Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00654/19.4BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/22/2021
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PEDIDO DE SUSPENSÃO DA EFICÁCIA; DEMOLIÇÃO DE CASA DE HABITAÇÃO; FUMUS BONI IURIS; FACTO CONSUMADO; PONDERAÇÃO DE INTERESSES; ARTIGO 120º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL;
DECRETO-LEI 166/2008, DE 22.08; PRINCÍPIO DA TUTELA DA CONFIANÇA; ARTIGO 2º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
Sumário:. No caso de acto que ordena a demolição de primeira e única casa de habitação do Requerente e respectivo agregado familiar, sem outra alternativa, a imediata execução do acto resulta no facto consumado grave: ficar sem tecto até à decisão do processo principal.

2. A ordem de demolição de uma casa de habitação, e anexos, construída pelo menos em 2006, com base no estabelecimento de uma zona de Reserva Ecológica Nacional e respectivas regras, em diplomas que entraram em vigor em 2008 (Decreto-Lei 166/2008, de 22.08) e 2009 (Portaria 247/2009, de 09.03), viola o princípio da tutela da confiança, ínsito num Estado de Direito democrático - artigo 2º da Constituição da República Portuguesa-, dado serem normas com que o requerente não podia contar (nem podia respeitar) na data em que levou a cabo a construção.

3. A ordem de demolição da única casa de habitação, com anexos, do Requerente, sem se lhe apresentar qualquer alternativa de habitação em que se traduz a ordem suspendenda, fere esta também de ilegalidade por inconstitucionalidade da norma aplicada, com a interpretação dada no caso concreto, em desrespeito ao direito fundamental à habitação – artigo 65º da Constituição da República Portuguesa -, reforçando assim o requisito “fumus boni iuris”.

4. Entre o dano que o Requerente sofrerá com a imediata da ordem de demolição - a perda da única habitação de que dispõe - e os interesses públicos genéricos subjacentes à definição da REN, de protecção ambiental, deverá dar-se primazia à defesa dos interesses do Requerente; sendo certo que no caso os interesses subjacentes, para além de abstractos, são de fraca consistência, dado que essa zona foi definida como REN apenas em 2008-2009 e volvidos pouco mais de dez anos o Município manifestou já a intenção de alterar tal definição e exigências para a área em causa.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:M.
Recorrido 1:Ministério do Planeamento e das Infraestruturas
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

M. veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, de 07.10.2020, pela qual foi julgado improcedente o presente processo cautelar deduzido contra o Ministério do Planeamento e das Infraestruturas (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro – “CCDRC”), para a suspensão da eficácia do acto que ordenou a demolição “de edificações existentes (moradia e anexos) em terreno afecto à restrição de utilidade pública da Reserva Ecológica Nacional (REN), georeferênciado na carta da REN de Vagos com as coordenadas Lat 40º34’27. 15’’N e Long. 8º 44’ 26.25’’ W, sito na Estrada (…) e reconstruir a situação anterior à prática da infracção”, bem como “a remoção dos resíduos resultantes das demolições e apresentação das cópias das guias electrónicas de acompanhamento de resíduos, comprovativas do devido encaminhamento de resíduos para o destino licenciado”.

Invocou para tanto, em síntese, que estão verificados todos os pressupostos para o decretamento da providência cautelar, desde logo o fumus boni jiuris, ao contrário do decidido na sentença recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1 - No âmbito do processo DSR_Aveiro 164/2019, Ref_2013_0050_011804, ID 63781 que corre na CCDR-C (referente à alegada violação do RJREN, por parte do Recorrente) este foi notificado para, em 60 dias, proceder à demolição da moradia e anexos sitos na Estrada de (...), n.º 12 e reconstruir a situação anterior à prática da infracção.

2 - O Recorrente intentará acção administrativa (processo principal), pedindo a declaração de invalidade (por nulidade) do acto administrativo (artigo 114.º, n.º 3, alínea e), do CPTA). Porém, para não esvaziar de utilidade a decisão a proferir na acção principal, intentou providência cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo, que foi indeferida pelo Tribunal a quo por falta de fumus boni iuris - decisão com a qual o Recorrente não se conforma.

3 - Além do fumus boni iuris, para o decretamento da providência cautelar de suspensão da eficácia do acto, devem estar preenchidos cumulativamente (e estão) outros dois requisitos: o periculum in mora e a não verificação do disposto no artigo 120.º, n.º 2, do CPTA.

4 - O periculum in mora verifica-se, porquanto:
a) a não suspensão da ordem de demolição determinará prejuízos incalculáveis ao Recorrente;
b) e contende com diversos direitos e preceitos legais e direitos do recorrente, alguns mesmo com assento constitucional;
c) com o decretamento da providência, conseguir-se-á a suspensão da prática do acto e,
d) julgando-se pela nulidade do mesmo, na acção principal, permitir-se-á que o recorrente veja sanadas as variadas violações legais/de princípios constitucionais
e) poderá correr-se o risco de a decisão principal não ser proferida a tempo de dar resposta adequada ao litígio, por se ter consumado uma situação irreversível, incalculavelmente lesiva para o Recorrente: a demolição da sua casa de habitação;
f) aliás, pode ocorrer uma inutilidade superveniente da lide quando o PDM de Vagos passar a classificar o solo da Rua da (...) como solo urbano (pois já não se equacionará a demolição da casa do Recorrente nos termos do artigo 20.º, n.º 1, b) do Decreto-Lei n.º 166/2008.

