Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02015/15.5BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Irene Isabel Gomes das Neves
Descritores:PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS; OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO;
195º N.º 1 DO CPC;
Sumário:
I. A falta de notificação ao Recorrente da junção oficiosa aos autos de documentos, viola o princípio do contraditório, uma vez que não permitiu a este pronunciar se sobre o teor dos mesmos documentos, e essa violação teve influência na decisão da causa.

II. O princípio do contraditório consagrado expressamente no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, também aplicável ao processo judicial tributário, destina-se a impedir que seja proferida decisão sem que seja dada oportunidade a qualquer das partes de se fazer ouvir.

III. A omissão dessa notificação e a consequente inobservância do princípio do contraditório, sendo susceptível de influir no exame e na decisão da causa, poderá consubstanciar nulidade de processo enquadrável no artigo 195º, n.º 1 do CPC.

IV. Deste modo, impõe-se a anulação de todos os actos processuais praticados posteriormente à junção dos citados documentos, com a baixa dos autos ao tribunal recorrido para a prática dos actos processuais necessários e subsequentes.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
1.1. «AA» (Recorrente), notificado da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 20.03.2021, que no âmbito de impugnação judicial por si deduzida contra a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, que apresentara da liquidação de IRS, referente ao exercício de 2013, no montante global de € 17.511,02, a julgou parcialmente procedente, anulando a liquidação na parte do rendimento global que excede o montante de € 252.148,86, inconformado vêm dela interpor o presente recurso jurisdicional.
Alegou, formulando as seguintes conclusões:
«(...)
A. O Impugnante nos presentes autos em que figura como Impugnada o Serviço de Finanças ..., Direcção de Finanças ... – Fazenda Pública, tendo sido notificado da Douta Sentença, e por não se conformar com a ora decisão recorrida que julgou a impugnação parcialmente procedente e considerou que os rendimentos a considerar para efeitos de IRS no ano de 2013 se fixam no valor de 252.148,86€,
B. Isto ao contrário do Impugnante que na impugnação judicial contra a liquidação n.º ...72, no valor de 17.647,33€, pedia que o valor de rendimentos de trabalho a considerar para efeitos do art.º 2.º do CIRS foi apenas de 163.965,54€, face à não sujeição do valor de 105.402,00€, por não serem considerados rendimentos e por terem sido pagos pela Companhia Seguradora, a título de indemnização por ITA, conforme o art.º 12.º, al. b), do CIRS,
Nulidades:
C. Por um lado, a omissão de pronúncia, pois, além da Decisão recorrida não ter relevado o requerimento do Impugnante e documento n.º 1 ao 16-09-2016 requerimento com declaração da Entidade Empregadora da qual resulta expressamente que todas as quantias pagas durante o período de incapacidade temporária absoluta (ITA) do Impugnante desde 03-12-2012 até 18-08-2013 foram suportadas pela Companhia de Seguros [SCom01...], contrariamente ao Despacho de 19-01-2017 (pág. 2, penúltimo parágrafo).
D. Por outro lado, os documentos juntos pelo Tribunal em 24-01-2017, pela Companhia de Seguros [SCom01...] em 13-03-2017 e pela Entidade Empregadora em 17-03-2017 não foram notificados ao Impugnante.
E. O que se suscita ao abrigo dos art.ºs 2.º do CPPT e art.ºs 3.º, 415.º do CPC, de acordo com o entendimento do Acórdão prolatado pelo TCAS nº 12356/1, 31.07.2015, de consulta em www.dgsi.pt.
F. O que também constitui nulidade por omissão de pronúncia ao abrigo do art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
G. Consequentemente, devem ser anulados o despacho e a sentença em crise, ordenada a baixa dos autos de modo a sanarem-se as nulidades processuais situadas a montante daqueles, se a tal nada obstar.
H. Ao que se provirá no dispositivo, o que determina a prejudicialidade no conhecimento das demais questões objeto de recurso conforme os art.ºs 122.º e 123.º do CPPT e art.º 608º nº.2 do CPC.
