Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03154/12.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/20/2016
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:LEGITIMIDADE PASSIVA; APERFEIÇOAMENTO; PRO ACTIONE
Sumário:I - A personalidade e a capacidade judiciárias, são “qualidades pessoais das partes”, ao passo que a legitimidade tem a ver com a posição relativa das partes face à relação material controvertida tal como a mesma é configurada pelo autor na petição inicial.
II – Não se poderá afirmar, mesmo em sede de Ações Administrativas Comuns, sem mais, que a ilegitimidade do demandado é insanável e que tem sempre como consequência necessária a sua absolvição da instância, atenta até a circunstância de no caso apreciado se estar perante um litisconsórcio passivo, o que determinará que o tribunal deva previamente exercer o seu poder/dever de convidar ao aperfeiçoamento da petição, em homenagem ao principio pro actione (Artº 7º CPTA).
III - Os Centros de Saúde foram tendo e deixado de ter sucessivamente personalidade jurídica, o que necessariamente condiciona e confunde quem tem intenção de intentar Ações Administrativas, o que não pode deixar de ser atendido – Vejam-se os DL n.º 157/99, DL nº 60/2003, DL nº 88/2005 e DL nº 28/2008.
Neste quadro legal, impunha-se ao tribunal a quo que, previamente à decisão de absolvição da instância, tivesse sido convidada a autora a suprir esse obstáculo, apresentando nova petição inicial.
IV - Efetivamente, o circunstancialismo descrito revela que o ónus de identificação do demandado, a cargo do autor, é significativamente dificultado pela complexidade da organização administrativa, nem sempre permitindo à parte e seu mandatário judicial, mesmo quando tenham usado da diligência normal, proceder a essa correta identificação. Também por esta razão, deve intervir o princípio do favorecimento do processo, sancionando o entendimento enunciado, quando à possibilidade de reparação do erro na identificação da entidade demandada (ilegitimidade passiva), atenta até a circunstância de se estar perante um litisconsórcio passivo que acrescidamente sempre permitiria e aconselharia a um convite ao aperfeiçoamento da petição no que que concerne à identificação dos demandados.
V - Atenta a circunstância descrita de estarmos perante um litisconsórcio passivo, verificada a ilegitimidade passiva do Centro de Saúde e considerado que foi que a Autora não logrou “precisar factos ou omissões que possam consubstanciar situações passiveis de gerarem culpa grave”, o tribunal a quo, por maioria e acrescida razão, deveria ter convidado a autora a aperfeiçoar a petição inicial, o que desde logo, ao não ter sido feito, constitui, designadamente, violação do principio Pro Actione (Artº 7º do CPTA).*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:SALMC
Recorrido 1:MPCB e Centro de Saúde da Foz do Douro
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentidorestará ao Autor propor nova ação sobre o mesmo objeto, com as correções apontadas – Cfr- Artº 279º do CPC”.
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Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I Relatório
SALMC, devidamente identificada nos autos, no âmbito da ação administrativa comum, intentada contra MPCB e Centro de Saúde da Foz do Douro, na qual peticionou, em síntese e designadamente, a atribuição de indemnização de “50.000€, a título de danos morais“ resultantes da “responsabilidade civil por atos médicos praticados em estabelecimentos públicos por atos de gestão pública” por ausência de diagnóstico clinico correto, inconformada com a Sentença proferida em 26 de Janeiro de 2015, que absolveu da Instância o Centro de Saúde, por ilegitimidade passiva, mais absolvendo do pedido a 2ª Ré, veio interpor recurso jurisdicional da mesma, em 2 de março de 2015 (Cfr. fls. 122 a 1291 a 299 Procº físico), aí concluindo:

“I - No caso concreto, tendo a Administração Regional de Saúde do Norte, I.P, na qual se integra o primeiro réu, o “Centro de Saúde de Foz do Douro”, intervindo espontaneamente nos presentes autos, apresentando contestação na qual inclusive se defende por impugnação, deverá ser considerada sanada a falta do pressuposto processual da personalidade judiciária daquele réu, ao abrigo do disposto no artigo 14.º do CPC, mutatis mutandis, por força do artigo 1.º do CPTA.

II - Em consequência, essa intervenção implica ter-se operado uma modificação subjetiva da parte passiva, tendo aquele réu sido substituído pela Administração Regional de Saúde do Norte. I.P.