5- Não se verifica o disposto no artigo 120.º, n.º 2, do CPTA, pois ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultarão, da concessão da providência, para o interesse público, não são superiores àqueles que podem resultar, para o recorrente, da sua recusa:
a) há décadas que se encontram construídas naquela Rua da (...) muitas casas em condições semelhantes à do Recorrente (servidas por rede de electricidade, água, telefone, internet, televisão por cabo, estando previsto o saneamento);
b) por isso, não advêm danos de cariz significativo para a natureza, pela não demolição de uma única casa, quando no mesmo local, existem outras casas e infraestruturas susceptíveis de, em abstracto, lhe continuar a causar danos;
c) e, se se está fazer a revisão do PDM de Vagos, é porque esses eventuais “danos” não têm relevância;
d) com a alteração ao PDM de Vagos, Rua da (...) virá a ser classificada como solo urbano, eliminando-se a situação de ilegalidade em que este se possa encontrar – construção de edificação em solo pertencente à REN - o que, aliás, já foi devidamente atestado nos autos pela Câmara Municipal de Vagos;
e) assim, a suspensão do acto administrativo até à aprovação da alteração ao PDM de Vagos não configura um dano para o interesse público superior aos danos que o recorrente poderá a ter de vir a suportar com o acto administrativo em causa, visando, sim, acautelar os seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como defender da legalidade contra a qual atenta a ordem de demolição.

6 - Da existência do fumus bonus iuris:
6.1. A preterição do direito de defesa e contraditório do recorrente e do dever de fundamentação dos actos pela administração (a protecção do direito à habitação)

• Na ordem de demolição, e anexos, consta que foram realizadas visitas inspectivas ao local em 31-01-2018, 08-11-2018, 27-02-2019 e 29-03-2019, sendo que:
a) as fotografias são muito escuras e de fraca qualidade/visibilidade, alegadamente tiradas nas visitas de 31-01-2018, 08-11-2018 e 29-03-2019 (nada se dizendo quanto à de 27-02-2019) e não indicam com precisão quais os locais/áreas fotografados;
b) não são referidos os factos (e normas legais infringidas) a que as fotografias se reportavam,
c) nenhum auto foi elaborado – ou não foi remetido ao Recorrente – quanto às alegadas visitas, que se limitaram a tirar fotografias legendadas/identificadas de forma genérica e imprecisa,
d) sendo apenas acompanhadas de plantas cartográficas com pouca ou nenhuma legibilidade/inteligibilidade.

• Além disso:
a) os factos descritos pecam por imprecisão, pois não permitem ao Recorrente saber, com certeza, os locais/áreas objecto da ordem de demolição;
b) a Recorrida não diz que áreas/espaços são aqueles que constam das plantas/fotografias;
c) por isso, o Recorrente não consegue perceber, com a certeza que se impõe, afinal quais são as áreas que a Recorrida entende serem de demolir
d) da informação DSR_Aveiro 174/2019 consta que “para e edificação existente ter enquadramento no RJREN era exigível que a sua área de implantação não excedesse 2% da área total do prédio, até ao limite de 250 m2, nos termos da portaria n.º 419/2012, de 20 de Dezembro (…)” sendo que nada se diz sobre como se chegou à conclusão que a edificação em causa não preenche tais requisitos.

• A Recorrida (e, bem assim, a sentença a quo) incorre em violação do dever de defesa e contraditório do Recorrente (artigo 121.º e 122.º do Código de Procedimento Administrativo), assim como o dever de fundamentação dos actos pela administração (art. 268.º n.º 3 da CRP), e igualmente, do direito à habitação do Recorrente, constitucionalmente consagrado (artigo 65.º do CRP), o que é causa de nulidade do acto, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, d) do Código de Procedimento Administrativo, por contender com direitos fundamentais dos administrados, uma vez que:
a) constitui garantia de defesa dos administrados o cabal conhecimento – em toda a sua extensão – dos factos que lhes são imputados, e das normas violadas,
b) pelo que deveria ter sido remetido ao recorrente o assento documental lavrado aquando das ditas visitas (factos e normas infringidas a que se reportam), pois que as mesmas são os elementos que fundam a ordem de demolição
c) assim, a notificação e informação anexa remetidas ao recorrente está redigido de uma forma, prolixa, imprecisa ou vaga.
• Nada obsta a uma aplicação extensiva ou analógica dos artigos 45.º, 46.º e 49.º da LQCA e artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa (cuja violação também se invoca), pois o bem jurídico que tais normas visam proteger é o ambiente/natureza, que é o interesse público que aqui está em causa. Aliás, o facto de este acto administrativo contender com o direito fundamental do Recorrente à habitação, justifica um ainda maior e mais exaustivo dever de fundamentação por parte da Administração, e uma mais cuidada observância do direito de defesa/contraditório do Recorrente, mais justificando que a entidade Recorrida observasse o disposto nas normas já referidas - o que não aconteceu.

