Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01482/23.8BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/04/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:LEVANTAMENTO DO EFEITO SUSPENSIVO AUTOMÁTICO
ARTIGO 103º, Nº. 4 DO CPTA ;
Sumário:
I – Conforme ditado pelo artigo 103º - A do C.P.T.A., o que está em causa não é ponderar valores ou interesses em si, mas danos ou prejuízos, e, portanto, prejuízos reais, que numa prognose relativa às circunstâncias do caso concreto, resultariam do levantamento ou não do efeito suspensivo dos efeitos do ato impugnado.

II- Não resultando provado que o material de reserva reputado essencial para o regular funcionamento e imediata prontidão das aeronaves Falcon 50, Falcon 900 e Koala e aeronaves, F16, C130, P3 e EH101 com vista ao cumprimento de missões de defesa do espaço aéreo nacional e da Nato, se encontra, efetivamente, para despacho alfandegário, apresenta-se distintivo a inverificação do nexo ligante entre a necessidade imperiosa de levantamento do efeito suspensivo e o regular funcionamento e imediata prontidão das referidas aeronaves e, qua tale, a falta de sustentáculo do erro de julgamento atravessado à decisão judicial recorrida.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
* *
I – RELATÓRIO
1. A FORÇA AÉREA PORTUGUESA, Entidade Demandada nos autos de CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL instaurados por [SCom01...], LDA., vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da decisão judicial do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, editada em 29.06.2023, que indeferiu o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático do ato impugnado.
2. Alegando, a Recorrente Força Aérea Portuguesa formulou as seguintes conclusões: “(…)
A. O presente recurso jurisdicional vem interposto da Sentença de 30.06.2023, que indeferiu o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático da ação de contencioso pré-contratual, proposta por [SCom01...], Lda., e tem por fundamento erro de julgamento, quanto à fixação e apreciação da matéria de facto e quanto ao Direito aplicável.
B. A Sentença recorrida fundamenta-se numa errónea perceção, seleção e apreciação dos factos que considera relevantes para a decisão do incidente e opera uma deficiente apreciação do que está em discussão, procedendo a uma errónea aplicação do Direito.
C. Em sede de enunciação dos factos julgados provados, a Sentença recorrida omitiu qualquer referência aos 08 (oito) documentos juntos pela Requerente e aos factos por eles provados.
D. Com fundamento nos n.ºs 5 a 10 da presente Alegação, que aqui se dão por reproduzidos, a matéria de facto em que assenta a Decisão recorrida deve ser alterada, por ser inequívoco que foi mal julgada, devendo ser considerados provados nos presentes autos os seguintes Factos Novos, tal como resultam dos documentos juntos pela Requerente ora Recorrente:
13) Resulta da lei orgânica da Força Aérea - Decreto-Lei n.° 187/2014, que é sua obrigação assegurar a prontidão e operacionalidade dos meios aéreos, nomeadamente aeronaves, necessários ao cumprimento das seguintes missões:
- missões militares no âmbito de compromissos internacionais, especificamente da NATO, e na defesa do espaço aéreo a cargo de Portugal;
- missões humanitárias e de paz da ONU, designadamente em África;
- missões de Vigilância, Patrulhamento Aéreo, Busca e Salvamento (SAR) no espaço territorial marítimo nacional e no Espaço Estratégico de Interesse Nacional Permanente;
- missões de coordenação dos meios aéreos afetos à prevenção e combate dos incêndios rurais - FACTO NOVO.
14) As aeronaves afetas à execução das missões supra identificadas são as aeronaves F16, C130, P3 e AW119 - FACTO NOVO.
15) A Força Aérea juntou aos autos a listagem específica, designada MEL - Minimum Equipment List, aplicável a cada uma das tipologias de aeronaves com material na alfândega, a qual fixa o mínimo operacional quanto a produtos, materiais, órgãos, motores e componentes de sistemas, sem o qual a aeronave não pode voar - cf. documentos n.ºs ...1, ...2, ...3, ...4, ...5 e ...6 juntos com o RI, respetivamente, a fls. 279 e seg., 387 e seg., 400 e seg., 448 e seg., 582 e seg. e 717 e seg. dos autos com paginação eletrónica - FACTO NOVO.
