Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01272/07.5BEBRG-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/05/2008
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:PROCEDIMENTO CAUTELAR
INUTILIDADE LIDE
PROVIDÊNCIAS CONSERVATÓRIAS - ANTECIPATÓRIAS
CRITÉRIOS DECISÃO
“CASA PRONTA” - DL N.º 263-A/2007
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Sumário:I. A utilidade do meio contencioso corresponde à sua utilidade específica, não podendo aquela utilidade ser dissociada das possibilidades legais que esse meio pode proporcionar para a satisfação dos direitos ou interesses legítimos que os interessados pretendem fazer valer e tutelar por seu intermédio, não relevando para o efeito as consequências indirectas, reflexas ou colaterais como o interesse abstracto na legalidade.
II. A presente providência cautelar mantém a sua utilidade uma vez que o serviço “Casa Pronta” continua agora a ser prestado a título “definitivo” já que é a prestação daquele serviço na CR Predial que a requerente pretende ver suspenso independentemente de estar a ser prestado a título experimental ou a título definitivo.
III. Nas situações enquadradas no art. 120.º, n.º 1, al. a) do CPTA o decretamento das providências pelo tribunal é quase automático na medida em que assente em requisitos objectivos, baseando-se num critério de evidência, que incorpora, em simultâneo, a salvaguarda do interesse público e a tutela dos interesses privados, sem necessidade de fundamentar a decisão cautelar por referência aos requisitos das als. b) e c) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 120.º do CPTA.
IV. O juízo de ilegalidade manifesta exigido pela alínea a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA traduz-se numa verificação inequívoca e que resulta ou é fruto duma apreciação de certeza racional e objectiva daquela ilegalidade, arredando do seu âmbito tudo o que envolva um juízo de percepção ou de “impressão do julgador” cautelar.
V. É ao requerente que incumbe alegar e provar a ilegalidade manifesta ou evidente, pelo que não logrando o mesmo efectuar tal prova não pode haver decretação de providências cautelares fundadas naquele segmento do normativo em referência, sendo certo que o carácter manifesto da ilegalidade terá de emergir dos autos cautelares sem que se torne necessário, para o efeito, o conhecimento aprofundado do mérito visto o mesmo estar reservado aos autos principais.
VI. Quando os fundamentos de ilegalidade nos quais o requerente assenta a sua pretensão sejam controvertidos e discutidos ao nível doutrinal e jurisprudencial e a sua verificação não seja assim inequívoca por envolver um juízo de percepção ou de “impressão do julgador” cautelar não podem os mesmos terem-se como manifestos ou inequivocamente evidentes no sentido de conduzirem à procedência da acção principal.
VII. Estando, por um lado, em causa a adopção de providência conservatória em que a situação não teve enquadramento na al. a) do n.º 1 do artigo em referência o CPTA prevê um distinto grupo de condições de procedência e que se mostram consagrados no art. 120.º, n.ºs 1, al. b) e 2, condições de procedência que, embora com diferentes cambiantes, se podem reconduzir:
a) A duas condições positivas de decretamento:
- «periculum in mora» - receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente; e
- «fumus boni iuris» (“aparência do bom direito”) – avaliação, em termo sumários, da existência do direito invocado pelo requerente ou da(s) ilegalidade(s) que o mesmo invoca e provável procedência da acção principal;
b) A um requisito negativo de deferimento que assenta numa ponderação de todos os interesses em presença (públicos e/ou privados) – proporcionalidade dos efeitos da decisão de concessão ou da sua recusa.
VIII. Incumbe ao requerente tornar credível a sua posição através do encadeamento lógico e verosímil de razões convincentes e objectivas nas quais sustenta a verificação dos requisitos da providência porquanto inexiste a consagração duma presunção "iuris tantum" da existência dos aludidos requisitos como simples consequência da existência em termos de execução do acto, não sendo idónea a alegação de forma meramente conclusiva e de direito e com utilização de expressões vagas e genéricas.
IX. Não se alegando e provando qualquer situação concreta que pudesse a vir a constituir uma situação de facto consumado que inviabilize a utilidade da apreciação do litígio entre as partes na acção principal, nem tendo sido invocados quaisquer prejuízos decorrentes da execução da decisão em questão na esfera jurídica do requerente e cuja reparação fosse difícil de vir a concretizar-se não está preenchido o requisito do “periculum in mora”.
X. Não se podendo afirmar com segurança que a eventual diminuição dos rendimentos do requerente se deva ao serviço “Casa Pronta” já que, este serviço acaba por ser mais caro que o serviço “Casa simples - Casa segura”, não se pode concluir pela produção de prejuízos de difícil reparação na esfera jurídica do mesmo.
XI. Relativamente ao segmento da pretensão cautelar deduzida através da qual se visava alterar o “status quo”, antecipando aquilo que seria o desfecho do processo principal, estamos na presença duma providência antecipatória [cfr. art. 120º, n.º 1, al. c) do CPTA], pelo que a providência só seria concedida quando fosse de admitir como provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo viesse a ser julgada procedente.
XII. Presentes os fundamentos invocados pelo requerente como indicadores de ilegalidades cometidas por parte da Administração e os argumentos expendidos pelo requerido em sede de oposição temos que, no caso, em termos sumários também não ocorre situação de evidência e de procedência da pretensão deduzida ou a deduzir na acção principal quanto ao requisito do “fumus boni juris” na sua formulação positiva prevista na al. c) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
XIII. Só ocorre situação integradora de litigância de má-fé quando se concluir que a actuação de alguma das partes está viciada por dolo ou negligência grave, não se abrangendo as situações de erro grosseiro ou lide ousada ou temerária em que alguém possa ter caído por mera inadvertência. *

* Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:05/05/2008
Recorrente:R...
Recorrido 1:Ministério da Justiça e Instituto dos Registos e Notariado
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Concede parcial provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Conceder provimento ao recurso na parte relativa à questão da inutilidade superveniente da lide
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
R..., devidamente identificado a fls. 02, inconformado veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Braga, datada de 10/03/2008, que indeferiu a providência cautelar por si deduzida contra “MINISTÉRIO DA JUSTIÇA” e “INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO, IP”, ambos também devidamente identificados nos autos, e na qual formula o seguinte pedido:

I) Decretar a presente providência cautelar, suspendendo, até à prolação de decisão na acção principal, a eficácia do acto administrativo constante da alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 15.º da Portaria n.º 794-B/2007, de 23 de Julho;
I’) Subsidiariamente, e sem prescindir, decretar a presente providência cautelar, suspendendo, até à prolação de decisão na acção principal, a eficácia das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 15.º da Portaria n.º 794-B/2007, de 23 de Julho;
I’’) Subsidiariamente, e sem prescindir, se não julgar procedentes os pedidos anteriores, como medidas antecipatórias a título provisório de uma regulação que se pretende obter no processo principal:
1) Condenar a Administração a permitir o acesso da requerente às bases de dados registrais e de identificação civil públicas, 2) Bem como, determinar a liquidação do IVA na Conservatória Predial …, na medida em que o contrário distorcerá a concorrência;
II) Cumulativamente com a suspensão da eficácia do acto (ou com alguma das pretensões subsidiariamente dedutíveis), a suspensão de eficácia do artigo 16.º da portaria n.º 385/2004 …”.
Formula, nas respectivas alegações (cfr. fls. 3194 e segs. - paginação processo SITAF tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário), as seguintes conclusões que se reproduzem:
...
1. A sentença recorrida violou a lei (no caso, o art. 287.º, alínea e), do Código do Processo Civil) ao abster-se de apreciar a primeira providência requerida na presente providência (extinguindo, desse modo, a instância) – a suspensão de eficácia do acto (ou norma) constante das alíneas c) e d) do art. 15.º da Portaria n.º 794-A/2007, de 23 de Julho – por entender verificar-se aqui uma alegada inutilidade superveniente da lide.
2. Com efeito, ao contrário do que entendeu a sentença recorrida, os efeitos do acto suspendendo não se esgotaram a 31 de Dezembro de 2007 (está-se aqui perante uma mera cláusula adjacente ao acto impugnado), data em que apenas cessou a disponibilização daqueles serviços a título “de período experimental”, continuando os mesmos a serem disponibilizados por aquelas Conservatórias após aquela data sem que nenhum novo acto administrativo tivesse sido entretanto proferido – ao contrário do que decorre da sentença recorrida, que, por não ter ouvido as partes nem sequer as testemunhas arroladas, julgou com base num erro factual facilmente evitável.
3. Como se verifica pela análise do regime a que está sujeito o “período experimental”, não se está face a um verdadeiro “período experimental”, que é, por natureza, transitório e sujeito a avaliação. Neste caso, o “período experimental” é apenas um período inicial, continuando os serviços a ser disponibilizados nas Conservatórias mesmo após aquela data.
4. Assim, é inequívoca a inexistência de uma inutilidade superveniente da lide, pois não se estando perante um período experimental, os interesses que o Requerente pretende defender continuam a carecer de tutela. Deste modo, deverá ser revogada a sentença recorrida e conhecido o primeiro pedido formulado na providência cautelar – a suspensão de eficácia do acto/norma pela qual os serviços associados ao Programa Casa Pronta foram disponibilizados na Conservatória do Registo Predial e de Braga, constantes das alíneas c) e d) do art. 15.º da Portaria n.º 794-A/2007, de 23 de Julho.
5. São dois os requisitos, alternativos, para a concessão da providência – cfr. art. 120.º do CPTA –, sendo que ambos se verificam nos presentes autos.
6. Assim, a providência deverá ser decretada quando seja manifesta a procedência do pedido formulado na acção principal (cfr. art. 120.º, n.º 1, al. a), do CPTA).
7. Ora, é este indubitavelmente o caso.
8. Com efeito, como se demonstrou na petição inicial, os serviços associados ao Programa Pronta foram disponibilizados pelas Conservatórias a um preço substancialmente inferior ao preço que os Notários (como o Requerente) são obrigados, pelo Estado, a cobrar. No fundo, o Estado assegura a prática de determinados serviços por preços que são muitíssimo inferiores aos preços que os Notários podem praticar (não porque não queiram, mas porque o Estado não permite a prática de outros preços).
