Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00374/12.0BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/01/2016
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:DISCIPLINAR. SUSPENSÃO PREVENTIVA. AGENTE DE EXECUÇÃO.
Sumário:I) – No processo disciplinar o direito de participação assume, quanto ao arguido, a modalidade qualificada de direito de audiência e defesa, consagrado no n.º 3 do artigo 269.º da Constituição, que dispõe que “em processo disciplinar são garantidas ao arguido a sua audiência e defesa”.
II) – Previa o Estatuto da Câmara dos Solicitadores [Dec.-Lei n.º 88/2003, de 26/04 (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 226/2008, de 20/11) o direito de audição antes de ser determinada suspensão preventiva - não menos se justificando aos casos de renovação -, daí não excluindo os agentes de execução.
III) – O princípio de presunção de inocência (art.º 32º, nº 2, da CRP) convive com a ponderação concreta e proporcional que, no caso, legitimou renovação da suspensão preventiva.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:JAS
Recorrido 1:Grupo de Gestão da Comissão para a Eficácia das Execuções
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
JAS, id. nos autos, interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Viseu, que julgou improcedente acção administrativa especial - tendo por objecto (originariamente e em ampliação) a impugnação de deliberações que renovaram suspensão preventiva - contra Grupo de Gestão da Comissão para a Eficácia das Execuções [Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça – Lei nº 77/20013, de 21/11].
Conclui da seguinte forma:

1ª Nos presentes autos está em causa a impugnação das decisões que, depois de terem suspendido preventivamente o arguido por três meses, prorrogaram essa medida cautelar por mais seis meses, num total de nove meses de suspensão preventiva.

2ª Salvo o devido respeito, os actos impugnados – que procederam às prorrogações das medidas cautelares foram proferidos ao abrigo de uma norma orgânica e materialmente inconstitucional o nº 4 do artº 165º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores -, pelo que o aresto em recurso incorreu em erro de julgamento, tendo, em violação do disposto no artº 204º da Constituição, aplicado norma inconstitucional.

3ª Na verdade, o nº 4 do artº 165º do ECS foi introduzido pelo DL nº 226/2008, o qual, por sua vez foi emanado ao abrigo da autorização legislativa dada pela Lei nº 18/2008, a qual, no entanto, não permitiu que fosse estabelecido um regime desviante em matéria de medidas cautelares relativamente ao regime comum dos trabalhadores públicos ou mesmo relativamente ao regime que já constava do nº 1 do artº 165º do ECS – que limitavam a medida cautelar de suspensão preventiva a um máximo de três meses -, pelo que é notória a inconstitucionalidade do nº 4 do artº 165º por ausência de autorização legislativa.

Acresce que,

4ª O nº 4 do artº 165º do ECS é ainda materialmente inconstitucional por violação do princípio da presunção da inocência, consagrado no nº 10 do artº 32º da Constituição, uma vez que legitima que quem se presume inocente possa estar suspenso preventivamente - e, como tal, privado do seu trabalho e do seu meio de subsistência - ad eternum ou, pelo menos, por mais de três anos - v. que o estatuto nem sequer estabelece um prazo máximo para a dedução da acusação ou para o encerramento do procedimento disciplinar, para além dos prazos ali enunciados serem meramente ordenadores, como é jurisprudência pacífica - o que, em muitas situações, é mais tempo do que aquele pelo qual pode ser punido com uma pena disciplinar, razão pela qual tal preceito é inconstitucional até por as medidas cautelares não poderem deixar de ter um prazo definido e previamente determinado (v., neste sentido, PAULO VEIGA E MOURA, in A Privatização da Função Pública, 2004, pag. 316).

Acresce que,

5ª É pacífico que “…é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido…” (v. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pág. 363), pelo que também a medida cautelar de suspensão de funções só será admissível se for acautelada a prévia audição do arguido (v., neste sentido, PAULO VEIGA E MOURA, in Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública, 2º ed., pág. 234).

Consequentemente,

6ª É ainda notório o erro de julgamento em que incorreu o aresto em recurso ao não anular os actos impugnados por violação do nº 1 do artº 165º do ECS que impõe que a medida cautelar de suspensão preventiva seja precedida da audiência do arguido -, sendo, aliás, verdadeiramente caricato que o Tribunal a quo assim tenha decidido com o argumento de que tal norma não é aplicável aos agentes de execução, sobretudo quando esse mesmo Tribunal fora bem claro ao reconhecer que lhes era aplicável o nº 4 daquele mesmo preceito – o que significaria que a parte desfavorável da norma era aplicável mas a parte favorável já não o era – e quando em parte alguma resulta da lei qualquer intenção de só aplicar aos agentes parte da normação ali consagrada.

Para além disso,

7ª A suspensão preventiva só pode ser decretada se a infracção imputada ao arguido puder ser punida com pena de suspensão ou superior (por força do disposto no nº 2 do art.º 165º do ECS, que remete para o art.º 142º do EC), pelo que sendo as deliberações impugnadas completamente omissas quanto à infracção que em abstracto poderia ser aplicável ao Recorrente – a qual, inclusive, até poderia ser inferior à pena de suspensão ou apenas legitimar uma suspensão por prazo inferior ao da duração das medidas preventivas -, é por demais manifesto não estarem reunidos os pressupostos exigidos pelos artºs 142 e 165º do ECS para se poder suspender preventivamente ou para prorrogar a medida cautelar de suspensão preventiva do Recorrente, pelo que o aresto em recurso enferma de erro de julgamento ao considerar improcedente semelhante vício.

