Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02010/13.9BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2015
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Alexandra Alendouro
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; ACIDENTE VIAÇÃO;
CONCESSIONÁRIA AUTO-ESTRADA; COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
Sumário:Os tribunais administrativos são materialmente competentes para julgar uma acção de responsabilidade civil extracontratual de uma sociedade anónima concessionária de auto-estrada, emergente de acidente de viação ocorrido em faixa de rodagem daquela, envolvendo um veículo e dois objectos (ferros), com fundamento na omissão de cumprimento de deveres de manutenção, vigilância e segurança decorrentes do inerente contrato de concessão celebrado entre a sociedade concessionária e o Estado, no quadro do DL n.º 248-A/99, de 6/7 – artigo 1.º n.º 5, da Lei n.º 67/2007, de 31/12; artigos 1.º e 4.º, n.º 1 alínea g), do ETAF.*
*Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:T...- Sociedade de Transportes, Lda
Recorrido 1:Auto Estradas de Portugal, SA e Outro(s)...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
T... – Sociedade de Transportes, Lda., pessoa colectiva 50…, com sede …, interpôs recurso jurisdicional da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga que, no âmbito da acção administrativa comum que instaurou contra A... Norte, Auto Estradas do Norte, S.A. [pedindo a respectiva condenação no pagamento de quantia certa, a título de indemnização, por ocorrência de alegado acidente de viação em auto-estrada do Norte envolvendo um veículo e objectos (dois ferros)], declarou a incompetência absoluta do TAF, em razão da matéria, para conhecer do pedido nela formulado e, em consequência, absolveu o Réu da instância.
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A Recorrente pede a revogação da decisão recorrida com consequente prosseguimento dos autos, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
“A - Para decidir pela incompetência em razão da matéria do Tribunal Administrativo, a Meritíssima Juíza a quo baseou-se exclusivamente no Acórdão de 18/12/2013 do Tribunal dos Conflitos.

B - A doutrina desse Acórdão é actualmente minoritária.

C - A doutrina maioritária é no sentido de considerar que os tribunais administrativos são competentes em razão da matéria para julgar uma acção para efectivação de responsabilidade civil de uma concessio­nária de auto-estrada decorrente de acidente aí ocorrido envolvendo um veículo e um animal.

D - A sentença preocupou-se mais em satisfazer uma exigência intelectual de cariz técnico-jurídico, do que em assegurar a administração da justiça nos termos constitucionalmente previstos (artigos 2.º. 20.º, n.º 4; 20.º n.º 5; 202.º, n.ºs 1 e 2 da CRP).

E - O que se evidencia pela circunstância de na presente acção até a própria ré ter aceite que o Tribunal Administrativo é o competente.

F - Mostram-se violados os preceitos constitucionais supra referidos.

G - Deve, pelo exposto, decidir-se que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga é materialmente competente para julgar a presente acção, e, em consequência, revogar-se a sentença ordenando-se o prosseguimento dos autos.”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A Digna Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificada nos termos e para os efeitos do artigo 146.º do CPTA, proferiu parecer sobre o mérito do presente recurso no sentido de lhe ser concedido provimento.
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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projecto de Acórdão aos Juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - Questões decidendas

O objecto mediato do recurso jurisdicional – e assim o âmbito de intervenção do tribunal ad quem – é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente extraídas da respectiva motivação, apenas podendo incidir sobre questões apreciadas pelo tribunal a quo ou que o devessem ser – artigos 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 3, 4 e 5 e 639.º do CPC, aplicáveis ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, caso existam e encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração e as situações em que o tribunal “ad quem”, em sintonia com a natureza de reexame dos recursos de apelação ínsita no artigo 149.º do CPTA, deva decidir “o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito” – sempre que declare nula a decisão recorrida e se mostrem reunidos os necessários pressupostos e condições legalmente exigidos. Situações que in casu não relevam.