16) A Força Aérea juntou aos autos a listagem do material e equipamento que se encontra a aguardar despacho alfandegário, no qual está identificado e descrito o material e equipamento, a respetiva quantidade e situação e a aeronave a que o mesmo se destina - cf. documento n.° ...7 junto com o RI, a fls. 744 e seg. dos autos com paginação eletrónica - FACTO NOVO.
E. No que se refere à aplicação do Direito, a Sentença em crise, ainda que citando a Lei em vigor, raciocina e convoca Doutrina e Jurisprudência que têm por objeto a redação do n.° 4 do artigo 103.°-A do CPTA vigente até à entrada em vigor da Lei n.° 30/2021, mas que, porém, foi alterada por esta!
F. Dispõe o n.° 4 do artigo 103.°-A do CPTA, na redação dada pela Lei n.° 30/2021, de 25 de maio, que «o efeito suspensivo é levantado quando, devidamente ponderados todos os interesses públicos e privados em presença, os prejuízos que resultariam da sua manutenção se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento».
G. Razão pela qual, viola expressamente o n.° 4 do artigo 103.°-A do CPTA, na redação em vigor e aplicável à situação sub iudice, o entendimento da Sentença impugnada segundo o qual «... só em casos excecionais deverá ceder com o consequente levantamento do efeito suspensivo, assumindo-se que todas as consequências decorrentes da não execução imediata do contrato constituem efetivos prejuízos e que se assumem como necessários, só quando tais prejuízos se tornam desproporcionais, têm os mesmos de ser tomados em conta e ponderados à frente dos interesses do impugnante.
Assim, para que se possa afastar o indicado regime é necessário que se alegue e prove a existência de tais efeitos extraordinários e ainda que os danos que resultam da manutenção do efeito suspensivo do acto de adjudicação são superiores aos que podem resultar com a não suspensão desse acto.» [fls. 29 da Decisão impugnada].
H. E, por consequência, viola também expressamente o n.° 4 do artigo 103.°-A do CPTA, na redação em vigor e aplicável à situação sub iudice, a conclusão da Decisão recorrida de que a manutenção dos efeitos suspensivos não acarreta efeitos extraordinários e gravemente prejudiciais para a prossecução do interesse público ou de lesividade claramente desproporcional para todos interesses em presença.
I. Os únicos prejuízos demonstrados nos presentes autos são os prejuízos decorrentes para os interesses públicos em presença e que são afetados pelo efeito suspensivo automático.
J. À Força Aérea cabe assegurar a prontidão e operacionalidade dos meios necessários ao cumprimento da missão que lhe está cometida, declinada no interesse público por si diretamente prosseguido e também no interesse público geral de cumprimento dos compromissos internacionais do Estado Português, quer na vertente da NATO, quer na vertente da vigilância e fiscalização do Espaço Estratégico de Interesse Nacional Permanente, bem como na proteção e apoio às populações.
K. Na ponderação dos interesses públicos em presença e dos prejuízos que para eles resultam, o que está em causa no caso concreto é a prontidão e operacionalidade dos meios aéreos - no caso aeronaves - e não a realização em concreto das missões.
L. O material e equipamento que se encontra a aguardar desalfandegamento diz respeito, sobretudo, às aeronaves F16, P3, C130 e AW119, as quais são meios aéreos de empenhamento nas missões militares no âmbito de compromissos internacionais, especificamente da NATO, nas missões humanitárias e de paz da ONU, designadamente em África, nas missões de Vigilância, Patrulhamento Aéreo, Busca e Salvamento (SAR) no espaço territorial marítimo nacional e no Espaço Estratégico de Interesse Nacional Permanente e nas missões de coordenação dos meios aéreos afetos à prevenção e combate dos incêndios rurais.
M. O equipamento indispensável ao aprontamento e operação de uma aeronave é definido, de forma taxativa, em função da sua tipologia.
N. o equipamento indispensável ao aprontamento e operação de cada aeronave consta de uma listagem específica, designada MEL - Minimum Equipment List, a qual define o mínimo operacional, quanto a produtos, materiais, órgãos, motores, e componentes de sistemas, indispensável a que ela possa voar e cumprir a sua missão.