Por fim,

Mesmo que por hipótese se entendesse que era constitucional a norma que permitia a prorrogação de uma medida cautelar para além dos 90 dias e que tal medida pudesse perdurar ad eternum ou por vários anos, a verdade é que, no mínimo, sempre se teria de considerar que a aplicação de tal medida e as suas prorrogações teriam de demonstrar estarem preenchidos no caso concreto os pressupostos de que depende a sua aplicação, o que é o mesmo que dizer que se teria de demonstrar que a infracção em causa era, em abstracto, punível com pena igual ou superior à pena de suspensão e, para além disso, ainda de demonstrar a razão pela qual se estava a prolongar por mais tempo essa mesma medida cautelar.

9ª Porém, as decisões impugnadas não só não referiam qual a pena que em abstracto podia corresponder à infracção imputada ao arguido – e que era pressuposto essencial para se saber se podia tal medida cautelar ser aplicável - , como nem sequer indicam um único motivo pelo qual se considera fundamental que se prolongue a medida cautelar por mais três meses e depois por outros três meses -, limitando-se a referir que “subsistirem dúvidas” e que há factos que “necessitam de esclarecimentos adicionais” (e que nem sequer se enunciam quais sejam) – pelo que era notório não estarem tais actos fundamentados em conformidade com o prescrito nos artºs 268º/3 da Constituição e 124º e 125º do CPA, daí resultando o erro de julgamento e que incorreu o Tribunal a quo ao julgar improcedente o vício de falta de fundamentação.

Foram apresentadas contra-alegações, que assim finalizam:

1.º - As deliberações da Entidade Requerida, de suspensão preventiva de funções do Recorrente como Agente de Execução e de bloqueio das movimentações a débito das contas clientes, foram tomadas ao abrigo do disposto nos arts. 124º, 125.º e 131.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (ECS).

2.º - Tais deliberações fundaram-se na existência de fortes indícios da prática de ilícitos disciplinares pelo Recorrente.

3.º - Do relatório elaborado após a 1.ª diligência de fiscalização extraordinária presencial à atividade do Recorrente – ordenada na sequência de participação relativa à conduta do Recorrente enviada pelo DIAP de Coimbra -, em 17/11/2011, resultaram fundadas dúvidas sobre a regular gestão das contas-clientes, falta de conciliação bancária entre as contas clientes de que o agente de execução é titular no Millennium BCP, e foi detetada a aplicação de multas ao Recorrente por diversos Magistrados Judiciais.

4.º - A Comissão de Fiscalização notificou o Recorrente para que este esclarecesse, por escrito, os movimentos a débito e a crédito assinalados nos extratos bancários, movimentos de € 31.223,67 (referente aos movimentos sinalizados da “Conta-clientes Executados2) e de € 220.556,30 (referente aos movimentos sinalizados da “conta-cliente antiga”).

5.º - A 16/12/2011, realizou-se a 2.ª diligência de fiscalização extraordinária presencial, tendo a Comissão de Fiscalização detetado novas irregularidades, como a existência de processos com saldo que seria insuficiente para liquidação das obrigações decorrentes do processo judicial, designadamente do processo n.º 76/07.0TBRSD.

6.º - A 12/01/2012, o Grupo de Gestão da Requerida analisou os 3 Relatórios Preliminares e Parciais da Comissão de Fiscalização (diligências de fiscalização de dias 17/11/2012, 09/12/2011 e 16/12/2011), e deliberou, por unanimidade instaurar processo disciplinar ao Recorrente.

7.º - Mais deliberou conceder ao Recorrente o direito ao contraditório, para esclarecer, corrigir ou sanar a irregularidade na movimentação relativa à eventual existência de saldo contranatura verificado na conta-cliente do Millennium (conta-cliente antiga) decorrente do Processo Judicial n.º 76/07.0TBRSD, sob pena de imediata suspensão preventiva de exercício das suas funções de Agente de Execução.

8.º - A resposta do Recorrente não foi considerada bastante para cumprimento da correção e sanação da acima referida falta de provisão/saldo contranatura da conta-corrente do Processo Judicial n.º 76/07.0TBRSD, porque o Recorrente não repôs a quantia em falta, nem remeteu à CPEE os comprovativos e/ou a justificação dos movimentos que efetuou, apesar de notificado para tanto.

9.º - Confessou o Recorrente que no âmbito da sua atividade não pratica qualquer conciliação bancária, e que o saldo bancário da conta-cliente n.º 45248027568, do Millennium BCP, em 31/10/2011, era de apenas € 79.548,62, faltando o remanescente até perfazer, pelo menos, os € 130.000,00 afetos ao referido processo judicial n.º 76/07.0TBRSD.

10.º - Mais confessou o Recorrente que utilizara dinheiro recebido no âmbito do referido processo judicial para, alegadamente, pagar quantias em outros três processos judiciais, afirmando que tal diferença seria “compensada” porque os pagamentos desses processos judiciais estariam “assegurados”, o que se veio a constatar ser falso.

11.º - Pelas razões descritas, a 19/01/2012, o Grupo de Gestão deliberou por unanimidade, aplicar ao Recorrente a medida cautelar de suspensão preventiva de funções, com bloqueio a débito das contas-clientes e respetivos movimentos, pelo período de três meses.

12.º - Tal decisão fundou-se nos indícios de falta de provisão e irregularidades na movimentação das contas-clientes do Recorrente, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 1/2012.

13.º - Deliberado foi ainda instaurar 2.º Processo Disciplinar, atenta a existência de indícios da prática de infrações disciplinares, em especial, a infração disciplinar prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 131.º-A do ECS, processo que se deveria apensar ao Processo Disciplinar n.º 1/2012, em curso.