9. O acto suspendendo viola, desse modo, o direito ao livre exercício da profissão, direito, liberdade e garantia expressamente tutelado pela Constituição, pelo que é inequívoca a nulidade do acto.
10. Além disso, o acto viola ainda de forma flagrante o princípio da confiança dos cidadãos (como já o demonstrou o Procurador da República junto a este tribunal, cfr. doc. n.º 1), dimensão básica do princípio do Estado de Direito, que determina também a nulidade do acto.
11. E viola ainda de modo ostensivo o princípio da concorrência, princípio jurídico tutelado não só pela nossa Constituição como ainda pelo ordenamento jurídico-comunitário.
12. Assim, em face da inequívoca invalidade do acto impugnado pela acção principal, é manifesta a procedência do pedido formulado na acção principal, pelo que a providência terá de ser decretada ao abrigo do art. 120.º, n.º 1, al. a), do CPTA.
SEM PREJUÍZO,
13. Ainda que assim não se considerasse, o certo é que a providência terá sempre de ser decretada à luz do art. 120.º, n.º 1, al. b), do CPTA (aqui aplicável por a providência requerida ser uma providência conservatória).
14. Por um lado, porque não é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada na acção principal (pelo que se verifica uma situação de fumus bonus iuris).
15. Por outro, porque existe um fundado receio de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o Requerente visa assegurar na acção principal (verificando-se assim também o requisito do periculum in mora).
16. Com efeito, e caso a providência não seja decretada, o Requerente enfrentará uma situação excepcionalmente difícil, que implicará a verificação de vultuosos prejuízos – e mesmo, eventualmente, a necessidade de proceder ao encerramento do seu cartório, e, consequentemente, ao abandono da sua profissão.
17. Assim, impossibilitada de concorrer com o Estado, que pratica pelos mesmos actos preços muito inferiores, o Requerente vê-se na iminência de perder uma parte significativa da sua clientela (que, com toda a probabilidade, preferirá praticar os actos em causa por um preço significativamente inferior),
18. Podendo mesmo ter de vir a encerrar o seu Cartório, caso as receitas obtidas não permitam suportar os seus custos de funcionamento (o que apresenta uma significativa probabilidade de vir a acontecer, já que os actos que se mantêm competência exclusiva do Requerente raramente são praticados).
19. Verificam-se, por isso, os dois requisitos de que depende a concessão da providência: o fumus bonus iuris e o periculum in mora.
20. A isso acresce que os prejuízos que poderão resultar da não concessão da providência são muito superiores aos prejuízos que poderão resultar para os outros interesses aqui em presença (públicos e privados) do seu decretamento, pelo que a providência requerida terá de ser decretada …”.
Conclui no sentido da procedência do presente recurso jurisdicional e decretação das providências requeridas.
O ente demandado - Ministério da Justiça -, ora recorrido, apresentou contra-alegações (cfr. fls. 3238 e segs.) nas quais pugna pela manutenção da decisão judicial recorrida, vertendo para o efeito as seguintes conclusões:

a) É inquestionável que a principal providência requerida se reportava à suspensão de uma norma que fixava um período experimental para disponibilização de um serviço em algumas conservatórias, e que esse período já findou;
b) Quanto aos restantes pedidos, é evidente que se não defronta uma matéria de evidente solução;
c) Em particular não foi demonstrado, nem foram sequer invocados factos que permitissem sustentar essa demonstração, que existisse periculum in mora;
d) Não chegou a ser feito nenhum juízo de ponderação entre a relevância dos danos que poderiam estar em confronto, sendo assim incompreensível que sobre essa matéria se ocupe o recurso …”.
O recorrente, na sequência das contra-alegações apresentadas pelo ente requerido, veio formular requerimento (cfr. fls. 3247 e segs.) a peticionar a condenação do mesmo como litigante de má fé em multa, indemnização e honorários (estes no valor de € 3.000,00), requerimento esse que notificado não mereceu qualquer resposta (cfr. fls. 3258 e segs.).
O Ministério Público (MºPº) junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto nos arts.146.º e 147.º ambos do CPTA veio a apresentar parecer sustentando apenas a procedência do recurso jurisdicional quanto à questão da inutilidade da lide improcedendo no mais (cfr. fls. 3280 e segs. - paginação suporte físico), parecer esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta (cfr. fls. 3286 e segs.).
Sem vistos, dado o disposto no art. 36.º, n.ºs 1, al. e) e 2 do CPTA, foi o processo submetido à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que, pese embora por um lado, o objecto do recurso se ache delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal de recurso em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito”, pelo que os recursos jurisdicionais são “recursos de ‘reexame’ e não meros recursos de ‘revisão’” [cfr. J.C. Vieira de Andrade in: “A Justiça Administrativa (Lições)”, 8ª edição, págs. 459 e segs.; M. Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2.ª edição revista, págs. 850 e 851, nota 1; Catarina Sarmento e Castro em “Organização e competência dos tribunais administrativos” - “Reforma da Justiça Administrativa” in: “Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra - Stvdia ivridica 86”, págs. 69/71].
As questões suscitadas e de que cumpre decidir resumem-se, em suma, em:
A) Determinar se na situação vertente a decisão recorrida ao julgar ocorrer inutilidade da lide quanto aos pedidos cautelares formulados sob os pontos I) e I’) violou ou não o disposto no art. 287.º, al. e) do CPC;
B) Determinar se na situação vertente a decisão recorrida ao indeferir as providências cautelares requeridas violou ou não o disposto no art. 120.º, n.º 1, als. a) e b) do CPTA;
C) Apreciar do pedido de condenação do ente público aqui ora recorrido como litigante de má fé [cfr. alegações e conclusões supra reproduzidas, bem como requerimento de fls. 3247 e segs.].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Resulta da decisão recorrida como assente a seguinte factualidade:
I) O Requerente é Notário desde Março de 2005 [cfr. ponto 82.º do requerimento inicial] - facto admitido por acordo entre as partes, dado que não resultou controvertido;
II) No dia 16 de Abril de 2004, foi publicada a Portaria n.º 385/2004, de 16 de Abril, pela qual foi aprovada a tabela de honorários da actividade notarial;
III) No dia 23 de Julho de 2007, foi publicada no Diário da República, I Série, a Portaria n.º 794-B/2007, a qual veio regulamentar o Decreto-Lei n.º 263-A/2007, de 23 de Julho, pelo qual foi criado um procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis;
IV) O requerimento inicial que motiva os presentes autos de processo cautelar deu entrada neste Tribunal, por telecópia, no dia 19 de Outubro de 2007.
«»
3.2. DE DIREITO
Assente a factualidade a atender, que não foi objecto de impugnação, cumpre, agora, entrar na análise das questões suscitadas no recurso jurisdicional “sub judice”.
*
3.2.1.
Da violação do art. 287.º, al. e) do CPC
Sustenta o recorrente que a decisão judicial em recurso foi prolatada em infracção ao disposto no normativo em epígrafe porquanto a presente lide quanto aos pedidos cautelares reproduzidos supra sobre os n.ºs I) e I’) mantém clara e inequivocamente a sua utilidade e interesse.
Vejamos.
Os tribunais na sua acção e função destinam-se a prevenir e dirimir situações com interesse prático e não a praticar actos inúteis (cfr. art. 137.º do CPC), emitindo pronúncias que sirvam como meros pareceres ou opiniões sem outra valia.
A utilidade do meio contencioso corresponde à sua utilidade específica, não podendo aquela utilidade ser dissociada das possibilidades legais que esse meio pode proporcionar para a satisfação dos direitos ou interesses legítimos que os interessados pretendem fazer valer e tutelar por seu intermédio, não relevando para o efeito as consequências indirectas, reflexas ou colaterais como o interesse abstracto na legalidade.
Note-se, contudo, que tal ponderação não pode fazer-se em abstracto. É que a avaliação da utilidade da lide tem de ser feita, não por simples referência ao meio contencioso ou processual em abstracto, mas atendendo à configuração individual e concreta do pleito “sub judice”, “maxime” ao pedido que no mesmo foi deduzido.
Por outro lado, o tribunal só pode julgar extinta a instância por essa causa (inutilidade ou impossibilidade da lide) se estiver em condições de emitir um juízo apodíctico acerca da ocorrência superveniente da inutilidade já que a extinção da instância nos termos do art. 287.º, al. e) do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA exige a certeza absoluta da inutilidade a declarar.
Presentes estes considerandos importa ter presente que a situação e questão vertente em discussão já foi objecto de pronúncia por parte deste Tribunal no seu acórdão de 17/04/2008 (Proc. n.º 331/07.9BEMDL-A - ainda inédito), pronúncia essa que colhe aqui plena valia e eficácia, tanto mais que não se descortina inovação e pertinência na argumentação expendida nesta sede que aponte em sentido diverso e conduza à alteração daquela jurisprudência.
Assim, pode ler-se na argumentação/fundamentação, que aqui se acolhe e reitera, o seguinte:
“… Decidiu-se na sentença recorrida que ocorria a inutilidade superveniente da instância quanto aos pedidos formulados em primeiro e segundo lugar uma vez que era pedida a suspensão de eficácia do disposto … n.º 1 do art. 15º da Portaria n.º 794-B/2007, de 23 de Julho, uma vez que tal disposição legal consagrava a implementação de determinados serviços a serem prestados ao público pela CRP … durante um período que se denominou de “experimental” e esse período terminou em 31 de Dezembro de 2007, portanto, antes da data em que foi proferida a sentença recorrida ….
A recorrente impugna este segmento da sentença recorrida com fundamento em que, o que se pretendeu com a presente providência cautelar foi obstar a que tais serviços fossem efectivamente implementados e prestados na CRP … e que tais serviços continuam a ser prestados nessa mesma Conservatória, mesmo para além daquele período dito “experimental”, sem que tivesse sido entretanto praticado qualquer acto administrativo ou editada qualquer norma que tivesse a virtualidade de implementar a título definitivo essa prestação de serviços.
Ou seja, o que a recorrente pretende é que, apesar de ter chegado ao seu termo o dito período “experimental” a providência requerida mantém a sua actualidade uma vez que o serviço continua a ser prestado ao público de forma efectiva.