• A circunstância de terem sido remetidas algumas imagens de localização ao Recorrente não afasta as falhas já apontadas; o facto de o Recorrente saber que o que está em causa é a sua casa não iliba a recorrida de cumprir com o dever de descrever os factos/direito de forma precisa e rigorosa - antes pelo contrário!

6.2. A anterioridade da construção em causa relativamente ao acervo legal alegadamente violado.
• O acervo legal alegadamente violado pelo Recorrente é posterior à edificação da casa no terreno em causa, e também isso é causa de nulidade do acto administrativo, ao contender com normas que visam a protecção de direitos fundamentais do administrado, que tê - artigo 32.º do RGCO, artigo 29.º, n.º 1 e 3, da CRP (normas que a sentença violou ao decidir como decidiu).

• Apesar de a matéria dos autos estar, em abstracto, disciplinada/regulada pelo DL 166/2008 e Portaria 247/2009, os mesmos não são (nem pode ser) aplicáveis ao caso em concreto, por ser legislação posterior à construção da casa e anexos, pelo Recorrente (que se iniciou no ano de 2000/2001, tendo passado a habitar a mesma em 2004):
a) A Portaria 247/2009, de 9 de Março entrou em vigor no 5º dia após a sua publicação (em 14/03/2009).
b) O DL 166/2008, de 22 de Agosto entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, em 22/09/2008.
• Ao fazê-lo, a entidade administrativa (e bem assim a sentença recorrida) ofende, não só, o princípio da legalidade, a que a administração está vinculada (artigo 3.º do CPA), como, por aplicação analógica ou extensiva (atento o facto de o interesse público aqui em causa ser a protecção do ambiente/natureza, também protegido pela LQCA): o artigo 2.º do RGCO, o artigo 3.º, n.º 1 do RGCO, as normas do artigo 1.º, n.º 1, CP, artigo 29.º, n.ºs 1 da e 3, da CRP ex vi artigo 32.º RGCO, o que é causa de nulidade do acto, por contender com direitos fundamentais dos administrados (artigo 161.º, n.º 2, al. d) do CPA).

6.3. A lesão do princípio da proporcionalidade e protecção e confiança jurídicas
• O acto administrativo (e bem assim a sentença recorrida, ao decidir como decidiu) viola o princípio da proporcionalidade, nas suas três dimensões (artigo 7.º do CPA e artigo 18.º n.º 2 da CRP) assim como o princípio da protecção da confiança e segurança jurídicas, o qual é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito Democrático Português, estando por isso o acto administrativo ferido de nulidade (artigo 161.º, n.º 2 al. d) do CPA).

• Na verdade, a ordem de demolição da casa do Recorrente é um acto desadequado excessivo e desajustado, e contrário ao princípio proporcionalidade e ao princípio da protecção da confiança, de cariz sancionatório e lesivo de expectativas, interesses e direitos legalmente protegidos (que se constituíram num tempo anterior à entrada em vigor do acervo legal já referido).

• É legítimo e fundado que os cidadãos tenham a expectativa na manutenção das situações de facto já alcançadas no passado, as quais eram permitidas pelo Direito então em vigor, mas se, não obstante esse alcance, normação posterior vier, acentuada ou patentemente, alterar o conteúdo dessas situações, é evidente que a confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico ficará fortemente abalada, frustrando a expectativa que detinham da anterior tutela conferida pelo direito (Acórdãos n.os 86/84 e 303/90).

• Tais princípios não podem ceder perante o princípio da legalidade, quando dele resulte uma aplicação cega da lei, geradora de grande injustiça e excessivamente lesiva, no caso concreto! É que a aplicação cega da lei não é justiça! E a Administração Pública, deveria ser a primeira a pautar-se por esse princípio fundamental (ao invés de se escudar no princípio da legalidade), para não criar situações de gritante injustiça, como a do caso concreto, de lesão excessiva, desproporcional, desnecessária e desadequada do direito fundamental do recorrente à habitação (ainda para mais, tendo em conta a revisão do PDM de Vagos!)

6.4. A protecção do direito à habitação.
• Na Rua da (...) (uma estrada que se encontra em excelentes condições de pavimentação, construída há largas de dezenas de anos pela junta de freguesia da Gafanha da Boa-Hora, com infraestruturas de água, electricidade, comunicações, apenas faltando o saneamento, a concluir em breve) encontram-se construídas, já há muitos anos, muito mais casas, todas elas em igual situação à do recorrente. Isto criou na população a expectativa de que aí poderiam construir as suas habitações, sendo que as mesmas seriam passíveis de legalização (expectativas que serão atendidas com a revisão do PDM de Vagos).

• O acto administrativo de demolição (e bem assim a sentença recorrida, ao decidir como decidiu) põe irremediavelmente em causa o direito constitucionalmente consagrado, à habitação – artigo 65.º da CRP - o que é causa de nulidade do acto (artigo 161.º, n.º 2, al d) do CPA).

• O direito à habitação tem ainda assento no artigo 25.°, n.º l da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 11°, n° l, do PIDESC , sendo “de aplicação imediata e directa, e têm natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, vinculando as entidades públicas e privadas (cfr. Recomendação n°3/A/ 2007 da Provedoria de Justiça, in www.provedor-jus.pt ).” – v/ Ac. TCA Sul, com o n.º 05261/09, de 10-012012, relatora: Cristina dos Santos, em www.dgsi.pt.