14.º - A 26/01/2012, o Grupo de Gestão da Requerida deliberou por unanimidade, por falta de esclarecimento cabal das movimentações irregulares detetadas nas contas-clientes do Recorrente, a manutenção das Deliberações de aplicação das medidas cautelares de suspensão preventiva e de bloqueio a débito das contas-cliente do Recorrente, dada a gravidade dos factos em causa.

15.º - Foi então deliberado instaurar o 3.º Processo Disciplinar contra o Recorrente, atenta a existência de indícios da prática de infrações disciplinares, em especial da prevista no n.º 1 do artigo 125.º do ECS, a apensar ao Processo Disciplinar n.º 1/2012.

16.º - Tal decisão resultou de, na análise do extratos bancário manual da conta-clientes n.º 4524 8027 568 (“Conta-cliente antiga”) remetido em 25/01/2012 pelo Banco Millennium BCP, no período entre os dias 01/11/2011 e 25/01/2012, ter resultado a existência de outros 20 movimentos a débito, com a descrição “TRF P/ JOSE ANSELMO F SEIXAS CS” ou “TRF P/ANSELMO SEIXAS”, sem qualquer descrição relativamente aos processos judiciais a que se referiam, no valor de € 31.340,30.

17.º - Em face da complexidade da matéria objeto do Processo Disciplinar n.º 1/2012 e do acervo de documentação sob análise no mesmo, em 12/04/2012, o Grupo de Gestão da Entidade Requerida aprovou por unanimidade, em concordância com os fundamentos e as propostas constantes da Informação n.º 10/ALR/2012, de 12 de Abril, as deliberações impugnadas.

18.º - O A. manifestou grave inépcia na gestão das suas contas-clientes, colocando em perigo, em especial, o saldo ainda existente na “Conta-cliente antiga”, na qual são depositados todas as quantias destinadas a preparos, despesas e honorários do Agente de Execução e todos os montantes pecuniários resultantes das penhoras efetuadas aos devedores/Executados.

19.º - Foi, pois, considerada a existência de indícios da prática dos seguintes e ilícitos disciplinares pelo A. “(n)ão ter contabilidade organizada, nem manter as contas-clientes segundo o presente Estatuto e o modelo e regras aprovados pela Câmara” (art. 131.º-A/2/e, por violação do disposto no art. 124.º/4 do ECS) e a “(f)alta de provisão em qualquer conta-clientes ou se houver indícios de irregularidade na respectiva movimentação” (art. 125.º/1 do ECS).

20.º - Tornava-se imperioso assegurar e acautelar que o Recorrente não prosseguisse a atividade indiciária de prática de ilícitos disciplinares que vem exercendo, até estarem devidamente esclarecidos os factos quer em sede do Processo de Fiscalização, quer no âmbito do Processo Disciplinar.

21.º - Houve, pois, fortes e evidentes razões para suspender preventivamente o Recorrente, que foi ouvido sobre as razões que levaram à sua suspensão, tendo prestado os esclarecimentos que entendeu, mas que a Ré considerou insuficientes.

22.º - Entretanto, o Recorrente impediu que o agente de execução liquidatário liquidasse os seus processos, não lhe tendo feito entrega do suporte físico dos processos judiciais, impedindo que fossem apurados com certeza os valores a serem repostos.

23.º - Por Deliberações de 14/7, a CPEE renovou as medidas cautelares de suspensão e bloqueio de contas, por se manterem os fundamentos de facto e de direito que haviam levado à anterior aplicação de tais medidas cautelares, por os esclarecimento prestados pelo aqui Recorrente não contrariarem tais fundamentos e, por tanto, ser necessário acautelar que o Recorrente não prosseguisse a atividade indiciária de prática de ilícitos disciplinares.

24.º - O n.º de processos disciplinares instaurados ao Recorrente – 3 -, a complexidade das matérias a investigar, a continuação do processo e fiscalização, a falta de colaboração deste e mesmo oposição, que levou ao arrastamento temporal da fiscalização, manifestamente afastam qualquer desproporcionalidade na suspensão preventiva aplicada e sua duração.

25.º - Sobre o Recorrente recaía o ónus de fazer cessar a suspensão preventiva, mas ao invés apenas fez prolongar no tempo mo processo de fiscalização e, dessa forma, a suspensão preventiva, pelo que atua com manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando ora invoca o decurso de tempo desde o início da suspensão.

26.º - A suspensão preventiva durante a pendência do processo disciplinar traduz-se numa medida cautelar cuja razão de ser reside em considerações de ordem funcional e de ordem processual e não representa um imediato juízo de censura.

27.º - O princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32º, nº 2 CRP) não preclude, por si só, a existência de medidas cautelares, só ocorrendo a violação desse princípio quando a aplicação da medida é automática, isto é, independente de qualquer juízo sobre a sua necessidade em concreto, o que não aconteceu, nem tal vem invocado.

28.º - O levantamento da medida cautelar de bloqueio da movimentação dos montantes pecuniários para qualquer conta bancária exteriores às contas-clientes de Agente de Execução, mesmo que por horas ou dias, permitindo-se a total movimentação a débito, poderia originar a “bancarrota” do exercício da atividade do Recorrente impossibilitando ou mesmo agravando o pagamento devido aos Exequentes nos processos judiciais a seu cargo.

29.º- O n.º 4 do art. 165.º do ECS, única regra deste artigo aplicável aos agentes de execução, permite a extensão da suspensão exatamente por ter em conta que estes têm necessariamente outra profissão além desta.