Essa Portaria n.º 794-B/2007, …, veio regulamentar o DL n.º 263-A/2007, …, conforme se pode ler do seu preâmbulo: “O Decreto-Lei n.º 263-A/2007, …, veio criar um procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, que tem dois objectivos principais: a eliminação de formalidades dispensáveis nos processos de transmissão e oneração de imóveis e a possibilidade de realizar todas as operações e actos necessários num único balcão, perante um único atendimento.
(…) Importa agora regulamentar várias disposições do mencionado decreto-lei, nomeadamente quanto aos regimes da marcação prévia do procedimento especial de aquisição, oneração e registo de imóveis, da emissão e consulta da certidão online do registo predial, da manifestação da intenção de exercer o direito legal de preferência e do período experimental.”
O regime legal instituído por este decreto-lei veio contribuir para o cumprimento do programa SIMPLEX 2007 que teve como principal objectivo desburocratizar e facilitar o acesso dos cidadãos aos serviços prestados pelo Estado no âmbito dos processos de transmissão e oneração de imóveis.
Assim, o legislador entendeu que a implementação de tais regras deveria ser precedida de um período experimental de forma a testar a boa operacionalidade do sistema e aferir da necessidade de ajustamentos que permitissem a completa eliminação das burocracias desnecessárias à satisfação das pretensões dos cidadãos.
Resulta, assim do art. 26.º deste DL que:
…Período experimental
1 - Os procedimentos previstos no presente decreto-lei estão disponíveis, a título experimental, nas conservatórias e durante o período fixado por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
2 - A disponibilização dos procedimentos previstos no presente decreto-lei noutras conservatórias depende de despacho do presidente do IRN, I.P.
3 - O disposto nos números anteriores é aplicável ao regime previsto no capítulo II.
Assim, foi publicada a Portaria agora em referência que dispõe no seu artigo 15.º, que se encontra inserido na Secção V, sob a epígrafe: “Período experimental dos procedimentos especiais de aquisição, oneração e registo de imóveis”:
… Locais e duração
1 - Os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 263-A/2007, …, estão disponíveis, a título experimental, nos seguintes serviços:
a) Conservatória do Registo Predial de Águeda;
b) Conservatória do Registo Predial de Almeirim;
c) 1.ª Conservatória do Registo Predial de Braga;
d) 2.ª Conservatória do Registo Predial de Braga;
e) 1.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria;
f) 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria;
g) Conservatória do Registo Predial de Mirandela.
2 - O período experimental termina no dia 31 de Dezembro de 2007;
3 - Por despacho do presidente do IRN, I.P., os procedimentos previstos no Decreto-lei n.º 263-A/2007, …, podem ser disponibilizados noutras conservatórias ou postos de atendimento de conservatórias durante o período experimental.
Da leitura atenta que se faz, quer do DL n.º 263-A/2007, quer da Portaria n.º 794-B/2007, não resulta que o serviço denominado “Casa Pronta” que o Estado criou, e implementou a título experimental, por via destes diplomas legais, tenha sido efectivamente implementado de modo a abranger a totalidade do território nacional fora daquele período experimental.
Ou seja, não há qualquer norma ou acto administrativo que implemente o oferecimento de tal serviço fora do período experimental a que se refere o dito art. 15.º da Portaria n.º 794-B/2007, estando, assim, esse serviço a ser prestado na CRP … por decorrência da situação de facto criada com a sua implementação a título experimental e bem assim por decorrência do disposto no art. 1.º do DL n.º 263-A/2007 que o criou.
E assim sendo, naturalmente que não há qualquer utilidade em ordenar agora a suspensão do disposto no art. 15º, n.º 1, … da referida Portaria uma vez que daí a recorrente não retirará qualquer utilidade uma vez que o referido serviço continua, agora, a ser prestado por decorrência directa do disposto naquele DL n.º 263-A/2007.
No entanto, e como resulta à saciedade, o que a recorrente pretende com a presente providência cautelar é precisamente paralisar os efeitos do disposto no DL n.º 263-A/2007, sendo que a referência que faz nos seus pedidos ao art. 15º, n.º 1 … da Portaria n.º 794-B/2007, se justifica por ter requerido a presente providência cautelar ainda durante o período experimental a que se referia tal norma e que já teve o seu “terminus” no dia 31 de Dezembro de 2007.
Assim sendo, é evidente que a presente providência cautelar mantém a sua utilidade, uma vez que o serviço “Casa Pronta” continua agora a ser prestado a título “definitivo”, e portanto é nessa medida que deve ser apreciada a presente providência cautelar, ou seja, por referência à prestação do serviço “Casa Pronta” - que a recorrente pretende ver suspenso - na CRP …, independentemente de estar a ser prestado a título experimental ou a título definitivo.
Verifica-se, portanto, o erro de julgamento que vinha assacado à sentença recorrida, devendo a mesma ser revogada nessa parte …”.
Ora sendo claramente válida a presente argumentação e a sua transposição para a situação “sub judice” temos que procede, neste âmbito e sem necessidade de outros considerandos, o recurso jurisdicional, impondo-se a revogação, quanto a este segmento, da decisão judicial posta em crise. E face à presente conclusão, de que a presente providência cautelar mantém a sua utilidade, cumpre, então, entrar na análise e apreciação da pretensão cautelar à luz dos requisitos/critérios constantes do art. 120.º do CPTA.
*
3.2.2.
Da violação do art. 120.º, n.º 1, als. a) e b) do CPTA
Resulta da argumentação expendida pelo recorrente que a decisão judicial ao indeferir a pretensão cautelar por si deduzida e ora em análise infringiu o normativo em epígrafe quanto às alíneas ali referidas, dado no caso estarem reunidos os requisitos/critérios ali previstos.
Analisemos cada uma das alíneas de “per si”, sendo que para o efeito cumpre concretizar, desde logo, o âmbito da previsão do art. 120.º, n.º 1, al. a) do CPTA.
Como é sustentado pela doutrina que sobre o normativo já se foi produzindo importa autonomizar, desde logo, as situações em que se trate de providências dirigidas contra actos manifestamente ilegais, por si ou por referência a actos idênticos já anteriormente anulados, declarados nulos ou inexistentes e contra actos de aplicação de normas já anulados.
Neste tipo de situações o seu decretamento é quase automático na medida em que assente em requisitos objectivos, baseando-se num critério de evidência, que incorpora, em simultâneo, a salvaguarda do interesse público (sob a forma do princípio da legalidade - a Administração não deve praticar tais actos) e a tutela dos interesses privados (particular tem direito a que a sua situação seja legalmente apreciada e conformada).
Segundo é defendido por J.C. Vieira de Andrade quanto a este tipo de situações “... o juiz deve (...) fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por entretanto se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera jurídica.
Neste juízo, o fundado receio há-de corresponder a uma prova, em princípio a cargo do requerente, de que tais consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar ‘compreensível’ ou ‘justificada’ a cautela que é solicitada.
(…) Note-se, porém, que a lei não refere este requisito para a adopção da providência cautelar, quando seja evidente a procedência da pretensão formulada [alínea a) do n.º 1 do art. 120.º]. (…) nesses casos, o tribunal está dispensado de fundamentar a sua decisão na comprovação dessa perigosidade específica – no entanto, mesmo nessas situações, o perigo releva, na medida em que a providência só pode ser pedida ou concedida quando haja um interesse em agir que se manifeste no fundamento do pedido, embora baste aí provar que assim se assegura alguma utilidade à sentença …” (in: ob. cit., págs. 348 e 349).
E continua aquele ilustre Professor “… elimina-se, sem deixar dúvidas, um dos corolários mais perversos do dogma autoritário da ‘presunção de legalidade do acto administrativo’, quando se passa a reconhecer e a conferir até relevo fundamental ao fumus boni iuris. O juiz tem agora o poder e o dever de, ainda que em termos sumários, avaliar a probabilidade da procedência da acção principal, isto é, em regra, de avaliar a existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir, ainda que esteja em causa um «verdadeiro» acto administrativo.
O papel que é dado ao fumus boni iuris (ou ‘aparência do direito’) é decisivo, desde logo porque parece ser o único factor relevante para a decisão de adopção da providência cautelar, em caso de evidência da procedência da pretensão principal, designadamente por manifesta ilegalidade do acto.
De facto, nesta hipótese, o juiz pode decretar a providência adequada, mesmo sem a prova do receio de facto consumado ou da difícil reparação do dano e independentemente dos prejuízos que a concessão possa virtualmente causar ao interesse público ou aos contra-interessados. Pois se é evidente que um particular (ou o Ministério Público) tem razão, se é evidente que o acto é ilegal e que a acção vai ter sucesso, então, não há, em regra, razão para deixar de conceder essa providência.
Note-se, porém, que o critério legal é o do carácter evidente da procedência da acção - e não, por exemplo, no caso dos meios impugnatórios, o da evidência do vício …”.
Tal como é doutrinado por M. Aroso de Almeida “... se o tribunal considerar preenchida a previsão do art. 120.º, n.º 1, alínea a), ele concede a providência sem mais indagações. Não intervém o disposto no n.º 2 e nem sequer há que atender ao critério do periculum in mora, a que fazem apelo as alíneas b) e c) do n.º 1. É a situação de máxima intensidade do fumus boni iuris, que, em situações de manifesta procedência da pretensão material do requerente, vale por si só. (…).
(...) a alínea a) do n.º 1 não prevê requisitos de cujo preenchimento dependa, em circunstâncias normais, a concessão de quaisquer providências. Pelo contrário, o que a alínea a) do n.º 1 faz é estabelecer que, em situações excepcionais, qualquer providência deve ser atribuída sem necessidade do preenchimento dos requisitos normais. O artigo 120.º, n.º 1, alínea a), contém, assim, uma norma derrogatória, para situações excepcionais, do regime de que depende a concessão de providências cautelares em circunstâncias normais, cujo sentido e alcance é afastar, para essas situações, a normal aplicação dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 120.º ...” (sublinhados nossos).