6.5. A revisão do PDM de Vagos em curso e as suas consequências.
• Pelo aviso 19052/2018, publicado em Diário da República, 2ª Série, n.º 243, de 18 de Dezembro de 2018, foi tornada pública a deliberação da Câmara Municipal de Vagos em dar início ao processo de alteração ao Plano Director Municipal de Vagos, prevendo-se a sua elaboração num prazo de 18 a 24 meses, que se encontram praticamente concluídos.

• Essa revisão visa alterar a classificação do solo de alguns locais do município, sendo que a Rua de (...), é uma das zonas onde está proposto que haja alteração da classificação do solo (actualmente, classificado de rústico, para urbano), facto que a própria CMV já veio atestar aos autos, referindo que a proposta tem reunidas todas as condições favoráveis de consenso entre as várias entidades para ser aceite. Nesse caso, passa a ser possível construir edificações nessa Rua e deixa de ser aplicável a restrição referida no art. 20.º, n.º 1, al. b) do DL 166/2008, de 22 de Agosto.

• Ou seja, dentro de poucos meses, por força da alteração ao PDM de Vagos, já não se verificará a situação de ilegalidade ora em tela (construção em solo pertencente à REN), sendo possível ao recorrente e demais proprietários da Rua de (...) vir a legalizar as suas casas, que passarão a estar edificadas em solo urbano.

• Assim:
a) poderá dar-se a infeliz ironia de se fazer a demolição da casa do recorrente e, escasso tempo depois – com a aprovação da alteração ao PDM de Vagos – já se verificarem os pressupostos que permitam a referida casa ser legalizada (classificação do solo como urbano);
b) e, nesse caso, dar-se-á a terrível injustiça de, por um escasso período de tempo, o recorrente ter perdido a casa que construiu com tanto sacrifício;
c) quando, caso se aguardasse pela aprovação do PDM de Vagos (que estará a escassos meses de acontecer), a mesma já será passível de legalização (e, logo, não seria demolida).

• E a isto não pode obstar o princípio tempus regit actum (artigo 67.º do RJUE, norma da qual a sentença recorrida faz uma aplicação incorrecta e que, por isso, violou), pois a desafectação do solo da Rua da (...) da REN, (passando a ser solo urbano) - que é o que se pretende com a alteração do PDM de Vagos - em nada contende com a disciplina do artigo 67.º do RJUE.

• É que:
a) o artigo 67.º do RJUE refere-se à validade das licenças ou autorizações das operações urbanísticas, sendo que não é esse o procedimento de legalização que a CMV pretende, para já, promover, para se conseguir a legalização, entre muitos outros, do presente caso;
b) o que a CMV pretende é, por via da alteração ao PDM, alcançar a desafectação da REN do solo da Rua de (...), passando a classificá-lo como urbano, estando reunidas todas as condições para tal.
c) e isso em nada tem a ver com a disciplina do artigo 67.º do RJUE, pois que este processo de alteração do PDM não visa alcançar a legalização apenas e só da casa do recorrente propriamente dita, mas sim a desafectação de uma área de solo da Rua de (...) da REN.

• Depois de o solo passar a ser classificado como urbano poderá o Recorrente iniciar o processo de legalização, pedindo então a respectiva licença em conformidade com o PDM assim alterado, e em pleno respeito pelo artigo 67.º do RJUE).

• O princípio tempus regit actum não é um princípio absoluto, admitindo excepções (veja-se o artigo 60.º do RJUE). Aliás, os instrumentos de planeamento urbanístico e as normas legais não podem ser de aplicadas cegamente (neste sentido, Vários, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado, anotação ao artigo 67.º, pág. 501, Almedina), sob pena de se criarem situações de forte injustiça social.