30.º - O processo disciplinar aplicável ao agente de execução, que não é necessariamente solicitador de execução (pode ser advogado), realidade que o Recorrente parece esquecer, tem regras próprias, pelo que o previsto no art. 125.º do ECS prevalece sobre o disposto no art. 165.º, n.º 1.

31.º - Ora, é o art. 125.º que estabelece, de forma imperativa, os requisitos de que se mostra dependente a aplicação das medidas cautelares de suspensão preventiva e bloqueio das contas-clientes, e esses foram cumpridos pela Recorrida.

32.º - Em qualquer caso, o Recorrente foi ouvido em declarações, em diversos momentos, pelo que não houve qualquer violação do princípio do contraditório ou da audição prévia.

19. As considerações acima feitas sobre a não aplicação do n.º 1 do art. 165.º do ECS valem para o n.º 2 do mesmo artigo.

33.º - Se o art. 125.º do ECS permite a suspensão imediata, antes mesmo de haver acusação, sendo que é nesta que se pode concluir por uma proposta de aplicação de pena, a pretendida aplicação do n.º 2 do art. 165.º a este caso é mesmo uma impossibilidade lógica.

34.º - Como resulta do art. 125.º e foi bem decidido pela sentença recorrida, “(s)ó com a acusação é que era exigível fazer-se alusão às penas aplicáveis em abstrato e ao prazo para a apresentação da defesa, conforme resulta do artigo 164º, nº 1, do ECS.

As deliberações impugnadas não precisavam de fazer alusão à pena disciplinar que poderia ser aplicada ao A., bastando-se com a constatação da manutenção da falta de provisão em qualquer conta-cliente ou da manutenção dos indícios de irregularidade na respetiva movimentação”.

35.º - Em qualquer caso, as infrações imputadas ao Recorrente são obviamente passíveis de aplicação da pena de suspensão, dada a sua gravidade, já exposta.

36.º - A invocada falta de fundamentação para a prorrogação das medidas cautelares é afastada quer pelo conteúdo das próprias deliberações que a decretaram, que claramente expõem as razões que as fundam, quer ainda pelo circunstancialismo que as rodearam - complexidade dos processos, gravidade das infrações imputadas, falta de colaboração do Recorrente e mesmo impedimento deste à descoberta da verdade