III - A petição inicial não enferma de qualquer vício, insuficiência, lacuna ou imprecisão alegando os factos consubstanciadores de imputar à segunda ré culpa grave, desde logo a omissão daqueles que foram praticados pelo Hospital Européen Georges Pompidou, com referência aos concretos exames de diagnóstico levados a cabo de acordo com a legis artis da medicina perante os sintomas descritos.

IV - Ainda que assim não se entenda e face o que é afirmado na sentença, a petição inicial configuraria um articulado deficiente, pelo que nestas circunstâncias, devia o Juiz, oficiosamente, determinar que a autora aperfeiçoasse a sua petição inicial, suprindo as omissões detetadas, no prazo a fixar, e só posteriormente é que poderia extrair as consequências de tal omissão, caso as referidas insuficiências não fossem supridas convenientemente pela autora.

V - Nestes moldes, o convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é uma incumbência do juiz, isto é, um dever, nos termos da al. b) do n.º 2 e 4 do art. 590.º do CPC (antigo 508.º).

VI - A omissão do despacho ao convite ao aperfeiçoamento é uma irregularidade suscetível de influir no exame e decisão da causa e, por isso, constitui uma nulidade nos termos do n.º 1 do ar. 201.º do CPC (antigo 201.º), por força do ar. 1.º do CPTA, que acarreta a nulidade da sentença exarada pelo Tribunal a quo em relação a esta matéria, nulidade que se argui.”

O Recurso Jurisdicional foi admitido por Despacho de 6 de março de 2015 (Cfr. fls. 131 Procº físico).

MPCB veio a apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 21 de Abril de 2015, nas quais concluiu (Cfr. Fls. 143 a 154 Procº físico):

“A) A sentença recorrida, como vimos, decidiu e bem, que a Recorrida carece de legitimidade para ser demandado na ação, porquanto não lhe foi imputada qualquer responsabilidade a titulo doloso, mais decidindo que o Centro de Saúde demandado carece de personalidade e capacidade judiciárias, antes deveria ter sido demandada a Administração Regional de Saúde do Norte;

B) Face à lei aplicável, nos casos em que a causa de pedir é constituída por ilícito praticado com mera negligência no exercício das funções por parte dos agentes da entidade pública só a Administração, e não aqueles, respondem perante o lesado pelos prejuízos causados;

C) A Recorrente porém, não alegou um único facto que permita concluir pela eventual existência de dolo, isto porquanto nenhuma das alegadas omissões da Recorrida, pelo modo como a Recorrente as descreve, se reveste das características de comportamento doloso, única passível de responsabilizar solidariamente, a Recorrida, enquanto agente e a pessoa coletiva de direito público ou Estado - tal como é entendido no art, 483.º do CC e no art. 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro;

D) Na versão da Recorrente, a falta de prescrição, por parte da Recorrida, de mais exames de diagnóstico, teria ficado a dever-se ao seu descuido e desrespeito dos ditames das leges artis, ou seja, de alegadas omissões que se integram no conceito de negligência ou mera culpa, pelo que, surge desprovida da especial censurabilidade - cfr. o art. 10.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, resultando apenas imputada a alegada omissão de cuidados à Recorrida, a título de negligência ou mera culpa;

E) Donde resulta que não podendo a Recorrida responder apenas a título de dolo e não sendo esse o tipo de responsabilidade para que apontam os factos alegados na petição inicial, sempre se impunha a sua absolvição da instância, por ilegitimidade, como o decidiu e bem o douto Tribunal a quo; Acresce que,

F) O âmbito do aperfeiçoamento do articulado, em regra, apenas pode ter por objeto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão dos já invocados princípios da necessidade do pedido e do dispositivo, daí resultando os limites expressamente impostos pelo n.º 6 do citado art. 590.º do CPC,

G) Nada há, por conseguinte, nada a apontar à douta sentença recorrida, porquanto, não havendo dolo, nem, desde já se diga, negligência, tampouco, a Recorrida é parte ilegítima na ação, nesse sentido, andou bem o Tribunal a quo, ao decidir no sentido de absolver a Recorrida, não sendo, assim, a decisão merecedora de qualquer reparo; Finalmente,