Impugnação dos factos provados:
I. O Tribunal não deveria ter dado como provados os factos em 4 e 14 do modo que o fez, pois, não corresponde à prova produzida.
J. O Impugnante apresentou nos presentes autos com data de 16-09-2016 requerimento com declaração da Entidade Empregadora da qual resulta expressamente que todas as quantias pagas durante o período de incapacidade temporária absoluta (ITA) do Impugnante desde 03-12-2012 até 18-08-2013 foram suportadas pela Companhia de Seguros [SCom01...].
K. O Despacho de 19-01-2017 (pág. 2, penúltimo parágrafo): “…mantendo-se o respetivo articulado nos autos no que respeita aos demais artigos e documento junto, cuja junção aos autos se admite, como documento superveniente, ao abrigo do artigo 423.º, n.º 2 do CPC, ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT, por se poder mostrar útil à decisão da causa.”
L. Com data de 24-01-2017 o Juízo do Trabalho de ..., Juiz ..., juntou a petição inicial e os documentos do processo de acidente de trabalho com o n.º ..65/13.7TTBRG, instaurados pelo Impugnante contra a Companhia de Seguros [SCom01...] e contra a Entidade Empregadora [SCom02...] SAD,
M. Desses documentos resulta que a responsabilidade por acidente de trabalho havia sido transferida para a Companhia de Seguros [SCom01...].
N. Com data de 13-03-2017 a Companhia de Seguros [SCom01...] apresentou requerimento com os documentos de “recibos de acidente de trabalho” no valor global de 105.402,00€, a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta,
O. E, por último, a Entidade Empregadora [SCom02...], SAD, apresentou requerimento em 17-03-2017 do qual referem que o Impugnante esteve de baixa médica desde 03-12-2012 até 19-08-2013, que durante esse período cumpriu com o contrato de trabalho e naquele período estava vigente o seguro de acidentes de trabalho com a Companhia de Seguros [SCom01...].
P. Dada vista nos autos ao Magistrado do Ministério Público, foi emitido parecer no sentido da procedência do pugnado, por considerar que a indemnização que foi paga está abrangida pelo disposto no artigo 12.º n.º 1 alínea b) do CIRS, não tendo incidência em IRS (a fls. 224 e 225 do processo físico).
Q. No facto provado 4 onde se lê “€441.86,00” deve ler-se “€44.186,00” e onde se lê “perda de salário” deve ler-se “recibos de acidente de trabalho por perda de salário” e no final ser acrescentado que “o valor global foi de 105.402,00€ pelas incapacidades temporárias pelo acidente de trabalho”
R. No facto provado em 14 deverá ser alterado/acrescentado na parte final (de acordo com o requerimento completo apresentado pela Entidade Empregadora de 17-03-2017 nos autos): “…6. Mais se informa que na altura e conforme imposição legal a [SCom02...] SAD mantinha em vigor um seguro de acidentes de trabalho, que havia outorgado com a “[SCom01...] Companhia de Seguros, SA”.
S. Pelo que considerando a prova produzida deverão ser alterados os factos provados em 4 e 14 da Sentença, reportados aos pagamentos realizados pela Companhia de Seguros [SCom01...], a título de indemnizações por incapacidades temporárias por acidente de trabalho, no valor global de 105.402,00€.
T. Valor esse que está a ser incorrectamente considerado como rendimentos de trabalho na declaração de IRS de 2013 e aqui impugnada, conforme a seguir melhor se explicará o Direito aplicável.
Erro de julgamento:
U. O Tribunal incorreu em erro de julgamento, inclusive nas páginas 10 e 11 da decisão recorrida, inclusive: “Para efeitos fiscais, o referido montante (€105.402,00) auferido pelo Impugnante tem a natureza de remuneração atribuída em razão da sua prestação de trabalho por conta de outrem, enquadrável no nº 2 do artigo 2.º do CIRS, improcedendo assim o alegado.”