• Atento o caso concreto seria chocante determinar-se a improcedência do procedimento cautelar, por falta de fumus boni iuris, como o Tribunal a quo pretende, pugnando-se, assim, por razões da mais flagrante justiça e justeza, pela suspensão da ordem de demolição até que esteja concluída a alteração ao PDM de Vagos, por forma a permitir ao Recorrente colocar-se em consonância com a lei - com a obrigação injuntiva, para a recorrida, de não poder prosseguir a execução do acto administrativo (artigo 128.º, n.º 1 do CPTA).
*
II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como (sumariamente) provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. No dia 02.10.2013, no âmbito do Plano de Fiscalização CCDRC/2013, foi levada a cabo, pelos serviços da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, a acção de fiscalização n.º 26, no âmbito da qual se encontrou, na Estrada da (...), n.º 12, em Gafanha da Boa Hora, uma construção, com cerca de 130m2, destinada a habitação, e um anexo, de cerca de 30 m2, “executados em alvenaria de blocos de cimento, com cobertura em telha cerâmica, e muros de vedação em alvenaria e tijolo” – cf. Informação n.º DSR_Aveiro 431/13, junta com a oposição como documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. As construções identificadas no ponto precedente são da propriedade do ora requerente – cf. confissão, que se retira do teor da petição inicial, e Informação n.º DSR_Aveiro 431/13, junta com a oposição como documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. As construções acima identificadas em foram edificadas sem licenciamento camarário e sem qualquer comunicação à CCDRC – cf. Informação n.º DSR_Aveiro 431/13, junta com a oposição como documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. À data da fiscalização, as construções teriam sido levadas a cabo há, pelo menos, sete anos – cf. Informação n.º DSR_Aveiro 431/13 e imagens do “Google Earth” anexas, juntas com a oposição como documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. De acordo com a Planta de delimitação da Reserva Ecológica Nacional do município de Vagos, aprovada pela Portaria 247/2009, de 09.03, o local onde se situam as referidas construções integra-se em “REN - Áreas de máxima infiltração” – cf. Informação n.º DSR_Aveiro 431/13, junta com a oposição como documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. De acordo com a planta de ordenamento do Plano Director Municipal de Vagos, publicada pelo Aviso n.º 8076/2009, o local onde se situam as referidas construções encontra-se classificado como “Solo Rural – Espaços Florestais afectos à Conservação” – cf. Informação n.º DSR_Aveiro 431/13, junta com a oposição como documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7. Por meio de ofício datado de 31.10.2013, com a ref.ª DSR_AVEIRO 975/13, subscrito pelo Vice-presidente da CCDRC, esta comunicou e solicitou ao Município de Vagos a seguinte informação:

«Decorrente de uma ação de fiscalização efetuada pela fiscalização desta CCDR-C, no dia 02.10.2013, foi verificada a existência de uma edificação, constituída por uma moradia, anexo e muros, em alvenaria de blocos de cimento e cobertura em telha cerâmica, em terreno situado à margem da Estrada da (...), no lugar da Gafanha da Vagueira, com as coordenadas geográficas (…) afeto à servidão da REN e em Solo Rural — Espaços Florestais afetos à Conservação, de acordo com a planta de ordenamento do PDM de Vagos.

O proprietário das construções é o Sr. M.(…). As edificações terão sido efetuadas no ano de 2005 ou 2006.

Em face do exposto (…) solicito a V. Ex.ª que se digne mandar informar estes Serviços, no prazo de 20 (vinte) dias, se existe algum antecedente na Autarquia sobre o assunto, remetendo cópia, e qual a atuação que se propõem efetuar, uma vez que em "Espaços Florestais afetos à Conservação são interditas construções.»

– cf. Ofício junto com a oposição como documento 2 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Por mensagem de correio electrónico de 30.01.2014, os serviços do Município de Vagos informaram a CCDRC de que não havia sido localizado qualquer pedido de licenciamento em nome do proprietário das construções, mais mencionando que “o caso apresentado, dado que não tem enquadramento no PDM em vigor, será ponderado aquando da alteração ao PDM referida no ponto anterior.” – cf. documento 3 junto com a oposição, cujo teor se dá por reproduzido.

9. Na sequência de solicitação da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, os serviços da CCDRC produziram a informação n.º DSR_AVEIRO 169/17, na qual se procedeu à seguinte análise:

«Com a publicação da nova carta da REN, aprovada pela Portaria n.0 247/2009, de 9 de março (…), o local da implantação das construções encontra-se classificado na REN, ecossistema de "Áreas de Máxima Infiltração, a que correspondem as Áreas Estratégicas de Proteção e Recarga de Aquíferos".
De acordo com o Anexo II (a que se refere o art.º 20.º) — Capítulo I — Obras de construção, alteração e ampliação, alínea b) — Habitação, turismo, indústria, agroindústria e pecuária com área de implantação superior a 40m2 e inferior a 250m2, os usos e ações acima referidos estão sujeitos a comunicação prévia, no ecossistema em causa.
No entanto, a Portaria n.º 419/2012, de 20 de Dezembro vem definir as condições e requisitos a que ficam sujeitos os usos e ações referidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 20.º do Dec. Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, na redação dada pelo Dec. Lei n.º 239/201 2, de 2 de novembro.
Assim, o Anexo I da Portaria n.º 419/2012, de 20/12, capitulo I Obras de construção, alteração e ampliação, alínea b) — Habitação, turismo, indústria, agroindústria e pecuária com área de implantação superior a 40m2 e inferior a 250m2, vem dizer o seguinte:
• A pretensão pode ser admitida desde que a área de implantação não exceda 2% da área total do prédio, até ao limite de 250m2. (…)
III. Conclusão
Em face do exposto, propõe-se superiormente que o oficio/Proposta de Ordem — Fase de audiência prévia n.º DSR_Aveiro 85/17, seja enviado ao infrator, com vista à possível regularização das edificações existentes no terreno. (…)».
– cf. documento 5 junto com a oposição, cujo teor se dá por reproduzido.

10. Por ofício de 03.05.2017, com a Ref.ª DSR_AVEIRO 85/17, subscrito pelo Vice-Presidente da CCDRC, esta informou o requerente do seguinte:

[imagem que aqui se dá por reproduzida]

– cf. Ofício junto com a oposição como documento 6, cujo teor se dá por reproduzido.


11. O Requerente recebeu o ofício mencionado no ponto precedente em 10.05.2017 – cf. aviso de recepção junto com a oposição como documento 6, cujo teor se dá por reproduzido.