Refere ainda aquele mesmo Professor que “... no que à suspensão de eficácia de actos administrativos diz respeito «dar relevância, em sede cautelar, aos eventuais indícios de ilegalidade do acto implica afastar a ideia de que a execução de quaisquer actos praticados em certos domínios é, por definição, de interesse público. Pelo contrário, desde logo nos casos de invalidade ostensiva do acto, o fumus boni iuris justifica, sem mais dificuldades e seja qual for o domínio de matérias a que o acto diga respeito, a imediata suspensão judicial da sua eficácia, que nesse caso não se pode considerar lesiva do interesse público. Deste modo se admite a atribuição, no caso concreto, da providência cautelar, mesmo relativamente a decisões administrativas que, em abstracto, seria de presumir que, pela natureza dos interesses que visam proteger, careceriam de urgente execução …” (in: “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, revista e actualizada, pág. 303).
Também Isabel Celeste M. Fonseca sustenta quanto ao normativo em referência que não existe “... necessidade de invocar o periculum in mora, o juiz decreta a providência solicitada se considerar «evidente a procedência da pretensão» formulada no processo principal ...” [vide: “Dos Novos …”, pág. 65] (sublinhados nossos).
De igual modo e nesta sede o Rodrigo Esteves de Oliveira defende que “… o melhor critério delimitador é, talvez, o de apelar aqui para um juízo próximo da «certeza cautelar», ou seja, por um lado, de algo, que mesmo que não seja indisputável, se impõe para lá de qualquer dúvida razoável (e não seja fruto apenas de uma impressão do julgador), e por outro, de algo que se impõe à primeira vista, ou melhor, sumária e perfunctoriamente, sem necessidade das indagações jurídicas próprias de um processo principal …” (em “Meios urgentes e tutela cautelar” in: “A Nova Justiça Administrativa …”, CEJ/Coimbra Editora, 2006, pág. 88).
A ilegalidade ostensiva justifica, por conseguinte, que o juízo de proporcionalidade quanto à decisão de emissão da medida cautelar se constranja perante a exigência da célere reposição da legalidade.
Nestes termos, a manifesta ilegalidade do acto, uma vez sumariamente demonstrada, impõe ou vincula o juiz a decretar a providência peticionada pelo requerente ainda que existam contra-interessados.
Importa, todavia, precisar o conceito de “manifesta ilegalidade”.
Tal como se decidiu no acórdão deste mesmo TCA Norte de 20/01/2005 - Proc. n.º 1314/04.6BEPRT (in: «www.dgsi.pt/jtcn»), cuja jurisprudência aqui se reitera “… Na situação contemplada na alínea a) do n.º 1 do art. 120.º o fumus boni iuris adquire a máxima intensidade, pois a providência é automaticamente concedida sem necessidade de atender ao periculum in mora e à ponderação de interesses públicos e privados. Trata-se de providências dirigidas contra “actos manifestamente ilegais”, por si ou por referência a actos idênticos já anteriormente anulados, declarados nulos ou inexistentes, e contra actos de aplicação de normas já anuladas. Nas situações de manifesta, ostensiva e grave ilegalidade, sumariamente demonstrada, que evidencie a procedência da acção principal, é imperioso repor rapidamente a legalidade, ainda que haja interessados particulares a pugnar pela sua manutenção. Dispensa-se a ponderação de interesses públicos e privados e o juízo de proporcionalidade quanto à decisão da providência porque o critério da evidência da pretensão principal incorpora já a salvaguarda de tais interesses, do interesse público, porque a Administração não pode praticar actos ilegais, e dos interesses particulares, porque têm direito a que a sua situação seja legalmente apreciada e conformada.
O juízo sobre a evidência da pretensão principal em face da manifesta ilegalidade do acto impugnado, uma situação excepcional perante as situações que normalmente justificam as providências cautelares, é ainda mais excepcional quando a ilegalidade do acto impugnado deriva de vícios formais. É que as ilegalidades verificadas nos elementos formais ou extrínsecos do acto administrativo, susceptíveis de produzir invalidade, podem não conduzir necessariamente à sua anulação, quer por ser um vício irrelevante no caso concreto, quer por ser possível o seu aproveitamento pelo juiz.
Em princípio, só quanto aos vícios graves, aqueles que concretizam na lesão insuportável dos valores protegidos pelo direito administrativo e que por isso que implicam a nulidade do acto, é possível ajuizar sobre a evidência da procedência da pretensão principal. Já quanto à violação de preceitos de forma em sentido amplo, que inclui a forma propriamente dita e o procedimento, que seja cominada com a anulabilidade nem sempre a preterição da forma conduz à anulação. Existem vícios formais com potência invalidante que, pela menor importância da forma ou por motivos de economia de actos públicos, possibilitam ao juiz recusar a anulação, declarando a irrelevância do vício, ou realizar o aproveitamento do acto. No primeiro caso, o acto não será anulado se o juiz comprovar que no caso concreto foram alcançados os fins específicos que o preceito violado visava alcançar. Esta é a posição sufragada pela generalidade da doutrina e jurisprudência portuguesa que considera «formalidades não essenciais», aquelas cuja omissão ou preterição não tenha impedido a consecução do objectivo visado pela lei ao exigi-las, e que, para este efeito, serve para distinguir “vícios essenciais” de “vícios não essenciais”, conforme impliquem, ou não, a anulação do acto. No segundo caso, se a decisão tomada corresponde à solução imposta pela lei para o caso concreto, o que só se pode saber nos actos vinculados, o juiz pode conservar o acto administrativo, uma vez que não existem dúvidas que um administrador normal e razoável o irá repetir com o mesmo conteúdo …” [cfr., entre outros, Acs. do TCA Norte de 17/02/2005 - Proc. n.º 00617/04.4BEPRT, de 03/03/2005 - Proc. n.º 00687/04.5BEVIS, de 03/03/2005 - Proc. n.º 01011/04.2BEVIS, de 14/04/2005 - Proc. n.º 01412/04.6BEPRT, de 19/05/2005 - Proc. n.º 00004/05.7BECBR, de 07/07/2005 - Proc. n.º 00027/05.6BECBR, de 14/07/2005 - Proc. n.º 00078/04.6BEMDL, de 07/12/2005 - Proc. n.º 01502/05.5BEPRT, de 11/05/2006 - Proc. n.º 00910/05.9BEPRT, de 21/09/2006 - Proc. n.º 01293/05.2BEVIS, de 09/11/2006 - Proc. n.º 146/06.1BEPRT-A, de 09/11/2006 - Proc. n.º 391/04.4BEBRG, de 20/12/2006 - Proc. n.º 02268/05.7BEPRT, de 11/01/2007 - Proc. n.º 00096/06.1BEMDL, de 01/03/2007 - Proc. n.º 00414/06.2BEPNF, de 01/03/2007 - Proc. n.º 01031/06.2BEPRT, de 19/07/2007 Proc. n.º 00079/07.BECBR, de 04/10/2007 - Proc. n.º 1894/06.1BEPRT-A, de 25/10/2007 - Proc. n.º 01147/05.2BEBRG, de 22/11/2007 - Proc. n.º 00230/07.4BECBR, de 13/12/2007 - Proc. n.º 00856/07.6BEPRT todos in: «www.dgsi.pt/jtcn»].
Refira-se, aliás, o a este propósito sustentado por Colaço Antunes (em “Brevíssimas notas sobre a fixação duma summa gravaminis no processo administrativo” in: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano I, 2004, pág. 93) “… presume-se o fumus do recorrente, numa primeira análise, a exigir, apesar da evidência da pretensão (artigo 120.º/1/a do C.P.T.A.), um juízo de probabilidade qualificado (sobretudo nos actos e natureza prestacional); isto é, que o acto pareça claramente ilegal (nulidade ou inexistência do acto, artigo 120.º/1/a) ou seja manifestamente evidente a existência de um direito ou interesse legalmente protegido …” (sublinhados nossos) (cfr. ainda Fernanda Maçãs em “As Medidas Cautelares” …, pág. 462).
Também quanto a esta questão atente-se na posição que, entretanto, veio a ser tomada por J.C. Vieira de Andrade “… Justificam-se, pois, algumas cautelas na aplicação deste critério, sendo legítima a pergunta sobre se a evidência relevante para este efeito não deverá ser entendida como referida apenas a situações excepcionais – assim, por exemplo, no âmbito de acções de impugnação de actos, se não deverá ser só aquela que respeite a vícios graves que geram a nulidade desse acto, tendo em conta designadamente que os vícios formais e procedimentos geradores de mera anulabilidade podem acabar por ser irrelevantes ou permitir o aproveitamento do acto. Embora se perceba a concessão imediata da providência, mesmo em caso de actos ‘renováveis’, dado que a Administração sempre poderá proceder à prática de novo acto, talvez se deva limitar o alcance da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º, no contexto das acções administrativas especiais, às situações mais graves de nulidade, como as que constam da exemplificação legal, exigindo nos restantes a verificação da perigosidade e a ponderação dos interesses, sobretudo quando existam contra-interessados e não esteja em causa a lesão de posições jurídicas subjectivas do impugnante …” (sublinhado nosso) (in: ob. cit., págs. 350 e 351).
Note-se que a aferição da manifesta procedência da pretensão/acção principal neste sede terá de ser efectuada à luz das ilegalidades que se mostram assacadas ao(s) acto(s) administrativo(s) em crise tal como se apresenta(m) no requerimento inicial que deu início ao processo cautelar, pois, numa situação como a vertente em que o processo principal ainda não havia sido deduzido quando foi interposto o procedimento cautelar o juiz terá de efectuar o seu juízo sumário e perfunctório na aferição dos requisitos enunciados no art. 120.º, n.º 1 al. a) do CPTA por referência às ilegalidades assacadas no articulado inicial da instância cautelar e prova de factualidade que as integre ou preencha.
Tecidos estes considerandos de enquadramento jurídico, mormente, quanto ao âmbito da previsão do art. 120.º, n.º 1, al. a) do CPTA, cumpre, agora, reverter para o caso em apreciação e avaliar da procedência da argumentação expendida pelo recorrente.
Diga-se, desde já, que não lhe assiste razão.