O. A maior parte do material e equipamento que se encontra a aguardar despacho alfandegário, é essencial ao aprontamento e operação de aeronaves F16, P3, C130 e AW119, o que decorre do cotejo de cada MEL com a listagem do material e equipamento que se encontra a aguardar despacho alfandegário.
P. A paralisação dos efeitos da adjudicação e da celebração do contrato implica, por si só, riscos sérios e acrescidos no aprontamento e operacionalidade das aeronaves e, consequentemente, na realização das missões em que as mesmas aeronaves estão empenhadas.
Q. A Requerida não alegou, nem demonstrou quaisquer prejuízos que para si decorreriam do levantamento do efeito suspensivo, o que a Sentença recorrida ignora totalmente.
R. Na ponderação dos interesses públicos e privados em presença nos autos que realiza, a Sentença em crise considera que o interesse público está assegurado por via da realização de ajustes diretos pela Entidade Contratante, o que é manifestamente violador dos princípios da concorrência e da transparência.
S. Na ponderação dos interesses públicos e privados em presença, dúvidas não restam que os prejuízos decorrentes da manutenção da suspensão - que impede a celebração do contrato -, que incidem e têm um nexo direto com o aprontamento e operacionalidade dos meios aéreos necessários para as missões supra identificadas, são superiores aos prejuízos que resultam para a Requerida do levantamento do efeito suspensivo. (…)”.
*
3. Notificada que foi para o efeito, a Recorrida [SCom01...], Lda., produziu contra-alegações, defendendo a improcedência da apelação e a manutenção do decidido.
*
4. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
*
5. O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não exerceu a competência prevista no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
*
*
6. Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
* *
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
8. Neste pressuposto, a questão essencial a dirimir resume-se a saber se a decisão judicial recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em (i) inadequada apreciação da matéria de facto, bem como em (ii) erro de julgamento de direito.
9. É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
* *
III- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO
*
10. As questões decidendas, como se colhe inequivocamente do ponto II) do presente aresto, traduzem-se em saber se saber se a sentença recorrida enferma de (i) de inadequada apreciação matéria de facto, bem como de (ii) erro de julgamento de direito.
11. Vejamos estas questões especificadamente.
12. Assim, e quanto ao primeiro grupo de razões, refira-se que importa que se comece por sublinhar que, do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.
13. Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.
14. Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI. No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso”Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.
15. Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.
16. Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
17. Cientes destes considerandos de enquadramento, atentemos, agora, no caso sub juditio.
18. A Recorrente clama que, por incorretamente julgado face ao teor da prova produzida nos autos, devem ser aditados os seguintes pontos à matéria de facto coligida nos autos: “(…)
13) Resulta da lei orgânica da Força Aérea – Decreto-Lei n.º 187/2014, que é sua obrigação assegurar a prontidão e operacionalidade dos meios aéreos, nomeadamente aeronaves, necessários ao cumprimento das seguintes missões:
→ missões militares no âmbito de compromissos internacionais, especificamente da NATO, e na defesa do espaço aéreo a cargo de Portugal;
→ missões humanitárias e de paz da ONU, designadamente em África;
→ missões de Vigilância, Patrulhamento Aéreo, Busca e Salvamento (SAR) no espaço territorial marítimo nacional e no Espaço Estratégico de Interesse Nacional Permanente;
→ missões de coordenação dos meios aéreos afetos à prevenção e combate dos incêndios rurais.
14) As aeronaves afetas à execução das missões supra identificadas são as aeronaves F16, C130, P3 e AW119 (…).
15) A Força Aérea juntou aos autos a listagem específica, designada MEL – Minimum Equipment List, aplicável a cada uma das tipologias de aeronaves com material na alfândega, a qual fixa o mínimo operacional quanto a produtos, materiais, órgãos, motores e componentes de sistemas, sem o qual a aeronave não pode voar (…).
16) A Força Aérea juntou aos autos a listagem do material e equipamento que se encontra a aguardar despacho alfandegário, no qual está identificado e descrito o material e equipamento, a respetiva quantidade e situação e a aeronave a que o mesmo se destina (…)”
19. Adiante-se, desde já, que este fundamento de recurso não vingará.
20. Na verdade, e com reporte ao alegação de que “(…) A Força Aérea juntou aos autos a listagem do material e equipamento que se encontra a aguardar despacho alfandegário, no qual está identificado e descrito o material e equipamento, a respetiva quantidade e situação e a aeronave a que o mesmo se destina (…)”, cabe notar que o suporte documental produzido a este propósito - e junto aos autos sob o documento nº. ... com o requerimento de levantamento de efeito suspensivo – consubstancia uma mera reprodução de uma lista de material elaborada em contexto de processador de texto e sem qualquer reconhecimento de autoria.