V. O Impugnante esteve com incapacidade temporária de 03.12.2012 a 19.08.2013 e, durante esse período de tempo, recebeu a título de indemnização pela ITA do acidente de trabalho, de co-seguro, a quantia de 105.402,00€.
W. Enquanto de rendimentos de trabalho, no ano de 2013, apenas recebeu a quantia de 163.965,54€, tendo, as quantias sido liquidadas ao Impugnante, pela entidade empregadora, ao abrigo do contrato de seguro, no valor global de 105.402,00€,
X. O Impugnante fez prova de quais os rendimentos recebidos a título de trabalho por conta de outrem, conforme o art.º 2º do CIRS, bem como de quais os rendimentos recebidos, pelos pagamentos do co-seguro da incapacidade temporária absoluta, ao abrigo do art.º 12º do CIRS.
Y. Tratando-se de presunções de incidência tributária, estas são sempre ilidíveis, conforme expressamente dispõe, o art.º 73º da LGT e o art.º 342.º do Código Civil, ónus da prova que o Impugnante cumpriu integralmente.
Z. Apenas foram rendimentos de trabalho por conta de outrem estarão sujeitos a IRS do ano de 2013 no valor global de 163.965,54€, sendo que quanto à indemnização auferida relativa aos períodos de ITA de acidente de trabalho está isenta por não ter incidência de IRS.
AA. Portanto, por essa razão, tem de ser desconsiderado o valor de 105.402,00 €, por não serem considerados rendimentos e por terem sido pagos pela Companhia Seguradora, a título de indemnização por ITA, na declaração de IRS de 2013, ao abrigo do art.º 12.º, alínea b), do CIRS, estava isenta de incidência.
BB. Nesse sentido o art.º 12º, prevê a delimitação negativa da incidência, IRS, nomeadamente que: Não incide IRS, salvo quanto às prestações previstas no regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na sua redação atual, sobre as indemnizações devidas em consequência de lesão corporal, doença ou morte, pagas ou atribuídas, nelas se incluindo as pensões e indemnizações auferidas em resultado do cumprimento do serviço militar: (…) b) Ao abrigo de contrato de seguro, decisão judicial ou acordo homologado judicialmente; - Negrito e sublinhado nosso.
CC. O Impugnante recebeu como indemnização por ITA da Seguradora o valor de 105.402,00€, valor esse isento (cfr. art.º s 11.º e 19.º do DOCUMENTO N.º 7), o qual indevidamente foi incluído na liquidação de IRS de 2013, no valor global de 293.148,86€.
DD. Assim, quanto à impugnada notificação da liquidação de IRS de 2013, nos termos em que foi feita, nada sendo devido pelo Impugnante à Impugnada, muito menos a quantia exequenda de 17.647,33€, pois o Impugnante não tem de pagar nada à Impugnada.
EE. Tem o contribuinte o direito de ser reembolsado das retenções e contribuições retidas e pagas a mais, no valor de 54.288,86€ (cinquenta e quatro mil e duzentos e oitenta e oito euros e oitenta e seis cêntimos) ao abrigo dos art.ºs 93.º e ss. do CIRS e do art.º 78.º da LGT.
FF. Pelo que deverá a Sentença ser revogada e substituída por outra que julgue a impugnação absolutamente procedente.
GG. Nesse sentido o parecer do Ministério Público de 10-12-2018: “Face aos elementos probatórios coligidos nos autos e da análise dos documentos entretanto juntos (cfr. fls. 202 e ss.), afigura-se-nos que a indemnização que foi paga está abrangida pelo disposto no artº 12º nº1b) do CIRS, logo, não tem incidência em IRS. Pelo exposto, somos de parecer que a Impugnação Judicial deve ser julgada procedente.”
HH. Pelo que deverá ser revogada a Sentença recorrida e substituída por outra que julgue a impugnação judicial absolutamente procedente, e quanto ao ano de 2013 ser considerado apenas o valor 163.965,54€ a título de rendimentos de trabalho do art.º 2.º do CIRS e a não sujeição do valor de 105.402,00€, por não serem considerados rendimentos e por terem sido pagos pela Companhia de Seguros [SCom01...] SA, a título de indemnização por ITA, conforme o art.º 12.º, al. b), do CIRS.

Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável requer a Vossas Excelências se dignem admitir o presente recurso e a julgar o mesmo procedente, revogando-se a douta sentença e substituída por outra que julgue a impugnação judicial absolutamente procedente, e quanto ao ano de 2013 ser considerado apenas o valor 163.965,54€ a título de rendimentos de trabalho do art.º 2.º do CIRS e a não sujeição do valor de 105.402,00€, por não serem considerados rendimentos e por terem sido pagos pela Companhia de Seguros [SCom01...] SA, a título de indemnização por ITA, conforme o art.º 12.º, al. b), do CIRS.».
1.2. A Recorrida (Autoridade Tributária e Aduaneira), notificada da apresentação do presente recurso, não apresentou contra-alegações.
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a fls. 328 do SITAF, pugnando pela improcedência do recurso.
1.4. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cf. artigo 657º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida enfermas das nulidades por omissão de pronúncia e violação do princípio do contraditórios que lhe são assacadas, se incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e, bem assim, erro na aplicação do direito.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
« Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos:
1) Em 21.03.2011 foi outorgado contrato de trabalho desportivo entre o [SCom02...] SAD e «AA» – cfr. fls. 35 e 39 do processo físico.
2) Foi outorgado entre o [SCom02...] SAD e a Companhia de Seguros [SCom01...], SA um contrato de co-seguro, titulado pela apólice n.º ...89 respeitante a produtos de acidentes de trabalho, no qual está incluído «AA» - cfr. fls. 99 a 107 do processo físico.
3) Em 3.12.2012 «AA» sofreu um acidente de trabalho, tendo tido alta em 1.08.2013 – cfr. fls. 108 do processo físico.
4) Na sequência do acidente a que se alude em 3), a Companhia de Seguros [SCom01...], SA pagou ao [SCom02...] SAD em 28.03.2013 o montante de €12.887,56, em 16.05.2013 o montante de €28.076,53, em 25.10.2013 o montante de €441.86,00, em 28.03.2013 o montante de 20.251,91 a título de perda de salário do sinistrado «AA» pelo período em que esteve incapacitado para o trabalho entre 3.01.2013 a 19.08.2013 – cfr. fls 202 a 206 do processo físico.
5) Em 24.02.2014 o [SCom02...] SAD emitiu a declaração de IRS em nome de «AA», declarando o total de rendimentos sujeitos no montante de €252.148,86 – cfr. fls. 213 do processo físico.
6) Do sistema informático da DGCI consta que o [SCom02...] SAD declarou ter pago a «AA» o montante de €293.148,86 – cfr. fls. 9 do processo de reclamação graciosa (RG) junto aos autos.
7) Em 5.12.2014 foi apresentada a declaração de rendimentos de IRS, Modelo 3 do ano de 2013, tendo sido declarado no Anexo A, quadro 4 A o valor de €163.965,54, respeitante a rendimentos – cfr. fls. 6 a 8 do processo de RG junto aos autos.
8) Detectadas irregularidades pelo Sistema Informático da Autoridade tributária e Aduaneira na declaração a que se alude em 7), «AA» foi notificado para suprir as divergências detectadas – cfr. fls. 12 do processo administrativo (PA) junto aos autos.
9) Em 17.12.2014 foi elaborada declaração oficiosa de IRS do ano de 2013, de onde consta no Anexo A, quadro 4 A, o valor de €293.148,86, respeitante a rendimentos – cfr. fls. 16 do PA junto aos autos.
10) Em 22.12.2014 foi emitida a liquidação de IRS n.º ...91 do ano de 2013 no montante a pagar de €17.511,02 – cfr. fls. 33 do processo físico.
11) Da liquidação a que se alude em 10), foi apresentada reclamação graciosa – cfr. fls. 61 a 69 do processo de RG junto aos autos.