12. O Requerente não se pronunciou quanto ao teor do ofício mencionado nos pontos antecedentes – cf. processo administrativo e documento 7 junto com a oposição, cujo teor se dá por reproduzido.

13. Por ofício de 19.10.2019, com a referência DSF 795/17, subscrito pelo Vice-Presidente da CCDRC, esta informou o Requerente, além do mais e em suma, do seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

– cf. Ofício junto com a oposição como documento 7, cujo teor se dá por reproduzido.

14. Em anexo ao ofício referido no ponto antecedente, seguiram



“Cartografia”, com localização das construções em Extracto da Carta Militar n.º 195, assim como em Extracto da carta REN de Vagos, e fotografias das construções em causa – cf. Ofício junto com a oposição como documento 8, cujo teor se dá por reproduzido.

15. No dia 08.11.2018, técnicos dos serviços da CCDRC deslocaram-se ao local das edificações e constataram que as mesmas não haviam sofrido quaisquer alterações – cf. informação n.º DSR-AVEIRO 595/18, junta com a oposição como documento 12, cujo teor se dá por reproduzido.

16. Na sequência da visita referida no ponto anterior, e da elaboração da respectiva informação [n.º DSR-AVEIRO 595/18], constatando-se que não havia sido apresentada comunicação prévia, a CCDRC determinou que se emitisse “uma proposta de ordem para a demolição da edificação” – cf. informação n.º DSR-AVEIRO 595/18, junta com a oposição como documento 12, e despacho nela exarado, cujo teor se dá por reproduzido.

17. Por ofício de 03.01.2019, com a Ref.ª DSR_AVEIRO 443/18, subscrito pelo Vice-Presidente da CCDRC, o Requerente foi informado do seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

– cf. ofício DSR_AVEIRO 443/18, junto com a oposição como documento 13, cujo teor se dá por reproduzido.

18. Em anexo ao ofício referido no ponto antecedente, seguiram “Cartografia”, com localização das construções em Extracto da Carta Militar n.º 184, assim como em Extracto da carta REN de Vagos, e fotografias das construções em causa – cf. ofício DSR_AVEIRO 443/18, junto com a oposição como documento 13, cujo teor se dá por reproduzido.

19. Por documento de 22.01.2019, foram apresentadas alegações escritas, por parte da mulher do requerente – cf. documento 14 junto com a oposição, cujo teor se dá por reproduzido.

20. No dia 29.03.2019, técnicos dos serviços da CCDRC deslocaram-se novamente ao local das edificações e constataram que as mesmas não haviam sofrido quaisquer alterações – cf. informação n.º DSR_AVEIRO 174/19, junta com a oposição como documento 15, cujo teor se dá por reproduzido.

21. Na sequência da visita referida no ponto anterior, foi elaborada pelos serviços a da CCDRC a informação n.º DSR_AVEIRO 174/19, da qual consta, além do mais, o seguinte:

“(…) As alegações apresentadas não contestam o enquadramento da acção face ao regime jurídico da REN, mas reforça que se trata de uma primeira habitação, não tendo outra solução para morar e com uma situação familiar de insuficiência económica.

IV. Conclusão

Em face do exposto, propõe-se o envio ao infrator da ordem, através do ofício DSR_Aveiro 164/19 (em anexo), notificando o infrator para no prazo de 60 (sessenta) dias, proceder à:

1. demolição das edificações (moradia e anexos) situada na Estrada da (...), n.º 12, Gafanha da Vagueira e reconstituir a situação anterior à prática da infração;

2. remoção dos resíduos resultantes das demolições e apresentação das cópias das guias de acompanhamento de resíduos eletrónicas, de acordo com a Portaria n.º 145/2017, de 26 de abril, alterada pela Portaria n.º 28/2019, de 18 de janeiro, comprovativas do correto encaminhamento dos resíduos para destino licenciado.”
– cf. informação n.º DSR_AVEIRO 174/19, junta com a oposição como documento 15, cujo teor se dá por reproduzido.

22. Sobre a informação referida no ponto antecedente, em 06.05.2019 foi exarado despacho de concordância pelo Vice-Presidente da CCDRC – cf. informação n.º DSR_AVEIRO 174/19, junta com a oposição como documento 15, cujo teor se dá por reproduzido.

23. Por ofício de 08.05.2019, com a Ref.ª DSR_AVEIRO 164/19, subscrito pelo Vice-Presidente da CCDRC, o requerente foi informado do seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

– cf. ofício DSR_AVEIRO 164/19, junto com a oposição como documento 16, cujo teor se dá por reproduzido.

24. Em anexo ao ofício referido no ponto antecedente, seguiram “Cartografia”, com localização das construções em Extracto da Carta Militar n.º 184, em Extracto de ortofotomapa e em Extracto da carta REN de Vagos, assim como fotografias das construções em causa – cf. ofício DSR_AVEIRO 164/19, junto com a oposição como documento 16, cujo teor se dá por reproduzido.

