Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Tributário
Contencioso:TRIBUTÁRIO
Data:05/02/2007
Processo:01746/07
Nº Processo/TAF:358/05.5BELSB
Magistrado:CARLOS BATISTA
Descritores:AQUISIÇÃO A TÍTULO ONEROSO DE PARTES SOCIAIS
CESSÃO DE QUOTA
PREÇO CONSTANTE DA ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA DA ESCRITUA PÚBLICA
Texto Integral:Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores


O Ministério Público vem emitir parecer nos termos seguintes:


1 - J ..... veio interpor recurso da douta sentença proferida pelo Mº Juiz do TAF de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial que havia deduzido contra a liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2000, no montante de € 146 618,35, acrescida de juros compensatórios no valor de € 27 162,55.

Após alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1.ª Entende o Tribunal Recorrido que a pretensão do então Impugnante, ora Recorrente, não pode proceder porquanto a escritura pública de cessão de quotas celebrada em 1993 não consubstancia um elemento idóneo, nos termos do artigo 48.° do CIRS, para demonstrar o valor de aquisição da quota inscrito na respectiva declaração de rendimentos do ano de 2000;

2.ª Por outro lado, invoca aquele Tribunal que, na data em que os meios de pagamento utilizados na transacção foram solicitados pelos serviços da AT, não havia ainda decorrido o prazo de 5 anos previsto no artigo 48.° do CIRS, não assistindo, por isso, ao Recorrente para sustentar a ilegalidade da aquisição;

3.ª Não pode o Recorrente conformar-se com aquele entendimento porquanto por um lado, a escritura pública, enquanto documento autêntico, consubstancia um documento idóneo para efeitos de demonstrar o valor de aquisição da quota, nos termos do artigo 128.° do CIRS;

4.ª Pelo que, tendo o Recorrente apresentado a escritura pública de aquisição da quota realizada em 1993, competia aos serviços da AT demonstrarem, ao abrigo dos artigos 74.° e 74.° da LGT, que o referido valor não correspondia ao valor praticado, prova essa que os referidos serviços não realizaram;

5.ª Por outro lado, também não incorria sobre o Recorrente qualquer obrigação de apresentação, à data em que os meios de pagamento utilizados na escritura de aquisição da quota foram solicitados (2003) porquanto já tinha decorrido o prazo de 5 anos previsto no artigo 128.° do CIRS;

6.ª Com efeito, não existindo á data nenhuma obrigação legal de comunicar aos serviços da AT a aquisição da quota, porquanto essa obrigação inexiste quando se trate de negócio com intervenção notarial, o que é o caso vertente, a data para apresentação dos documentos, nos termos do art. 128.° do CIRS, terá terminado em 1998;

7.ª Por todo o exposto, não se pode deixar de concluir pela ilegalidade de que enferma o acto tributário em questão, devendo o mesmo ser anulado, bem como a sentença recorrida ao pugnar pela sua manutenção”.

2 – Na douta sentença recorrida, deu-se como provado:

“1) No âmbito de uma informação realizada pela IGF, que incidiu sobre a eventual prática de infracções de natureza tributária na aquisição da sociedade "N ..... , Lda.", em 20/12/2000, pelo valor de € 1.496.363,69 foi efectuada uma acção de inspecção com vista a verificar, no ano de 2000, a declaração das mais-valias resultantes da cessão de quotas;

2) De acordo com o contrato de cessão de quotas celebrado por escritura pública, em 26/03/1993, verifica-se que J ..... dividiu a sua quota de € 1.246,99 em duas quotas de € 623,49, cedidas a A ..... e M ..... . Relativamente a M..... , a sua quota de € 1.246,99 foi dividida em duas quotas de € 623, 49 cedidas a M ..... e J ..... , sendo o preço de cada uma das cessões, no valor de € 374.098,43;

3) De acordo com o contrato de cessão de quotas e alteração celebrado por escritura pública datada de 20/12/2000, verificou-se que as quotas adquiridas em 1993, com o valor nominal de € 623,50 foram cedidas pelo valor de € 374.098,43 a J ..... ;

4) Assim, e após diligências efectuadas quanto à declaração de rendimentos, foi o ora impugnante notificado para facultar, nos termos e para os efeitos do artigo 128.° do CIRS, fotocópias do meio de pagamento na aquisição e na alienação;