Com efeito, confrontada a factualidade alegada no requerimento inicial e a que se mostra supra fixada, bem como as ilegalidades assacadas naquele articulado nos termos e com o alcance ali explicitados e, bem assim, o sustentando em sede de alegações, temos que, em termos informatórios e sumários, não se mostrava ou não se mostra minimamente demonstrada situação de manifesta ilegalidade assacada conducente à evidente procedência da pretensão principal deduzida ou a deduzir.
Não se vislumbra que o mesmo padeça de ilegalidade que seja manifesta ou inequivocamente evidente no sentido de conduzir, nas palavras de J.C. Vieira de Andrade atrás referidas, à “evidência evidente” da procedência da acção principal porque é claramente controvertida a sua apreciação e a sua verificação inequívoca não resulta ou não é fruto dum juízo de certeza racional e objectivo antes envolvendo um juízo de percepção ou de “impressão do julgador” cautelar.
Tal como se sustenta no acórdão do STA de 13/02/2007 (Proc. n.º 047555A in: «www.dgsi.pt/jsta») “… essa evidência de procedência do processo principal deve, naturalmente, poder ser facilmente constatada pela simples leitura da petição, ou resultar, de forma inequívoca e, portanto, sem qualquer esforço exegético, de qualquer documento junto ao processo …”.
Ora, na verdade, as exigências que “in casu” se mostram necessárias em termos da tarefa do julgador cautelar de ponderação das ilegalidades em crise e de análise do regime jurídico e factualidade em presença tendentes à emissão dum juízo de evidência da procedência da pretensão principal não são compatíveis com o tipo de juízo decorrente da citada al. a) do n.º 1 do art. 120.º.
Em situação similar à que constitui agora objecto de pronúncia este Tribunal no seu acórdão de 17/04/2008 (Proc. n.º 331/07.9BEMDL-A - já supra aludido) sustentou entendimento, que colhe aqui plena valia e que se reitera, nos termos seguintes: “… Relativamente aos dois primeiros pedidos de suspensão de eficácia do serviço “Casa Pronta” que está a ser prestado na CRP ….
… Acerca da evidência a que se refere este preceito legal, escreveu-se no Ac. do STA de 11/12/2007, Proc. n.º 0210/07, …: “Colocando o acento tónico na “evidência” da “procedência da pretensão” formulada ou a formular no processo principal …. essa evidência exigida pelo citado preceito, deve ser notória e visível sem necessidade de qualquer elaborada indagação. Só pode ser considerado evidente … o “que se constata de maneira imediata e manifesta. Há uma diferença irredutível entre captar imediatamente uma evidência e realizar uma demonstração tendente a captá-la, pois esta supõe o recurso a definições, divisões ou argumentações que possibilitem e suportem a captação de uma realidade que não era patente”.
Ou seja …. o preceito em questão “sugere logo que o deferimento imediato do meio cautelar, aí previsto, há-de resultar de ilegalidades patentes e flagrantes, capazes de convencer primo conspectu, e sem necessidade de um laborioso discurso coadjuvante, da procedência da acção principal”.
… Daqui resulta, assim, que a evidência da pretensão a formular no processo principal, a que se refere esta norma, deve ser de tal modo clara e notória que ao julgador mais não restará do que a declarar e por consequência adoptar a providência requerida.
Tal evidência não se compadece, assim, com aturados trabalhos de análise da matéria de facto e de direito que é trazida a juízo pelas partes, nem pode resultar de uma análise aprofundada de várias posições doutrinais ou jurisprudenciais que as partes tragam aos autos para fazer valer a sua pretensão. Tem que se apresentar de forma simples de modo a que lançando-se mão de conceitos jurídicos igualmente simples se possa concluir pela evidência da pretensão.
Na verdade, a providência cautelar não se destina a definir em termos finais as pretensões que as partes trazem a juízo, destina-se apenas a acautelar essas pretensões da eventual perda que possa ser originada pela demora do processo principal e por isso a apreciação da pretensão que constitui o objecto do processo principal deve ser feita em termos sumários, meramente perfunctórios de modo a que se possa proferir uma decisão no mais curto espaço de tempo e sem invadir e esgotar o objecto do processo principal.
Definido que está em que termos deve ser apreciada a evidência a que se refere a al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA há agora que apreciar a situação concreta que nos é trazida pelas partes.
No essencial a recorrente alega que toda a legislação respeitante ao SIMPLEX 2007, com especial incidência na que se refere à “Casa Pronta”, lhe impede de continuar com a sua actividade profissional, quer porque o Estado pratica concorrência ilegal, quer porque lhe impõe regras e limites que ele próprio não respeita.
Tal situação revela de forma evidente uma violação do princípio da confiança, do dever constitucional da boa fé, quebra da confiança dos destinatários das normas e ofensa ao princípio da segurança jurídica.
Por seu turno o Estado contestou tais argumentos de forma convincente e que não permite, de forma liminar, concluir, sem mais, que à recorrente assiste razão.
Ou seja, e como bem se refere na sentença recorrida a argumentação em torno desta questão é tão vasta e complexa que a presente providência cautelar não é o meio processual adequado para a sua discussão.
Efectivamente não é evidente a ilegalidade da legislação “Casa Pronta” e muito menos do SIMPLEX 2007; não é pelo facto de tal legislação poder diminuir o “negócio” da recorrente que a mesma é ilegal, tal ilegalidade, para efeitos do disposto nesta norma, deveria resultar de forma simples da matéria de facto e de direito articulada pela recorrente no seu requerimento inicial. Ou seja, de tal matéria deveríamos poder concluir, sem qualquer margem para dúvida, que tal regime legal se mostra afectado por um qualquer vício que naturalmente a pretensão a formular no processo principal teria que proceder; não é isso que se passa no caso concreto.
Dos vários pareceres juntos aos autos, não resulta evidente que as opções legislativas do Governo estejam condicionadas por direitos adquiridos de um grupo restrito de cidadãos.
Na verdade a questão que se coloca nestes autos, e se colocará nos autos principais passa, no essencial, por saber se as expectativas legitimas ou direitos adquiridos de determinados grupos de cidadãos pode condicionar a actividade legislativa em determinadas áreas concretas, ou seja, se tal actividade legislativa por ofender tais direitos ou expectativas se converte numa actividade ilegal, ou se se trata de uma actividade legal e conforme aos parâmetros constitucionais e princípios gerais de direito, mas que poderá originar a obrigação de indemnizar aqueles que viram os seus direitos e expectativas diminuídos.
Trata-se, assim, de uma questão para a qual não se consegue obter uma solução com relativa facilidade, é mesmo uma questão demasiado complexa para que o tribunal se possa pronunciar sobre a mesma no âmbito da referida al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA ….
… Quanto aos pedidos formulados em 3.º lugar a título subsidiário.
… não se vislumbra da argumentação expendida pela recorrente, que a mesma tenha ou possa vir a ter, de forma evidente, um direito de acesso às bases de dados registrais e de identificação públicas, nem que a Administração esteja sujeita à liquidação do IVA nos serviços por si prestados na CRP ….
Na verdade da argumentação expendida pela recorrente não resulta evidente que a sua pretensão não possa proceder, isto é, não se pode concluir, sem mais que a sua pretensão seja improcedente, no entanto também não se pode concluir que tal argumentação seja indiciariamente procedente, isto é, não se consegue concluir, em termos sumários, que venha a obter vencimento no processo principal.
E aqui cabe, também, a argumentação expendida a propósito da alínea a) do mesmo n.º 1, mesmo que não se deva fazer uma apreciação com o mesmo rigor.
É que, se os fundamentos que a recorrente invoca para formular estes pedidos são sedutores e indiciam de forma liminar a existência de ilegalidades por parte da Administração, a eles se opõem os argumentos expendidos pelo recorrido que também não podem deixar de ter acolhimento, que por seu lado e de forma contrária, nos permitem pensar que a actividade da Administração encontra fundamento nos preceitos legais vigentes.
Daqui se conclui, assim, que não há uma evidência mínima, para já, que nos permita concluir pela aparência do bom direito e consequentemente também as providências requeridas em terceiro lugar não podem ser adoptadas por falta de preenchimento deste requisito legal …”.
O que para a economia desta decisão importará referir e considerar, em suma, é que, na situação “sub judice” não existe, de forma alguma, uma evidência de procedência da pretensão formulada pelo requerente cautelar no quadro fáctico-jurídico apurado indiciariamente, para além de que a solução das questões jurídicas discutidas nos autos estará longe de uma posição pacífica tal como se descortina da simples leitura dos pareceres jurídicos divergentes e que se mostram juntos aos autos, sendo, por conseguinte, desejável que tal discussão/julgamento quanto às ilegalidades invocadas se realize no quadro da decisão definitiva, estabilizada na acção administrativa principal e no recurso jurisdicional que, eventualmente, possa e venha a ser interposto da decisão a proferir naqueles autos.
Nessa medida, quando na decisão judicial em crise se concluiu no sentido de que não ocorria “in casu” uma situação de evidente procedência da pretensão deduzida no processo principal mercê de não estar em causa impugnação de acto manifestamente ilegal o Mm.º Juiz “a quo” não incorreu em erro de julgamento, não violando o comando legal que resulta da al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA em conjugação com os preceitos legais e ilegalidades assacadas, pelo que face a este entendimento não é legítima a pretensão do recorrente de ver decretada a pretensão cautelar peticionada ao abrigo daquele preceito.
Improcede, pois, este fundamento de recurso “sub judice”.
*
Argumenta ainda o recorrente que a decisão judicial recorrida fez errado julgamento de facto e de direito já que no caso estavam reunidos os pressupostos exigidos pela al. b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
Analisemos.
Estando em causa a adopção de providência cautelar em que a situação não teve enquadramento na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA prevê-se, no mesmo normativo, um distinto grupo de condições de procedência e que se mostram consagrados nos n.ºs 1, al. b) e 2, aí se enunciando condições de procedência que, embora com diferentes cambiantes, se podem reconduzir:
a) A duas condições positivas de decretamento:
- «periculum in mora» - receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente; e
- «fumus boni iuris» (“aparência do bom direito”);
b) A um requisito negativo de deferimento que assenta numa ponderação de todos os interesses em presença (públicos e/ou privados) – proporcionalidade dos efeitos da decisão de concessão ou da sua recusa.