25. Encontra-se em curso o procedimento para alteração do Plano Director Municipal de Vagos, no âmbito do qual, para o local onde se situam as construções da propriedade do requerente, a Câmara Municipal irá propor a desafectação da Reserva Ecológica Nacional para solo urbano, considerando possuir os critérios para tal definidos – cf. ofício apresentado nestes autos em 21.05.2020 pelo Município de Vagos, a fls. 644 dos autos.
*
III - Enquadramento jurídico.

1. O requisito do periculum in mora (facto consumado ou prejuízo de difícil reparação).

Determina a primeira parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal…”.

Quanto ao requisito do periculum in mora, refere Mário Aroso de Almeida O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, 4ª edição revista e actualizada, pág. 260 “se não falharem os demais pressupostos, a providência deve ser concedida se dos factos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade”.

Continua este Autor a referir que a providência deve também ser concedida, “sempre pressupondo que não falhem os demais pressupostos (...) quando os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que se a providência for recusada, essa reintegração no plano os factos será difícil (…), ou seja, nesta segunda hipótese, trata-se de aferir da possibilidade de se produzirem “prejuízos de difícil reparação”.

Por seu lado quanto a esta questão, refere Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa” 4º ed. p. 298, que:

“O juiz deve, pois, fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por entretanto se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstem à reintegração específica da sua esfera jurídica”.

Analisando a nossa situação concreta verificamos que existe a probabilidade de criação de uma situação de facto consumado.

Trata-se aqui não de uma construção qualquer, mas da habitação do requerente e respectivo agregado familiar. Habitação que o Requerente construiu com dificuldade económicas e por recurso a crédito. Sem que tenha alternativas de habitação.

Tudo isto como se reconhece nas informações que serviram de base ao acto suspendendo.

A executar de imediato o acto verifica-se uma situação de facto consumado grave, o Requerente e o seu agregado familiar: ficar sem tecto até à decisão final do processo principal.

Pelo que se tem por verificado este requisito.

2. O requisito do fumus boni iuris (a aparência do bom direito).

A segunda parte do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (de 2015) determina:

“… e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”

Face ao teor deste preceito - que não distingue entre providências conservatórias, como o pedido de suspensão da eficácia de um acto, e providências antecipatórias - é necessário, além do mais, que seja “provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente para que uma providência antecipatória possa ser concedida. Como, neste domínio, o requerente pretende, ainda que a título provisório, que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da sua pretensão deduzida no processo principal” – Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 609.

Foi com base na não verificação deste requisito que a providência foi indeferida.

Mal, em nosso entender.

Sem necessidade de abordar os outros fundamentos legais apontados pelo Requerente como fundamentos para a acção principal, entendemos que se verifica vício de violação de lei constitucional, em concreto a violação do princípio da confiança e da segurança jurídica que determinará, provavelmente, o êxito da acção principal.

Sufragamos o entendimento de que a legalidade da ordem de demolição de uma construção se afere pelo momento da prática do acto e que a previsível publicação de instrumento de ordenamento do território que permita a legalização não fere a legalidade do acto nem justifica, por si só, a suspensão do procedimento.

Mas para tanto é necessário que a norma aplicável no momento da prática do acto não esteja ferida de inconstitucionalidade quando interpretada no sentido de impor ao caso concreto a solução radical da demolição.

Precisamente o que sucede no caso concreto, por violação do princípio da confiança, ínsito no Estado de Direito democrático – artigo 2ºda Constituição da República Portuguesa.

Sobre o princípio da confiança mostra-se pertinente transcrever aqui o seguinte trecho do acórdão do Tribunal Constitucional nº 195/2017, de 26.04.2017, no processo nº 681/2016:

“12. Sucede que o princípio da proteção da confiança é apenas uma das vertentes ou refrações da segurança jurídica, valor matricial do Estado de direito democrático. O seu alcance, como vimos, é essencialmente retrospetivo: o poder público não pode, exceto na exata medida em que para tal tenha razões justas ou imperiosas, defraudar as expectativas que o seu comportamento gerou nos cidadãos e depredar os investimentos que estes realizaram nesse pressuposto.

Todavia, o Estado de direito não está apenas vinculado a acautelar a confiança que inspirou nos cidadãos. Está também vinculado a inspirar essa confiança, o mesmo é dizer, a criar as condições possíveis e indispensáveis para que estes possam planear as suas vidas e realizar investimentos em segurança. Trata-se aqui da vertente prospetiva da segurança: a previsibilidade do comportamento estadual e a consequente determinabilidade das consequências jurídicas das decisões dos particulares. Um Estado cujo poder executivo não se contém nos limites da legalidade; cujas leis são sistematicamente secretas, obscuras e vagas; cujos tribunais não são independentes; ou cujos regimes legais admitem exceções invocáveis ad nutum; um tal Estado, como é fácil de reconhecer, não inspira qualquer confiança nos cidadãos — e, por essa razão, não pode dizer-se que lese a confiança que neles gerou —, mas nem por isso deixa de postergar a segurança que a submissão do poder público ao direito impõe. Por outras palavras, o Estado de direito está simultaneamente vinculado a salvaguardar a confiança que inspirou nos cidadãos (vertente retrospetiva) e a inspirar neles confiança na previsibilidade e na integridade do seu comportamento (vertente prospetiva)”.

Os acórdãos citados na decisão recorrida e pelo Ministério Público não versam sobre situações iguais ou sequer idênticas à que aqui está em juízo.