5) Não tendo sido apresentados os documentos comprovativos, foram efectuados s cálculos das mais-valias nos termos da alínea b) do n.° 1 do artigo 10.° e do n.° 4 do mesmo artigo do CIRS, pelo que o valor apurado foi de € 373.098,43 (€ 374.098,43- €623,50);

6) Conforme despacho de 9/9/2005, constante de fls. 124 do PAT apenso aos autos, o acto impugnado foi parcialmente revogado, na parte respeitante à pretensão do Recorrente que se prendia com a opção pelo não englobamento dos rendimentos da categoria G, atento o teor do oficio-circulado 2785, de 20/1 /1998;

7) A AF apenas teve conhecimento da aquisição da quota aquando da entrega
da declaração de rendimentos em 27/12/2003;

8) O ora impugnante deduziu a presente impugnação em 10/02/2005”.

3 – O que está em causa é a questão de saber se o valor de aquisição a título oneroso de partes sociais só pode ser documentalmente provado, nos termos do artigo 48º do CIRS, mediante a apresentação de prova do meio de pagamento utilizado na aquisição da quota ou se pode ser efectuado através da escritura pública.

Estabelece o artigo 48º do CIRS:

“No caso da alínea b) do nº 1 do artigo 10º, o valor de aquisição, quando esta haja sido efectuada a título oneroso, é o seguinte:
a) (…);
b) Tratando-se de quotas ou outros valores mobiliários não cotados em bolsa de valores, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respectivo valor nominal;
(…).

A Administração Fiscal entende que a comprovação só pode ser efectuada através do meio de pagamento utilizado na aquisição; ao invés, o impugnante entende que o custo da quota adquirida por escritura pública em Março de 1993 está documentalmente provado através da própria escritura pública, que é meio idóneo que atesta e comprova, de forma plena, o preço de aquisição, tanto mais que, tendo solicitado ao Banco Espírito Santo que disponibilizasse uma segunda via do extracto bancário da conta à ordem nº 004291140001, do período compreendido entre o dia 1 e o dia 31 de Março de 1993, aquela entidade bancária informou que já não poderia satisfazer o pedido por ter decorrido o prazo legal de 10 anos de obrigatoriedade de conservação dos referidos elementos e de, entretanto, os haver destruído.

Salvo o devido respeito, a escritura pública não pode deixar de ser considerada
como documento idóneo para documentar o preço de aquisição da quota.
Na verdade, idóneo é um adjectivo que significa apropriado, adequado, conveniente.
Na Jurisprudência, "documento idóneo" tem sido entendido como um documento escrito que demonstre a existência dos factos constitutivos do direito, como se escreveu no Ac. do STJ, de 18.1.2005, R. 4S923 – cfr. http://www.dgsi.pt/ - e na Doutrina, como "Um documento que demonstre a existência dos factos Constitutivos do crédito" - cfr. Monteiro Fernandes, em Direito do Trabalho, 10ª edição, págs. 423, ou "o documento escrito que demonstre a existência dos factos constitutivos do crédito", para Bernardo da Gama Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho", Verbo, Lisboa, 1993, pág. 447 e segs.

A harmonia do sistema é atingida pela admissibilidade plena dos meios de prova e inclui sempre “outro documento idóneo”, como se doutrina por exemplo no Ac. do STA de 2.3.2006, R. 0528/05 – http://www.dgsi.pt/: “A restrição dos meios de prova, no procedimento administrativo, sem existência de lei prévia nesse sentido, deve considerar-se ilegal, de acordo com a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal – cfr. Acs. de 9/11/2004, proferido no recurso n.º 248/03, de 24/11/2004, proferidos nos recursos nos 197/03 e 225/03, de 16/12/04, proferido no recurso n.º 181/03, e de 25/1/05, proferidos nos recursos nos 175/03, 177/03, 202/03, 203/03 e 208/03.
Correcta é, assim, uma interpretação do artigo 48º do CIRS que, para além do meio de prova exigido pela Administração Tributária, permita que os contribuintes apresentem outros documentos de prova, sobretudo nos casos em que já não podem, por motivos a que são alheios, apresentar aquele que a AT entende ser o correcto.
Tal entendimento, segundo a jurisprudência do STA acima citada, que julgamos válida para todos os casos não excluídos expressamente pelo legislador, decorre do disposto no art. 87º, 1 do CPA, quando consagra a admissibilidade de “todos os meios de prova admitidos em direito”.

