interposição anterior de um recurso hierárquico, tendo em vista a revogação do despacho que rejeita o processo de renovação dos Alvarás 742 A e 142 C, emitidos ao abrigo do Decreto-Lei n's 35/2OO4' de 21 de fevereiro, e ambos válidos até 21 de outubro de 2013, entregues no Departamento de segurança Privada em 26 de fevereiro de 2014, proferido pelo Senhor Diretor Nacional da PSP, Superintendente Luís Manuel Peça Farinha, em 3 de julho de 2015”.

Ou seja a primeira afirmação não reconhece a inexistência de qualquer procedimento tendo por objecto o alvará 142 A apenas afirma que para este alvará não serve o que foi colhido para o alvará 142 C.

Mas a negação de qualquer procedimento relativamente ao Alvará 142 A é a negação do evidente: foi pedida a renovação de ambos os alvarás, foi indeferido esse pedido e este acto de indeferimento da renovação de ambos os alvarás foi o objecto da decisão, também negatória, do recurso hierárquico.

Não se pode, por isso, falar de preterição absoluta de procedimento legalmente exigido para o Alvará 142 A.

O mesmo se diga em relação à invocada falta absoluta de fundamentação quanto ao indeferimento da renovação do Alvará 142 A.

A informação que serviu de base ao indeferimento ora impugnado (documento 6 junto com a petição inicia) aponta, de forma clara e suficiente, os fundamentos de facto e de direito para o indeferimento de ambos os alvarás, em conjunto. Acrescentado, quanto ao Alvará 142 A, a circunstância de não poder ser aproveitados para o seu deferimento os actos de instrução praticados em relação à renovação do Alvará 142 C.

Em todo o caso, como tem sido entendimento pacífico na nossa jurisprudência, por regra a falta de fundamentação, como preterição de um direito instrumental, gera a mera anulabilidade; só gera a nulidade, nos termos do disposto na alínea f) do n.º2 do artigo 133º do Código de Procedimento Administrativo (de 1991; alínea g) do n.º 2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo de 2015) se a fundamentação servir o conteúdo essencial de um direito fundamental, o que aqui não é o caso, como melhor veremos adiante.

Como se sustenta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26.09.2002, no processo 0360/02:

“Este Supremo Tribunal tem, reiteradamente, decidido que a falta de fundamentação, consiste num vício de forma que não é gerador de nulidade mas de mera anulabilidade. Vejam-se neste sentido e a título meramente indicativo os Acórdãos da Secção, de 30/11/1995, no recurso n° 35.872, de 21/3/2002, no recurso n° 221/02 e do Pleno de 8/10/1998, no recurso 34.722, que veio reforçar aquela linha jurisprudencial de que não se vislumbram agora razões para divergir. Como se pode ler no primeiro daqueles Acórdãos, "Com efeito, nem todos os elementos do acto administrativo enumerados no n° 2 do artigo 123° do Código do Procedimento Administrativo constituem elementos essenciais do acto para efeitos do disposto no n° 1 do artº 133° do mesmo diploma, sendo entendimento dominante que a falta de fundamentação é geradora de mera anulabilidade. A história dos preceitos confirma este entendimento: na 2ª versão (1982) do Projecto do então chamado Código do Processo Administrativo Gracioso, após se estabelecer a regra de que eram nulos os actos a que faltasse qualquer dos seus elementos essenciais (n° 1 do artigo 174º), também se cominava a nulidade para os actos que carecessem em absoluto da fundamentação legalmente exigida (alínea f) do n° 2 do mesmo artigo), o que implicava que a fundamentação não era considerada elemento essencial do acto; na versão definitiva do Código, retirou-se do elenco do n° 2 do correspondente artº 133° a menção aos actos que carecessem em absoluto da fundamentação legalmente exigível, “pois a sanção adequada para eles não é a nulidade, mas a anulabilidade” (DIOGO FREITAS DO AMARAL e outros, Código do Procedimento Administrativo Anotado, 2ª edição, Coimbra, 1995, págs. 197 e 212; porém, admitindo a existência de casos em que a falta de fundamentação, por ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, gera nulidade, nos termos da alínea d) do n° 2 do citado artigo 133º, cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Volume II, Coimbra, 1995, págs. 96-98 e 151". Sendo a fundamentação dos actos administrativos em si mesma um direito instrumental ou formal, com vista à defesa de outros de conteúdo material, não é de considerar como direito fundamental, salvo se em concreto serve a defesa de um direito desta natureza, o que não está adquirido nos autos.”

No mesmo sentido, o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 28.06.2013, no processo 01562/12.5 PRT.

O mesmo vale em relação à alegada violação do princípio do contraditório por o acto impugnado ter sido praticado, segundo invoca a Recorrente, sem que “tenha alguma vez sido notificada do relatório das deficiências que lhe são imputadas ou tenha delas tido conhecimento por qualquer outra forma e sem que lhe tenha sido dada a possibilidade de, em devido tempo, as reparar ou sido ordenada uma ‘nova inspeção’ ”.

O exercício do contraditório é um direito instrumental em relação ao direito a exercer, neste caso, uma actividade económica.

No caso a Recorrente invoca que o acto ora impugnado veda aos seus legais representantes e trabalhadores o direito essencial “à iniciativa económica privada”, estabelecido no artigo 61º da Constituição da República Portuguesa, no caso, de segurança privada.

Mas não procede esta arguição.