Quando foram edificadas as construções aqui em apreço não estavam em vigor as normas que determinaram a ordem de demolição. As edificações aqui em causa servem para primeira e única habitação do Requerente e seu agregado familiar.

Ao contrário do que sucede nas outras situações. O que faz toda a diferença.

Na verdade, as construções em causa datam de, pelo menos, 2006 – Factos indiciariamente provados sob os números 1 e 4.

Ora a Portaria 247/2009, de 09.03, entrou em vigor no 5º dia após a sua publicação, ou seja, em 14.03.2009 - artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 74/98, de 11.11.

E o Decreto-Lei 166/2008, de 22.08, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, em 22.09.2008 – artigo 48º deste diploma.

Desde logo quanto à exigência de comunicação prévia, constante do artigo 22º do Decreto-Lei 166/2008, de 22.08, trata-se de uma exigência de objecto impossível porque quando foi criada esta norma já a construção estava feita. Possível seria apenas a comunicação posterior. O que sempre tornaria o acto nulo nesse fundamento, por impossibilidade objectiva e legal da respectiva exigência – artigo 161º, n.1, alínea c), do Código de Procedimento Administrativo.

Em todo o caso, o desiderato pretendido pela norma, a possibilidade de as entidades competentes verificarem a conformidade das construções com as exigências da Reserva Ecológica Nacional, foi alcançado, dado que em acção de fiscalização acabaram por ter conhecimento das mesmas e exerceram a sua acção fiscalizadora e de controle da legalidade.

Quanto à exigência dupla de área mínima do terreno e máxima para as construções, é uma exigência com a qual o Requerente não podia contar à data da construção porque ainda não existia.

O que nos faz cruzar com o aludido princípio da tutela da confiança.

Não se pode fazer ao Requerente uma exigência com a qual ele não podia contar à data em que fez as construções, para uma finalidade essencial a construção de habitação própria, numa situação de reconhecida insuficiência económica.

O que determina a ilegalidade do acto por inconstitucionalidade da norma aplicada, com a interpretação dada no caso concreto, em desrespeito ao princípio da tutela da confiança, ínsito num Estado de Direito democrático – artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

Também como consta da matéria dada como (sumariamente) provada, a Entidade Requerida reconheceu “que se trata de uma primeira habitação, não tendo outra solução para morar e com uma situação familiar de insuficiência económica” – facto 21.

A preterição deste direito fundamental, pela demolição da casa de habitação do Requerente e respectivo agregado familiar sem este ter ou lhe ser oferecida alternativa, em que se traduz a ordem suspendenda, fere esta também de ilegalidade por inconstitucionalidade da norma aplicada, com a interpretação dada no caso concreto, em desrespeito ao direito fundamental à habitação – artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.

O que determina também a nulidade do acto suspendendo - artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do Código de Procedimento Administrativo.

Tanto basta para, sem necessidade de abordar os demais vícios imputados ao acto suspendendo, concluir pela acentuada probabilidade de êxito da acção principal, ao contrário do decidido pela Primeira Instância.

3. A ponderação de interesses.

Estipula o n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (de 2015):

“Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”

Como nos diz Cármen Chinchilla Marín em “La tutela cautelar en la nueva justicia administrativa”, Civitas, Madrid, 1991, pág. 163: “… o interesse público há-de ser específico e concreto, ou seja, diferenciado do interesse genérico da legalidade e eficácia dos actos administrativos …”

Deste modo, só quando as circunstâncias do caso concreto revelarem de todo em todo a existência de lesão do interesse público que justifique a qualificação de grave e se considere que essa qualificação deve prevalecer sobre os outros prováveis prejuízos que se contrapõem é que se impõe a execução imediata do acto, indeferindo-se, por esse facto, o pedido de suspensão – acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13.01.2005, Proc. n.º 959/04.9BEVIS.

Neste caso, o prejuízo essencial invocado pelo Requerente é a perda da sua habitação, com a ordem demolição em causa.

Por banda da Entidade Demanda estão os interesses públicos genéricos subjacentes à definição da REN, de protecção ambiental.

Que no caso concreto não se mostram especialmente relevante. Tanto assim que apenas em 2008 e 2009 o legislador definiu a área como Reserva Ecológica Nacional e impôs as exigências que determinam agora a demolição, por um lado e, por outro lado, o Município interessado já manifestou, volvidos pouco mais de dez anos, a intenção de retirar tal definição e exigências para a área, o que demonstra a fraca consistência deste interesse público.

Termos em que se julga também, na ponderação de danos previsíveis, ser de dar prevalência aos interesses defendidos aqui pelo Requerente, ora Recorrente.

O que determina, ao contrário do decidido, a procedência da providência requerida.
*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Julgam procedente a providência cautelar pelo que deferem o pedido de suspensão.

Custas pelo Recorrido em ambas as instâncias.
*
Porto, 22.01.2021


Rogério Martins
Frederico Branco)
Luís Garcia, com a declaração de voto que se segue:

DECLARAÇÃO DE VOTO:
"Voto a decisão, ainda que não compartilhe afirmativa probabilidade extensível a todos os alicerces de fundamentação".

Porto, 22.01.2021