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O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 146º, nº 1, do CPTA, nada deu em parecer.
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Cumpre decidir, dispensando vistos.
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Os factos, a ter em consideração, são os elencados como provados na decisão recorrida, para onde se remete (art.º 663º, nº 6, do CPC).
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O direito:
O recurso lança crítica à decisão recorrida, que julgou totalmente improcedente a acção, mantendo na ordem jurídica os actos impugnados.
Suscitando questões que vão agrupadas sob as epígrafes seguintes.
Inconstitucionalidade orgânica (art.º 165º, nº 4, do ECS).
É a primeira questão que o recorrente lança a terreiro.
Trata-se de questão nova.
“Os recursos são específicos meios de impugnação de decisões judiciais, que visam modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova. Por isso, e em princípio, não se pode neles tratar de questões que não tenham sido apreciadas pela decisão impugnada, salvo questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado.” – cfr. Acs. do STA, de 13-11-2013, proc. nº 01460/13; de 05-11-2014, proc. nº 01508/12.
O que ainda recentemente este TCAN reiterou (Acs. de 06-03-2016, procs. nºs 794/09.8BEBERG, 480/10.6BEPRT, e 594/11.5BEPRT).
Não há lugar à aquisição de um novo conhecimento sobre os vícios do acto [“Os arts. 95º nº2 do CPTA e 660º nº2 do CPC inscrevendo-se nos respectivos diplomas, na fase da decisão em primeira instância, não se aplicam aos Tribunais de recurso, cuja actividade está vinculada ao conhecimento do objecto do recurso, dentro dos limites objectivos legalmente impostos, designadamente dos que resultam, desde logo, do valor da causa, da natureza da matéria, das conclusões vertidas nas alegações de recurso” – Ac. do STA, Pleno, de 15-11-2012, proc. nº 0159/11; tb. Ac. do STA, de 14-05-2015, proc. nº 0521712].
Assim, rejeita-se conhecimento.
Audição do arguido
Entende o recorrente que o tribunal “a quo” errou ao considerar inaplicável o direito de audição previsto no art.º 165º, nº 1, do ECS, direito que também considera constitucionalmente consagrado ao caso por força do art.º 32º, nº 10 da CRP.
Vejamos.
A decisão recorrida deixa, no ponto, algum equívoco.
Recordemos o que se encontra exarado na decisão recorrida, em que se reflectiu primeiro a propósito “Da alegada inconstitucionalidade do nº 4, do artigo 165º, do ECS” e depois “Da alegada violação do nº 1, do artigo 165º do ECS”, nos seguintes termos:
«(…)
A medida de suspensão preventiva só é aplicada quando a irregularidade não for corrigida ou sanada nas quarenta e oito horas a contar da data em que o agente de execução se considerar notificado, nos termos do artigo 125º, nº 2, do ECS e do artigo 8º, da Portaria nº 2/2012, de 2/01, o que foi observado aquando da aplicação da medida cautelar ao A. (alíneas E) e F) do probatório).
Enquanto que no procedimento disciplinar aplicável aos solicitadores em geral, a suspensão preventiva só pode ser aplicada depois de proferida a acusação e após a audição do arguido (Regulamento Disciplinar da Câmara dos Solicitadores nº 91/2007, de 24/05, Capítulo VII, Secção I, já supra transcrito), na ação disciplinar exercida sobre os agentes de execução tal não é assim.
Nesta, basta a falta de provisão em qualquer conta-clientes ou haver indícios de irregularidades na respetiva movimentação, que não sejam corrigidas ou sanadas no prazo legal, para se justificar a aplicação de medidas cautelares ao agente de execução.
A notificação para corrigir ou sanar as irregularidades não corresponde ao exercício do direito de audiência previsto na lei, o legislador não lhe atribuiu tal sentido, procurou antes dar a possibilidade ao agente de execução de regularizar a situação em prazo muito curto, com vista a impedir a paragem dos processos executivos que estivessem a seu cargo, criando a pensar nisso a medida consagrada no artigo 8º, nº 4, da Portaria nº 2/2012, de 2/01 [“A decisão de aplicação pela CPEE da medida cautelar de suspensão preventiva de funções de agente de execução por mais de 10 dias é directamente executada pela CPEE no SISAAE, o que implica a desassociação do agente de execução suspenso preventivamente de funções de todos os processos judiciais a seu cargo e a agregação do agente de execução designado pela CPEE para assumir a responsabilidade das execuções em curso e gestão das respectivas contas-clientes, ficando a informação disponível para consulta no respectivo processo.”], no caso de ser aplicada ao agente de execução uma medida cautelar de suspensão superior a dez dias, o que aconteceu nos autos.
Por maioria de razão, na ação disciplinar exercida contra os agentes de execução o direito de audição é garantido depois de proferida a acusação e não antes.
Diga-se, no entanto, quanto à renovação, e porque estamos na fase instrutória, que se considera ouvida a pessoa a quem for dada oportunidade para prestar declarações sobre determinado facto ou imputação e que, por razões não consideradas justificadas, não tenha prestado declarações sobre os mesmos (artigo 19º, nº 3, do Regulamento nº 91/2007, de 24/05).
(…)
Preceitua o artigo 165º, nº 1, do ECS, que «1 - Após a audição do arguido, ou se este, notificado, não comparecer para ser ouvido, pode ser ordenada a sua suspensão preventiva, mediante deliberação tomada por maioria qualificada de dois terços dos membros em efectividade de funções do órgão competente.».
O que está em causa nestes autos são as decisões de renovação das medidas cautelares aplicadas ao A. (alíneas M) e P) do probatório).
A interpretação do direito aplicável permite-nos concluir que, em sede de aplicação e renovação de medidas cautelares aplicadas aos agentes de execução, apenas se impõe, quando à aplicação, conferir ao agente de execução o direito de sanar ou corrigir irregularidades num prazo muito curto (48 horas) e, quanto à renovação, atento o preceituado no artigo 19º, nº 3, do Regulamento nº 91/2007, de 24/05, o A. foi ouvido, porque prestou declarações (alíneas L), M), N) e P) do probatório).
Depois de aplicadas as medidas cautelares, o A. pronunciou-se no procedimento disciplinar em curso, nos dias 20, 27 e 30 de janeiro de 2012, prestou declarações no processo em 28/02/2012 e neste dia foi notificado para proceder à junção ao processo de vários elementos, o que fez em 8/03/2012, juntando ao processo disciplinar um requerimento e diversa documentação (alínea M) do probatório).
Na esteira do disposto no artigo 269º, nº 3, da CRP, estabelece o artigo 42º, nº 1, do Regulamento 91/2007, de 24/05, que «Em processo disciplinar apenas constitui nulidade insuprível a falta de audição do arguido sobre factos constantes da acusação, cujas infracções sejam suficientemente individualizadas como factos concretos.», mostrando-se assim assegurado no processo disciplinar o direito de audiência, no entanto, no caso dos autos, ainda não tinha sequer sido deduzido qualquer despacho de acusação contra o A..
Pelo exposto, improcede o vício invocado.
(…)».

Vejamos.
Previa o Estatuto da Câmara dos Solicitadores [Dec.-Lei n.º 88/2003, de 26/04 (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 226/2008, de 20/11);teve este regime posteriores alterações, que ao caso não interessam (Lei n.º 154/2015, de 14/09 - Transforma a Câmara dos Solicitadores em Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, e aprova o respetivo Estatuto, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.)]:
Artigo 165.º
Suspensão preventiva
1 - Após a audição do arguido, ou se este, notificado, não comparecer para ser ouvido, pode ser ordenada a sua suspensão preventiva, mediante deliberação tomada por maioria qualificada de dois terços dos membros em efectividade de funções do órgão competente.
2 - A suspensão a que se refere o número anterior só pode ser decretada nos casos em que à infracção disciplinar corresponda uma das sanções previstas nas alíneas e) a h) do n.º 1 do artigo 142.º
3 - A suspensão preventiva não pode exceder três meses e é sempre descontada nas penas de suspensão.
4 - No caso dos agentes de execução, a decisão de suspensão preventiva pode ser renovada pelos órgãos competentes até à decisão final do processo, desde que limitados os seus efeitos à actividade de agente de execução.