A questão a dirimir no presente recurso consiste em saber se a sentença recorrida, ao declarar o TAF de Braga incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção nele proposta, interpretou e aplicou erradamente o direito – violando o dispostos nos artigos 2.º, 20.º, n.ºs 4 e 5, 202.º, n.ºs 1 e 2, todos da CRP – devendo os autos prosseguir, como defende a apelante.
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III – FUNDAMENTAÇÃO:
DE FACTO

Com relevância para o julgamento do presente recurso relevam os seguintes elementos do processo e de conhecimento do tribunal:

A) Em 16/12/2013 a Recorrente instaurou, no TAF de Braga, acção administrativa comum contra A... Norte, Auto Estradas do Norte, S.A., pedindo a respectiva condenação no pagamento de quantia certa, a título de indemnização, por ocorrência de alegado acidente de viação em auto-estrada do Norte (A7) envolvendo um veículo da sua propriedade e dois objectos (ferros) que alegadamente ocupavam “a faixa ou fila de trânsito por onde o veículo circulava” – cfr. Petição inicial.

B) A Ré é a concessionária da A7 – cfr. Petição inicial.

C) A pretensão da Autora funda-se no alegado dever que recaía sobre a Ré, “na qualidade de concessionária”, de “assegurar que a circulação na referida via se fazia em condições de segurança, vigiando-a, não permitindo a existência de quaisquer objectos na faixa de rodagem que colocassem em perigo os utentes da via” – cfr. Petição inicial

D) Em 1999, através de um concurso público internacional, o Estado atribuiu à Ae... Auto-Estradas do Norte, S.A., actual A... Norte, Auto Estradas do Norte, S. A., a Concessão das auto-estradas do Norte, a qual, com um total de 175km, liga zonas fortemente industrializadas e de grande densidade populacional, como Vila do Conde, Braga, Guimarães, com regiões tradicionalmente com menor poder de compra e de difícil acessibilidade.

E) Por força do contrato de concessão celebrado com o Estado Português, cujas bases foram publicadas no Decreto-lei n.º 248-A/99, de 6/7, alterado pelo Decreto-lei n.º 44-E/2010, de 5/5, foi atribuída à Recorrente a concessão de concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação, em regime de portagem, de lanços de auto-estradas e conjuntos viários do Norte de Portugal por um período de 30 anos (1999 – 2029).

F) Resulta da respectiva Base III que a concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente às auto-estradas que integram o seu objecto, reafirmando-se na Base VII que se trata de concessão de domínio público, pois as zonas das auto-estradas e dos conjuntos viários a elas associados e que constituem o estabelecimento físico da concessão integram o domínio público do concedente, devendo a concessionária manter as auto-estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, conforme estabelece a Base XLIV, sendo obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas concessionadas (Base XLVII).”.


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B/DE DIREITO

Delimitada a questão objecto do presente recurso e fixada a factualidade processual relevante, cumpre apreciar e decidir.

O artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagrou os tribunais judiciais como os tribunais comuns em matéria cível e criminal e que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – n.º 1.
O legislador constitucional reservou assim para os também denominados Tribunais comuns uma competência residual, no sentido de apenas não caber dentro do seu âmbito de jurisdição as matérias atribuídas por lei a outras jurisdições, encontrando-se tal competência concretizada por lei, actualmente no artigo 40.º da actual Lei da Organização do Sistema Judiciário (n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e artigo 64.º do CPC, no sentido de serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Estipula, por sua vez, o n.º 3 do artigo 212.º da CRP que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Do que se retira, desde logo, que os Tribunais Administrativos são a jurisdição comum do direito administrativo, competindo-lhe dirimir qualquer litígio que seja regulado pelo direito administrativo e que não esteja atribuído a tribunais de outras ordens jurisdicionais.
A nível legal, e em concretização da lei suprema, o âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos e Ficais em razão da matéria resulta do disposto nos artigos 1.º e 4.º do CPTA, em conjugação com outros preceitos legais que atribuem a jurisdição de relações jurídico-administrativas à jurisdição de outros tribunais.