H) Por força do DL n.º 28/2008, de 22 de Fevereiro, os Centros de Saúde não são dotados de personalidade jurídica, pelo que, consequentemente, são também desprovidos de personalidade judiciária, a qual consiste na suscetibilidade de ser parte (art. 11.º do CPC, aplicável ex vi art. 2.º do CPTA);

I) Regra geral, a falta da personalidade judiciária é insanável, apenas se admitindo o seu suprimento nos casos expressamente previstos na lei - art. 11.º CPC, porém, sendo tal norma excecional, não admite aplicação analógica, pelo que, decidiu e bem, a douta sentença recorrida, que a falta de personalidade judiciária do Centro de Saúde é insuprível.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.ªs sempre mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente, devendo ser confirmada a sentença recorrida, sendo, assim, feita inteira JUSTIÇA!”

O Recorrido/CS, não veio a apresentar contra-alegações de Recurso.

O Ministério Público junto deste Tribunal, tendo sido notificado em 17 de Junho de 2015 (Cfr. fls. 122 Procº físico), veio a proferir Parecer em 25 de Junho de 2015, concluindo que “restará ao Autor propor nova ação sobre o mesmo objeto, com as correções apontadas – Cfr- Artº 279º do CPC”.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa predominantemente verificar da legitimidade passiva das partes originariamente Demandadas, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.

III – Do Direito
Em linha com o decidido no Acórdão deste TCAN nº 00391/06.0BECBR de 20-03-2015, Importa pois analisar e decidir o suscitado.

Está desde logo aqui em causa a circunstância do Centro de Saúde ter sido absolvida da instância, por ilegitimidade passiva e a 2ª Ré absolvida do pedido.

Importará assim e desde logo verificar se o Ministério Público ou a ARSN não deveriam “tomar o lugar” do Centro de Saúde, em face do facto de estarmos perante uma Ação Administrativa Comum, de responsabilidade.

Em conformidade igualmente com o Acórdão deste TCAN nº 00748/12.7BEAVR, de 13-06-2014, refira-se que o artigo 10.º, n.º 1 do CPTA nos indica, um critério para aferirmos da legitimidade, in casu, passiva, afirmando que “cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos autores”.

Já o n.º 2 daquele normativo prevê, por sua vez, que “quando a ação tenha por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o ato jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”, dele não resultando, como melhor infra se demonstrará, a nosso ver, um critério de legitimidade passiva, mas antes a atribuição de personalidade judiciária.

Por outro lado, no n.º 2 o artigo 11.º do CPTA estabelece-se que “sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas coletivas de direito público ou os ministérios podem ser representadas em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja atuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte», existindo firme e abundante jurisprudência, que dele fazem decorrer a atribuição de personalidade judiciária, unicamente ao Estado, para intervir como parte demandada no âmbito de tais ações.

Note-se, porém, que a jurisprudência dos tribunais superiores desta jurisdição tem reiteradamente afirmado que o regime legal inserto no n.º 2 do art. 10.º do CPTA se reporta à disciplina ou definição da legitimidade processual passiva nas ações administrativas que tenham por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública- [cfr. Ac. STA de 03.03.2010 - Proc. n.º 0278/09 in: «www.dgsi.pt/jsta»; Acs. TCA Norte de 11.01.2007 - Proc. n.º 0534/04.8BEPNF, de 24.05.2007 - Proc. n.º 00184/05.1BEPRT, de 19.07.2007 - Proc. n.º 00805/05.6BEPRT, de 11.11.2011 - Proc. n.º 00161/07.8BEBRG, de 25.11.2011 - Proc. n.º 03586/10.8BEPRT.

Tal regime apenas respeita às ações administrativas especiais [impugnação de ato, condenação à prática de ato legalmente devido e de impugnação de normas - arts. 50.º e segs., 66.º e segs. e 72.º e segs. CPTA] e, bem assim, às ações de reconhecimento de direito ou de condenação à adoção ou abstenção de comportamentos [v.g., as previstas no art. 37.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e e) do CPTA], deixando de fora do seu âmbito de aplicação as ações administrativas comuns que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, o que é aqui o caso.

No tocante a tais ações, a jurisprudência é unânime em afirmar que, atento o disposto no artigo 11.º, n.º 2 do CPTA, quando estejam em causa ações relativas a relações contratuais ou de responsabilidade, parte demandada é o Estado, que deve ser representado, nessas ações, pelo Ministério Público.
Assim, a instauração de uma ação administrativa comum que tenha por objeto uma relação contratual ou de responsabilidade, no âmbito da pessoa coletiva Estado, contra um seu ministério ou órgão, poderá determinar a absolvição da instância da entidade demandada com fundamento na falta do pressuposto processual da personalidade judiciária, no caso da situação não ser sanável e sanada.