Caracterizando sumariamente cada umas das condições ora elencadas temos que o “periculum in mora” se traduz nas palavras do legislador no “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar [ou ver reconhecidos] no processo principal”.
As providências cautelares visam impedir que, durante a pendência de qualquer acção, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela (obviar a que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica).
Não é, todavia, um qualquer perigo de dano que justifica ou pode fundar a decretação duma providência cautelar porquanto se terá de exigir um perigo qualificado de dano, isto é, um perigo de dano que derive ou decorra da demora processual.
Na aferição deste requisito o juiz deve efectuar um juízo de prognose avaliando da utilidade da sentença numa situação futura de hipotética decisão favorável da acção principal relevando tanto o “periculum in mora” de infrutuosidade que exigirá, em regra, uma providência conservatória (para manter a situação existente), como o “periculum in mora” de retardamento que levará à adopção de uma providência antecipatória (para antecipar parcial ou mesmo totalmente, sempre em termos provisórios, a solução pretendida ou regule interinamente a situação) (cfr., neste âmbito e para maiores desenvolvimentos, J.C. Vieira de Andrade in: ob. cit., pág. 348; M. Aroso de Almeida in: ob. cit., págs. 309 e 310; Ana Gouveia Martins in: “A tutela cautelar no Contencioso Administrativo - Em especial, nos procedimentos de formação de contratos”, págs. 504/505).
Note-se que nesta sede em que se trata de aferir, nomeadamente, da possibilidade de se produzirem “prejuízos de difícil reparação” o critério a atender deixou de ser aquele que jurisprudencialmente era aceite em matéria de análise do requisito positivo da al. a), do n.º 1 do art. 76.º da LPTA, ou seja, o da susceptibilidade ou insusceptibilidade da avaliação pecuniária dos danos, para passar a ser o da maior ou menor dificuldade que envolve o restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar, já que o juiz deve ponderar as circunstâncias concretas do caso em função da utilidade da sentença e não decidir com base em critérios abstractos.
Importa, ainda, ter presente que devem ser atendidos todos os prejuízos relevantes para os interesses do requerente, quer o perigo respeite a interesses públicos, comunitários ou colectivos, quer estejam em causa apenas interesses individuais, sendo que no juízo de fundado receio há-de corresponder a uma prova, em princípio a cargo do requerente cautelar, de que tais consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar justificada a cautela que é peticionada.
Quanto ao requisito positivo de procedência do “fumus boni iuris” o CPTA opta por efectuar uma distinção em função da providência cautelar ser conservatória ou antecipatória, estabelecendo que ela deve ser mais facilmente decretada no primeiro caso do que no segundo.
Assim, se estivermos perante uma providência conservatória, com a qual se pretende manter o “statu quo” [cfr. art. 120.º, n.º 1, al. b) do CPTA], o requisito ora em análise é mais suave, porquanto surge-nos na sua formulação negativa, ou seja, se não for “manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito”. Atente-se que se para o decretamento da providência conservatória não se impõe uma indagação exaustiva da existência do direito invocado pelo requerente ainda assim é manifesto que tal decretamento não pode ter lugar se não forem recolhidos, em termos de matéria de facto, indícios suficientes da verosimilhança de tal direito, pois, só perante a existência de tais elementos de prova será possível ao julgador formular um juízo positivo a respeito da aparência do direito invocado.
Já no caso de estarmos na presença duma providência antecipatória, com a qual se visa alterar aquele “statu quo” antecipando aquilo que seria o desfecho do processo principal [cfr. art. 120.º, n.º 1, al. c) do CPTA], a providência só será concedida quando seja de admitir que é provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
É, assim, que se o requerente visa, ainda que a título provisório, que o estado das coisas se alterem em seu favor sobre o mesmo impende o ónus de fazer prova perfunctória do bem fundado da pretensão deduzida ou que irá formular no processo principal.
Entende Isabel Celeste M. Fonseca que “... esta nuance na apreciação do critério do fumus boni iuris tem como objectivo facilitar a decretação de medidas simplesmente conservatórias – pois só uma forte aparência de falta de fundamento da pretensão formulada no processo principal (ou uma evidente circunstância que obste ao conhecimento de mérito da causa) pode obstar ao seu deferimento – e exigir uma apreciação mais profunda e intensa da causa quando é solicitada a emissão de uma medida antecipatória. Deste modo se tenderá a evitar o seu errado decretamento …” (in: “Dos Novos Processos …”, pág. 66).
O preenchimento dos requisitos previstos nas als. b) e c) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA coloca o requerente numa posição de partida favorável à obtenção da providência, mas a verificação de tais requisitos carece ainda de ser complementada pelo requisito ou pressuposto previsto no n.º 2 do aludido normativo legal (requisito negativo da ponderação da sua adequação e do seu equilíbrio em termos de proporcionalidade da decisão de concessão ou recusa).
Neste preceito introduz-se aquilo que já foi denominado como “cláusula de salvaguarda”, sendo que na e para justificação deste requisito refere Ana Gouveia Martins que o “… requisito da ponderação de interesses constitui, …, um paliativo ao risco de erro na valoração dos elementos de facto e de Direito co-naturais ao juízo cautelar.
Consideramos, … que se afigura perfeitamente legítimo que o legislador, no exercício da sua margem de conformação do direito à tutela cautelar, consagre o critério da ponderação de interesses desde que não o configure em termos de fazer prevalecer sistematicamente o interesse público no não decretamento da providência. O direito fundamental à tutela cautelar tem, obviamente que ser integrado no sistema, em termos de ser indispensável definir os seus limites em caso de conflito com outros direitos fundamentais e valores jurídicos objecto de protecção constitucional …” (in: ob. cit., pág. 514).
Tal como é sustentado pelo M. Aroso de Almeida o “... artigo 120.º, n.º 2, introduz um inovador critério de ponderação, num mesmo patamar, dos diversos interesses, públicos e privados, que, no caso concreto, se perfilem, sejam eles do requerente, da entidade demandada ou de eventuais contra-interessados, determinando que a providência ou providências sejam recusadas quando essa ponderação permita concluir que «os danos que resultariam da sua concessão se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências».
Abandona-se, assim, a tradição, forjada no âmbito da aplicação do instituto da suspensão de eficácia de actos administrativos, de se ponderarem separadamente os pressupostos de que dependia a concessão da providência e em valor absoluto os riscos para o interesse público que dessa concessão poderiam advir. A justa composição dos interesses em jogo passa, pelo contrário, a exigir que o tribunal proceda, em cada caso, à ponderação equilibrada dos interesses, contrabalançando os eventuais riscos que a concessão da providência envolveria para o interesse público (e para interesses privados contrapostos) com a magnitude dos danos que a sua recusa com toda a probabilidade poderia trazer ao requerente …” (in: ob. cit., págs. 301 e 302).
Temos, por conseguinte, que o juiz cautelar, fora da situação excepcional prevista no art. 120.º, n.º 1, al. a) do CPTA, mesmo verificados os requisitos ou pressupostos positivos supra aludidos deve recusar a concessão da providência cautelar quando o prejuízo resultante para o requerido se mostre superior ao prejuízo que se pretende obviar ou evitar com a decretação da providência.
Tal superioridade, nas palavras do J.C. Vieira de Andrade (in: ob. cit., págs. 353 e 354 - nota 795), “... há-de estabelecer-se tendo em consideração a possibilidade de evitar ou atenuar os prejuízos causados pela concessão através de contra-providências (...) artigo 120.º, n.º 2, in fine ...”, sendo que na ponderação a efectuar-se ela deve ser feita entre prejuízos ou danos e não entre os interesses em presença.
Com efeito, não consagra a lei qualquer prevalência do interesse público face aos demais interesses em conflito, tanto mais que, como é defendido por este Professor “... não se trata aqui de ponderar o interesse público com o interesse privado, mesmo que muitas vezes o interesse do requerido seja o interesse público e o interesse do requerente seja o interesse privado: o que está aqui em conflito são os resultados ou os prejuízos que podem resultar para os interesses, da concessão ou a recusa da concessão, para todos os interesses envolvidos, sejam públicos, sejam privados.
(...), o que está em causa não é ponderar valores ou interesses entre si, mas danos ou prejuízos e, portanto, os prejuízos reais, que numa prognose relativa ao tempo previsível de duração da medida, e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, resultariam da recusa ou da concessão (plena ou limitada) da providência cautelar …” (in: ob. cit., pág. 355).
Temos, por conseguinte, que o juiz cautelar ao efectuar este juízo de ponderação está e terá de se colocar numa posição equidistante face aos interesses que se apresentam perante si, ponderando os direitos e bens em conflito, por forma a tentar obter a concordância prática em concreto dos mesmos.
Daí que para a recusa da concessão duma providência à luz do juízo de ponderação previsto no n.º 2 do art. 120.º não é suficiente ou idónea uma qualquer lesão do interesse público porquanto o interesse público, por natureza, está ínsito ou subjacente a qualquer actuação desenvolvida por parte da Administração.
Como impressivamente é afirmado por Cármen Chinchilla Marín “… o interesse público há-de ser específico e concreto, ou seja, diferenciado do interesse genérico da legalidade e eficácia dos actos administrativos …” (in: “La tutela cautelar en la nueva justicia administrativa”, Civitas, Madrid, 1991, pág. 163).
Desta feita, estamos perante um interesse público qualificado sem que, todavia, se exija uma grave lesão do interesse público ou dos interesses dos contra-interessados, pois, o que é essencial é que, no caso concreto, a lesão daqueles interesses se traduza e assuma contornos tais que se torne desproporcionado o decretamento da(s) providência(s) deduzida(s).
Tratando-se, como se trata, de um requisito negativo e que constitui matéria de excepção temos que caberá ao requerido cautelar a alegação e a prova plena dos factos que corporizam e preencham aquele requisito (cfr., entre outros, M. Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha in: ob. cit., págs. 708 e 709).
Feito este enquadramento passemos à análise da situação vertente, sendo que também nesta sede improcede a argumentação expendida pelo recorrente.