Nesta sede - fique já elucidado - não está qualquer questão de in/constitucionalidade, antes se reclama directa protecção constitucional, ancorada no art.º 32º, nº 10 da CRP : «Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.».
Não tem o recorrente razão na sua convocação.
Reiterando jurisprudência uniforme, lembra-se no Ac. do Trib. Const. nº 345/2015, de 23/06/2015, que :

«(…) este tribunal já se pronunciou sobre o âmbito da garantia consagrada naquele n.º 10 do artigo 32.º da CRP. No Acórdão n.º 33/2002 afirmou-se que:
“(…) a norma que se surpreende no nº 10 do artigo 32º da Constituição (que, a partir da Revisão Constitucional decorrente da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro, passou a assegurar os direitos de audiência e defesa em todos os processos sancionatórios, e não apenas nos processos de contraordenação), nada veio a acrescentar ao que já se prescrevia na versão da Lei Fundamental anterior àquela Revisão relativamente aos procedimento disciplinar efetuado no âmbito da Administração Pública. De facto, no nº 3 do artigo 269º estabelece-se, como já se estabelecia, que em processo disciplinar são garantidas ao arguido as suas audiência e defesa. E daí que se conclua que a inclusão, levada a efeito no falado nº 10 do artigo 32º, do asseguramento dos direitos de audiência e defesa nos processos sancionatórios não tem o significado de fazer atrair o regime destes processos em geral, e do processo disciplinar em especial, para o regime do processo criminal.”
E, no Acórdão n.º 135/2009, afirma-se, a propósito da referida norma, que:
“(…) a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assem­bleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
Mas, como se reconheceu nesse Acórdão n.º 659/2006, é óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio.(…)».

É antes esta a correcta perspectiva de equação.
Como se escreve no Ac. do Trib. Const. nº 499/2009, de 30/09/2009, «no processo disciplinar o direito de participação assume, quanto ao arguido, a modalidade qualificada de direito de audiência e defesa, consagrado no n.º 3 do artigo 269.º da Constituição, que dispõe que “em processo disciplinar são garantidas ao arguido a sua audiência e defesa».
De um modo geral, a doutrina e a jurisprudência reconhecem, em sede de medidas provisórias - como no caso -, um «Aligeiramento de tramitação, por não serem necessários trâmites destinados a satisfazer as garantias de contradição ou “contraditório”, asseguradas aos interessados a propósito da decisão final (art. 100.º)» (cfr. Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco Amorim, in “Código do procedimento Administrativo”, Comentado, 2ªed.ª, Almedina, 2007, pág. 406).
No caso em mãos acentua-se que estamos em domínio sancionatório.
Ainda assim, o peso garantístico é menor que em processo penal.
E mesmo nesse, excluída a audiência de julgamento, nas restantes fases processuais é reconhecida ao legislador uma “margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório” (cfr. Ac. do Trib. Const. n.º 278/99, de 5/5/1999), devendo a aferição do respeito pelas garantias de defesa ser perspectivada, encarando globalmente o processo e não atomisticamente cada uma das suas fases (cfr. Ac. do Trib. Const. n.º 339/2005, de 22/06/2004).
Seja como for, julga-se que na previsão da lei ordinária que aqui interessa – art.º 165º do ECS - o direito de audição está consagrado.
[Não estando em causa o acerto de afirmação na decisão recorrida de que “no procedimento disciplinar aplicável aos solicitadores em geral, a suspensão preventiva só pode ser aplicada depois de proferida a acusação”, sempre se observa que, nos termos do art.º 165º, nº 1, do ECS, pode ser ordenada a suspensão preventiva após dada oportunidade de audição, e que essa audição tem lugar ainda na fase de instrução do processo (art.º 162º, nº 5, do ECS).]
Nos seus termos e intenções, a este nível sem particularidades ou especialidades em relação a outros sujeitos que por aí podem ser abrangidos por pena de suspensão, – ademais não confundindo o que seja medida cautelar de bloqueio de contas clientes, com a medida de suspensão preventiva (que a Entidade Administrativa cuidou de distinguir) -, não vemos qualquer subsídio interpretativo para o arredar no caso dos agentes de execução.
Consagrado que está o direito de audição para efeitos de poder ser decretada suspensão preventiva, não menos se justifica aos casos de renovação.
Portanto, sem prejuízo do que por lei justifica a dispensa de audiência, seria no caso de observar participação do interessado.
Ora, como também se refere no supra citado Ac. do Trib. Const. nº 499/2009, «é suficiente (embora também necessário) que o interessado tenha sido colocado em posição de fazer valer perante o órgão decisor a sua perspectiva sobre todos os elementos do procedimento (de direito ou de facto) que sejam relevantes para a decisão».
A decisão recorrida - mesmo que acrescendo o que, viu-se já, é permeável à crítica - acabou por concluir, no caso, ter ocorrido participação do interessado.
E julgou acertadamente.
A narrativa do procedimento, presente nos factos provados, revela o que foi participação, que efectivamente ocorreu; cabe o queixume do recorrente contra a circunstância de se ter concluído “subsistirem dúvidas” e que há factos que “necessitam de esclarecimentos adicionais” em fruto, precisamente, da sua participação (na óptica da Administração sem conduzir a uma cabal justificação).
Inconstitucionalidade materialpresunção de inocência.