Acresce ao referido o entendimento de M. Aroso de Almeida e Carlos A. F. Cadilha in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 3.ª edição revista, págs. 85/86 e M. Esteves de Oliveira e R. Esteves de Oliveira in: “Código de Processo nos Tribunais Administrativos … - Anotado”, vol. I, pág. 167.

Não dispondo o CPTA, de nenhuma norma que proceda à definição do pressuposto processual da personalidade judiciária, importa chamar à colação a definição legal constante do artigo 5º do “anterior” CPC (atual Artº 11.º do CPC), aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA, que sob a epígrafe “Conceito e medida da personalidade judiciária”, dispõe, no seu n.º 1, que “A personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte”, o mesmo é dizer, de solicitar ou de contra si ser solicitada, em seu nome próprio [ou seja, como titular autónomo de relações jurídicas, máxime, de direitos e deveres, legais ou contratuais] qualquer uma das providências de tutela jurisdicional previstas na Lei.

Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito [antigo art.º 5º e atual Artº 11.º do CPC] “Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária”, pelo que, em regra, a personalidade judiciária afere-se pela personalidade jurídica, o mesmo é dizer, a atribuição de personalidade judiciária, em processo civil, opera segundo o “critério da coincidência”.

Tal não significa, porém, que o inverso seja verdadeiro, posto que situações existem em que a lei atribui personalidade judiciária a quem não detém personalidade jurídica.

Por outro lado, detêm personalidade jurídica não só as pessoas singulares, como também as pessoas coletivas, nas quais se integram as associações e as fundações [cfr. artigos 66.º, 68.º e 158.º do Código Civil].

No que concerne à capacidade judiciária, dispõe o n.º 1 do artigo 15.º do CPC/2013 (anterior Artº 9º CPC) que a mesma «consiste na suscetibilidade de estar, por si, em juízo», consagrando-se no n.º 2 desse preceito, que a mesma tem «por base e por medida a capacidade de exercício de direitos».

Em suma, resulta do exposto, que quer a personalidade, quer a capacidade judiciárias, à semelhança da personalidade e capacidades jurídicas, são “qualidades pessoais das partes”, ou no dizer de Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 131 “requisitos abstrata ou genericamente exigidos para que a pessoa ou a organização possa estar em juízo ou possa atuar autonomamente em relação à generalidade das ações ou a certa categoria de ações”.

Já no que concerne à legitimidade processual a mesma mais não é do que a “suscetibilidade de ser parte numa ação aferida em função da relação dessa parte com o objeto daquela ação” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lisboa, Lex, 1997, pág. 136 e ss) e tal pressuposto tem em vista garantir “a coincidência entre os sujeitos que, em nome próprio, conduzem o processo e aqueles em cuja esfera jurídica a decisão judicial vai diretamente produzir a sua eficácia” (cfr. Carlos Lopes do Rego, “ Legitimidade das partes e interesse em intervir em processo civil”, in Revista do Ministério Público, Ano 11, n.º 41, 37-86,40.

No tocante, concretamente, à legitimidade passiva e personalidade judiciária das entidades públicas, é incontornável que o CPTA adotou uma nova conceção do processo administrativo como um “processo de partes”, o que “permite perspetivar a questão da legitimidade passiva, não a partir do ato, para depois chegar ao seu autor, mas antes encará-la do ponto de vista do sujeito processual e da sua relação com o objeto do processo. E quando nos centramos no sujeito, logo nos surgem, a par da legitimidade, os demais atributos que processualmente são exigidos à entidade pública demandada para que possa estar em juízo” – cfr. Esperança Mealha, “Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas”.

Decorre do quadro legal definido pelo CPTA que, para as ações que tenham por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública, se estabeleceu, como regra geral, o princípio da coincidência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária, segundo o qual têm personalidade judiciária as pessoas coletivas públicas (art.º 10.º, n.º2, primeira parte do CPTA).