12) No âmbito da reclamação graciosa a que se alude em 11) foi proferido pela Divisão da Justiça Administrativa e Contenciosa da Direcção de Finanças ... parecer – cfr. fls. 291 e 292 do processo de RG junto aos autos.
13) Sob o parecer a que se alude em 12) recaiu em 15.07.2015 despacho de indeferimento - cfr. fls. 291 do processo de RG junto aos autos.
14) O [SCom02...] SAD emitiu declaração com o seguinte teor: “(…)
1. No ano de 2013, a [SCom02...] SAD pagou ao impugnante
«AA». (…) o rendimento ilíquido de 252.148,86€ com retenção na fonte (pagamentos por conta) de 110.260,08€, tudo conforme declaração de rendimentos que entregou ao Impugnante em momento próprio. (…)
3. O rendimento do Impugnante em 2013, pago pela [SCom02...] SAD, foi o referido, não a quantia que consta da notificação que antecede.
4. Finalmente esclarece-se que o impugnante esteve de baixa de 3 de Dezembro de 2012 até 19 de Agosto de 2013, data em que recebeu alta médica.
5. Durante esse período, a [SCom02...] SAD processou e pagou ao Impugnante os seus rendimentos como salários/remuneração de acordo com o contrato de trabalho que este havia celebrado consigo. (…)” – cfr. fls. 212 do processo físico.
Factos não provados
Não se mostram provados outros factos, além dos supra referidos.
Motivação da decisão de facto
O Tribunal considerou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, o pA junto, que não foram impugnados, assim como, na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados [cfr. artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT)], também são corroborados pelos documentos juntos, cfr. predispõe o artigo 76º n.º 1 da LGT e artigo 362º e seguintes do Código Civil, conforme decorre de cada um dos pontos da matéria de facto assente.»
2.2. De direito
Importa, desde já, averiguar se a sentença recorrida se encontra inquinada, em virtude de, antes de a mesma ter sido proferida, ter ocorrido violação do princípio do contraditório por, alegadamente, não terem sido notificados ao Recorrente documentos juntos em sede de instrução dos autos. Salienta-se que o Recorrente sustenta que a motivação da factualidade provada assenta, mormente item 4. e 14. da matéria de facto dada como provada, unicamente em documentos que não lhe foram notificados, pelo que gera nulidade processual que influi decisivamente na decisão proferida, ficando, por esse motivo, prejudicada toda a factualidade considerada provada.
A propósito do sentido e alcance do princípio do contraditório no âmbito do processo civil, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, entre outros, no Acórdão n.º 259/2000, publicado no Diário da República, 2ª série, de 7 de Novembro de 2000, no qual se escreveu: “O direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deva chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder aduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras [cfr. o Acórdão n.º 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, pp. 741 e segs.)]. É que - sublinhou-se no Acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão n.º 249/97 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 17 de Maio de 1997) - o processo de um Estado de direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder expor as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.°, n.º 1, da Constituição, que prescreve que “a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”. A ideia de que, no Estado de direito, a resolução judicial dos litígios tem de fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no Acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10.°, pp. 391 e segs.)
Este princípio [do contraditório] está expressamente consagrado no artigo 3.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no artigo 2.º, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), estabelecendo o nº 3 deste artigo que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Tal princípio tem reflexos e impõe-se com particular premência ao nível do direito processual probatório, determinando o artigo 415º, n.º 1 do CPC, precisamente sob a epígrafe “princípio de audiência contraditória” que “salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.”.
No que tange à violação do princípio do contraditório, veio o Recorrente alegar que o Tribunal a quo ordenou a junção aos autos de documentos os quais não lhe foram e notificados, em clara violação do princípio do contraditório.