As escrituras públicas, como documentos autênticos que são, revestidos da força probatória contemplada no art. 371º do CC, fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Tal força probatória não se estende à veracidade ou verosimilhança, ou seja, a correspondência com a realidade dos factos das declarações dos outorgantes-intervenientes.
Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado (ver Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. 1, 4ª ed, pág. 328).
Assim, no que toca ao preço, este só estará coberto pela força probatória plena do documento autêntico se o notário tiver atestado esse facto através da sua percepção directa, ou seja, que tal pagamento haja sido feito na sua presença.

O que não aconteceu no caso dos autos.

Diz o sumário do Ac. do STJ, de 09/06/2005, Recurso nº 05B1417:

“I. O contrato de cessão de quotas deve, face ao preceituado no artº 228 do CSC 86, ser celebrado por escritura pública sob pena de nulidade (artº 220 do CC).

II. As escrituras públicas como documentos autênticos que são (artº 371º do CC) fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.

III. Tal força probatória não se estende, porém, à veracidade, realidade ou verosimilhança das declarações dos outorgantes-intervenientes.

IV. A prova de que as declarações produzidas pelos outorgantes em presença do oficial público (notário) não correspondem à verdade não implica a necessidade de arguir a falsidade do documento por ele elaborado.

V. O preço e respectivo pagamento só estarão cobertos pela força probatória plena do documento autêntico se o notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), ou seja que tal pagamento haja sido feito na sua presença.

VI. Há que distinguir entre confissão e admissão ou mera declaração de um facto (ou situação factual): assim, a declaração constante de uma escritura de cessão de quotas na qual é mencionado pelo cedente o recebimento do preço ou de um dado preço, não pode ser havida como confissão, por não conter a admissão pelo declarante da veracidade de tal recebimento; a materialidade da declaração é indiscutível, porém o respectivo conteúdo, porque não atestado pelo oficial público, é passível de demonstração/impugnação, designadamente através de prova testemunhal”.

Daí que, relativamente à escritura pública de cessão de quota a que se reportam os autos, apenas esteja provado plenamente que na presença do notário foi declarado que a quota seria cedida pelo valor de € 374 098,43.

É óbvio que não fica inviabilizada a prova de que o preço recebido tenha sido de montante diferente.

Só que, a nosso ver, tal prova incumbe à Administração Tributária, nos termos do artigo 74º da LGT.
De resto, por força do disposto no artigo 75º do mesmo diploma, presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei.

Ora, não tendo a AT efectuado qualquer prova de que o preço da quota adquirida em 1993 tenha sido diferente do que consta da respectiva escritura pública, deve considerar-se como preço de aquisição o que consta daquela mesma escritura pública.
De resto, seria sempre uma violência a exigência de que a comprovação só poderia ser efectuada através de um único meio de prova – o meio de pagamento utilizado na aquisição. É que, se assim fosse, tal exigência teria que constar da lei, o que não acontece.
Por outro lado, como já se disse, o contribuinte está impossibilitado de utilizar esse meio de prova por motivos a que é alheio. Nem ele é obrigado a guardar, durante tantos anos, o documento comprovativo da aquisição, nem a entidade bancária.

Por outro lado, a actuação da AT não prima pelo rigor e pela transparência no presente caso.
Se não atende ao preço da aquisição da quota constante da escritura pública lavrada em 1993 já lhe não repugna aceitar o preço de venda referido na escritura lavrada em 20/12/2000.
Ora, tal actuação viola de forma grosseira as mais elementares regras da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
Dispõe o artigo 55º da LGT que “A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”.

Por força do preceituado no art. 266º da C.R.P., esta actividade tem de ser levada a cabo em subordinação à Constituição e à lei e deve respeitar os direitos e interesses legítimos dos cidadãos (princípio da legalidade) e os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”.
(…).
“Os princípios da justiça e imparcialidade impõem à administração que trate de forma justa e imparcial os que com ela entrem em relação (art. 6º do C.P.A.).
No domínio do procedimento tributário, estes princípios reclamam que a administração tributária se norteie por critérios de isenção na averiguação das situações fácticas, realizando todas as diligências que se afigurem necessárias para averiguar a verdade material, independentemente de os factos a averiguar serem contrários aos interesses patrimoniais que à administração tributária cabe defender.
(…).
O princípio da boa fé determina que a administração deve relacionar-se com os particulares de acordo com as regras da boa fé, ponderando os valores fundamentais do direito, designadamente a confiança suscitada pela sua actuação e o objectivo a alcançar” (Lei Geral Tributária, de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, 2ª edição, comentada e anotada, 2000, págs. 214 e 215).

4 - Pelo exposto, emito parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.