Neste sentido, veja-se Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª Ed. Revista, Coimbra, Almedina, 201º, pág. 110, onde salientam que o CPTA elegeu a pessoa coletiva de direito público como sujeito principal do processo administrativo e, assim, “rompeu com o princípio tradicional de atribuir personalidade e capacidade judiciária aos órgãos administrativos”.

Também FREITAS DO AMARAL, in “Curso de Direito Administrativo”, 2.ª edição, Vol. I, pág. 221, refere de forma elucidativa que “…apesar da multiplicidade das atribuições, do pluralismo dos órgãos e serviços, e da divisão em ministérios, o Estado mantém sempre uma personalidade jurídica una”, frisando que “Todos os ministérios pertencem ao mesmo sujeito de direito, não são sujeitos de direito distintos: os ministérios e as direções-gerais não têm personalidade jurídica. Cada órgão do Estado - cada Ministro, cada diretor-geral,…, cada chefe de repartição, vincula o Estado no seu todo, e não apenas o seu ministério ou o seu serviço…”.

Sucede porém que, o legislador, ciente da complexidade e heterogeneidade das pessoas coletivas de direito público, mormente do Estado, sobre quem recai uma vastidão de atribuições que são prosseguidas através de uma multiplicidade de órgãos e serviços administrativos, no seio dos quais se incluem os Ministérios, estabeleceu, na segunda parte do n.º 2 do art.º 10.º do CPTA uma importante restrição ao princípio da coincidência, “dele retirando a pessoa coletiva Estado, e colocando os ministérios ao lado das pessoas coletivas públicas como sujeitos do processo administrativo”.

Também Vasco Pereira da Silva, in “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2005”, pág. 251, conclui que “a noção de pessoa coletiva parece não estar mais em condições de poder continuar a funcionar como único sujeito de imputação de condutas administrativas, em razão da complexidade da organização administrativa e da natureza multifacetada das modernas relações administrativas multilaterais”.

Embora pareça resultar do art.º 10.º, n.º 2 do CPTA que o mesmo atribui legitimidade passiva aos ministérios, para o que, em muito contribui, a própria epígrafe do artigo, do que se trata, e em face das considerações tecidas, designadamente do conceito de personalidade judiciaria versus legitimidade passiva, é que nesse normativo, do que se cuida é antes da atribuição de personalidade judiciária a tais “departamentos da administração central do Estado dirigidos pelos Ministros respetivos”, que por carecerem de “personalidade jurídica”, não deteriam, à partida, a suscetibilidade de ser parte, relevando apenas o pressuposto da legitimidade processual, neste âmbito, para aferir qual o concreto Ministério que tem interesse direto em contradizer a ação.

Em idêntico sentido, veja-se, Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa (Lições)”, 4.ª Ed., Almedina, pág.255, que no seu dizer, a partir do momento em que se constrói o processo administrativo como «processo de partes», passam a ser sujeitos processuais as pessoas coletivas públicas a que pertencem os autores dos atos ou normas, sem deixar porém aquele autor de notar que «No entanto, há ainda a considerar a posição especial já referida do Ministério Público, enquanto parte principal no âmbito da ação pública, bem como a circunstância específica de ser atribuída personalidade judiciária aos Ministérios (artigo 10.º, n.º2, do CPTA) e, embora agora só excecionalmente, a órgãos administrativos, no caso especial dos litígios entre órgãos administrativos (artigo 10.º, n.º6)”.

Aqui chegados, importa agora apurar em que medida o disposto no artigo 11.º, n.º 2 do CPTA sobre a representação orgânica do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, interfere com os critérios de atribuição de personalidade judiciária aos Ministérios, constantes do n.º 2 do art.º 10.º do CPTA.

Como se disse já, a jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição administrativa tem sido unânime no entendimento segundo o qual o regime inserto no n.º 2 do art.º 10.º do CPTA, vale apenas para as ações administrativas especiais de impugnação de ato, condenação à prática de ato legalmente devido e de impugnação de normas [cfr. arts. 50.º e segs., 66.º e segs. e 72.º e segs. CPTA] e, bem assim, para as ações de reconhecimento de direito ou de condenação à adoção ou abstenção de comportamentos [v.g., as previstas no art. 37.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e e) do CPTA], não sendo aplicável às ações administrativas comuns que tenham por objeto relações contratuais ou de responsabilidade civil do Estado, situação em que apenas pode ser demandado como réu o Estado, por só este deter personalidade judiciária, uma vez que o artigo 11.º, n.º 2 do CPTA, pelos seus termos, não tem o alcance de conferir personalidade judiciária a quem não a possui no âmbito das referidas ações.