Assim, estabelece o artigo 1.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.
O artigo 4.º do ETAF identifica os litígios cuja resolução compete aos tribunais administrativos (critério positivo) e aqueles que estão excluídos do seu âmbito de jurisdição (critério negativo). Mais propriamente, consta do artigo 4.º do ETAF, que:
“Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
“a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita o que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de infracções cometidas por entidades públicas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso; – s/n.
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu Presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas”. – itálico nosso.

Neste contexto, o critério material de competência dos tribunais administrativos deixa de se centrar na natureza pública ou privada do “acto de gestão” – critério ínsito na alínea h) do artigo 51.º do anterior ETAF o qual causou grandes incertezas na determinação do tribunal competente – para passar a assentar, em geral, no conceito de relações jurídicas administrativas e de função administrativa em sintonia com o que já resultava da Constituição da República Portuguesa no sentido de os tribunais administrativos serem os tribunais comuns do direito administrativo.
Atenta a multiplicidade de definições daquela relação, toma-se aqui como referência a súmula efectuada por Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos anotado, V.I, Almedina, p. 147, com reporte à jurisprudência e à doutrina, no sentido de serem relações jurídico-administrativas:
“em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjectivas públicas e relações inter-orgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios claros da sua pertinência ao direito privado;
aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v. Acórdão do TC n.º 746/96, de 29 de Maio, e Vieira de Andrade, A Justiça..., cit., p. 55 e 56);
aquelas em que esse sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137).”.

Em síntese, a competência material dos tribunais administrativos deve ser definida, por princípio, em função do conteúdo administrativo da relação material subjacente e não da natureza de gestão privada ou pública da actuação em causa.
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A competência do Tribunal afere-se pelo quid disputatum ou o “quid decidendum” em antítese com aquilo que será mais tarde o “quid decisum” não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção, tal como é entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência.
Daí que, para determinar a competência material dos tribunais se deva atender à configuração que o Autor faz na Petição inicial da relação processual, ou seja aos termos em que a acção é proposta, objectivos (v.g. natureza do direito a tutelar, facto ou acto do qual deriva tal direito) e subjectivos (identidade das partes), não importando para o efeito averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
É, portanto, pelo pedido do Autor iluminado pela sua causa petendi que se determina a jurisdição competente.
– cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91; Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. I, p. 111; Miguel Teixeira de Sousa, “A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns”, 3.ª edição, p. 139); Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 104; Acórdãos do STJ de 12/1/94, 2/7/96 e de 3/2/97 e do Tribunal de Conflitos, de 09-06-2010, 20/10/2011 disponíveis em www.dgsi.pt.

Nos presentes autos resulta do quid disputatum a pretensão da Autora/Recorrente de, em sede de acção emergente de responsabilidade civil extracontratual, obter uma indemnização, por alegada omissão ilícita imputada à Ré/Recorrida – pessoa colectiva de direito privado – a título de negligência, na vigilância e segurança de um troço de auto-estrada, cuja gestão se encontrava à data dos factos concessionada à mesma.

A decisão recorrida, considerando que o troço da auto-estrada em causa está entregue a pessoa colectiva de direito privado, cuja actuação (ou omissão) inseriu em actividade de estrita gestão privada – acompanhando o Acórdão proferido, em 18/12/2013, pelo Tribunal dos Conflitos (conflito n.º 28/13; processo n.º 28/13) – declarou o TAF de Braga materialmente incompetente para dirimir o litígio e causa, para cujo conhecimento seriam competentes os tribunais comuns.
No Acórdão citado sustenta-se, entre o demais, a concepção da “concessão” como um acto de gestão que é privatizada ao ser contratualmente transferida para uma pessoa colectiva de direito privado, pelo que “quando os actos ilícitos pela qual a entidade concessionária privada é demandada se insira nos actos correntes da sua actividade, estamos no âmbito do direito privado” só sendo de natureza administrativa a actividade do concessionário se os prejuízos que lhe são imputados decorrem do exercício de poderes públicos de que estão investidos – o que não ocorre no caso então em conflito configurado pelo Autor como de “responsabilidade civil por negligência na vigilância de um troço de Auto-Estrada cuja gestão lhe estava concessionada, dando azo a que um canídeo surgisse na mesma provocando uma acidente, com prejuízos para um veículo da Autora.”.
Razão porque, sustém, tal quadro factual não se enquadra juridicamente na previsão do artigo 1.º, n.º 5, da Lei 67/2007, de 31/12