Entende o recorrente que sai ferida presunção de inocência.
A Constituição da República Portuguesa consagra, ente as «Garantias de processo criminal», que «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.» (art.º 32º, nº 2, da CRP).
«Tem-se admitido, em todo o caso, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os previstos nos artigos 29.º e 32.º da CRP, apesar de se restringirem no seu teor literal ao direito criminal, devam valer, no essencial, e por analogia, para todos os domínios sancionatórios: o princípio da legalidade das penas, o princípio da não retroatividade e o princípio da lei mais favorável ao arguido e o princípio da culpa (acórdãos do TC n.ºs 161/95, 227/92, 574/95 e 160/2004). A jurisprudência constitucional tem igualmente admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção de inocência do arguido, como decorrência do direito a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio in dubio pro reo, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação (…)» (Ac. do Trib. Const. nº 62/2016, de 03-02-2016).
Citando anterior jurisprudência, lembra o Tribunal Constitucional que o “princípio da presunção de inocência dos arguidos, consagrado expressamente para o processo criminal no artigo 32º, nº 2, da Constituição é “igualmente válido, na sua ideia essencial, nos restantes domínios sancionatórios e, agora, em particular, no domínio disciplinar” (Ac. nº 327/2013, de 12/06/2013).
Como se sabe, a suspensão preventiva no domínio disciplinar tem sido considerada medida cautelar.
Assim, numa primeira abordagem, poderíamos ser levados a afirmar que tal medida não se funda numa presunção de culpabilidade, não está prevista como lógica de antecipação da condenação do arguido, não brigando com a presunção de inocência (cfr., em paralelo, o Parecer do CC da PGR nº P000261988, votado em 10-11-1988).
Mas as coisas não são assim tão simples.
Na determinação do princípio da presunção de inocência, Gomes Canotilho e Vital Moreira apontam, como decorrências do seu conteúdo, as seguintes concretizações: (a) proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; (b) preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; (c) exclusão da fixação da culpa nos despachos de arquivamento; (d) não incidência de custas sobre o arguido não condenado; (e) proibição da antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares (cfr. AcTC n.º 198/90); (f) proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal; (g) natureza excecional e de última instância das medidas de coação, sobretudo as limitativas ou proibitivas da liberdade; (h) princípio in dubio pro reo, implicando a absolvição em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, pág. 518).
No confronto entre as necessidades cautelares e a presunção de inocência o Tribunal Constitucional tem obtido ponto de equilíbrio por intervenção do princípio da proporcionalidade.
Assim, p. ex., no Ac. nº 439/87, de 04/11/87, o Tribunal afirmou que «essa garantia não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação. A própria prisão pre­ventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso de «flagrante delito» ou «por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior» [artigo 27º, nºs 2 e 3, alínea a)]. A suspensão só será constitucionalmente ilegítima quando viole o princípio da proporcionalidade, «o qual - como se lê no citado acórdão nº 282/86 - encontra afloramento no artigo 18º, nº 2, da CRP e sempre há-de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2º da CRP)».
Também no Ac. nº 273/2016, de 04-05-2016, sublinhou que «não merece acolhimento o entendimento que perspetive, sem mais – isto é, sem ponderação de proporcionalidade -, a medida em apreço como implicando a transposição de um juízo probatório penal para o campo disciplinar, ou lhe associe um efeito antecipatório da aplicação de uma sanção, principal ou acessória.».
Vejamos, pois.
Previa o Estatuto da Câmara dos Solicitadores:
Artigo 125.º
Falta de provisão ou irregularidade na conta-clientes
1 - É imediatamente instaurado processo disciplinar no caso de se verificar falta de provisão em qualquer conta-clientes ou se houver indícios de irregularidade na respectiva movimentação.
2 – No caso previsto no número anterior, se a irregularidade não for corrigida ou sanada nas quarenta e oito horas a contar da data em que o agente de execução se considerar notificado, o Grupo de Gestão da Comissão para a Eficácia das Execuções determina as medidas cautelares que considere necessárias, podendo ordenar a sua suspensão preventiva, designando outro agente de execução que assuma a responsabilidade das execuções em curso e a gestão das respectivas contas-clientes.
3- (…)
4- (…)
Artigo 165.º
Suspensão preventiva
1 - Após a audição do arguido, ou se este, notificado, não comparecer para ser ouvido, pode ser ordenada a sua suspensão preventiva, mediante deliberação tomada por maioria qualificada de dois terços dos membros em efectividade de funções do órgão competente.
2 - A suspensão a que se refere o número anterior só pode ser decretada nos casos em que à infracção disciplinar corresponda uma das sanções previstas nas alíneas e) a h) do n.º 1 do artigo 142.º
3 - A suspensão preventiva não pode exceder três meses e é sempre descontada nas penas de suspensão.
4 - No caso dos agentes de execução, a decisão de suspensão preventiva pode ser renovada pelos órgãos competentes até à decisão final do processo, desde que limitados os seus efeitos à actividade de agente de execução.