Em concreto, invoca o Recorrente, em suma, o seguinte:
Que os documentos juntos pelo Tribunal de Trabalho em 24-01-2017, pela Companhia de Seguros [SCom01...] em 13-03-2017 e pela Entidade Empregadora em 17-03-2017 não lhe foram notificados. O que se suscita ao abrigo dos artigos 2.º do CPPT e artigos 3.º, 415.º do CPC, nulidade por omissão de pronúncia ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e, consequentemente, deve ser anulada a sentença em crise, ordenada a baixa dos autos de modo a sanarem-se as nulidades processuais, o que determina a prejudicialidade no conhecimento das demais questões objeto de recurso conforme os artigos 122.º e 123.º do CPPT e artigo 608º nº.2 do CPC.
Vejamos, começando por dar nota, no que para o caso importa, da tramitação dos autos de impugnação.
Após os articulados, foi proferido despacho em 19.01.2017 que entre o mais determinou:
Destarte, ao abrigo dos poderes deste Tribunal, conforme estatuído pelo artigo 13.º do CPPT e 99.º da LGT, consagrando o princípio do inquisitório, notifique:
1. A entidade empregadora “[SCom02...] SAD”, melhor identificada a fls. 135 do processo físico, para, ao abrigo do princípio da cooperação previsto no artigo 417.º do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT, vir, no prazo de 10 (dez) dias, informar aos autos qual o montante de rendimento efetivamente pago ao aqui Impugnante «AA», NIF ...26, no ano de 2013, designadamente, se o montante declarado na Modelo 10 relativo a esse ano no montante de Eur 293.148,86, com retenção na fonte de Eur 122.718,26, ou se outro montante, e a que título, se a título de trabalho por conta de outrem ou se a título da eventual indemnização paga pela companhia de seguros pela incapacidade temporária absoluta a que esteve sujeito nesse ano.
2. A Companhia de Seguros [SCom01...], S.A., com sede na Av. ... ..., para, ao abrigo do princípio da cooperação previsto no artigo 417.º do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT, no prazo de 10 (dez) dias, vir informar aos autos se o montante de Eur 105.402,00, pago em 2013 a título de indemnização pelo período em que padeceu de ITA, o Impugnante «AA», a coberto do contrato de co-seguro titulado pela apólice n.º ...89, decorrente do acidente de trabalho do dia 03/12/2012, foi pago diretamente ao mesmo ou à sua entidade patronal “[SCom02...] SAD”.
Ainda ao abrigo dos mesmos preceitos, e por se poder mostrar útil à boa decisão da causa, oficie ao Tribunal de Trabalho de ... – ... juízo, para remeter aos presentes autos cópia da petição inicial apresentada pelo aqui Impugnante, ali Autor, «AA», que deu origem ao processo que ali corre os seus termos com o n.º ..65/13.7TTBRG.” (cf. fls. 183 e ss. do processo SITAF)
Na sequência do assim determinado, em 26.01.2017 foi junta pelo Tribunal de Trabalho de ..., a fls. 194 a 220 do SITAF, cópia da petição inicial que deu origem ao processo n.º ..65/13.7TTBRG; em 13.03.2017 foi prestada informação pela [SCom03...] em que informa que “todas as quantias liquidadas a título de incapacidades temporárias foram pagas à entidade patronal “[SCom02...] SAD”, conforme documentação que anexa, recibos, fls. 229 a 234 do SITAF; em 17.03.2017 foi pela entidade patronal, [SCom02...] SAD informado que no ano de 2013 pagou o rendimento ilíquido de 252.148,86€, com retenção na fonte de 110.260,08€, junta anexo e presta mais esclarecimentos, fls. 235 a 240 do SITAF.
Por despacho datado de 06.04.2017 foi determinada a notificação dos elementos juntos, supra elencados.
Consta dos autos, mormente fls. 243 e 244 do processo SITAF, em cumprimento do assim ordenado foram notificados a [SCom01...] e a entidade patronal [SCom02...] SAD, e não a Impugnante e Impugnada, como se se impunha.
Prosseguindo cronologicamente, em 08.10.2018 foi determinada a notificação das partes para alegarem por escrito nos termos do artigo 120º do CPPT (cf. fls. 246 do SITAF) e, após parecer do EMMP, foi proferida a sentença, objecto do presente recurso.