Tendo em conta que as ações administrativas comuns cujo objeto se prenda com relações contratuais e de responsabilidade, têm de ser instauradas contra o Estado, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 2 do CPTA e artigo 11.º, n.º 1 do CPC (Anterior Artº 5º CPC) e que a sua instauração contra os Ministérios constitui exceção dilatória por falta do pressuposto processual da personalidade judiciária, a questão que ora se importa concluir, resume-se em saber se na ação instaurada pela ora Recorrente, lhe deverá ser dada a oportunidade de corrigir, designadamente, o demandado da Ação.

Efetivamente, trata-se de uma daquelas situações que se encontram abrangidas pelo campo de aplicação do artigo 11.º, n.º 2 do CPTA.

Em concreto, estamos perante um pedido de condenação solidária no pagamento de uma indemnização, decorrente de responsabilidade civil.

Aqui chegados, recorda-se que ficou decidido em 1ª Instância, absolver da instância o Centro de Saúde, por ilegitimidade passiva, mais se absolvendo do pedido a 2.ª Ré, Dr.ªMPCB.

Vejamos então mais em pormenor.
Nos termos dos artigos 577.º/e) e 578.º do CPC/2013, a ilegitimidade, enquanto exceção dilatória, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.

Neste quadro legal, tem sido entendimento generalizado que com a legitimidade plural (litisconsórcio ativo ou passivo), a exceção é suprível.

Não obstante o referido, na situação aqui controvertida, o tribunal a quo, absolveu uma das demandadas da instância e a outra do pedido, contornando assim o precedentemente referido entendimento.

Desde logo, o tribunal a quo julgou verificada a ilegitimidade do Centro de Saúde e determinou, em consequência, a sua absolvição da instância.

Em qualquer caso, as regras do processo civil em matéria de ilegitimidade (passiva) não podem ser transpostas, sem mais, para o processo administrativo.

Não se poderá afirmar, mesmo em sede de Ações Administrativas Comuns, sem mais, que a ilegitimidade do demandado é insanável e que tem sempre como consequência necessária a sua absolvição da instância, atenta até a circunstância de no caso em apreciação estarmos perante um litisconsórcio passivo, o que determinará que o tribunal deva previamente exercer o seu poder/dever de convidar ao aperfeiçoamento da petição, em homenagem ao principio pro actione (Artº 7º CPTA).
É certo que a referida sanação obrigará à repetição do ato de citação, não deixando, no entanto, de se estar perante a mesma pretensão, com o mesmo pedido e causa de pedir, permitindo-se o aproveitamento da petição inicial com a correção do demandado permitindo valer-se dos atos de distribuição e de autuação do processo.

Não se desconhecendo alguma jurisprudência divergente, em qualquer caso, entende-se que será de proferir despacho a convidar a autora a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade demandada, em homenagem ao princípio “Pro Actione”, sob pena da Autora ficar sem tutela.

Acresce que, e tal como lapidarmente sublinhado no acórdão deste TCAN de 17.1.2008, no Procº 00425/06.8BEBRG, os Centros de Saúde foram tendo e deixado de ter sucessivamente personalidade jurídica, o que necessariamente condiciona e confunde quem tem intenção de intentar Ações Administrativas, o que não pode deixar de ser atendido – Vejam-se os DL n.ºs 157/99, nº 60/2003, nº 88/2005 e 28/2008.

O entendimento acima exposto não é novo, nem está isolado.

Igualmente versando situações de errada identificação da entidade pública demandada, alguma jurisprudência tem entendido, ainda que, como se disse, sem uniformidade, que tal obstáculo é suprível e que o tribunal deve proferir despacho que convide ao aperfeiçoamento da petição – v., entre outros, os Acórdãos do TCAN, de 25.05.2012, P. 01505/09.3BEBRG; e de 28.02.2014, P. 01788/09.9BEBRG; e os Acórdãos do TCAS, de 08.05.2008, P. 01509/06; e de 22.04.2010, P. 05901/10.

Neste quadro legal, assim interpretado, impunha-se ao tribunal a quo que, previamente à decisão de absolvição da instância, tivesse sido convidada a autora a suprir esse obstáculo, apresentando nova petição inicial.