21. Ora, este documento - com o alcance e termos supra explicitados - é manifestamente insuficiente para a aquisição processual da realidade ali atestada.
22. Na verdade, tratando-se de materialidade controvertida reportada a prestação de serviços de desalfandegamento estadual, impunha-se a junção aos autos de declaração oficial por parte dos serviços aduaneiros a identificar o material da Força Aérea Portuguesa eventualmente a aguardar desalfandegamento.
23. Tal não foi feito, o que serve para atingir a realidade pretendida aditar sob o facto novo nº. 16) carece de manifesto lastro probatório, devendo considerar-se como não provada.
24. E este julgamento tem direta repercussão nos demais vetores sustentadores do erro de julgamento de facto em análise.
25. Efetivamente, mercê da falência de demonstração da realidade atinente ao material a aguardar desalfandegamento por parte da Força Aérea Portuguesa, não se pode afirmar - como sustenta a Recorrente - que encontra-se “(…) para despacho alfandegário, com necessidade de intervenção de Representante Aduaneiro, material e equipamento destinado à frota de F16, o qual é indispensável à sua prontidão operacional (…)”.
26. O que nos transporta para evidência da inocuidade e insuficiência do demais tecido fáctico pretendido aditar pela Recorrente [factos novos n.ºs 13, 14 e 15] - de per se, conjugados um com o outro, ou conjuntamente com os demais provados – para alterar a decisão da causa.
27. E nesta impossibilidade de “apropriação” da alegação da Recorrente com recurso ao aditamento do quadro fáctico pretendido reside o “punctum saliens” distintivo da falta de préstimo à boa decisão de causa.
28. Assim deriva, naturalmente, que se não antolha a existência de qualquer fio condutor lógico jurídico que justifique o aditamento da materialidade invocada pela Recorrente ao probatório reunido nos autos.
29. Concludentemente, improcedem todas as conclusões de recurso no domínio do erro de julgamento da decisão da matéria de facto.
30. Ponderado o acabado de julgar e o que demais se mostra fixado na decisão judicial recorrida temos, então, como assente o seguinte quadro factual: “(…)
1) Por Despacho do TGEN Comandante da Logística da Força Aérea, ao abrigo do Despacho n.° ...22, de 27 de julho, publicado no D.R., 2.a série, n.° 155, de 11.08.2022, foi autorizado o início do procedimento de contratação, foi aprovado o Anúncio, o Programa e o Caderno de Encargos do Concurso Público n.° FAP CP DAT/RADTP ...69, para a aquisição de serviços de despachantes alfandegários no período de abril de 2023 a março de 2024, e foi nomeado o Júri do concurso - cf. fls. 9 a 49 do processo administrativo;
2) O anúncio de procedimento foi publicado, sob o n.° 3107/2023, na II Série, Parte L, do Diário da República n.° 43, de 01MAR2023 e no Suplemento do Jornal Oficial da União Europeia.
3) Foi aprovado o Programa do Concurso, do qual se extrai o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
4) O Concurso Público n.° FAP CP DAT/RADTP ...69 destina-se à prestação de serviços de Despachantes Alfandegários à Força Aérea, no período de abril de 2023 a março de 2024.
5) Foi aprovado o Caderno de Encargos, do qual se extrai o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
6) Foram apresentadas e graduadas as propostas dos seguintes concorrentes:
[SCom02...], Lda.; Sociedade [SCom03...], Lda., graduado em 1° e [SCom01...], Lda., graduado em 2° - cf. fls. 163 do processo administrativo.
7) Em 04.04.2023, o Júri notificou os concorrentes do Relatório Preliminar de Avaliação de Propostas, para efeitos de audiência prévia. - cf. fls. 164 a 167 do processo administrativo.