Vejamos.
Como decorre da fundamentação fáctica, a Recorrente é concessionária da auto-estrada onde ocorreu o acidente (A7), por força de contrato de concessão (de obra pública) celebrado com o Estado, ao qual se aplica o regime do Decreto-lei n.º 248-A/99, de 6/7 alterado pelo Decreto-lei n.º 44-E/2010, de 5/5, tendo a concessão por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação, em regime de portagem, de lanços de auto-estradas e conjuntos viários do norte de Portugal; – a concessão de obra pública é estabelecida em regime de exclusivo relativamente às auto-estradas que integram o seu objecto (Base III dos diploma legais identificados) e é também de domínio público pois as zonas das auto-estradas e dos conjuntos viários a elas associados e que constituem o estabelecimento físico da concessão integram o domínio público do concedente (Base VII) – obrigando-se a concessionária a manter as auto-estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam (Base XLIV) e a, salvo caso de força maior devidamente verificado, assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas concessionadas (Base XLVII) – em sentido semelhante, a propósito de caso igual ao dos autos, vide o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 27/03/2014, no Processo n.º 046/13.

Ora, e neste contexto, uma Concessionária de uma auto-estrada “executa tarefas próprias do Estado, que este lhe endossou pela via dum contrato de concessão, como é o caso das funções relacionadas com o segurança do tráfego, onde se compreende nomeadamente o accionamento de sinalização de perigo ou de presença de obstáculos a alertar os condutores que circulem nessa auto-estrada, tarefas essas de natureza essencialmente pública administrativa, susceptíveis de configurarem acções ou omissões que exprimem o exercício de prerrogativas de poder público e, como tais, enquadráveis no âmbito de aplicação do art. 1.º n.º 5 da Lei n.º 67/2007 de 31/12 (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas).– cfr. Ac. do Tribunal de Conflitos, de 27/02/2014, no Processo n.º 048/13.

Com efeito, à pretensão indemnizatória sub judice aplica-se o Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas aprovado pela Lei n.º 67/2007, considerando a data dos factos e a entrada em vigor o referido diploma.

Estabelece o referido diploma que “o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício” (artigo 7.º, n.º 1). considerando-se ilícitasas acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos” (artigo 8.º, n.º 1).

Tradicionalmente, os concessionários – no caso, os de auto-estradas – eram considerados, numa visão organicista da Administração, como nela se inserindo funcional e materialmente, pois, não obstante a sua forma de sociedade anónima são igualmente concessionários de obra públicas (e de domínio público) chamados a colaborar com a Administração na execução de funções/tarefas administrativas através de um contrato administrativo. Razão porque, e nesta perspectiva, quem assim o continue a defender sempre poderá sustentar a aplicabilidade directa do artigo 7.º supra transcrito, e, consequentemente, a competência material dos tribunais administrativos para o seu conhecimento.

Não obstante, a lei processual actual dá guarida a situações como a dos autos, estabelecendo no artigo 4.º, n.º 1, alínea i) que a “Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” é da competência dos tribunais administrativos.

Este normativo remete, assim, a aferição da jurisdição competente para o disposto na actual lei que aprovou o regime de Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (Lei n.º 67/2007), a qual, depois de preceituar no respectivo o artigo 1.º (âmbito da sua aplicação) que “A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial” prevê no n.º 5 do mesmo preceito que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.” (itálico e sublinhado nosso).