Portanto, e até aqui, podemos já afirmar, com o Recorrente, que os documentos juntos pelo Tribunal de Trabalho, pela [SCom01...] e pela entidade patronal, a pedido do Tribunal, não lhe foram notificados.
Vejamos, então, partindo da argumentação do Recorrente, se foi violado o princípio do contraditório e, em caso afirmativo, quais as consequências daí a retirar.
Recapitulando, nos termos do artigo 3º, nº 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 2º alínea e) do CPPT “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Por sua vez, o artigo 415º nº 1 do CPC, concretizando o referido princípio do contraditório em matéria de instrução do processo, estabelece que “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.”.
Quanto à prova por documentos, o artigo 427º do CPC, destinado realizar o princípio do contraditório em conformidade com o artigo 415º, nº2, in fine, preceitua que “quando o documento seja oferecido com o último articulado ou depois dele, a sua apresentação será notificada à parte contrária, salvo se esta estiver presente ou o documento for oferecido com alegações que admitam resposta.
Destes comandos legais transcritos resulta, portanto, a obrigatoriedade de notificação da apresentação de documentos em processo judicial, dando assim expressão ao princípio do contraditório, exigindo-se que “às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios processualmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa, que lhes seja consentido fazê-lo até ao momento em que melhor possam decidir da sua conveniência, (…) que a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes e que estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo tribunal” – vide, José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, Coimbra Editora, págs. 98-99.
Ora, assente que está o dever de o Tribunal ordenar a notificação dos documentos à parte contrária, vejamos as consequências da sua falta.
Importa ter presente que as nulidades do processo “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais” – cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 176.
O CPC estabelece a distinção entre nulidades principais e nulidades secundárias, sendo as principais aquelas a que respeitam os artigos 186º a 194º do CPC e secundárias as que se compreendem na cláusula geral do artigo 195º, nº1 do referido código. Adiante-se, desde já, que o CPPT determina quais as nulidades insanáveis em processo judicial tributário (artigo 98º) e em processo de execução fiscal (artigo 165º), daí não constando a falta de notificação da junção de documentos à parte contrária.
Portanto, temos por certo que a falta de notificação de documentos constitui mera irregularidade, nulidade secundária ou relativa, por omissão de formalidade prescrita na lei, sujeita ao regime do CPC (aplicável ex vi alínea e) do artigo 2º do CPPT), concretamente do artigo 195º, o qual, no seu nº1 dispõe que “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” (destacado nosso).
Assim, e com respeito ao caso concreto, a solução da questão em análise passa por saber se a falta da notificação dos documentos juntos a pedido do próprio Tribunal podem influir no exame ou na decisão da causa.
A questão que se coloca agora é a de saber se, efectivamente, a omissão da notificação referida, ou seja, a falta de notificação dos documentos em questão, impediu o Recorrente de intervir na conformação da decisão final proferida.
A resposta não poderá deixar de ser afirmativa.
Com efeito, os documentos em questão foram, atenta a motivação apresentada, a fonte exclusiva do vertido nos itens 4. e 14. da matéria de facto dada como provada. E, o erro de julgamento de facto do Recorrente assenta exclusivamente sobre esses dois itens, na consideração de que o documento junto pelo [SCom02...] colide com o documento superveniente por si junto em 16.09.2016 “declaração da entidade empregadora”.
A sentença recorrida, por sua vez, considerou que “(...) para além do contrato de seguro não ter sido outorgado entre o Impugnante e a Companhia de Seguros [SCom01...], SA, o montante de €105.402,00 também não foi pago ao Impugnante, mas sim ao [SCom02...] SAD, por efeito do sinistro que o Impugnante sofreu. / Assim, o montante pago pela Companhia de Seguros [SCom01...], SA resultou da transferência de responsabilidade pelo acidente de trabalho por parte do [SCom02...] SAD para a Companhia de Seguros [SCom01...], SA, tendo a Companhia de Seguros [SCom01...], SA assumido, perante a entidade empregadora, o pagamento do rendimento auferido pelo Impugnante.” e, mais considerou que “(...) da declaração emitida pelo [SCom02...] SAD, coligida no acervo probatório, ponto 14), decorre a confirmação do montante efectivamente pago, na ordem dos €252.148,86.”, ou seja, no documento não notificado.