Com efeito, acompanhando e sufragando aqui de perto o decidido no acórdão deste Tribunal de 17/04/2008 (Proc. n.º 331/07.9BEMDL-A), que vimos citando, temos que “… não sendo possível concluir, para já e nestes autos, pela (i)legalidade manifesta da norma ou acto administrativo e consequentemente pela evidência da pretensão a formular nos autos principais, pode-se no entanto desde já afirmar, adiantando a apreciação do requisito da 2.ª parte da aliena b) do mesmo n.º 1 do art. 120.º, que também não é manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular no processo principal - fumus non malus iuris.
Ou seja, se não é evidente a ilegalidade que vem apontada pela recorrente, também não é manifesto o contrário, isto é, a legalidade da implementação do serviço “Casa Pronta”.
Há assim que entrar agora na apreciação da 1.ª parte da alínea b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
Dispõe esta norma que, a providência cautelar é adoptada, quando, estando em causa a adopção de uma providência cautelar conservatória, haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.
Este requisito de que o legislador faz depender a atribuição das providências cautelares traduz-se no periculum in mora, isto é, no receio de que a demora na obtenção de uma decisão no processo principal não venha a tempo de dar resposta adequada às situações jurídicas envolvidas no litigio, ….
Como já vimos a recorrente pretende a suspensão do serviço “Casa Pronta” afirmando que o mesmo lhe retira uma fatia considerável do seu “negócio”, o que a levará à ruína e implicará o encerramento do seu cartório notarial.
Na verdade, o que releva do quadro que a recorrente apresenta no … seu requerimento inicial, é que o seu “volume de negócio” não se viu drasticamente reduzido com o serviço “Casa Pronta”, mas sim com o SIMPLEX (a que a recorrente se refere como contra-reforma) no seu conjunto.
Ou seja, foi pelo conjunto das medidas legislativas implementadas por via do SIMPLEX que o Governo acabou por esgotar as possibilidades de “negócio” da recorrente, uma vez que passou a ser o Estado, por si ou por outros, a realizar o “negócio” da recorrente.
Contudo e relativamente ao serviço “Casa Pronta”, que o Estado presta por intermédio das Conservatórias do Registo Predial, pode-se afirmar que não são os “pacotes” que o Estado oferece que retiram o “negócio” à recorrente.
Efectivamente fazendo uma consulta ao site “http:
//www.notariosportugal.org/OrdemNotarios/PT/Agenda/Eventos/casa+simples+casa+segura+custa+menos+que+casa+pronta.htm” pode-se concluir que também os notários estão habilitados a prestar serviços em forma de “pacotes”, v.g. o “Casa simples Casa segura” para quem quer comprar casa, com ou sem hipoteca e com ou sem mútuo, em que o serviço prestado pelo notário, idêntico ao da “Casa pronta”, se revela mais barato e mais rápido.
Não se pode, assim, concluir, e face aos elementos de que dispomos, que a mera existência do serviço “Casa Pronta” é que implica uma diminuição dos rendimentos da recorrente, já que, tal serviço acaba por ser mais caro que igual serviço prestado pelos notários.
Ou seja, não se pode afirmar com segurança que a eventual diminuição dos rendimentos da recorrente se deva ao serviço “Casa Pronta” já que, este serviço acaba por ser mais caro que o serviço “Casa simples Casa segura” e portanto, não é pelo facto de não se suspender tal serviço que se irão produzir prejuízos de difícil reparação na esfera jurídica da recorrente.
É certo que tal serviço prestado pelo Estado ao concorrer com o serviço prestado pelos notários pode, e seguramente vai, implicar uma diminuição dos rendimentos auferidos pelos notários, mas não é seguro que tal serviço seja determinante, só por si, para fazer diminuir o volume de “negócios” do notário de tal forma que os mesmos se vejam constrangidos a encerrar ou a declarar falência.
E portanto, tal diminuição dos rendimentos não é susceptível, face ao que vem alegado, de ser subsumível aos conceitos de facto consumado ou de prejuízo de difícil reparação a que alude aquela al. b).
Improcede, assim, a requerida suspensão de eficácia do serviço “Casa pronta” uma vez que, sendo a verificação dos requisitos constantes da al. b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA de natureza cumulativa e uma vez que não se verifica o requisito do periculum in mora, em qualquer uma das suas vertentes, não se mostram preenchidos os requisitos para a sua adopção.
Quanto aos pedidos formulados em 3.º lugar a título subsidiário.
Tais pedidos, como a recorrente bem identifica, consubstanciam-se em providências antecipatórias que devem ser apreciadas à luz dos critérios estabelecidos pelo art. 120.º, n.º 1, al. c) do CPTA, uma vez que também aqui não é evidente, e pelas mesmas razões já atrás apontadas, que tais pretensões a formular no processo principal venham a ser julgadas procedentes.
Dispõe assim esta norma que, as providências cautelares são adoptadas quando, estando em causa a adopção de uma providência conservatória, haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente pretende ver reconhecidos no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
De modo idêntico ao que dispõe a al. b), também esta al. c) exige a verificação de dois requisitos de forma cumulativa para que a providência possa ser adopta, o periculum in mora e a aparência do bom direito - fumus boni iuris.
“Tanto a alínea b), como a alínea c), do n.º 1, fazem depender a atribuição de providências cautelares da formulação de um juízo sobre as perspectivas de êxito que o requerente tem no processo principal. Se este é, pois, um critério comum à atribuição, tanto de providências conservatórias, como de providências antecipatórias, a verdade, porém, é que a formulação utilizada, quanto a este ponto, em cada uma das alíneas é diferenciada, de onde resulta que a atribuição de providências conservatórias, por um lado, e de providências antecipatórias, pelo outro, obedece, neste particular, a regimes distintos.
Com efeito, a alínea b) satisfaz-se, no que a este ponto diz respeito, com uma formulação negativa, nos termos da qual basta que “não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular” pelo requerente no processo principal “ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito” para que uma providência conservatória seja concedida. Consagra-se, deste modo, o que já foi qualificado como um fumus non malus iuris: não é necessário um juízo de probabilidade quanto ao êxito do processo principal, basta que não seja evidente a improcedência da pretensão de fundo do requerente ou a falta de preenchimento de pressupostos dos quais dependa a própria obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa.
Pelo contrário, de acordo com a alínea c), tem de ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente para que uma providência antecipatória possa ser concedida. Como, neste domínio, o requerente pretende, ainda que a título provisório, que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal. Também em processo civil se reconhece que, embora em sede cautelar seja acrescido, por força da sumariedade dos juízos que nela são formulados, o risco da tomada de decisões injustas, esse risco é exponencialmente agravado no domínio da tutela antecipatória, em que se trata de fazer aceder o interessado a uma nova situação de vantagem. Consagra-se, por isso, o critério do fumus boni iuris (ou da aparência do bom direito) ….
Daqui resulta, assim, que esta norma não se basta com a mera aparência de que a pretensão a formular no processo principal não seja manifestamente improcedente, pelo contrário, exige-se que a pretensão a formular no processo principal seja aparentemente procedente, isto é, de forma perfunctória e sumária tem que parecer ao julgador que essa pretensão tem uma base de sustentação sólida de vir a ser julgada procedente no processo principal.
Descendo agora ao caso concreto, não se vislumbra da argumentação expendida pela recorrente, que a mesma tenha ou possa vir a ter, de forma evidente, um direito de acesso às bases de dados registrais e de identificação públicas, nem que a Administração esteja sujeita à liquidação do IVA nos serviços por si prestados na CRP ….
Na verdade da argumentação expendida pela recorrente não resulta evidente que a sua pretensão não possa proceder, isto é, não se pode concluir, sem mais que a sua pretensão seja improcedente, no entanto também não se pode concluir que tal argumentação seja indiciariamente procedente, isto é, não se consegue concluir, em termos sumários, que venha a obter vencimento no processo principal.
E aqui cabe, também, a argumentação expendida a propósito da alínea a) do mesmo n.º 1, mesmo que não se deva fazer uma apreciação com o mesmo rigor.
É que, se os fundamentos que a recorrente invoca para formular estes pedidos são sedutores e indiciam de forma liminar a existência de ilegalidades por parte da Administração, a eles se opõem os argumentos expendidos pelo recorrido que também não podem deixar de ter acolhimento, que por seu lado e de forma contrária, nos permitem pensar que a actividade da Administração encontra fundamento nos preceitos legais vigentes.
Daqui se conclui, assim, que não há uma evidência mínima, para já, que nos permita concluir pela aparência do bom direito e consequentemente também as providências requeridas em terceiro lugar não podem ser adoptadas por falta de preenchimento deste requisito legal.
Pretende, por último, a requerente que seja adoptada a providência de suspensão de eficácia do artigo 16.º da Portaria n.º 385/2004 de 16 de Abril que aprovou a tabela de honorários e encargos notariais.
Esta norma dispõe nos seguintes termos:
Artigo 16º
Ministério da Justiça
1 - Pelo acesso aos sistemas de comunicação, de tratamento e de armazenamento da informação do Ministério da Justiça, pela utilização do Arquivo Público e pelos Serviços de Auditoria e Inspecção, o notário por sua conta entrega ao Ministério da Justiça:
a) Por cada escritura - € 10;
b) Por cada um dos demais actos que pratica - € 3.
2 - A receita proveniente da cobrança a que se referem o número anterior e o artigo 15.º será depositada mensalmente até ao dia 10 do mês seguinte àquele a que a conta encerrada disser respeito, à ordem do Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial, do Ministério da Justiça.
A exemplo dos anteriores pedidos também este se configura como uma providência antecipatória já que o que a recorrente pretende é eliminar da ordem jurídica uma exigência de pagamento que até aqui vinha sendo feita pela utilização de determinados serviços.
Na verdade, com a suspensão de eficácia de tal norma a recorrente pretende obter uma alteração do status quo de modo que venha a ser favorecida com a mesma, já que, tal norma se encontrava plenamente em vigor em data anterior à dos vários diplomas legais que vieram a concretizar o SIMPLEX.
Efectivamente esta norma não foi agora editada de modo a provocar uma alteração na situação fáctico-jurídica existente, trata-se de norma que se enquadra no conjunto de normas definidoras da própria actividade dos notários.