Só a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental conduz à nulidade do acto – alínea d) do n.º2 do artigo 133º do Código de Procedimento Administrativo de 1991 (alínea d) do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo de 2015).

Ora o direito de iniciativa económica privada, admitindo que é um direito digno da tutela dos “direitos, liberdades e garantias fundamentais”, não é um direito absoluto, antes está sujeito a limitações, de interesse público, incluindo as decorrentes da necessidade de licenciamento de acordo com as normas legais de direito ordinário.

Como se refere no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 09.11.2012, no processo 00382/07.3 CBR (ponto I do sumário):

“O direito à livre iniciativa económica privada, incluindo no setor da saúde, não constitui um direito absoluto mas antes um direito que, quer em termos constitucionais quer em termos legais, se mostra e pode ser objeto de introdução pelo Estado de limites e de restrições decorrentes, mormente, do “interesse geral” e do “assegurar, nas instituições de saúde de adequados padrões de eficiência e de qualidade”, bem como das necessidades e exigências ao nível, por exemplo, da “disciplina e controlo ao nível da produção, da distribuição, comercialização e uso dos meios de tratamento e diagnóstico”, por forma a que o Estado não se demita e cumpra aquilo que são as suas incumbências prioritárias em matéria do assegurar do direito à proteção da saúde [art. 64.º, n.º 3 da CRP].”

Ou seja, com este indeferimento, a Recorrente não ficou impedida, de forma absoluta, de exercer uma actividade económica. Ficou impedida de exercer a actividade económica de segurança privada nos moldes requeridos.

A ser ilegal o indeferimento (designadamente por erro nos pressupostos de facto e de direito), será apenas anulável, face à regra geral de invalidade consignada no artigo 135º do Código de Procedimento Administrativo (de 1991).

O que significa também que não procede o argumento, acrescentado pela Recorrente de que o acto impugnado “foi praticado em violação, grave e grosseira, do regime jurídico pelo qual se rege o acesso ao exercício da atividade segurança privada”.

Não sendo o caso da violação do conteúdo essencial de um direito fundamental ou outra invalidade que determine a nulidade, a violação de lei, em particular a violação do artigo 29º, n.º3, da Portaria n.º 273/2013 de 20 de Agosto, ou a violação de princípios jurídicos, como princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, ainda que evidente, grave e grosseira não está prevista como causa de nulidade do acto.

Mostra-se por isso acertada a decisão de julgar caduca a providência decretada por não ter sido interposta a acção principal no prazo legal de 3 meses, face á mera anulabilidade do acto impugnado – artigo 58º, n.º1, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Finalmente, não procede o argumento de que a caducidade do direito de acção deve ser declarada primeiro na acção principal e só depois no processo cautelar, sob pena de inconstitucional interpretação do artigo 123, n.º 1, alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva, consignado nos artigos 20º, n.os 1, 4 e 5, 202º, n.º 2, 205º, n.º 1 e 268º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Dispõe o artigo 123.º n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

“Os processos cautelares extinguem-se e, quando decretadas, as providências cautelares caducam:

a) Se o requerente não fizer uso, no respectivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que o pedido de adopção de providência cautelar se destinou;”

Não distingue o preceito as situações em que o requerente não fez uso, de todo, do meio contencioso principal, ou, como aqui sucede, quando fez uso mas intempestivo.

Ora no caso de não fazer uso, de todo, do meio principal, seria impossível declarar primeiro a caducidade do direito de acção no processo principal.

E não se vê qualquer razão para estabelecer um regime jurídico diferente e impor, contra a letra da lei, que no caso de ter sido interposta a acção principal se declare primeiro no processo principal a caducidade.

É que a declaração de caducidade da decisão cautelar, neste caso provisória, tem uma natureza e uma finalidade distintas e autónomas da declaração de caducidade do direito de acção.

A declaração de caducidade da decisão cautelar, aqui provisória, destina-se a pôr termo a uma definição jurisdicional da situação do Requerente apreciada apenas em termos perfunctórios, sumários e provisórios, porque cautelar e provisória.

Se a decisão do processo cautelar é célere e sumária, justifica-se uma decisão que lhe ponha termo também célere e sumária.

A declaração de caducidade do direito de acção vale para o processo principal, põe termo definitivo à possibilidade do exercício de um direito.

Não se verifica, pois, qualquer violação do direito de tutela jurisdicional efectiva nesta interpretação, adoptada na decisão recorrida, do artigo 123.º n.º 1, aliena a), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Em suma, a decisão recorrida não violou, antes respeitou, os preceitos legais aplicáveis, e, em concreto, não violou os artigos 13º, 20º, n.os 1, 4 e 5, 32º, n.º 10, 58º, 61º, 81º, alínea b), 86º, n.º 1, 202º, n.º 2, 205º, n.º 1 e 266º, n.º 2, 267º, n.º 5, 268º, n.os 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 6º, 7º, 8º, 9º, 12º, 152º, n.º 1, alínea a), 161º, n.º 2, alíneas d) e l), 162º, n.º 2, 163º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo, os artigo s 7º, 66º, n.º 2, 69º, n.os 2 e 3, 113º n.º 1, 123º n.os 1 e 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, nem o artigo 29º, n.º 3 da Portaria n.º 273/2013 de 20.08.


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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional pelo que mantêm a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.


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Porto, 13.01.2017
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Garcia
Ass.: Alexandra Alendouro