Como se vê, não tem o autor/recorrente razão em imputar a falta de previsão de um prazo, ou de um prazo máximo: a cada renovação impõe-se prazo fixado em lei que não pode exceder três meses; a decisão de suspensão preventiva pode ser renovada pelos órgãos competentes até à decisão final do processo.
Poderá ter-se este último como relativamente indeterminado, mas ainda assim nunca se poderá ter “ad eternum”, pois sempre terá em salvaguarda o limite de prescrição do procedimento.
O recorrente não deixa de refutar, observando que, ainda assim, poderá um arguido estar suspenso preventivamente até por mais que três anos, podendo mesmo acontecer que até venha a ser punido com penas mais leves que a de uma suspensão por tal medida de tempo.
Todavia.
No caso, depois de um primeiro decretar da suspensão preventiva (de 19/01/2012 a 18/04/2012), através das deliberações nºs. 252 a 254, o Grupo de Gestão da CPEE deliberou a renovação da suspensão preventiva (M) do probatório - pelo período previsto de três meses, com início a 19/04/2012 e em vigor até 18/07/2012,), a que se seguiu nova renovação da suspensão preventiva (P) do probatório – pelo período previsto de três meses, com início a 19/07/2012 e em vigor até18/10/2012, período que se não completou).
Haverá que ter presente que a impugnação tem como objecto as renovações de suspensão preventiva, não alcançando (enquanto objecto autónomo) a(s) pretérita(s) deliberação(ões) que inicialmente a(s) impôs; nem concomitante medida cautelar de bloqueio de contas-cliente.
E que estamos em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade.
O autor/recorrente insurge-se quanto ao tempo que foi imposto pelas renovações, ultrapassando tempo limite previsto noutras soluções normativas “congéneres” (a expressão é nossa) que tanto não possibilitam.
Não chega, porém, a ser tempo “ad eternum” ou de três anos.
No caso em presença, deve lançar-se mão do princípio da interpretação em conformidade com a Constituição, enquanto princípio de conservação de normas.
Essa interpretação conforme, na envolvente em que tudo se passa, admite que, sem sair ferida proporcionalidade que acima vimos ser de acautelar, o agente de execução possa ver a suspensão preventiva prorrogada pelo tempo que “in casu” se confronta, bem inferior ao hiperbolizado.
Há que ver que a suspensão preventiva confina “os seus efeitos à actividade de agente de execução (cit. art.º 165º, nº 4).
Mais, ainda, “sendo certo que o solicitador de execução exerce funções próprias de oficial público (José Lebre de Freitas, “Agente de Execução e Poder Jurisdicional”, Themis, Ano IV, n.º 7, 2003, p. 26; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 2010, p. 140; Miguel Teixeira de Sousa, “Novas tendências de desjudicialização na ação executiva: o agente de execução como órgão da execução”, Cadernos de Direito Privado, n.º 1, dezembro de 2010, p. 8), a verdade é que as exerce episodicamente e como profissional liberal.” (Ac. Trib. Const. nº 199/2012, de 24/04/2012).
Isto em domínio de relevância de uma competência que é atribuída aos agentes de execução no processo executivo – incluindo a prática de actos fundamentais como a penhora, a venda e o pagamento – que (ainda) respeita a um sistema que se quer de boa Administração da Justiça, e que interfere com as posições de terceiros que ao Estado incumbe garantir.
Na “relação concretamente existente entre a carga coactiva decorrente da medida adoptada e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar” (Ac. do Trib. Const. nº 632/2008, de 23/12/2008) – não esquecendo a “prerrogativa de avaliação”, o “crédito de confiança” que há-de ser reconhecido no exercício legiferante - o princípio da proporcionalidade aflora ainda como preservado, também face ao princípio da presunção de inocência, quando se admita que a suspensão preventiva possa ser prorrogada pelo tempo em que no caso o foi.
Posto, também, que não deixe de ser feita uma avaliação concreta da medida.
O que suscita resolução da questão seguinte.
Da fundamentação e pressupostos habilitantes
O recorrente aponta falta de fundamentação, basicamente por: (i) não se demonstrar a razão pela qual se estava a prolongar por mais tempo essa mesma medida cautelar; (ii) não se referir qual a pena que em abstracto podia corresponder à infracção imputada ao arguido.
Não tem razão.
É transversal em todo o discurso que renovou a suspensão preventiva que sempre presidiu indício de infracção disciplinar prevista no art.º 131º-A, nº 2, e), do Estatuto: “Não ter contabilidade organizada, nem manter as contas-clientes segundo o presente Estatuto e o modelo e regras aprovados pela Câmara”.
Não se pode minorar, imputando-se que este tem lugar «limitando-se a referir que “subsistirem dúvidas” e que há factos que “necessitam de esclarecimentos adicionais” (e que nem sequer se enunciam quais sejam)».
Antecede-lhe toda uma fundamentação que permite compreender quais as dúvidas que ocorrem, que os esclarecimentos do autor/recorrente não dissiparam, estando perfeitamente ao alcance do mesmo a compreensão do que poderia remover essas dúvidas.
A razão da(s) renovação(ões) da suspensão preventiva, a necessidade de prolongar tal medida cautelar, estão muito concretamente identificadas; são pormenorizando quais as contas-clientes e o que sobre essas contas ocorria, indiciando infracção, bem o que de pertinente mas insuficiente o arguido tinha trazido de elementos; e é racionalmente suportada essa inconcludência; ajuizou-se que, assim sendo, a necessidade que presidiu ao decretamento da suspensão provisória se mantinha, justificando renovação.
A fundamentação é, pois, clara, suficiente, congruente.
Não tinha de referir qual a pena que em abstracto podia corresponder à infracção, quando se não trata de formulação de acusação disciplinar.
Não se vê qual a exigência, de lei ou princípio, que impusesse de outro modo.
De todo o modo, está implícito o leque possível de sanções que ao caso poderiam caber, pois que em caso de suspensão preventiva ela está prevista para os casos em que “corresponda uma das sanções previstas nas alíneas e) a h) do n.º 1 do artigo 142.º” (art.º 165º, nº 2, do ECS), prevendo hipóteses que vão da suspensão até à expulsão.
Horizonte que, face aos critérios constantes do art.º 145º, nºs. 5 e 6, do ECS, era de tomar em consideração.
Não é, pois, com base na falta de indicação de qual a pena (abstractamente) aplicável, que se podem ter como afastados os pressupostos que habilitavam ao seu decretamento; leia-se, no caso, à sua renovação.
Não saindo violadas as disposições legais apontadas.
Concluindo, deverá ser negado provimento ao recurso.
*
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelo recorrente.
Porto, 1 de Julho de 2016.
Ass.: Luís Migueis Garcia
Ass.: Alexandra Alendouro, em substituição
Ass.: Rogério Martins