E assim sendo, a eventual adopção da providência requerida também deve ser apreciada à luz dos requisitos plasmados na al. c) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
Como já atrás vimos, o requisito da aparência do bom direito surge ao abrigo desta alínea consubstanciado numa possibilidade de a recorrente poder vir a obter procedência na acção principal.
Ora, da análise que se faz dos argumentos por si trazidos aos autos, …, e bem assim da resposta apresentada a tal matéria pela Administração também aqui não é evidente que tal pretensão venha a proceder, quer nos termos da al. c), quer nos termos da alínea a) do mesmo art. 120.º, n.º 1 do CPTA.
É que, se por um lado, tal acesso à informação é concedido aos Notários, apesar de a recorrente configurar o Arquivo Público como “resquícios materiais daquilo que outrora foi o arquivo dos notários públicos”, por outro também vem alegado pela Administração que os notários não acedem a todos os arquivos públicos que lhes são facultados.
Na verdade, o que a recorrente coloca em causa, não é tanto o pagamento das quantias previstas naquela norma legal, mas sim a qualidade do serviço prestado pela Administração, uma vez que o considera insuficiente e até mesmo inexistente e por isso levanta a questão de tais pagamentos não configurarem uma taxa, mas pelo contrário, um verdadeiro imposto.
Acontece, porém, que a análise de tal realidade não é fácil, nem evidente, como se impunha na presente providência cautelar, e portanto, dispensando-nos de aqui repetir os argumentos já atrás expendidos, podemos concluir que se não é evidente a falta de fundamento de tal pedido, também não é sumariamente evidente a justeza do mesmo, pelo que, também este pedido não pode proceder …”.
Valendo e reiterando aqui a presente argumentação / fundamentação temos que, sem necessidade de outros considerandos, improcede também este fundamento de recurso, sendo certo que o recorrente não impugnou devida e eficazmente a decisão judicial no segmento em que nesta se conheceu e se desatendeu a pretensão cautelar quanto aos pedidos formulados sob os pontos I’’) e II).
*
3.2.3.
Do pedido de condenação do ente requerido como litigante de má fé
Por fim, peticionou o recorrente, face ao teor das contra-alegações por aquele produzidas, a condenação do ente requerido como litigante de má fé porquanto seria “… totalmente inadmissível a posição assumida pelo Requerido nos presentes autos, pretendendo convencer o Tribunal de que já terminou o período experimental (pelo que o decretamento da providência é inútil) ainda não começou o regime definitivo, mas o serviço Casa Pronta continua disponível nas mencionadas conservatórias …”, que escudando-se “… em alegações sobre cenários hipotéticos, eventuais e condicionais com os quais pretende confundir o Tribunal …” visou impedir “… a descoberta da verdade material …” e que “… o Requerido altera a verdade dos factos, omite factos relevantes para a decisão da causa, fazendo do processo um uso reprovável que entorpe a acção da justiça e impede a descoberta da verdade …”.
Vejamos.
Estabelece o art. 456.º do CPC que:
"1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, é admitido recurso em grau, da decisão que condene por litigância de má fé".
Para não caírem no âmbito de aplicação do normativo ora acabado de transcrever e nas correlativas sanções previstas para o efeito, as partes deverão litigar com a devida correcção, ou seja, no respeito dos princípios da boa fé e da verdade material e, ainda, na observância dos deveres de probidade e cooperação expressamente previstos nos arts. 08.º do CPTA, 266.º e 266.º-A do CPC, para assim ser obtida, com eficácia e brevidade, a realização do Direito e da Justiça no caso concreto que constitui objecto do litígio.
Daí que no caso de alguma das partes num litígio actuar com malícia e quiser levar o Tribunal a formar uma convicção distorcida da realidade por si conhecida no tocante a facto ou pretensão cuja ilegitimidade ou vício conhece, não observando o dever de cooperação a que por lei está vinculada ou se voluntariamente usar o processo de modo reprovável, deduzindo oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e entorpecer a acção da justiça protelando, sem fundamento sério, o trânsito da decisão, estará a agir de má fé e impor-se-á, então, a sua condenação como litigante de má fé.
Para que possa falar-se de litigância de má fé e se justifique a aplicação de alguma das sanções previstas para tal situação deverá ter-se como assente que essa aplicação só é de pôr quando se concluir que a actuação de alguma das partes desrespeita o Tribunal ou a parte que lhe é contrária no processo.
Decorre do exposto que a conduta da parte, para que possa integrar-se no conceito de litigância de má fé, deve ser viciada por dolo ou negligência grave e não abrange, assim, situações de erro grosseiro ou lide ousada ou temerária em que alguém possa ter caído por mera inadvertência.
A propósito escreveu J. Alberto dos Reis que "… não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada …" e, ainda, que a "... simples proposição da acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a iniciativa da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir …" (in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 263). Neste sentido tem decidido o STJ, sendo que, entre a jurisprudência daquele Venerando Tribunal, temos o acórdão de 11/04/2000 (Revista n.º 212/00 - 1.ª), onde se escreveu que "… a condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo, não bastando uma lide temerária ou ousada ou uma conduta meramente culposa …".
Também o STA no seu acórdão de 18/10/2000 (Proc. n.º 46.505 - in: «www.dgsi.pt/jsta») sustentou que a “… multa por litigância de má fé destina-se a sancionar aqueles casos em que as partes, tendo agido com dolo ou negligência grosseira, tenham incorrido nalguma das interacções tipificadas na alínea a) a d) do n.º 2 do art. 456.º do CPC …”, sendo no seu sumário se pode ler ainda que a “… liberdade que orienta as partes ao nível da defesa dos seus direitos tem como pressuposto o necessário conhecimento da justiça das suas pretensões; (…) A sustentação de teses controvertidas na doutrina ou a defesa de interpretações, sem grande solidez ou consistência, das normas jurídicas, não se subscreve no conceito de lide dolosa …”.
Assim, se formos colocados ante situação pouco definida na lide (entre dolosa ou temerária), por os elementos disponíveis para o efeito não serem suficientemente elucidativos para que possa concluir-se com segurança, pela existência de dolo, a condenação por litigância de má fé não deve decretar-se.
É que o manifesto gravame jurídico-social que se lhe associa impõe que não haja dúvidas ao qualificar-se a conduta da parte como dolosa ou gravemente negligente.
No caso "sub judice" a conduta do ente requerido, ora recorrido, espelhada na contra-alegação produzida nos autos nesta sede em sustentação da tese que fez vencimento na decisão judicial objecto de impugnação não se terá ou poderá qualificar como de má-fé.
De facto, extrai-se da lição de J. Alberto dos Reis que a “… ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição dos titulares de direitos; que no caso concreto o litigante tenha ou não razão, é indiferente; num e noutro caso goza dos mesmos poderes processuais. Mas ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica impõe uma limitação: que o exercício seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão.
Quando falta este requisito, o acto passa a ter o carácter de ilícito. Estamos então perante um ilícito processual, a que corresponde ou uma sanção meramente civil (responsabilidade pelas perdas e danos causados à parte contrária) ou uma sanção civil e um sanção penal (multa).
Por outras palavras, uma coisa é o direito abstracto de acção ou de defesa, outra o direito concreto de exercer actividade processual. O primeiro não tem limites; é um direito inerente à pessoa humana. O segundo sofre limitações impostas pela ordem jurídica; e uma das limitações traduz-se nesta exigência de ordem moral; é necessário que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão. Portanto, revelada a má fé, torna-se patente que ele exerceu actividade ilícita ...” (in: ob. cit., pág. 261).
É dado que temos como certo que a improcedência duma acção ou duma oposição, por si só, não é condição suficiente para que se dê por verificada a má fé, pois, se tal acontecesse então qualquer parte vencida numa produção de prova e na acção/oposição haveria de ser automaticamente julgada como litigante de má fé, uma vez que, em rigor, acabara por deduzir pretensão ou oposição não fundamentada.
Daí que a ausência de fundamentos não determina, pois, necessariamente, a má fé já que esta terá se estribar naquela imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um (cfr. Ac. do STJ de 20/03/2001 - Proc. n.º 01A3692), ou se traduz num uso reprovável do processo com ostensiva violação dos deveres de cooperação e boa fé processuais (cfr. Ac. do STJ de 02/06/2003 - Proc. n.º 04S004).
No caso vertente a conduta do ente requerido, aqui ora recorrido, espelhada nas suas contra-alegações de recurso jurisdicional produzidas nos autos em sustentação de tese e pretensão que foi afirmada na decisão judicial objecto de recurso não logrou obter vencimento na decisão final pelas razões atrás expostas.
Todavia, tal conduta processual em presença, pese embora tenha sido inconsistente e inócua no e para o desfecho da lide, não integra ou não é enquadrável no conceito de litigância de má fé não se vislumbrando que a mesma configure actuação dolosa ou negligência grosseira e, nessa medida, improcede o pedido de condenação fundado naquele instituto, valendo aqui os considerandos supra tecidos quanto ao enquadramento do mesmo instituto.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) Dar parcial provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo requerente, aqui ora recorrente, revogando-se a decisão na parte em que vinha impugnado o julgamento da questão da inutilidade superveniente da lide;
B) Negar provimento, no mais, ao recurso jurisdicional, confirmando nesse âmbito e com os fundamentos antecedentes a decisão judicial recorrida e, assim, improcedendo na totalidade a pretensão cautelar.
C) Não se evidência dos autos a existência de litigância de má fé à luz do disposto nos arts. 456.º e seguintes do CPC, pelo que nos abstemos de qualquer condenação fundada naquele instituto.
Custas nesta instância a cargo do requerente, aqui recorrente, com redução a metade da taxa de justiça [cfr. arts. 73.º-A, n.º 1, 73.º-E, n.º 1, als. a) e f), 18.º, n.º 2 todos do CCJ, 446.º e 453.º do CPC e 189.º do CPTA].
Notifique-se. D.N..
Restituam-se aos ilustres representantes judiciários das partes os suportes informáticos gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA).
Porto, 05 de Junho de 2008
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass. José Augusto Araújo Veloso
Ass. Maria Isabel São Pedro Soeiro