Efetivamente, o circunstancialismo descrito revela que o ónus de identificação do demandado, a cargo do autor, é significativamente dificultado pela complexidade da organização administrativa, nem sempre permitindo à parte e seu mandatário judicial, mesmo quando tenham usado da diligência normal, proceder a essa correta identificação. Também por esta razão, deve intervir o princípio do favorecimento do processo, sancionando o entendimento acima enunciado, quando à possibilidade de reparação do erro na identificação da entidade demandada (ilegitimidade passiva).

Como se escreveu no Acórdão deste TCAN de 23-01-2015, no Procº 00442/13.1BEPNF, “num caso em que a petição inicial revela uma antinomia entre a entidade pública indicada como réu e a entidade pública identificada como sujeito da relação material controvertida, é de proferir despacho a convidar o autor a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade pública que pretende demandar.”

Acresce ao referido, como se sublinhou já, o facto de estarmos perante um litisconsórcio passivo que acrescidamente sempre permitiria e aconselharia a um convite ao aperfeiçoamento da petição no que que concerne à identificação dos demandados.

Em qualquer caso, a primeira instância contornou tal circunstância absolvendo a 2ª Ré do pedido, circunstância que importara, igualmente, verificar.

Acompanha-se, neste particular, o entendimento exteriorizado pelo Ministério Público nesta instância, no seu Parecer.

Com efeito, o atual Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (Lei n.º 67/2007), prevê a responsabilidade solidária dos funcionários ou agentes em caso de dolo ou culpa grave, nos seguintes termos:
“Artigo 8.° (Responsabilidade solidária em caso de dolo ou culpa grave)
1 — Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.
2- O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”

Na sentença recorrida refere-se, designadamente, que "verifica-se que na sua Petição Inicial a Autora não alega a existência de dolo, sendo que quanto a culpa limita-se a referir que a segunda Ré podia e devia ter atuado de outra forma, evidenciando o seu comportamento culpa. Ora, a culpa grave tem de estar alegada direta e corretamente, ou seja, imputando à 2.ª Ré atos ou omissões de tal forma graves, que evidenciem uma conduta manifestamente inferior ao exigido pelas leis da arte. A Autora não logra precisar factos ou omissões que eventualmente possam consubstanciar situações passíveis de gerarem culpa grave. Limita-se a referir generalidades. Em contraponto, a 2.ª Ré apresenta uma defesa, que só por si se deduz não ter havido dolo, e se pode presumir não ter havido negligência grave.
Desta forma, a demanda da 2.ª Ré não encontra previsão legal, em função do alegado pela Autora, pelo que assim sendo deve ser absolvida do pedido".

Não se vislumbra que assim seja.
Com efeito, entendemos que a Autora articulou factos que, abstratamente, poderão configurar, pelo menos, "diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que se encontravam obrigados em razão do cargo".

O apuramento e aprofundamento, se fosse caso disso, seria feito em sede de audiência de julgamento, com a produção de prova necessária.

Acresce ao referido que mesmo que se entendesse ser a Petição deficiente e insuficiente, designadamente no que concerne à matéria de facto, sempre o tribunal a quo poderia/deveria ter determinado que a autora aperfeiçoasse a mesma.

O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é uma incumbência do tribunal, nos termos da al. b) do n.º 2 e 4 do art. 590.º do CPC (antigo 508.º).

* * *
Em face de tudo quanto supra ficou expendido, atenta até a circunstância de estarmos perante um litisconsórcio passivo, verificada a ilegitimidade passiva do Centro de Saúde e considerado que foi que a Autora não logrou “precisar factos ou omissões que possam consubstanciar situações passiveis de gerarem culpa grave”, o tribunal a quo devia ter convidado a autora a aperfeiçoar a petição inicial, o que desde logo, ao não ter sido feito, constitui, designadamente, violação do principio Pro Actione (Artº 7º do CPTA).
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Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte em conceder provimento ao recurso, mais se determinando a baixa dos autos à 1ª instância, para prosseguimento dos Autos com o convite ao aperfeiçoamento da PI, designadamente no que concerne à identificação da Entidade Demandada.

Custas pelos Recorridos

Porto, 20 de maio de 2016
Ass.: Frederico de Frias Macedo Branco
Ass.: Joaquim Cruzeiro
Ass.: Fernanda Brandão