Ora, da interpretação conjugada dos normativos processual e substantivo transcritos retira-se que as pessoas colectivas de direito privado passam a estar sujeitas ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado sempre que esteja em causa responsabilidade civil extracontratual por acções ou omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público (o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade) ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Sendo as empresas concessionárias de auto-estradas uma dessas pessoas colectivas de direito privado que passam a estar sujeitas ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, enquanto entidades concessionárias de obras públicas ou de serviço público, que assim são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo – e, nessa medida, a sua actividade (acções ou omissões) encontra-se regulada e sujeita, em geral, a disposições e princípios de direito administrativo.

Na verdade, a concessão dessas obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades que lhe foram outorgadas pelo Estado por determinado período de tempo (mormente de manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, das auto-estradas) percam a sua natureza originária e essencialmente público-administrativa, mantendo o Estado o poder de as regular e fiscalizar, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão.

Em síntese, a entidade privada concessionária de obras ou serviços públicos é chamada a colaborar com a Administração na realização de tarefas essencialmente administrativas através de um contrato administrativo, pelo que suas acções e omissões não podem deixar de ser integradas e reguladas pelas disposições e princípios do direito administrativo. – cfr. entre outros, os Acórdãos de 30/5/2013 do Tribunal de Conflitos publicado na CJ – STJ – ano XXI, tomo II, págs. 20-23, de 20/1/2010, n.º 25/09, de 27/03/2013, n.º 046/13 de 27/03/2014, n.º 048/13, de 27.02.2014, de 29/01/2015, n.º 050/14, de 25/03/2015 n.º 053/14, do Tribunal de Conflitos, transcrevendo-se o sumário deste último:
“ I – A concessão de serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa e por essa circunstância adquiram intrinsecamente natureza de actos privados a serem regulados pelo direito privado.
II – Apesar de ser uma sociedade anónima, a lei atribuiu à Concessionária, no contrato de concessão aprovado pelo DL nº 86/2008, de 28/5, poderes, prerrogativas e deveres de autoridade típicos dos atribuídos ao Estado, que representa.
III – Assim, a sua eventual responsabilização por actos ou omissões dessa sua actividade insere-se no quadro de aplicação da norma do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007, e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para conhecer do litígio, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF.”.

No caso vertente está em causa um acidente de viação envolvendo um veículo e dois objectos (ferros), alegadamente sitos em faixa de rodagem da A7, cuja responsabilidade pela sua ocorrência é imputada à Recorrida enquanto concessionária daquela auto-estrada por incumprimento dos deveres que lhe incumbiam de vigilância e segurança daquele troço de auto-estrada, decorrentes do respectivo contrato de concessão celebrado com o Estado.

Face ao exposto – e não se desconhecendo as divergências sobre a questão da jurisdição competente para o conhecimento de casos de responsabilidade civil extracontratual como o dos autos, sublinhando-se, porém, que a jurisprudência maioritária, e mais recente, sustenta a competência dos tribunais administrativos – procede o fundamento do presente recurso por a sentença recorrida ter errado ao declarar a incompetência absoluta, em razão da matéria, do TAF de Braga para conhecer a presente acção administrativa comum e ao absolver da instância a Recorrida A... Norte – Auto-Estradas do Norte, S.A..

Em consequência, declara-se o TAF de Braga competente para conhecer a relação jurídica subjacente aos autos, a qual, considerando o pedido e a causa de pedir neles configurados, se enquadra na situação prevista no artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF que atribui aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a “Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” é da competência dos tribunais administrativos”.
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IV – DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, descendo os autos à 1ª instância para aí prosseguirem os respectivos trâmites.
Sem custas.
Notifique.
DN.
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Porto, 17 de Abril de 2015
Ass.: Alexandra Alendouro Ribeiro
Ass.: João Beato de Sousa
Ass.: Hélder Vieira