Assim, o Recorrente não teve ocasião de refutar a tese que veio a ser seguida na sentença no sentido de refutar o valor que viria a ser considerado e relevado na sentença.
A decisão recorrida acolhe o facto extraído do documento junto pelo [SCom02...] SAD em 17.03.2017 para, em sede de fundamentação jurídica, concluir que o montante efectivamente pago ao Impugnante por aquela foi de €252.148,86 e não o montante de €293.148,86 declarado em sede da Modelo 10 em que assentava a tese da AT.
Concluindo, parece não restarem dúvidas que o mesmo influiu no exame da causa, concretamente na sua instrução e, como tal verifica-se um prejuízo irreparável se ao Recorrente não for dada a possibilidade de pronúncia sobre o mesmo.
Face a tudo o que vem dito e deixando antever a solução perfilhada, pode dizer-se que, no caso concreto, a falta de notificação dos documentos mencionados, mormente do documento junto a 17.03.2017 pela entidade patronal, consubstancia uma omissão susceptível de influir no exame e na decisão da causa. No caso, com tal omissão, o Recorrente foi impedido de se pronunciar sobre a apresentação de tais documentos, conformando-se com o seu teor ou não, de impugnar a sua veracidade e, desse modo, poder influenciar a decisão que veio a ser proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Conclui-se, pois, que se verifica a nulidade processual invocada, a qual não se encontra sanada, porquanto se reporta a um acto que não se realizou na presença da Recorrente nem do seu mandatário, sendo certo, por outro lado, que a nulidade em causa apenas chegou ao conhecimento do Recorrente com a notificação da decisão recorrida, sendo, assim, tempestiva a sua arguição no presente recurso jurisdicional.
Tal nulidade processual tem como consequência a anulação dos termos subsequentes que dele [acto omitido] dependam absolutamente (cf. artigo 195º, nº 2 do CPC), incluindo, in casu, a anulação da decisão recorrida, uma vez que esta se mostra inquinada pela violação do princípio do contraditório decorrente da falta de notificação ao Recorrente da junção dos documentos supra referidos.
Em consequência do exposto, procede o recurso nesta parte, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões nele suscitadas.
2.3. Conclusões
I. A falta de notificação ao Recorrente da junção oficiosa aos autos de documentos, viola o princípio do contraditório, uma vez que não permitiu a este pronunciar se sobre o teor dos mesmos documentos, e essa violação teve influência na decisão da causa.
II. O princípio do contraditório consagrado expressamente no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, também aplicável ao processo judicial tributário, destina-se a impedir que seja proferida decisão sem que seja dada oportunidade a qualquer das partes de se fazer ouvir.
III. A omissão dessa notificação e a consequente inobservância do princípio do contraditório, sendo susceptível de influir no exame e na decisão da causa, poderá consubstanciar nulidade de processo enquadrável no artigo 195º, n.º 1 do CPC.
IV. Deste modo, impõe-se a anulação de todos os actos processuais praticados posteriormente à junção dos citados documentos, com a baixa dos autos ao tribunal recorrido para a prática dos actos processuais necessários e subsequentes.

3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte conceder provimento ao recurso e, em consequência, julgar verificada a nulidade processual decorrente da falta de notificação ao Recorrente dos referidos documentos juntos oficiosamente aos autos a fls. 194 e ss, 229 e ss e 235 e ss. do processo SITAF, anulando todo o processado posterior à junção dos citados documentos, sentença incluída, e ordenando a baixa dos autos ao tribunal recorrido para a prática dos actos processuais necessários.
Custas pela parte vencida a final.
Porto, 25 de janeiro de 2024

Irene Isabel das Neves
Carlos Castro Fernandes
Paulo Moura