8) O concorrente [SCom01...], Lda. pronunciou-se no sentido da exclusão da proposta apresentada pelo [SCom02...], por violação dos artigos 9.° e 14.° do Programa do Procedimento. - cf. fls. 168 a 174 do processo administrativo.
9) Em 21.04.2023 o Júri elaborou o Relatório Final, mantendo a ordenação das propostas constante do Relatório Preliminar. - cf. fls. 177 a 180 do processo administrativo.
10) Por Despacho do TGEN Comandante da Logística da Força Aérea, de 27.04.2023, foi adjudicada a proposta do concorrente [SCom02...] e foi aprovada a minuta do contrato - cf. fls. 181 a 187 do processo administrativo.
11) Em 28.04.2023 os concorrentes foram notificados na plataforma eletrónica de contratação acinGov do Relatório Final, da decisão de adjudicação e da minuta do contrato - cf. fls. 257 do processo administrativo.
12) O concorrente [SCom01...], Lda. Apresentou um pedido de esclarecimento sobre a decisão de adjudicação - cf. fls. 191, 193 e 194 do processo administrativo.
13) Dão-se aqui por reproduzidos os doc. ... e ... juntos com a resposta da A. ao pedido de levantamento de efeito suspensivo (…)”.
31. Assente a realidade que antecede, vejamos agora se assiste razão ao Recorrente quanto ao invocado erro de julgamento de direito.
32. Vem atacada a decisão judicial promanada pelo Tribunal a quo, em 29.06.2023, que indeferiu o pedido de levantamento do efeito suspensivo decorrente do nº. 1 do artigo 103º-A do C.P.T.A.
33. Examinada a constelação argumentativa espraiada na fundamentação de direito da decisão judicial recorrida, assoma evidente que o juízo de indeferimento da pretensão deduzida pela Recorrente junto do T.A.F. do Porto estribou-se, fundamentalmente, no entendimento que a Recorrente, atenta a falta de demonstração da realidade atinente (i) ao material da parte da Força Aérea Portuguesa a aguardar desalfandegamento; (ii) dos eventuais custos e outras consequências do eventual não desalfandegamento; (iii) das concretas missões nacionais e internacionais que têm que ser asseguradas e (iv) do serviço não se encontra a ser assegurado enquanto a ação impugnatória não venha a ser decidida, não logrou demonstrar que a manutenção da suspensão ope legis do ato de adjudicação ao concorrente [SCom02...] seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências claramente desproporcionadas para os interesses envolvidos.
34. Do assim decidido discorda a Recorrente, que lhe imputa erro de julgamento de direito, que alicerça, no mais essencial, no entendimento de que o Tribunal a quo equivocou-se ao (i) convocar o doutrina e jurisprudência que têm por objeto a redação no nº.4 do artigo 103º-A do CPTA até à entrada em vigor da Lei nº. 30/2021, por intermédio da qual o legislador abandonou os conceitos de grave prejuízo para o interesse público, passando a exigir do julgador um juízo que pondere se os prejuízos que resultem da manutenção do ato suspendendo são [ou não superiores] aos que podem resultar do seu levantamento, bem como ao considerar (ii) que o interesse público está assegurado por via da realização de ajustes diretos pela entidade contratante, por violação dos princípios da concorrência e da transparência.
35. Vejamos, sublinhando de antemão que a alegada convocação de doutrina e jurisprudência que têm por objeto a redação no nº. 4 do artigo 103º-A do CPTA até à entrada em vigor da Lei nº. 30/2021, é absolutamente insuscetível de fulminar a decisão judicial sentença recorrida com qualquer erro de julgamento de direito.
36. Mais do que esclarecer os termos atuais da previsão legislativa vertida no artigo 103º-A do CPTA e a sua correlação com os considerandos de enquadramento legal vertidos na decisão judicial recorrida, verdadeiramente o que importa é determinar se o Tribunal a quo, ao indeferir o pedido de levantamento de efeito suspensivo automático, incorreu [ou não] em manifesto erro no seu juízo decisório, aferido claro está, na vertente da lei processual atualmente em vigor.
37. E podemos já adiantar que a resposta é, manifestamente, desfavorável às pretensões da Recorrente.
38. Explicitemos pormenorizadamente esta nossa convicção.
39. Conforme ditado pelo artigo 103º - A do C.P.T.A., o que está em causa não é ponderar valores ou interesses em si, mas danos ou prejuízos, e, portanto, prejuízos reais, que numa prognose relativa às circunstâncias do caso concreto, resultariam do levantamento ou não do efeito suspensivo dos efeitos do ato impugnado.
40. Consequentemente, importa ao Tribunal formular um juízo de valor relativo, fundado na comparação da situação do Autor, titular de um interesse privado de natureza económica, e que este procura tutelar através dos presentes autos de contencioso pré-contratual, com a situação do Réu, titular do interesse público de salvaguardar o cumprimento das suas atribuições.
41. Volvendo ao caso sujeito, temos que dimana do probatório coligido nos autos que o procedimento concursal em causa nos presentes autos destina-se à aquisição de serviços de despachantes alfandegários à Força Aérea Portuguesa no período de abril de 2023 a março de 2024, a qual envolve, de entre outras, a tarefa de desembaraço aduaneiro de mercadorias relativas a importações e exportações.
42. Ora, é precisamente nesta “tarefa de desembaraço aduaneiro de mercadorias relativas a importações e exportações” que entronca a motivação do pedido de levantamento do efeito suspensivo formulado por parte da Requerente, aqui Recorrente.
43. Efetivamente, esta alega que a prestação de serviços aduaneiros relacionados com despachos alfandegários constitui um instrumento indispensável à operacionalidade e sustentação do sistema de forças da Força Aérea, concretamente, das aeronaves Falcon 50, Falcon 900 e Koala e aeronaves, F16, C130, P3 e EH101, pois que o regular funcionamento destas e prontidão operacional para cumprimento de missões de defesa do espaço aéreo nacional e da Nato depende da existência de material de reserva [stock], que se encontra para despacho alfandegário, com necessidade de intervenção de Representante Aduaneiro.
44. Neste domínio, cabe notar que não sentimos hesitação em assumir a coerência e racionalidade da alegação justificativa que presidiu à formulação do pedido de levantamento do efeito suspensivo.
45. De facto, no prisma convocado, é elementar justiça reconhecer em abstrato a interdependência dos serviços de despachantes alfandegários com o eventual regular funcionamento das aeronaves que dependam de material sujeito a desalfandegamento.
46. A sua afirmação no caso concreto, porém, carecia de melhor densificação e justificação no domínio do respetivo suporte probatório.
47. Na verdade, para que se procedesse a pretensão da Requerente, aqui Recorrente, desde logo, era necessário resultar provado que o material de reserva reputado essencial para o regular funcionamento e imediata prontidão das aeronaves Falcon 50, Falcon 900 e Koala e aeronaves, F16, C130, P3 e EH101 com vista ao cumprimento de missões de defesa do espaço aéreo nacional e da Nato, se encontra[va], efetivamente, para despacho alfandegário.
48. Todavia, como dimana do probatório coligido, a R. fracassou na prova de tal materialidade, o que só por si determina a inverificação do nexo ligante entre a necessidade imperiosa de levantamento do efeito suspensivo e o regular funcionamento e imediata prontidão das referidas aeronaves e, qua tale, a falta de sustentáculo do erro de julgamento atravessado à decisão judicial recorrida.
49. Tal juízo surge particularmente potenciado pela circunstância de se encontrar em curso um procedimento de ajuste direto para adjudicação dos serviços de desalfandegamento por parte da Recorrida, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão em relação à demonstração da tese da Recorrente de que “(…) a paralisação dos efeitos da adjudicação e da celebração do contrato implica, por si só, riscos sérios e acrescidos no aprontamento e operacionalidade das aeronaves e, consequentemente, na realização das missões em que as mesmas aeronaves estão empenhada (…)”.
50. Por conseguinte, não se divisa que a argumentação da Recorrente possa constituir suporte para atingir a validade da decisão judicial recorrida, que assim se mantém plenamente atendível nos presentes autos.
51. Abre-se, portanto, caminho à improcedência do recurso jurisdicional em análise, ao que se provirá no dispositivo.
* *
IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, confirmando-se a decisão judicial recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique-se.
* *
Porto, 04 de outubro de 2023,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Antero Pires Salvador
Helena Maria Mesquita Ribeiro